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Sussumo Matsui MEDICINA E POLÍTICA: A polêmica de Platão com a medicina na República. Brasília 2015

Sussumo Matsui - Repositório Institucional da UnB: Homerepositorio.unb.br/bitstream/10482/18954/1/2015_SussumoMatsui.pdf · indicações bibliográficas e com os primeiros passos

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Sussumo Matsui

MEDICINA E POLTICA:

A polmica de Plato com a medicina na Repblica.

Braslia

2015

Sussumo Matsui

MEDICINA E POLTICA:

A polmica de Plato com a medicina na Repblica.

Dissertao apresentada ao programa de

Ps-graduao em Filosofia da

Universidade de Braslia, Linha de

Pesquisa Filosofia Antiga e Medieval,

como requisito parcial obteno do

ttulo de Mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli

Braslia

2015

Sussumo Matsui

MEDICINA E POLTICA:

Polmica de Plato com a medicina na Repblica.

Dissertao apresentada ao programa de

Ps-graduao em Filosofia da

Universidade de Braslia, Linha de

Pesquisa Filosofia Antiga e Medieval,

como requisito parcial obteno do

ttulo de Mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli

_______________________________________________________

Prof. Dr. Gabriele Cornelli

Universidade de Braslia

_______________________________________________________

Prof . Dr. Mriam Campolina Diniz Peixoto

Universidade Federal de Minas Gerais

_______________________________________________________

Prof. Dr. Rodolfo Lopes

Universidade de Braslia

Braslia

___/___/2015

Dedico este trabalho minha esposa, que

soube compreender os meus momentos de

ausncia.

AGRADECIMENTOS

Ao prof. Dr. Gabriele Cornelli pela confiana, pela infinita disponibilidade e por toda

orientao na conduo deste trabalho.

prof. Dr. Mriam Campolina pelos conselhos e conversas que muito me ajudaram

no amadurecimentodeste tema.

Ao prof. Dr. Silvio Marino, que mesmo estando na Itlia, sempre me ajudou com as

indicaes bibliogrficas e com os primeiros passos na tradio hipocrtica.

prof. Dr. Agatha Bacelar, amiga, sempre gentil, alegre e presente.

prof. Dr. Loraine de Ftima Oliveira pelas muitas dicas e por estar sempre pronta a

ouvir.

CAPES pela bolsa concedida, pois sem esta seria impossvel a realizao deste

trabalho.

RESUMO

O fio condutor deste trabalho gira em torno da relao entre a filosofia platnica e a medicina.

Em seu nascimento, a medicina encontra diversas interfaces de dilogo com a filosofia

tambm nascente. Diversos comentadores se dedicaram a desvendar os percursos desta

relao. Falar sobre a relao de Plato com a medicina exige que esse dilogo seja

enquadrado no ambiente da polis dos sculos V e IV aEN, sempre em dilogo com os escritos

hipocrticos. Ao contrrio de Galeno e da tradio platnica, seguimos a hiptese que Plato

estaria polemizando contra a medicina de sua poca. Para demonstrar isso, voltamos crtica

de Plato medicina hipocrtica e suas respectivas consequncias sociais na Grcia clssica.

A hiptese desta dissertao que Plato teria sido um conhecedor das teorias mdicas da sua

poca e, atacando as novas correntes teraputicas nascentes, se posiciona a favor de uma

reforma na medicina da Atenas histrica. Reforma de um projeto de medicina decadente, que

ele chama de pedagogia da doena, pois gera cidados hipocondracos, que usam a sade

como libi para se esquivarem das obrigaes polticas.

PALAVRAS-CHAVE: Plato, medicina hipocrtica, sade, filosofia, poltica.

ABSTRACT

The thread of this work revolves around the relationship between Platonic philosophy and

medicine. In his "birth", the medicine has different dialog interfaces with philosophy also

"spring". Several commentators have dedicated themselves to unravel the pathways of this

relationship. Talk about Plato's relationship with medicine requires that this dialogue be

framed in the polis of the environment of the fifth and fourth centuries BCE, always in

dialogue with the Hippocratic writings. Unlike Galen and the Platonic tradition, we follow the

hypothesis that Plato would polemic against the medicine of his time. To demonstrate this, we

turn to criticism of Plato medicine "Hippocrates" and their social consequences in classical

Greece. The hypothesis of this work is that Plato would have been a connoisseur of medical

theories of his time, and attacking new therapeutic currents springs, stands in favor of a

reform in medicine historic Athens. Reform a decadent medicine project, which he calls the

pedagogy of the disease, because it generates hypochondriacs citizens, using health as an

alibi to shirk the political obligations.

KEYWORDS: Plato, Hippocratic Medicine, Health, Philosophy, Politics.

SUMRIO

INTRODUO

CAP. 1. PROBLEMAS NAS ABORDAGENS DE PLATO E A MEDICINA

1. PLATO E A MEDICINA NOS DEBATES ANTIGOS E

CONTEMPORNEOS.

1.1. Gnese do problema: Plato e a medicina na Antiguidade.

1.1.1. A medicina na Academia antiga.

1.1.2. O mdico das almas e do corpo no medioplatonismo.

1.1.3. Galeno: Plato, o imitador de Hipcrates.

1.1.4. A medicina em Plato depois de Galeno.

1.2. Debates contemporneos.

1.2.1. A teoria das trs correntes de medicina: hipocrtica, itlica, cnidiana.

1.2.2. A questo hipocrtica e Plato: onde est o verdadeiro Hipcrates?

1.2.3. Interpretao de Plato como leitor de Hipcrates.

1.2.4. Plato como cientista natural.

2. PLATO E A MEDICINA LUZ DAS NOVAS LEITURAS DE PLATO.

2.1. Plato e a medicina na leitura unitarista.

2.1.1. Interpretao unitarista e esotrica.

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2.1.2. A medicina na tica unitarista: modelo para Plato.

2.2. Plato e a medicina na leitura evolucionista.

2.2.1. Pressupostos evolucionistas na abordagem dos dilogos.

2.2.2. A recente crtica ao evolucionismo e novos caminhos para ler Plato.

2.2.3. A medicina segundo o evolucionismo: craft-analogy e

descontinuidades.

2.3. A medicina em Plato no contexto poltico.

2.3.1. Princpios para leitura da poltica em Plato.

2.3.2. Leitura moralizante da Repblica e o debate sobre o vegetarianismo e

sade.

2.3.3. A leitura totalitria da Repblica III: A crtica de Popper ao historicismo

e engenharia social de Plato.

2.3.4. A ironia na Repblica III: interpretao de Leo Strauss.

3. ALGUMAS CONCLUSES PRELIMINARES.

CAP.2. A MEDICINA NA REPBLICA: ANALOGIAS E POLMICAS.

1. A MEDICINA ENTRE METFORAS E ANALOGIAS.

1.1. Medicina como craft-analogy.

1.1.1. O papel do Livro I na Repblica.

1.l.2. O propsito da personagem Trasmaco.

1.1.3. O propsito da craft-analogy no Livro I.

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1.1.4. A medicina nos argumentos desenvolvidos pela craft-analogy no Livro I.

1.2. Medicina como analogon.

1.2.1. O desenvolvimento do analogon no Livro II.

1.2.2. Aproximaes entre medicina e justia.

2. CRTICA MEDICINA: NOVAS DOENAS, NOVAS TERAPIAS, NOVOS

DOENTES.

2.1. Novas doenas: mais tribunais e mais mdicos.

2.1.1. Analogon: multiplicao de tribunais.

2.1.2. Multiplicao de clnicas e novas doenas.

2.1.3 Crtica ao progresso a qualquer custo.

2.2. Novas terapias: medicina de Asclpio versus Herdico.

2.2.1. As prticas teraputicas na Ilada: o tratamento de Macon e de

Eurpilo.

2.2.2. Novas terapias: Herdico e a pedagogia da doena.

2.3. Novos doentes: os dois grupos.

2.3.1. A medicina diettica e a diviso dos pobres e dos ricos.

2.3.1. A medicina de Asclpio e a diviso entre curveis e incurveis.

3. ALGUMAS CONCLUSES PRELIMINARES.

CAP.3. O CONCEITO DE SADE, MEDICINA E MDICO NA REPBLICA.

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1. O CONCEITO DE SADE.

1.1. O conceito de justia e a alma tripartida.

1.2. O conceito de aes justas e a sade.

2. O CONCEITO DE MEDICINA.

2.1. O Princpio da Oposio e o Princpio da Qualificao.

2.2. Medicina: cincia da sade e da doena.

3. O CONCEITO DE MDICO.

3.1. Os mdicos gregos: busca pela autoridade.

3.2. Os agathoi iatroi e a reforma do sistema de sade.

3.2.1. Ataque ao mito de Asclpio: filho de um deus no vido de ganho

srdido.

3.2.2. Os bons mdicos e sua formao.

3.2.3. Os bons mdicos e cura do corpo pela alma.

4. ALGUMAS CONCLUSES PRELIMINARES.

CONCLUSO

APNDICE 1

APNDICE 2

REFNCIAS BIBLIOGRFICAS

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INTRODUO

Em praticamente todos os dilogos platnicos h uma referncia sade, medicina,

tratamento, cura ou mdico. Apesar disso muito pouco se tem escrito sobre a relao entre

Plato e a medicina (VEGETTI, 1995, p.vii). Talvez porque estudar esta relao seja uma

tarefa especialmente desafiadora. Existem, de fato, algumas dificuldades neste estudo que

podem no ser percebidas antes de se iniciar tal investigao.

A primeira dificuldade o fato de Plato no escrever um dilogo especfico sobre a

medicina. Temas mdicos permeiam todo o Corpus de dilogos, se encontrando,

confrontando e ilustrando vrios temas, com propsitos diversos. Eles se situam (VEGETTI,

1995, p.vii) no plano metafrico, analgico, epistemolgico, crtico e mdico-biolgico tout

court1. difcil achar um fio condutor que ligue todas as referncias medicina nos dilogos,

por isso necessrio a sua contextualizao. A noo de sade e doena, por exemplo,

utilizada para explicitar (LLOYD, 2003, p.142) alguns aspectos nucleares do pensamento

platnico como sua psicologia e sua teoria da justia. Porm nem sempre estas teorias

platnicas (se que exista uma) possuem consenso entre os estudiosos, logo as analogias

evocadas para explicit-los ficam merc de suas interpretaes.

A segunda dificuldade reside nas caractersticas do dilogo: Plato nunca fala em

primeira pessoa. Ele usa Scrates, Teeteto, o Estrangeiro de Elia, Diotima, o Ateniense,

Timeu, etc. Neste contexto, aluses preciosas sobre a medicina do seu tempo aparecem ora na

boca de Scrates, ora na boca de seus interlocutores; muitas vezes, a concluso deste elenchos

uma aporia formal, tornando ainda mais difcil compreender a valncia terica das

aproximaes com a medicina.

Por fim, a terceira dificuldade est no tratamento das fontes. Plato no cita os tratados

hipocrticos como ele cita Homero, antes ele dialoga com as ideias da medicina utilizando-as

para seus prprios propsitos (KUCHRASKI, 1939, p.301ss). Por isso, no se pode dizer que

Plato leu determinado livro do Corpus hippocraticum, ou que determinado dilogo uma

reao direta a estas obras.

1 Como o caso do Timeu.

11

Acrescenta-se que, com os livros e fragmentos que chegaram at nossos dias,

dificilmente podemos identificar algum tratado que tenha derivado diretamente da pena de

Hipcrates. Ao falar sobre Hipcrates ou mdicos hipocrticos, somos necessariamente

obrigados a entender um evento cultural e antropolgico, um campo de pensamento

produzido no mbito do saber mdico, que surgiu no sculo V aEN.

A tradio, atravs de Galeno, nos legou uma ideia que Plato estaria adaptando os

conceitos e o vocabulrio da medicina hipocrtica para sua filosofia. Plato pareceria ser de

fato um grande admirador de Hipcrates, como comprovaria o elogio que faz de seu mtodo

no Fedro.

Todavia, este entendimento tem sido questionado, especialmente nas ltimas dcadas.

Plato parece, de fato, estar mais interessado em polemizar e colocar um limite na medicina.

Esta ideia nos surgiu ao ler a crtica medicina no Livro III da Repblica. Levin (2014,

p.115) admira que a um texto to rico para o debate no foi dada a devida ateno por parte

dos estudiosos. A passagem no uma simples digresso; ela faz parte de uma srie de

crticas paideia da Atenas histrica. O texto nos levou a levantar a hiptese que Plato

estaria fazendo, pela verdade, uma crtica medicina hipocrtica e no, como se considera em

geral, buscando nela um paradigma para suas ideias polticas.

A metfora entre medicina e poltica no uma inovao de Plato. Ela aparece j

antes de 430 aEN, mas se torna frequente durante e aps a peste que assolou Atenas durante a

Guerra do Peloponeso (BOYASK, 2007, p.1-7). No faltaram menes sade e doena nas

tragdias e nas comdias. Tucdides (6. 14) utiliza a expresso mdico da cidade, em um

contexto de voto e discusso sobre o bom cidado.

Se Plato polemiza contra a Weltanshauung de sua poca, da qual os sofistas, os

poetas, os trgicos, Tucdides e os polticos so seus representantes; e se eles se valeram do

modelo grego de medicina para esclarecer ou desenvolver suas teorias polticas, ento Plato

parece tentar refutar este modelo de medicina tambm. O uso platnico destas metforas e

analogias meticulosamente articulado. No parece que ele esteja usando o mesmo conceito

de medicina que os gregos frequentemente imaginavam. Isso pode ser confirmado no Livro I

da Repblica, onde Trasmaco evoca a figura do mdico. Scrates retruca apelando para o

bom mdico.

12

Dizer que Plato est polemizando contra a medicina hipocrtica pode incorrer no

risco de sermos mal interpretados, ao pensar que o alvo especfico de Plato foi Hipcrates e

seus discpulos. Alm disso, existe o espinhoso e rduo problema da datao. No h como

precisar o ano especfico em que os tratados hipocrticos foram escritos. Alguns escritos

foram considerados do sculo V aEN, mas outros foram, sem sombra de dvidas, redigidos

durante o perodo romano. Para isso, apresentamos no Apndice 1, um quadro das obras

hipocrticas datadas dos sculos IV e V aEN. A datao apresentada segue os mais recentes

estudos de Schiefsky (2005), Jouanna (1992) e Garcia Gual (2008); e tenta ser o mais geral

possvel limitando-se a dizer o perodo do sculo em que provavelmente a obra foi

publicada.

Estudar mais precisamente a crtica de Plato medicina hipocrtica e s suas

respectivas consequncias sociais importante para lanar luz s margens dos dilogos

platnicos. Acreditamos que Plato deva ser interpretado, obviamente pelo seu texto, mas

tambm pelas diversas aluses que ele faz aos seus contemporneos. Por isso, pensamos que o

estudo platnico deve andar em conjunto com a filologia, a histria, a medicina, a

matemtica; porm tomando sempre o cuidado de no se reduzir a estes. Seguindo este

pressuposto, nos valemos de diversas e mais atuais fontes de pesquisa: historiadores, fillogos,

historiadores da medicina, intrpretes de Plato, etc.

A necessria economia desta dissertao no nos permite ir muito alm, visitando

todas as passagens do Corpus platnico, por isso nos limitamos a investigar os quatro

primeiros livros da Repblica. Esta escolha se deu por causa da centralidade da Repblica nas

discusses sobre a poltica em Plato. Da mesma forma, os primeiros livros apresentam uma

abordagem filosfica da poltica na qual a medicina exerce um papel especialmente

importante. Para isso, dividimos a presente dissertao em trs captulos.

No primeiro captulo, identificaremos a gnese da relao entre Plato e os

hipocrticos na Antiguidade e seu desenvolver nos nossos dias. O frequente uso socrtico das

metforas mdicas unidas com o desejo de uma salvao deu origem imagem helenstica de

um Plato mdico das almas. Com Galeno, esta metfora toma um rumo diferente: Plato

discpulo de Hipcrates. Plato visto como um mdico, que escreveu sobre medicina. Sob

formatos diferentes, estas ideias persistem at a atualidade. Veremos tambm alguns pontos

de interseco entre as interpretaes do Plato poltico com a temtica da medicina.

13

No segundo captulo analisaremos o uso da medicina na craft-analogy, iniciando pelo

Livro I de Repblica. No desenrolar dos Livros II e III, veremos como Plato se vale da

medicina no analogon entre a cidade e a alma. Em seguida, caminharemos para considerar os

pormenores da crtica ao sistema mdico da Atenas dos sculos V e IV aEN.

No terceiro captulo, iremos tentar responder pergunta sobre quem seria o bom

mdico para Plato. Para responder de uma maneira mais precisa possvel, buscaremos no

Livro IV os conceitos de sade e medicina. Neste momento, visitaremos os conceitos de

sade e de medicina que existem nos tratados mdicos unanimemente datados dos sculos V e

IV aEN. Em seguida, confrontaremos os resultados com a abordagem platnica medicina.

Como resultado da pesquisa, constatamos que, na Repblica, Plato est atacando as

novas terapias da medicina que lhe era contempornea e propondo uma reforma no seu meio.

Ele parece polemizar com a medicina da mesma forma que polemizava com os sofistas, ou

seja, apropriando-se de seus conceitos para us-los contra eles. Para que se veja com clareza,

necessrio a desconstruo de uma imagem de Plato, a imagem que Galeno construiu:

Plato, o grande imitador de Hipcrates.

Por fim, para as obras e autores da Antiguidade nos valemos das abreviaturas de

Liddell-Scott-Jones. Utilizamos as normas do Archai (2014, p.193) para a transliterao dos

caracteres gregos.

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CAPTULO PRIMEIRO

PROBLEMAS NAS ABORDAGENS DE PLATO E A MEDICINA.

Parte da imagem que temos de Plato um constructo que se desenvolveu desde a

Antiguidade tardia, dentro e fora do que se chama hoje de platonismo. A relao de Plato

com a medicina de seu tempo est inserida nesta inveno que se prolongou at hoje se

mesclando com as diversas interpretaes de Plato.

Alm disso, aquele que tenta escrever sobre Plato e a medicina logo ver o porqu

tais escritos no so to comuns. No se pode fazer jus ao tema sem uma mnima discusso

sobre as noes platnicas de alma, poltica, techne, etc. Nem se pode falar sobre esta questo

sem tocar nos debates atuais sobre a cronologia dos dilogos, sobre as hipteses unitaristas

e evolucionistas do pensamento de Plato e sobre a imagem de um Plato poltico.

1. PLATO E A MEDICINA NOS DEBATES ANTIGOS E

CONTEMPORNEOS.

A relao entre Plato e a medicina de seu tempo foi notada desde a antiguidade tardia.

De um lado, alguns filsofos de influncia estica interpretavam a filosofia como uma

medicina da alma, capaz de curar os medos e as tristezas humanas. Referiram a Scrates e

Plato como sendo mdicos das almas. De outro lado, Galeno tentou conciliar os dilogos de

Plato com os escritos de Hipcrates. O mdico de Prgamo escreveu uma obra extensa

conhecida como De Placitis ou As Doutrinas de Hipcrates e Plato, alm de um comentrio

ao Timeu, do qual restaram apenas fragmentos.

15

Na modernidade os classicistas buscaram o verdadeiro Hipcrates2. Este debate rendeu

duas frentes. Na primeira frente, tentou-se separar a escola de Cs, racional, da escola de

Cnido, emprica. Na segunda frente, tentou-se descobrir qual era o escrito que Plato citava no

Fedro, para descobrir o escrito da pena de Hipcrates. Surgia o debate chamado Questo

Hipocrtica. No meio deste debate, muitos classicistas e pesquisadores do platonismo fizeram

ligaes entre o Corpus hippocraticum e Plato. Estas ligaes se deram atravs da anlise de

vocbulos e analogias que lhes eram comuns.

1.1. Gnese do problema: Plato e a medicina na Antiguidade.

Plato morreu no primeiro ano da centsima oitava Olimpada, no dcimo terceiro

reinado de Felipe da Macednia, 347 aEN, e foi enterrado na Academia. Existem poucas

informaes confiveis sobre sua vida3. Em seus escritos, Plato se manteve fora de cena

4. Ele

aparece somente duas vezes nos dilogos, uma no julgamento de Scrates (Ap. 34a) e outra

para explicar sua ausncia nas ltimas horas do seu mestre (Phd. 59b).

Alguns amigos e discpulos escreveram sobre ele, entre eles esto Espeusipo,

Xencrates, Filipo de Opunte, Hermodoro e Erasto. Porm, suas obras foram mais elogios que

biografias e mesclaram lendas e fatos (GUTHRIE, 1990, p. 19-20). Seu sobrinho, Espeusipo,

atribuiu-lhe uma origem divina, o deus Apolo (DL, 3.2). Todos estes primeiros escritos se

perderam e a Vita mais antiga que chegou at ns foi escrita por Apuleio5 no sc.II d.E.N.

6

Ele escreveu sobre Plato em De Platone et eius dogmate apoiando-se em relatos legendrios

e anedticos provindos da Academia antiga (1. 1-4).

2 Este debate se consolideou com Littr (1839-1861), mas antes dele inmeros clacissistas levantaram diversas

hipteses, para uma discusso pormenorizada ver Lonie (1978, p.42-75; 1978, p.77-92). 3 Para a vida de Plato cf. Nails (2011, p.17-27); Guthrie (1990, p. 19-41); Vegetti (2003, p.9-22); Crombie

(1962, p.13-21). 4 Se a Carta VII autntica, pode-se declarar que estamos diante de um documento autobiogrfico. Contudo

existem muitas controvrsias sobre sua autenticidade. Para esta discusso ver: Brisson (2003, p.23-34); Irwin

(2009, p.7-43); Guthrie (1990, p.16-34); Vegetti (2003, p.9-21). Vegetti nota que a maioria dos que levantam

argumentos contra ou a favor da autenticidade da Carta VII, fundamentam-se no pressuposto de um Plato

poltico ou despolitizado. Ns aceitamos a Carta como, se no autntica, um testemunho verossmil da vida de

Plato. 5 Albert (2011, p.47-54) defende a tese que Apuleio, apesar de carregar o ttulo de philosophus platonicus, no

era um platonista em sentido estrito, pois mesclava as teorias de Plato com elementos aristotlicos, esticos e

hermticos. Porm esta uma posio controversa. O prprio Albert o considera ao lado dos medioplatnicos. 6 H tambm uma Vita annima e outra escrita por Olimpiodoro no sculo VI da nossa era.

16

No muito posterior est o livro de Digenes Larcio, Vida e doutrina dos filsofos

ilustres. Este ltimo carece de critrios crticos aceitos na atualidade, mas sem dvida a mais

valiosa biografia por causa de sua meno de fontes antigas, entre os quais esto

contemporneos de Plato e Aristteles.

A maioria dos bigrafos da antiguidade segue o padro de vida feito na medida do

bibliotecrio alexandrino Apolodoro7, dividindo as vidas dos antigos em quatro perodos de

vinte anos (NAILS, 2011, p.17). Segundo este esquema, Plato teria nascido em 427 aEN,

encontrado com Scrates aos 20 anos, fundado a Academia aos 40, viajado para Siclia aos 60

e vindo a falecer aos 808.

1.1.1. A medicina na Academia antiga.

Em algum momento de sua vida Plato fundou a Academia nos jardins pblicos de

Atenas dedicado ao heroi Academo (DL, 3. 7). Todavia parece pouco provvel que a escola

de Plato gozasse de um reconhecimento oficial por parte da polis ateniense (VEGETTI, 2003,

p.204). Existem vrias hipteses sobre a Academia afirmando que era: uma sociedade festiva

onde se realizavam banquetes, uma seita religiosa de salvao espiritual, um seminrio

universitrio de pesquisa cientfica, uma comunidade de formao poltica, uma nova forma

de sociedade secreta que aspirava a conquista do poder (VEGETTI, 2003, p.201). Talvez

exista um pouco de verdade em cada uma destas suposies.

A Academia era uma comunidade de intelectuais reunidos em torno de Plato, que

autossustentavam e buscavam vrios interesses. provvel que no existisse um corpo

docente e nem alunos que assistiam uma srie de cursos para qualific-los a exercer algum

cargo, ofcio ou posio na polis (MUELLER, 2013, p.201). Testemunhos antigos atestam

uma forte tendncia para os estudos de geometria, astronomia e matemtica dentro da

Academia9. Mas um fragmento do comediante Epicrates

10, contemporneo de Plato, sugere

que na Academia eram realizados estudos de outras disciplinas.

7 Para maiores detalhes sobre o gnero biografia na antiguidade cf. Untersteiner (1980, p.223-48). Untersteiner

sustenta que as biografias tardias se fundem com os diadochai e com os doxai do filsofo. 8 necessrio ter em mente que nem todos escreveram elogiando Plato. Cf. Brisson (2003, p.35-54); Chroust

(1962, p.98-118); Guthrie (1990, p.20-23). Durante a antiguidade houve um anti-platonismo que tentava

desvalorizar uma doutrina em detrimento de outra com a acusao de plgio. Chroust afirma que nenhum autor

da antiguidade foi to atacado como Plato. 9 Cf. Vegetti (2003, p.208-13); Mueller (2013, p.201-9). Ver tambm Isoc. 15. 354.

17

Neste fragmento algum pergunta o que Plato, Espeusipo e Menedemo esto fazendo

agora, que tipo de argumento eles esto investigando. Outra pessoa responde que, no festival

panatenaico, ele viu jovens alegres nos ginsios da Academia fazendo distines e definies

sobre a natureza, a vida dos animais, a natureza das rvores e o gnero dos vegetais. Entre

outras coisas, diz o narrador, estavam discutindo o gnero da abbora. Refletiam se a abbora

era um legume, uma gramnea ou uma rvore. Ento, um mdico siciliano, que ouvia essas

coisas, bufou para aqueles tolos. Plato estava presente. Tranquilamente mandou que eles

comeassem de novo a definir o gnero da abobora e eles continuaram.

Esta representao cmica, que faz da figura de Plato um supervisor uma

classificao biolgica dentro da Academia, parece no ser compatvel com a proposta

educacional da Repblica. A esta objeo Vegetti (2003, p.206) e Mueller (2013, p.204)

respondem que a Academia deve ser concebida como um ambiente em que o texto da

Repblica foi escrito, elaborado e discutido, e no como um local onde seu programa

educativo deveria ser aplicado11

. Cherniss (1962, p.62-3) defende que esta pardia de

Epcrates uma evidncia do mtodo de diviso e classificao praticado pelos membros da

Academia. Porm isto no elimina a possibilidade de existirem discusses internas sobre as

teorias fsicas e fisiolgicas quando Plato escreveu o Timeu.

A comdia nada fala se o mdico siciliano pertencia ou no Academia. Nada

podemos inferir da imagem de um mdico, a no ser que ele desdenhou da discusso atravs

de um bufo e considerando-a frvola e tola. Porm existem alguns mdicos e filsofos da

natureza que so relacionados com a Academia na antiguidade: Timeu de Locros12

, Filiston

de Locros13

e Eudoxo de Cnido14

. Mesmo que alguns sejam considerados mticos, existem

fortes indcios que Plato tenha debatido tambm sobre a medicina os quais sero

demonstrados ao longo desta dissertao.

Aps a morte de Plato comearam muitas controvrsias dentro da Academia

(CHERNISS, 1962, p.74) sobre a sua teoria da alma, sobre as Formas e sobre a interpretao

do Timeu. Isto parece comprovar que no havia uma doutrina nica na Academia (GUTHRIE,

10

Cf. Epcrates (2007, p.502-3). 11

Contra esta ideia ver Guthrie (1990, p.463). 12

Gomperz (2011, p.226ss) acredita na existncia de um Timeu histrico, seguindo Ccero (R.I, X). Lloyd (2009,

p.157) defende que Timeu o prprio Plato. Para a questo do Timeu histricover o comentrio de Lopes (2011,

p.20-23) na introduo do dilogo Timeu. 13

Cf. Pl. Ep. II.314d-e 14

Cf. DL, 8. 86.

18

p.463), nem uma ortodoxia, seno uma ampla variedade de teorias no seu interior. A primeira

codificao feita da filosofia de Plato foi executada por Espeusipo e Xencrates. Parece que

eles tentaram matematizar a filosofia e desenvolver uma teoria astral (VEGETTI, 2003,

p.216). Todavia, antes destas teorias desenvolverem e tomarem forma de um platonismo

doutrinal, a Academia sofreu uma virada dramtica. Sob a liderana de Arcesilau se

desenvolveu o ceticismo, ou seja, a crtica a toda pretenso de verdade dos sistemas

filosficos dogmticos, tanto esticos como aristotlicos. Nos prximos dois sculos, os

filsofos acadmicos seriam vistos como os que suspendem o julgamento sobre tudo

(LONG, 2011, p.390).

1.1.2. O mdico das almas e do corpo no medioplatonismo.

No sculo I aEN, o ceticismo perdeu a fora e a maioria dos platnicos retornou a um

estudo dos dilogos concentrado na identificao de doutrinas, dando origem ao que se chama

de platonismo15

mdio e neoplatonismo (LONG, 2011, p.391). A escolha foi radicalmente

oposta tendncia ctica. As diversas seitas nascentes se mostravam rivais, o ambiente

cultural da sociedade imperial romana aspirava salvao espiritual, buscando respostas

msticas e religiosas. Ento, o platonismo se voltou para a construo de um sistema

metafsico-teolgico.

Neste perodo Ccero (106 - 43 aEN), grande orador e estadista romano, que no era

estico, embora tenha estudado intensamente o estoicismo e conheceu pessoalmente

Posidnio (BRENNAN, 2010, p.27), escreve as Tusculanas. Nesta obra, Ccero define a

filosofia como medicina da alma (Tusc. 3. 1). Segundo ele, existe uma medicina da alma, ou

seja, a filosofia, que no deve ser buscada fora de ns, como a medicina do corpo. Esta

medicina da alma deve ser capaz de ajudar o homem a curar a si mesmo. Se o homem for

buscar um mdico das almas, exorta Ccero, que busque um filsofo antigo srio (Tusc. 3. 19).

Ele pergunta retoricamente se um amigo for afligido por tristeza lhe daramos um esturjo em

lugar de um tratado socrtico ou lhe recomendaria que ouvisse um rgo hidrulico no lugar

das palavras de Plato? Certamente no.

15

Vegetti (2003, p.216) nota que no se pode falar de um platonismo ou de uma tradio platnica. H diversos

tipos de platonismos: de origem ctica, de inspirao poltico e utpico, o platonismo espiritual, o que baseado

em uma cosmo-teologia, de origem dialtico-metafsica.

19

Assim como os mdicos expressam em que a causa da doena deve ser encontrada,

Ccero sustenta que a causa da doena da alma so as opinies (Tusc. 3. 25). A causa dos

sofrimentos deve ser buscada em uma opinio sobre a proximidade ou a distncia temporal

dos eventos dolorosos. E a cura para eles deve ser a meditao cotidiana (Tusc. 3. 30).

Segundo Dodds (2002, p.265), a frequente metfora mdica utilizada por Scrates nos

escritos de Plato foi decisiva para que a maioria das escolas filosficas relacionasse a figura

do filsofo com um mdico de almas, parecido com um psicoterapeuta da atualidade.

Epicteto16

(c. 55 135 d.C), por exemplo, defendia o carter prtico da moral comparando-a

sempre com a medicina e a msica. Na maioria das vezes, ele apontava Scrates como um

exemplo do tipo de vida no qual seus discpulos deveriam seguir (RYLE, 1894, p.125). Nas

suas Dissertaes (3. 23.30) comparou a escola do filsofo com um hospital. Marco Aurlio

(121 180 d.C.) vai mais alm. Nas Meditaes (3. 4), ele escreve que o filsofo no

somente o que cura almas como um psicoterapeuta, mas ele um sacerdote, um ministro

dos deuses, servidor daquele nume estabelecido em seu mago. Quase a mesma coisa dita

por um filsofo cristo do segundo sculo, simpatizante do platonismo, Justino de Roma. No

seu Dilogo com Trifo (2.6), ele relata que o objetivo do platonismo contemplar o prprio

Deus.17

Ao lado desta imagem salvfica e psicoteraputica do mdico das almas, aparece

outra imagem, mais voltada para a fsica, dentro do platonismo que se estendeu at os escritos

de Galeno. Esta imagem no oposta primeira. Elas coexistiram juntas no medioplatonismo

(BRISSON, 2011, p.226-7), onde o Timeu estudado a partir de um prisma da filosofia

natural e ao mesmo tempo Plato era interpretado atravs de um esprito teosfico, apelando

para a magia, astronomia e demonologia. Um exemplo disto a obra Platone et eius

dogmatede Apuleio (125 170 d.C.). O primeiro livro relata a vida de Plato de forma mtica

e fantstica, em seguida trata de temas da Fsica, da filosofia natural e da sade. Aps relatar

o ensinamento de Plato sobre a composio do corpo, ele fala que a sade o equilbrio do

seco e mido, quente e frio (1. 8). Por fim, ele explana as doutrinas platnicas expressando

16

Foi aluno de Musnio Rufo, foi um pensador estico que no deixou nenhuma obra. O registro de suas

conversas foi documentado por um de seus discpulos, rio (BRENNAN, 2010, p.22-24). 17

Justino de Roma ou Justino, o mrtir, nasceu aproximadamente no ano 100 da nossa era e foi decapitado em

165 acusado por Crescente, um filsofo cnico. Ele relaciona Plato com Moiss na Apologia (I, 59-60).

Segundo ele Plato era discpulo de Moiss, pois este era anterior quele.

20

que a alma que a razo governa possui sade, consequentemente a doena da alma a

impercia e a loucura (1. 9-18)18

.

1.1.3. Galeno: Plato, o imitador de Hipcrates.

Porm, foi Galeno (130 210 d.C.) quem mais contribuiu para formar a ideia que

temos sobre Plato e a medicina. Galeno pode ser chamado platnico porque o termo

platonismo amplo (DE LACY, 1972, p.27), mas na verdade ele se avizinha mais de

Aristteles que de Plato (VEGETTI, 2013, p. 18). Frede (1987, p.279-98) o considera como

um ecltico, no mximo um platonista ecltico, devido s seguintes razes:

(a) ele no simpatizava com o epicurismo, como seus contemporneos;

(b) dentre todos os filsofos clssicos ele escolhe Plato simbolizar o que Hipcrates era para

os mdicos;

(c) ele foi influenciado pelo estoicismo19

;

(d) ele recebe influncias de Aristteles e dos peripatticos.

Ento porque dizer que Galeno era platnico? Segundo Singer (1991, p.54-5), no se

comprometeu com o platonismo, mas tinha alguns propsitos em aproximar dele:

(a) na poca os filsofos eram membros mais respeitveis da sociedade;

(b) o rigor das disciplinas matemticas era um trao platnico que era proveitoso para

alcanar autoridade e desacreditar seus oponentes;

(c) a concepo platnica de uma pequena elite possuidora de conhecimento permitiu a

Galeno estabelecer uma estreita conexo entre conhecimento e virtude.

18

Para Apuleio a impercia a pretenso orgulhosa demonstrada, por exemplo, quando um ignorante quer

ensinar. A loucura ou estultcia o resultado de maus hbitos e de uma vida desregrada. 19

Segundo Brennan (2010, p.31), Galeno considerava os esticos redundantes quando concordavam com as

opinies de Hipcrates e Plato; e quando discordavam eram culpveis.

21

Alm disso, poderamos acrescentar que Galeno relata ter estudado com Albino em

Esmirna (Libr.Prop. 2). Ele deu dois de seus livros a um amigo que era platnico (Libr.Prop.

1) e inclua na maioria das vezes os platnicos entre os quais ele concordava.

Galeno tambm foi um grande seguidor de Hipcrates. Segundo ele20

, o mdico deve

conhecer a filosofia segundo a tripartio tradicional estica em lgica, fsica e tica. A

concepo do mdico coincide em parte com a figura do iatrosophistes ou iatrophilosophos21

tpica do perodo da Segunda Sofstica. A sociedade da pocavia com entusiasmo este tipo de

mdico por causa do saber que possuam, pois eles poderiam satisfazer suas necessidades

salvfico-milagrosas e a racional.

O Hipcrates de Galeno no o mdico que Plnio descreve (HN 29.4), ou seja, um

homem que fugiu para Larissa, acusado de incendiar o templo de Asclpio de Cs, depois de

ter utilizado suas inscries medicais. Galeno projeta em seu Hipcrates a imagem de um

mdico virtuoso para polemizar contra os mdicos da sua poca que praticavam rapinagem

(LLOYD, 1991, p.415-6). Hipcrates era um mdico dos pobres, que deixou Plibo cuidando

de seus concidados em Cs e percorria outras cidades com o objetivo enriquecer sua

experincia (Med.Phil. 3).Para construir o paradigma de bom mdico, Galeno utiliza tambm

uma combinao entre Hipcrates e Plato (TEMKIN, 1953, p.224). Hipcrates e Plato esto

juntos com Homero e Scrates no chorus mais prximos do deus Hermes, eles so seus

assistentes e representantes, aos quais, Galeno venera de modo semelhante aos deuses (Protr.

4), pois eles so divinos22

.

Hipcrates o melhor de todos os mdicos23

porque:

(a) seu mtodo cientfico elogiado por Plato no Fedro;

(b) ele expressa princpios morais, pois no busca seus prprios interesses e se dedica ao

mximo para sua arte;

20

Med. Phil., 3. 21

Med. Phil., 4. 22

Sobre Hipcrates como theios, ver Que as faculdades da alma seguem os temperamentos do corpo, 7. Sobre o

divino Plato, ver Utilidades das partes, XVI,1. Para a imagem de Hipcrates como homem divino, nem como

deus, nem como mgico, ver Temkin, (1995, p.71-75). 23

De plac,III,4. Cf. Lloyd (1991, p.403-7)

22

(c) sua medicina baseada em uma fisiologia, patologia e psicologia correta;

(d) existe uma superioridade do seu prognstico e das suas tcnicas teraputicas.

No entanto, Plato no era to grandioso, pois (DE LACY, 1972, p.33-9) seu

conhecimento de medicina era mais limitado que o de Hipcrates. E tambm, Hipcrates era

anterior a Plato, sendo sua maior fonte doutrinria. Ele mostra no De usu partium, (1. 8) que

Plato era um admirador de Hipcrates [...] e tomou dele as principais doutrinas24

. Inclusive

a teoria da tripartio da alma e sua relao com as diferentes partes do corpo so de

Hipcrates. Mesmo que ele no tenha dito isto claramente, Galeno exorta que o Corpus

hippocraticum deve ser interpretado (LLOYD, 1991, p.407-16).

A contribuio de Galeno foi relacionar pela primeira vez, na histria do platonismo25

e da medicina, a imagem de Hipcrates e Plato (e consequentemente seus escritos) atravs de

uma engenhosa capacidade argumentativa.

1.1.4. A medicina em Plato depois de Galeno.

Outra imagem de Plato ir aparecer em Digenes Larcio na forma de epitfios26

:

Se Foibos no tivesse dado a vida a Plato na Hlade, como poderia

ter curado com as letras as almas dos homens? Seu filho Asclpios o

mdico do corpo, da mesma forma que o da alma imortal Plato.

E outro sobre as circunstncias de sua morte:

24

Orig.: [...] '. A traduo prpria

seguindo Vegetti (1978,p.327) que traduz todo o trecho da seguinte forma: Qual dunque Il motivo del fatto

che Platon, pur essendo ammiratore di Ippocrate quando nessum altro e pura vendo preso da lui le pi importanti

delle sue teorie, si e pronunciato cos poo sullutilita delle unghie? A traduo de Charles Daremberg (1994,p.

12) diz: Comment se fait-il que Platon, imitateur dHippocrate, sil em fut jamais, et qui a emprunt ss plus

grands dogmes, ait trait des ongles avec si peu de soin? A traduo de Mercedes Lopez Salva (2010,p. 98) diz:

Por qu Platn, que emul a Hipocrates, si es que alguien lo ha emulado, y que tom la mayoria delas

doctrinas de l, apenas dijo nada sobre la funcion de las uas? 25

Pelo menos nos escritos que chegaram at ns. 26

Notopoulos (1942, p.272-293) acredita que estes epigramas no so autnticos, mas uma criao literria, pois

nesta poca havia confuso entre os epigramas (epitfios) e a literatura epigramtica.

23

Foibos criou para os mortais Asclpios e Plato, um para salvar o

corpo, o outro para salvar a alma. De um banquete nupcial Plato

partiu para a cidade que fundou e construiu no solo de Zeus. (DL, 3.

45)27

Certamente estes epitfios faziam parte de uma literatura epigramtica, e eles

apresentam um Plato ligado ao deus da medicina Asclpio e no Hipcrates. Plato o que

cura (ekesato) as almas dos homens (psychas anthropon) atravs das letras (grammasin) e

Asclpio cura (ietrike) os corpos humanos. Os epigramas recolhidos por Digenes Larcio e

tambm registrados na Antologia Palatina28

fazem parte de uma tradio mstico-salvfica que

descrevemos acima. Na segunda parte do Livro III, Digenes Larcio passa a falar de um

modo mais dogmtico. Ele relata que Plato dividia a medicina em cinco partes (DL, 3. 85): a

farmacutica (pharmakeutike), a cirrgica (cheirougike), a diettica (diaitetike), a diagnstica

(nosognomonike) e o pronto-socorro (boethetike).

A formao da imagem platnica relacionada com a medicina atravessa a Idade Mdia

e chega at mesmo na tradio rabe. Segundo Fernades (2013, p.143-8), Ab al-Faraj

Muammad ibn Isq ibn al-Nadm considerava Plato como mdico, que aprendera

diretamente de Hipcrates. Ab Dwd Sulaymn ibn asan ibn Juljul al-Andals no Livro

das geraes de doutores e sbios (kib abaqt al-Aibb wa l-umak) fornece a

mesma informao, ou seja, Plato era mdico.

Esta imagem de Plato, ora mdico das almas, ora preocupado com as questes do

corpo, chega at a modernidade quase inalterada. Porm, na busca de um verdadeiro

Hipcrates, pai da medicina racional, os fillogos iro outra vez recorrer a Plato para buscar

as respostas. Quem era o Hipcrates de Plato? Qual era a sua doutrina descrita no Fedro? E

qual obra do Corpus hippocraticum que mais se aproxima com o testemunho platnico? Tais

indagaes deram origem Questo Hipocrtica.

27

Traduo de Mrio da Gama Kury. Orig.: , ; , .

, , , .

,

. 28

A.P. VII, 108, 109.

24

1.2. Debates contemporneos.

Os ataques de Francis Bacon aos gregos antigos, declarando que eles no possuam o

hbito da experimentao, suscitaram debates na modernidade sobre a cincia antiga e

moderna (CORNFORD, 1952, p.17-26). Mas no que concerne medicina antiga, pode-se

dizer que ela era racional ou emprica? Para responder isso os classicistas voltaram-se, ento,

para Galeno. No Mtodo do Tratamento (1. 1), Galeno informa sobre a existncia de trs

choroi29

na Grcia Antiga que rivalizavam entre si: Cs, de Cnido e da Itlia. Segundo o

mdico de Prgamo elas competiam entre si no nmero de descobertas. No mbito dessa

polmica, Bourgey (1953, p.41) oferece uma distino entre os trs tipos de medicina

representados no Corpus. A primeira era a medicina de Cs, tipicamente hipocrtica, que era

racional e positiva; a segunda era a medicina itlica, uma vertente terica e especulativa que

se apoiavam em teorias filosficas; e a terceira era a medicina emprica relacionada com

Cnido. Robert Joly (1966, p.50) vai mais alm, ele elenca vrias caractersticas da medicina

de Cnido e conclui que existem traos30

comuns nas obras de Cnido que testemunham uma

mentalidade pr-cientfica nesta medicina.

1.2.1. A teoria das trs correntes de medicina: hipocrtica, itlica, cnidiana.

IIberg31

demonstrou que dentro do Corpus hippocraticum existem obras de uma

corrente cnidiana. Illberg encontrou pistas a partir dos tratados da coleo hipocrtica que

mostravam semelhanas entre si. Assim as Sentenas Cnidianas, obra mdica no conservada,

mas citada pelo autor do Da dieta nas doenas agudas, por Galeno e por Rufo de feso, se

converteu em ponto de referncia para a distino entre os escritos de Cs e de Cnido.

Illberg32

atribuiu corrente de Cnido os seguintes tratados: Doenas I, II, III, Das afeces,

29

I.M.Lonie (1965, p.1) deixa a palavra em seu sentido original de choros, ou seja, o antigo coro dos teatros. A

traduo de Jaques Boulogne (2009, p.48) conserva o sentido de choros com a palavra francesachoeur. Jouanna

(1992) e outros autores traduzem o termo por escolas. Falar de escolas mdicas ou corporaes de ofcio

parece um tanto anacrnico, porque as corporaes de ofcio foram conhecidas somente no perodo medieval.

Por isso, preferimos traduzir aqui o termo como corrente. 30

Segundo Joly (1960,p.31-69) a medicina cnidiana dos tratados Doenas II e Afeces Internas, e dos tratados

de inspirao cnidiana como Doenas I e III e tratados ginecolgicos, tm algumas caractersticas em comum

como a polivalncia causal, sobredeterminao, polifarmcia. 31

Ver a introduo de Gual (2008, p.9-61). Cf. tambm Jouanna (2009, p.13-24). 32

Quanto ao debate sobre os tratados ver I.M.Lonie (1965, p.1-30; 1978, p.42-74; 1978, p.77-92) e introduo de

Gual (2008, p.9-61).

25

Das afeces internas, Das Semanas, os tratados ginecolgicos e os peditricos. Jouanna no

inclui tantas obras na corrente cnidiana. Ele (2009, p.14) parte da comparao entre a citao

que Galeno faz das Sentenas Cnidianas e o captulo 68 do tratado Doenas II. Jouanna v,

nas semelhanas dos dois textos, uma hiptese de que o texto do tratado Doenas II seja um

exemplar incompleto das Sentenas Cnidianas, pois esta descrio da enfermidade lvida est

perfeitamente de acordo, pelo mtodo, pelo estilo com a globalidade da obra Doenas II.

No incio, Lonie (1965, p.1-30) tentou diferenciar os tratados cnidianos dentro do

Corpus hippocraticum, mas depois de alguns anos ele (1968, p.42) assumiu uma posio

ctica em relao existncia de escolas mdicas na Grcia clssica. Ele parte do ponto de

vista historiogrfico e conclui que esta distino entre obras de Cnido e Cs um subproduto

da busca pelo verdadeiro Hipcrates (1968, p.66). Seu ceticismo se baseia nas seguintes

afirmaes:

(a) as primeiras evidncias que corroboram a hiptese encontram-se nos antigos

historiadores da medicina, como Celso, Plnio, Estrabo, Pausnias, Isidoro e Galeno.

Galeno associa a razo hipocrtica ao mtodo da diairesis do Fedro e critica os autores das

Sentenas cnidianas, porque eles no esto adequados ao referido mtodo hipocrtico.

Portanto, Lonie deduz que a hiptese de duas escolas rivais no foi sugerida por grandes

evidncias na antiguidade, mas por vagos e duvidosos testemunhos;

(b) esta hiptese achou acolhida nos tericos do sculo XVI, dentro de um debate entre

racionalismo e empirismo, e possivelmente mais um arranjo de evidncias do que um fato

histrico comprovado;

(c) segundo o testemunho de Galeno, o chefe da corrente de Cnido era urifon, que sendo um

pouco mais velho que Hipcrates, era tambm o autor das Sentenas Cnidianas. Hoje se sabe

que este testemunho duvidoso, pois o autor do Da dieta nas doenas agudas nos informa

que as Sentenas Cnidianas so uma obra de uma equipe33

. Alm disso, o testemunho do

33

O autor hipocrtico diz (Acut.1) estes que compuseram a obra intitulada Sentenas Cnidianas (

) e acrescenta (Acut.3),aqueles que revisaram posteriormente

este tratado ( ). Trad. prpria.

26

Papiro de Mnon34

(Anon.Lond. IV, 30-42), sobre urifon de Cnido no encontra nenhum

paralelo com os tratados considerados de inspirao cnidiana (LONIE, 1965, p.30).

Mesmo ciente de toda esta polmica, Vegetti (1965, p. 9-6; 1995, p.xiii-xiv) considera

como certas algumas coisas: que existia um koinon, uma comunidade de mdicos, os

Asclepades35

; existia uma polmica entre os mdicos, da qual o Corpus hippocraticum

testemunha; existia um manual chamado Sentenas cnidianas; e por fim, como atesta Plato

(Prt. 311b-c), Hipcrates ensinava medicina por dinheiro, portanto tinha um grupo de alunos

e seguidores.

Este debate contribuiu para obscurecer cada vez mais a relao de Plato e a medicina

dividindo os pesquisadores:

(a) uma parte defendia que Plato se aproxima do mtodo de Hipcrates. Segundo estes36

, o

mtodo dialtico da classificao o mesmo mtodo da medicina hipocrtica, de divises das

doenas segundo suas formas;

(b) outros acreditavam que Plato seguiu a medicina de Cnido37

. Segundo estes, na crtica que

Plato faz medicina no livro III da Repblica, ele critica a diettica, tpica da medicina de

Cs, e elogia uma medicina farmacolgica e cirrgica, tipicamente cnidiana;

(c) Outros38

defenderam a influncia da medicina itlica sobre Plato, principalmente no

Timeu. O trabalho de Leboucq (1944, p.7-40) relaciona os fragmentos de Filiston39

34

Este papiro contm um resumo da teoria de alguns mdicos gregos. Ele foi descoberto em 1890 e tinha 39

colunas. Jones (2010, p. 1-20), Jouanna (1992, p.88-91) acreditam que teria sido escrito por volta dos sculos I e

II d.E.N. Ele no faz meno Galeno, por isso anterior a ele. Sobre a reconstituio do papiro por Diels e as

falhas desta reconstituio, ver Manetti (1986, p.57-74). Para a relao do papiro e Hipcrates, ver Bourgey

(1953, p.84-88). 35

Examinando com cuidado a designao asclepade, conclui-se com Longrigg (1998, p.21) e com Vegetti (1965,

p.11ss) que eles designavam um genos, ou um koinon, uma ascendncia comum, uma corporao ligada por

relaes de mestre-discpulo e no somente um grupo de pessoas ligadas por relaes de consanginidade. O

ttulo asclepades uma espcie de sano divina, (semelhante aos antigos aristocratas ou mesmo ao homridas

que alegavam ser descendentes de Homero), que no sculo V aEN designava todos os praticantes da medicina. 36

Cf. Jaeger (2001, p.1030-1); Bourgey (1953, p.31); 37

Cf. Vegetti (1996, p.62-75; 1995, p.84-5) 38

Burnet (1994, p.159-161) relata que Plato utilizou as noes biolgicas de Alcmeon. Ver tambm Leboucq

(1944, p.7-40), Longrigg (1998, p.53).

27

(organizados por Wellmann), o tratado hipocrtico Do corao e o Timeu de Plato. Algumas

ideias como a passagem do lquido pelo pulmo seriam defendida pelos trs, contudo era

negada pela escola de Cs, mais especificamente pelo tratado Peri gones. Leboucq conclui

dizendo que Plato no se aventura em terrenos que no dominava, por isso ele aceita um

bloco de ideias de Filiston; e assim escreve o Timeu, nome de uma personagem obscura

tambm de Locros.

1.2.2. A questo hipocrtica e Plato: onde est o verdadeiro Hipcrates?

Ao lado do debate sobre as escolas de medicina, mas profundamente inter-relacionado

com ele, se formou um novo debate sobre a identidade e os escritos de Hipcrates. Diferente

de Homero, Hipcrates uma personagem histrica sobre a qual se possuem testemunhos de

seus contemporneos. Dois testemunhos podem ser encontrados em Plato (Prt. 311b-c; Phdr

270c-d), um em Aristfanes40

(Th. v. 272) e outro, quase meio sculo depois de Hipcrates,

em Aristteles (Pol. VII, 4, 1326a). Dentre todos estes testemunhos, o de Plato foi o mais

interessante, pois alm de confirmar a reputao do mdico de Cs, descreveu o seu mtodo.

Os classicistas voltaram a Galeno, pois ele pensava que o testemunho do Fedro era

uma aluso ao tratado da Natureza do Homem. Littr (1839, p.295-313) defendeu a posio de

que a citao de Plato no literal, nem textual, mas a passagem a natureza de todas as

coisas41

uma aluso ao texto hipocrtico Da medicina antiga (V.M. 20). Littr ganhou um

grande defensor da sua hiptese, Theodor Gomperz, depois disto a questo hipocrtica ficou

conhecida como Littr-Gomperz42

. Ludwig Edelstein (1939, p.236-48) entra na disputa

afirmando que o sentido de tou holou no trecho do Fedro 270c no se referia ao Universo,

39

Filstion de Locros, ou Filstion da Siclia, foi um mdico cujo floruit se situa na primeira metade do sculo IV

aEN. Foi nativo de Locros, no sul da Itlia, mas viveu na Siclia. Possivelmente ele foi mdico pessoal dos dois

tiranos de Siracusa: Dionsio, o velho e Dionsio, o jovem. o que deixa transparecer a segunda carta atribuda

Plato (314e) , mas considerada pela maioria dos estudiosos como espria. Segundo o testemunho de Digenes

Larcio (DL, VIII, 86), Filiston de Locros ensinou medicina Eudoxo de Cnido. Galeno pouco cita Filiston de

Locros, talvez porque suas obras estavam perdidas e s eram conhecidas por citaes de outros autores

(LEBOUCQ, 1944, p.15). Apoiando-se testemunho de Plutarco e da Oribase, Leboucq acredita que Filiston

adquiriu muita fama em vida como mdico, sendo notvel cirurgio e inventor de um instrumento de cirurgia;

possvel que ele tenha tido tambm conhecimentos de disseco. Pouco se sabe sobre sua doutrina (Anon.Lond.

XX,24). 40

O testemunho de Aristfanes foi posto em dvida por muitos estudiosos. Para detalhes deste debate cf.

Littr(1839, p.51); Jouanna(1992, p.18); Ribeiro Jnior (2005, p.19-20). 41

42

Para maiores detalhes da leitura de Gomperz sobre o tratado Da medicina antiga, ver Vegetti (1995,p.103);

Joly (1961, p.62); Gomperz (2011, p.245-76)

28

mas totalidade do objeto estudado. Ele conclui dizendo que no se pode relacionar o

testemunho do Fedro com alguma obra do Corpus.

Nos anos seguintes, cada um dos classicistas propunha uma sada diferente. Surgiram

diversas interpretaes do que seria o tou holou e a qual obra hipocrtica Plato teria citado43

.

A ltima grande contribuio para este debate foi em 1975, quando Lloyd demonstrou um

ceticismo sobre a Questo Hipocrtica em um texto denominado The Hippocratic Question.

Segundo ele, o Fedro fala de um mtodo hipocrtico e no de uma teoria mdica especfica.

Alm disso, o mtodo de Hipcrates que Scrates descreve no se encontra representado em

nenhum dos tratados hipocrticos. E por fim, se no possvel chegar a um consenso sobre o

significado de tou holou, porque a relao entre o Fedro e o Corpus tnue (LLOYD 1991,

p.203). Assim a polmica ficou aberta.

A questo hipocrtica e seus desenvolvimentos retrataram Plato tambm como um

doxgrafo de Hipcrates, mesmo que de forma inconsciente. A relao entre Plato e a

medicina se viu quase toda subsumida por uma polmica de cunho positivista que durou mais

de um sculo. Ainda esta discusso ecoa nos nossos dias44

, talvez porque ela permanece

aberta apesar dos esforos de Lloyd ou talvez porque ainda no conseguimos desvincular

completamente o positivismo das questes relativas Antiguidade.

43

Joly (1961, p. 69-92) faz uma reconstruo histrica desta polmica: em 1933, Dichgraeber se posiciona contra

Edelstein afirmando que significa o Todo; Max Pohlenz (1938), por sua vez, desenvolve uma tese que

significa o Universo, assim ele liga o tratado Ares, guas e lugares (2) com a palavra meterologa no

Fedro; W. Nestle diz que significa a totalidade da coisa: o corpo estando ligado aos fatores ambientais.

Joly conclui com sua prpria opinio dizendo que o hipocratismo descrito no Fedro delineia um pensamento

cosmolgico, naturphilosophische, por contraposio ao autor Da medicina antiga, no entanto ele sugere

admettre que la doctrine du Tout ne se trouve pas telle quelle dans les oeuvres de lcole de Cos(1961, p.92).

Kucharski (1939, p.356) retoma a ideia de Littr de que Plato no est citando uma obra, mas est fazendo uma

transposio. A aporia da crtica se devia pretenso de interpretar de um modo unvoco, ao invs

de analisar as ambigidades e tentar discernir o ncleo da transposio platnica. Kucharski via no tratado Da

medicina antiga um estmulo hipocrtico para a transposio de Plato. O editor da coleo Loeb, W.H.S. Jones

(1923, p.xxxv), deixa em aberto a questo manifestando certo ceticismo. Jaeger (1945, p.1030) no faz uma

afirmao categrica sobre qual seria o tratado a que o Fedro fazia aluso, mas ele identificava neste dilogo as

linhas gerais que remetiam metodologia do Da medicina antiga. Ele conclui dizendo que o mtodo que Plato

aqui define como prprio e peculiar da medicina no outro seno o que ele prprio seguiu, sobretudo nas obras

da sua ltima fase43

. Festugire (1948, p.64), em seu comentrio ao tratado Da medicina antiga, toma a palavra

meteorologia como le fait de tenir des discours sublimes sur les e como Universo. Segundo

Festugire, o mtodo hipocrtico do Fedro entra em contradio com o autor do Da medicina antiga. 44

Vegetti (1995, p.97-122) ir dedicar o ltimo captulo do seu livro La Medicina in Platone ao Fedro. Segundo

ele Plato achou em Hipcrates um mtodo dialtico ante litteram. Esta leitura se apia sobre a aprovao de

Fedro por Scrates e sua introduo direse pela expresso isso que dizem sobre a natureza de Hipcrates e

do logos verdadeiro ( Phdr, 270c). Laurent Ayache (2002, p.167) defende

que o testemunho do Fedro se encontra em um contexto de polmica mdica e Hipcrates invocado por Fedro,

contra Scrates, como um ltimo recurso para refrear o ataque de Scrates s technai e manter a posio de uma

autonomia das artes. Giovanni Reale (2002, p.190-2) segue as interpretaes de Jaeger. Hans-Georg Gadamer

(2011, p.49-50) defendeu que o todo no apenas o todo do organismo, nem o todo entendido como fatores

climticos e ambientais, mas conjunto da situao vital do paciente, at mesmo do mdico.

29

1.2.3. Interpretao de Plato como leitor de Hipcrates.

Enquanto os classicistas buscavam um texto no Corpus hippocraticum que fosse

similar ao Fedro, os estudiosos de Plato buscavam um trecho, uma palavra, um vocabulrio

nos dilogos platnicos que fossem comuns aos escritos hipocrticos. Alguns pesquisadores45

atriburam a Plato o feito de transpor o vocabulrio da medicina (tais como eidos, dunamis,

aitia, philosophia, aret, paradeigmata) para sua filosofia. Outros pesquisadores tentaram ver

quais ideias ou doutrinas que Plato tomou emprestado ou emprestou medicina. Jaeger

(2001, p.1001) disse que poderia afirmar sem exagero que sem o modelo da Medicina seria

inconcebvel a cincia tica de Scrates, a qual ocupa o lugar central nos dilogos de Plato.

Cornford (2001, p.27-9) traa um paralelo entre Scrates e Hipcrates, declarando que ambos

rejeitavam a especulao sobre a natureza. Outras especulaes se formaram em torno do

tratado Da medicina antiga, uns afirmando que ele dependia de Plato (SCHIEFSKY, 2005,

p.2) e outros afirmando o contrrio46

.

O perigo destas teorias consiste no fato que:

(a) a afinidade terica no permite, por si s, inferir qual ter sido o sentido do influxo.

Qualquer tentativa de relacionar uma obra do Corpus hippocraticum em conexo de

influncia com o texto platnico esbarra na insolvel aporia de perceber exatamente quem foi

o primeiro a introduzir uma determinada doutrina e quando o ter feito. Para isso necessrio

que se saiba com preciso a datao das duas obras comparadas. Ora, a edio (ekdosis) no

um conceito unvoco (UNTERSTEINER, 1980, p. 37-40), o que dificulta a datao da

maioria das obras47

;

45

Cf. Vegetti (1995, p. 61-64). Lombard (1999, p. 29, 56-57). Lombard afirma categoricamente que Platon

transpose mthode et vocabulaire de la mdecine lart politique. Frias (2005, p.21) acredita que conceitos

fundamentais comuns linguagem filosfica e mdica, como aita, passaram primeiro pela filosofia e

posteriormente na medicina. Garcia Gual (2008, p.110, n.2) considera eidos como um vocabulrio pr-platnico.

Jaeger (2001, p.1031) afirma que Plato pega o conceito de eidos do autor do Da medicina antiga(15). Burkert

(1970, p.159-77) diz que a primeira ocorrncia da palavra philosophia aparece no tratado Da medicina antiga.

Gadamer (2011, p.49) mantm a ideia que o conceito de eidos foi utilizado primeiramente na cincia mdica. 46

Reale (2002, p.186) coloca Plato na posio de dependente do tratado Da medicina antiga. Reale diz:

partamos da leitura de um captulo da Antiga medicina, que desenvolve aquele conceito-chave que

particularmente no final, expresso claramente, e do qual Plato se apropria, fundamenta e desenvolve

filosoficamente. 47

Para maiores detalhes sobre os mtodos de datao ver Rossetti (2006, p.332-5)

30

(b) problemtica a escassez de material textual desses temas, bem como a tradio oral na

difuso de conhecimentos mdicos. Algumas ideias e conceitos da medicina eram propagados

pelo teatro. Alm disso, os mdicos se valiam das tcnicas retricas para epideixeis, para

debates pblicos e exposio de ideias (JOUANNA, 1992, p.109). A oralidade era um fator

importante na divulgao das inovaes mdicas. Neste contexto difcil relacionar duas

obras pelo vocabulrio utilizado;

(c) sustentar Hipcrates disse confuso, pois no se sabe ao certo qual obra foi escrita pela

pena do mdico de Cs, ser difcil provar, pelos escritos que chegaram at ns, que Plato foi

leitor de Hipcrates48

;

(d) Plato colheu informaes de fontes variadas: das especulaes mdicas e biolgicas dos

filsofos da natureza, dos autores dos tratados do Corpus hippocraticum, da medicina popular,

da tradio oral, etc. Tudo isso foi feito de diversas maneiras, em diferentes perspectivas,

sempre relacionadas com a temtica e com o contexto dialgico em que esto inseridas. Por

isso, as indicaes platnicas (VEGETTI, 1995, p.xi) correm o risco de induzir o leitor a uma

supervalorizao metodolgica da medicina do seu tempo. Por outro lado, o testemunho

platnico pode incluir uma parcialidade excessiva pelo fato de no dedicar o mesmo grau de

interesse e ateno a uma srie de problemas histricos e metodolgicos relacionados com a

constituio do saber profissional da medicina grega;

(e) Plato no um doxgrafo (no sentido dillesiano do termo), antes utiliza as ideias da

medicina para seus prprios propsitos, como j havia notado Kucharski (1939, p.301ss);

(f) praticamente no h uma uniformidade terminolgica que permita aproximar o

pensamento platnico dos escritos do Corpus hippocraticum atravs de semelhanas

terminolgicas. O prprio Galeno, mesmo exaltando Plato e Hipcrates, reconhecia que

Plato tinha poucos conhecimentos da medicina (P.H.P. 3. 4). Ndia van Brock (1961, p.15),

estudiosa do vocabulrio da medicina grega, nota que tanto Herdoto, Tucdides, Plato,

Lsias, Iscrates, Demstenes e Xenofonte utilizavam frequentemente em seus escritos a

linguagem corrente quando falavam de temas como a medicina;

(g) estas aproximaes confundem a afinidade da lngua com a afinidade do pensamento

(SCHIEFSKY, 2005, p.2) e pressupem que uma deriva da outra. Quando lidamos com o

pensamento grego antigo (LLOYD, 1968, p.89) sempre difcil ter certeza de quem primeiro

48

Para maiores detalhes ver: Schiefsky (2005, p. 2, 46); Lloyd (1968, p.89); van der Eijk (2005, p. 1-14).

31

utilizou uma determinada palavra com um determinado sentido. Alm disso, algumas palavras

da filosofia, da matemtica, da medicina e da histria comearam a assumir a funo de

termos tcnicos a partir dos sculos V e IV aEN49

. Mesmo que estes termos tenham assumido

um carter tcnico, ainda continuavam carregados de um alto grau de polissemia50

.

1.2.4. Plato como cientista natural.

Por fim, os estudiosos de Plato se perguntaram que tipo de cientista era Plato:

1. Era Plato um cientista ou um mdico?

2. Plato foi o fundador da psiquiatria?

3. Por que se importar com a medicina sendo que ele advertia contra a experincia

sensorial?

Para responder a primeira pergunta deve-se ter em mente que a temtica Plato e a

cincia carrega trs acusaes tradicionais (LLOYD, 1968, p.79):

(a) a primeira afirma que ele era desinteressado pelo inqurito sobre a natureza e que o Timeu

no passa de uma bela histria;

(b) a segunda afirma que ele anticientfico, antiemprico e desqualifica as sensaes e as

percepes, eliminando as aparncias visveis por completo;

(c) a terceira acusao que sua cincia natural banal, ele simplesmente operou um

amalgama das teorias dos seus contemporneos e dos seus predecessores.

49

Em Tucdides encontramos muitos vocbulos familiares aos textos hipocrticos, tais como febre (),

vermelhido nos olhos ( ), inflamao nos olhos (). Outro paralelo entre

Tucdides, os textos hipocrticos e Plato o uso de prophasis e aitiai; cf. Lloyd (2003, p.123-4); Vegetti (2008,

p.345-64). 50

Como mostra Heinrich von Staden (1998, p.263) no estudo da palavra em Plato e nos escritos

hipocrticos. Outra palavra de natureza ambgua o pharmakon. John Scarborough (1991, p.139) explica que

the pharmakon was a plant-based drug, fundamentally ambigous in its nature. Plato explora no somente a

analogia, mas a polissemia destas palavras, tais como pharmakon, katharsis, etc. (LLOYD, 2003, p.145-147)

32

Nossa opo ver em Plato um pensador que est comprometido com os debates que

lhe era contemporneo. Um exemplo disso quando se analisa o Anonymous Londinenses, o

leitor pode se espantar ao deparar que 177 linhas, ou seja, quatro colunas e meia foram

dedicadas a Plato e somente 96 linhas, duas colunas e meia, foram dedicadas a Hipcrates.

Isso alude ao fato que Plato no foi um mdico prtico, mas esteve interessado pelos debates

da medicina. E mesmo que o testemunho de Menon seja duvidoso, no se pode duvidar que a

teoria nosolgica de Plato foi discutida na Antiguidade da mesma forma que Hipcrates e

Filiston de Locros.

Muitos estudiosos responderam a segunda pergunta expressando a opinio que o

Timeu apresenta uma doutrina psicossomtica que pode ser chamada de psicopatolgica,

e nisto consiste a grande descoberta de Plato51

. Na mesma linha de raciocnio, outros foram

mais alm dizendo que Plato o pai da psicanlise52

. Porm, j havia nos escritos mdicos e

nos filsofos da natureza uma noo de que certas desordens na psyche eram de origem

fsica53

(LLOYD, 1968, p.87), e como vimos acima, a glorificao de Plato como mdico

das almas uma construo da poca helenstica54

, principalmente de Epicteto (Ench.

3.23.30). Para Plato a filosofia no um tipo de medicina que o paciente se deita no leito e o

coloca sob influncia de palavras capazes de anular a culpa, os pecados, os medos e transmitir

a virtude. Giovanni Reale (2002, p.243) alerta que o discurso platnico e o psicanaltico

permanece conexos a sistemas de referncias conceituais e verbais totalmente diferentes.

Ento, se Plato no um mdico prtico, nem psiquiatra, nem psiclogo no sentido moderno

do termo, em que sentido possvel falar de uma medicina da alma em Plato? Sem dvida a

expresso mdico das almas platnica, porm isto ser discutido com mais detalhes no

captulo 3.

51

Frias (2005, p.79) apresenta Plato como original na sua reflexo sobre a relao corpo-alma. 52

Jaeger (2001, p.958) diz: Plato o pai da psicanlise. ele o primeiro que desmascara a monstruosidade do

complexo de dipo, a volpia de se unir sexualmente prpria me, como sendo parte do eu inconsciente, que

ele traz para luz por meio da investigao da experincia dos sonhos 53

Cf, Morb.Sacr. 31; Flat. 14; Herclito DK B 117, 118; Empdocles DK B 31 A 98; Demcrito Fr. 191. A

questo da sade da alma em Demcrito tratada com maior detalhe em Peixoto (2009, p. 55-66). 54

Como foi demonstrado acima. Ver tambm Edelstein (1945, p. 99-100).

33

Finalmente, a terceira pergunta causou muita estranheza55

, principalmente quando

alguns se deparavam com o texto onde Plato critica a medicina (R. 405a 408e). Jaeger

(2001, p.798), por exemplo, mantm a ideia que Plato no quer menosprezar o valor da

funo do mdico ou mesmo consider-la absolutamente suprflua, mas a profisso mdica

vista de forma diferente no Estado ideal. Uma linha de interpretao evolucionista

defendia que Plato mudou de ideia sobre a medicina ao longo dos seus escritos (LEVIN,

2014, p.1-4). Ento o debate se voltou para outro lado: a interpretao dos dilogos de Plato.

2. PLATO E A MEDICINA LUZ DAS NOVAS LEITURAS DE PLATO

O trabalho de interpretar Plato mais rduo que interpretar qualquer outro filsofo

(com algumas excees). Isso se deve porque ele sempre dirige a seu leitor de forma indireta56

(ROWE, 2011, p.28): atravs de dilogos, Plato jamais aparece como uma personagem. Os

dilogos, embora semelhantes s peas de teatro, no so peas de teatro (ROWE, 2012,

p.382-383). Eles no so representados diante de um auditrio e o que est sendo dito pelos

personagens exige um enorme esforo por parte do leitor para entender o que Plato est

querendo dizer.

Escrever dilogos no foi exclusividade de Plato, ou seja, no foi ele quem inventou

esta forma de escrita. Os escritores gregos se utilizavam de dilogos para expor uma reflexo

moral e poltica (VLASTOS, 1994, p.77-80). Depois da morte de Scrates, surge um gnero

novo de dilogos, os Sokratikoi logoi (KAHN, 1996, p. 1-35). Os feitos de Scrates so

55

Cf. Vlastos (1994, p.99). 56

Contra Strauss (1986, p.162-3). Strauss defende que Plato fala de maneira direta e indireta. Quando ele usa as

expresses eu disse, ele disse, ele est falando de forma indireta. Caso contrrio sua forma direta.

Gerasimos Santas (2010, p.2-3) fala que por indireta se entende que Plato usa seus personagens para falar com

o leitor ele ilustra em um seguinte esquema:

34

lembrados por Xenofonte, squines, Antstenes, Brison, Cebes, Criton, Euclides de Megara,

Fdon.

Plato foi interpretado como um escritor deste tipo de literatura socrtica, que

gradativamente foi se afastando do seu mestre. Outros, ao contrrio, interpretaram os dilogos

como uma unidade, e que Plato jamais tinha mudado de ideia. Essas duas correntes

interpretativas so cruciais para compreendermos tambm a medicina em Plato57

.

2.1. Plato e a medicina na leitura unitarista.

Aristteles foi o responsvel por atribuir a Plato um conjunto de teorias e doutrinas

que os dilogos no identificam como tais (SANTOS, 2008, p.21). Os interpretes antigos de

Plato tendiam a afirmar que ele estava dizendo sempre a mesma coisa (GILL, 2011, p.54),

condicionando o estudo dos dilogos perspectiva unitria58

. Tomavam Scrates como sendo

o principal expoente do projeto filosfico de Plato. E buscavam nos dilogos uma doutrina

do autor, pressupondo que estas ideias formavam um sistema coerente de doutrinas. Esta

situao modificou-se no incio do sculo XIX com Schleiermacher.

Schleiermacher (2002, p. 27-41) props que o sistema de Plato fosse reconstrudo a

partir dos prprios dilogos e no das leituras de Aristteles. Segundo ele, a compreenso da

filosofia platnica dificultada pelo entendimento sistemtico e fragmentrio, porm isso no

descarta a possibilidade de existir um todo que permeia os dilogos. Schleiermacher defende

que a interpretao de Plato dever seguir as seguintes orientaes: contextualizar as

concepes platnicas no interior da sua obra e relacion-las com seus contemporneos (2002,

p.29); dar importncia s particularidades lingsticas do texto grego (2002, p.29); pensar a

filosofia platnica como um todo onde contedo e forma esto intimamente ligados (2002,

p.20).

57

Existem outras correntes interpretativas como, por exemplo, os dogmticos e os cticos na Antiguidade, e a

tendncia analtica na contemporaneidade. Cf. Gill (2011, p.53-71); Rowe (2012, p.381-395); Santos (2008,

p.21-39); Trabattoni (2010, p.11-26). Contudo optei por trabalhar somente com estas duas correntes (unitarista e

evolucionista), pois o debate sobre a medicina tambm toca na questo se Plato mudou ou no de posio sobre

ela. 58

preciso ressaltar que o platonismo tinha tendia a interpretar Plato de forma unitria, mas isto no significa

que o platonismo era uma corrente unitria. Havia vrios platonismos (2010, p.274).

35

2.1.1. Interpretao unitarista e esotrica.

O trabalho de Schleiermacher impulsionou toda a histria das interpretaes platnicas

dos sculos XIX e XX (ROWE, 2012, p. 387). Surge a corrente de interpretao unitarista,

ou seja, o fato de ler todos os dilogos como expresso de um conjunto nico de ideias. Ele

foi defendido por Shorey, Cherniss, Gomperz e Jaeger, e pode ser notado em Brisson e

Pradeau59

. Jaeger afirmou que o objetivo da filosofia platnica era claro aos olhos do autor

quando ele empunha a pena para escrever o primeiro dos seus dilogos socrticos. J nos

seus escritos antigos se desenha com clareza total a entelquia da Repblica (2001, p.606).

Esta interpretao endossada por Charles Kahn (1996, p.40-1). Ele nega que tenha ocorrido

uma mudana fundamental, na posio filosfica de Plato, entre os dilogos socrticos e a

Repblica e o Fdon.

Outra verso do pensamento unitarista pode ser encontrada na interpretao da

escola de Tbingen60

. Thomas Szlezk (2005, p.87), um dos expoentes desta escola, prope

que as doutrinas de Plato mais profundas e sistemticas, as timiotera, no so expostas nos

dilogos, mas eram reservadas para um ensino oral aos estudantes mais avanados. Esta

interpretao tambm conhecida como abordagem esotrica61

. Esses ensinos tambm

deveriam ser transmitidos esotericamente como faziam os pitagricos e os mdicos

hipocrticos (SZLEZK, 2009, p.18). Tudo que foi escrito por Plato deve ser

complementado por argumentos melhores. Em outras palavras, o escrito filosfico no

autrquico, mas deve ser transcendido no que se refere ao contedo para ser amplamente

entendido. O dilogo no contm este auxlio, eles remetem a teoremas no comunicados

aqui e agora. Szlezk chama isso de situao-de-boetheia, ou seja, a situao em que um

logos exposto a um ataque e seu autor intimado a lhe prestar auxlio (2005, p.94).

59

Pradeau afirma (1997, p.11) que tous les dialogues platoniciens restent fidles cette hypothse selon laquelle

la politique relve de la pense. 60

A escola de Tbingen foi fundada por Geiser e Kraemer e reavivada por Reale (2010), tornando-se conhecida

como Tbingen-Milo, e no mais somente Tbingen. No Brasil, Marcelo Perine e Dennys Xavier so os

maiores expoentes da escola no Brasil. Eles tm feito um belssimo trabalho, bucando, nos escritos de Plato e

nas evidncias dramticas, as agrapha dogmata. Para um detalhe histrico da histria, interpretaes e

refutaes das teorias da escola Tbingen-Milo, ver Perine (2009, p.9-26). Para uma anlise da ideia de Bem e

as doutrinas no-escritas, ver Xavier (2011, p.227-238) 61

Contra a interpretao esotrica ver Brisson (2003, p.55-92); Ferrari (2011, p.123-130); Trabattoni (2010, p.

21-3, 311-19); Vegetti (2003, p. 3-8, 53-65).

36

Segundo ele esta situao-de-boetheia o princpio estrutural central dos dilogos platnicos

(2005, p.94)62

.

2.1.2. A medicina na tica unitarista: modelo para Plato.

Na abordagem unitarista, a medicina quase sempre reduzida a uma metfora ou

um modelo que Plato seguia (JAEGER, 2001, p.1001). A passagem da Repblica que Plato

critica a medicina quase no lembrada.

Brisson (2011, p. 87-8) toca na medicina ao discutir sobre a cincia, os saberes, a

tcnica e a arte. Como atestado na Repblica, Plato no coloca a medicina entre as cinco

mathemata (R. 522c-531a), porm Brisson de certa forma a inclui sob a forma de Biologia,

parte de uma matemtica aplicada e descrita no Timeu (72e-87b), unindo assim o trecho da

Repblica ao Timeu.

A opo de Vegetti foi aceitar as contradies dentro do corpus com relao

medicina. Segundo ele (1995, p.xvi), no foi Plato quem mudou, mas a medicina hipocrtica

vinha modificando durante os sculos V e IV aEN. Plato estava reagindo a tais mudanas.

Vegetti pergunta (1995, p.90) que coisa aconteceu no seio da medicina nos dez ou quinze

anos entre o Grgias e a Repblica63

. Ele responde explicando que a medicina hipocrtica, ou

melhor, ps-hipocrtica se tornara um ritual higinico.

Por fim, Szlezk no toca explicitamente na relao de Plato com a medicina. Ele faz

aluso expresso cura da alma dentro da sua teoria esotrica: Scrates pede a Hpias para

que cure sua alma, esperando um fim da sua peregrinao. Segundo Szlezk, este fim se d

quando o dialtico alcana o conhecimento do Bem (R. 532e). Ento, ele interpreta a

exortao platnica para salvar a alma64

como equivalente ao pedido para salvar-vos

(sosai hemas) no Eutidemo (293a). As duas passagens tm a funo de desafiar o adversrio

a apresentar o boethein mediante timiotera, que caracteriza o filsofo como tal (2009, p.98).

62

Ver tambm Szlezk (2009, p.79-104). Ele tambm fala da estrutura de socorro como o fio condutor dos

dilogos. 63

Vegetti (1995, p.90) diz: che cos avvenuto in seno alla medicina scientifica nei due o ter lustri che

intercorrono fra Il Gorgia e la Repubblica, perch essa non riuscisse pi a porsi como problema e com stimolo

alla riflessione del filosofo? 64

Hp.Mi.372e:

37

As objees para as abordagens unitrias aparecem quando se constata que Plato

frequentemente parece de fato dizer coisas diferentes em lugares diferentes. Muitas vezes

parece que Plato est se contradizendo, para lidar com isso muitas vezes os unitaristas

estabelecem unidades quase sempre arbitrrias (SANTOS, 2008, p.36). Para resolver este

problema, uma das respostas mais comuns sustentar que o pensamento de Plato passou por

desenvolvimentos importantes, como fazem os evolucionistas.

2.2. Plato e a medicina na leitura evolucionista.

Segundo a linha de interpretao evolucionista, Plato teria mudado de ideia ao longo

de 50-60 anos de produo filosfica. Como Wittgenstein (VLASTOS 1994, p.117) produziu

criaes originais em perodos diferentes da sua vida.

Guthrie (1990, p.52) defende a ideia que natural do pensamento de um filsofo

manifestar uma ordem lgica em sua evoluo. Penner (2013, p. 147-199) prope que no

primeiro perodo da produo filosfica, Plato estaria mais prximo do Scrates histrico. J

em outro grupo de dilogos (intermedirios e tardios), Scrates fala por Plato. E nos dilogos

mdios e tardios, Plato vai alm de seu mestre.

2.2.1. Pressupostos evolucionistas na abordagem dos dilogos.

De certa forma, esta abordagem desenvolvimentista de Plato uma estratgia para

manter um tipo de abordagem unificadora e ao mesmo tempo uma alternativa para ela

(ROWE, 2011, p.30). Jos Trindade Santos (2008, p.23) aponta que esta abordagem implica

trs pressupostos no formulados:

a) A possibilidade de determinar a ordem de composio dos dilogos platnicos.

b) A ordem dos dilogos ir tornar evidente a evoluo do pensamento de Plato.

c) As teses encontradas nos dilogos so de Plato e representam seu pensamento no

momento em que ele compunha suas obras.

38

Contudo, no possvel estabelecer a ordem de composio dos dilogos platnicos,

pois difcil determinar o que composio e publicao na antiguidade65

. certo que

eram exemplares copiados e parece no haver uma numerao das obras. Isso possibilitava a

modificao dos escritos pelo autor. Dionsio de Halicarnasso (Comp.25.32) relata que Plato

era um hbil revisor de suas obras, e que com oitenta anos de idade ele no deixava de polir,

tecer, e reordenar os dilogos. Um exemplo disso a existncia de duas verses para o incio

da Repblica66

.

Frente a estas dificuldades, a estilometria se apresentou com outra via para tentar

descobrir a ordem dos dilogos. Baseando na informao que as Leis foram o ltimo dilogo

de Plato, a estilometria tentou encontrar uma ordem dos dilogos observando um incremento

no uso de terminologia tcnica (BRANDWOOD, 2013, p.113-146). Contra este mtodo,

Kahn (1996, p.44) argumenta que desde 1896 a estilometria trouxe mais confuso e menos

progresso. Nada impede que, por exemplo, Plato tenha escrito alguns dilogos ao mesmo

tempo. Rowe (2012, p.392-5) acrescenta que a diviso dos dilogos proposta pela estilometria

no corresponde tradicional diviso desenvolvimentista. Ento, para continuar

sustentando o evolucionismo nos dilogos platnicos, deveremos preferir os argumentos

filosficos para a datao dos dilogos. Mas tais argumentos67

so os mais fracos (ROWE,

2013, p.394).

Outro problema seria acreditar que existem teses dogmticas nos dilogos. No h

dvida que foi Plato que criou todas as estruturas argumentativas dos dilogos. Na crtica da

poesia no livro III da Repblica (392c-398b), Scrates diferenciou o gnero literrio da poesia

narrativa (diegetica) da poesia teatral (mimtica). Na primeira o autor sempre fala conduzindo

a narrao; na segunda, tiram as palavras do poeta no meio das falas, e fica s o dilogo (R.

394 b)68

. Mas h tambm um gnero misto, diegetico-mimetico (R. 394b-c), que resulta da

combinao entre os dois outros gneros. Os dilogos platnicos esto inseridos neste terceiro

65

Cf. Untersteiner (1980, p.37-40); Santos (2008, p.23-4). 66

Segundo ele esta verso (Comp.25.33) comeava dizendo:

. 67

Um exemplo clssico da datao dos dilogos platnicos pela filosofia desenvolvido por Ross (1951, p.1-10).

Apesar de Ross reconhecer a importncia da estilometria, ele prope uma ordem dos dilogos luz da Teoria

das Ideias. 68

Trad.: Maria Helena da Rocha Pereira. Orig.:

.

39

gnero69

. Neles a parte narrativa reduzida, e muitas vezes ausente; eles se tornam parecidos

com a literatura teatral (comdia e tragdia) porque imita os discursos dos personagens em

cena. Contudo a teatralizao da filosofia critica em parte a inadequao da escritura,

constituindo um instrumento de persuaso. Assim, a identificao mimtica vem direcionada

verdade e justia.

Se Plato criou todas as estruturas dialgicas, ento poderemos nos perguntar se h

alguma doutrina platnica nos dilogos. Parece que h teses platnicas, mas nem tudo que

colocado na boca dos personagens do dilogo representa o pensamento de Plato. Nos

dilogos a maioria das ideias flui como hipteses e no como concepes dogmaticamente

impostas ao leitor (SANTOS, 2008, p.26-7).

2.2.2. A recente crtica ao evolucionismo e novos caminhos para ler Plato.

Nos ltimos anos tem crescido entre os platonistas a crtica abordagem

evolucionista70

. Alm das objees estilometria e ordem dos dilogos, existe outra

objeo considerada por Rowe (2011, p.31) como a mais importante. Segundo esta,

implausvel que Plato tenha dado as costas intelectualmente a Scrates e ainda assim

continue a us-lo como sua personagem principal.

Mas o que fazer com as contradies (se que elas realmente existem) dentro do

Corpus de dilogos? Talvez uma opo seria buscar outra alternativa para ler Plato. Santos

(2008, p.38-9) sugere que a interpretao de Plato seja feita a partir de um contexto dialtico.

Segundo ele, o dilogo um complexo dramtico e argumentativo que se insere em uma

investigao de um tpico definido. Neste contexto dialtico, as personagens esto

sustentando opinies, em um lugar e momento historicamente situados pela narrativa. Estas

opinies visam educao, como se fossem instrumentos de ensino e investigao mais que

um suporte de doutrinas dogmticas.

Seguindo a mesma linha hermenutica, Gill (2011, p.63-69) prope que os dilogos

sejam interpretados como maiuticos, ou seja, destinados a conduzir os leitores a uma

reflexo filosfica autnoma. Ele estabelece quatro princpios para investigar os dilogos:

69

Sobre a escritura e a forma imitativa dos dilogos, ver Dixaut (2003, p.24-33); Szlezk (2005, 13-64); Vegetti

(2003, p.53-65). 70

Cf. Gill (2011, p.53-71); Kahn (1996, p.1-100); Rowe (2012, p. 383-95; 2011, p. 28-39); Santos (2008, p.19-

39).

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a) o conhecimento objetivo s alcanado na participao dialtica, no dilogo filosfico;

b) a dialtica s pode atingir a meta se os participantes possurem qualidades espirituais

apropriadas e engajem efetivamente na forma dialtica apropriada;

c) a compreenso de um problema filosfico exige que ele situe corretamente o problema em

relao aos princpios da realidade e do mtodo dialtico;

d) cada encontro dialtico tem sua identidade e sua significao prprias e forma um contexto

para compreenso dos princpios e mtodos filosficos.

Estas consideraes explicam o motivo pelo qual Plato conservou a forma do dilogo,

ou seja, a investigao. Contudo, concentrar nos dilogos individuais ou selecionar passagens

e contextos parece ter seus riscos (ROWE, 2011, p.38). Primeiro, porque h muitas coisas que

no fazem sentido com base somente no texto selecionado. Segundo, porque existem ideias

que surgem e ressurgem de uma forma ou de outra.

Em suma, seguimos a interpretao que nos dilogos platnicos a forma e o

contedo esto harmonicamente entrelaados, de forma que se torna difcil separ-los. Em

outras palavras, a pesquisa filosfica est sempre aberta para aprofundamentos. Acrescenta-se

uma seg