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    MARCELO SPALDING

    ALICE DO LIVRO IMPRESSO AO E-BOOK: ADAPTAO DEAL ICE NO PAS DAS MARAVILHASE DE ATRAVS DO

    ESPELHOPARA IPAD

    PORTO ALEGRE2012

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULINSTITUTO DE LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    REA: ESTUDOS DE LITERATURAESPECIALIDADE: LITERATURA COMPARADALINHA DE PESQUISA: TEORIAS LITERRIAS E

    INTERDISCIPLINARIDADE

    ALICE DO LIVRO IMPRESSO AO E-BOOK: ADAPTAO DEAL ICE NO PAS DAS MARAVILHASE DE ATRAVS DO

    ESPELHOPARA IPAD

    MARCELO SPALDING

    ORIENTADORA: PROF. DR. LCIA S REBELLO

    Tese de Doutorado em Literatura Comparada,apresentada como requisito parcial para aobteno do ttulo de Doutor pelo Programa dePs-Graduao em Letras da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul.

    PORTO ALEGRE2012

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    Dedico esta tese a tudo que nasceu ao longo de

    sua elaborao: meu casamento com a Aline,meu filho Guilherme, a saudade do pai.

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    AGRADECIMENTOS

    Uma tese dura tempo suficiente para que a vida de uma pessoa mude, s vezes

    completamente. E eu agradeo em primeiro lugar pacincia da Aline Corso e impacincia

    do Gui, nosso beb que nasceu em meio tese e por tantas vezes me tirou o iPad fora (ou

    aos berros).

    Agradeo Aline porque, em meio s funes de enfermeira e me, soube ser a

    companheira de um doutorando e, mais do que isso, de um doutorando trabalhando com quase

    quarenta horas-aula. Em quantas noites ela no acabou adormecendo sozinha, talvez ouvindo

    os tlque-tlques do teclado na sala?

    Agradeo a meus pais, meMagda Spalding Perez, que sempre me incentivou, e

    ao paiJos Amado Perez, que teria ficado orgulhoso de ver um filho doutor. Faleceu em

    meio a esses quatro anos, depois de ver o neto nascer, o que talvez seja mais importante.

    E ao mencionar os pais devo mencionar tambm irmos Eduardo e Tatiana , a V

    Nris, a Tia Zlia, sogra, sogro, cunhados, sobrinhos e cachorro.

    Agradeo Neiva Tebaldi Gomes, Regina Silveira, Leny Gomes e Rejane Pivetta,minhas professoras no Uniritter que o grande Rodrigo Valin transformou em colegas.

    Agradeo a meus colegas nessa jornada de segunda graduao, mestrado e doutorado:

    Miguel Lpez, ngela Mendez, Karine Campos, Sandra Salenave, Anelise Riva, Felipe

    Ewald.

    Agradeo a colegas do mundo das letras que foram me sugerindo, guiando, opinando

    nesse rduo estudo, a princpio com to pouco material, mas que foi crescendo de forma

    assustadora: Las Chaffe, Ana Mello, Paulo Tedesco, Lus Augusto Fischer, Tnia Rsing,Snia Zanchetta.

    Por fim, e especialmente, agradeo minha orientadora, Lcia S Rebello, e a meus

    professores nesse ps-graduao, representados todos em nome da querida Marta Navarro,

    que ministrou uma das melhores disciplinas que tive no Doutorado. Faleceu no mesmo ano e

    de mal parecido com o de Steve Jobs, a quem tambm agradeo por ter lanado o iPad a

    tempo de eu mudar toda minha tese

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    RESUMO

    As novas tecnologias de comunicao tm transformado sobremaneira o mundo em que

    vivemos, incluindo a a cultura. Neste contexto, muito se discute sobre o futuro da literatura e

    dos livros, mas este estudo evita especular sobre a permanncia ou no do objeto livro e

    prefere investigar as possibilidades da criao literria diante de novos suportes de leitura, em

    especial o iPad. Assim como outrora a inveno da imprensa forjou o romance e a

    popularizao das revistas e jornais consolidou o conto moderno, investiga-se de que formaferramentas prprias das novas tecnologias so utilizadas para a criao de textos literrios

    diferentes do texto impresso, a chamada literatura digital. Para fazer essa comparao, foram

    usados os dois clebres romances de Lewis Carroll, Alice no Pas das MaravilhaseAtravs

    do Espelho e o que Alice Encontrou por l, e duas verses da Atomic Antelope, de Chris

    Stephens, para iPad: Alice for iPad e Alice in New York. Ao final do estudo, que discute

    tambm a questo do fim do livro e da literatura, traando um longo histrico da leitura e

    contextualizando o livro no que se chama de Era Digital, espera-se mostrar como as

    possibilidades de criao para plataformas digitais podem ir alm do que hoje entendemos por

    livros, motivo pelo qual a permanncia da literatura, independente do seu suporte, est

    assegurada.

    Palavras-chave:literatura digitallivro digital Alice no Pas das Maravilhasliteratura e

    tecnologialiteratura para iPad

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    ABSTRACT

    New communication technologies have immensely changed the world in which we live, as

    well as its culture. Within such context, much has been discussed about the future of literature

    and books. This study avoided speculating about the persistence of books as physical objects,

    and, rather, investigated the possibilities of literary creation in face of the new reading media,

    particularly the iPad. As the invention of the press forged the novel, and the popular spread of

    magazines and newspapers consolidated modern short stories in the past, we currentlyinvestigate how new technological tools may be used to create literary texts, called digital

    literature, that are different from the print-based text. For this comparison, we used two

    renowned novels by Lewis Carroll, Alices Adventures in Wonderland and Through the

    Looking-Glass and What Alice Found There, and two versions of the Atomic Antelope, by

    Chris Stephens, for iPad:Alice for iPadandAlice in New York. This study also discussed the

    possible demise of books and literature by outlining the long history of reading that has set the

    context for books in the Digital Era; Therefore, it demonstrated that the possibilities of literary

    creation for digital platforms may go beyond what we understand to be books today, which is

    why the persistence of literature, regardless of what medium it uses, is ensured.

    Keywords: e-literature e-book Alices Adventures in Wonderland literature and

    technologiesliterature for iPad

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - Pedra com Cdigo de Hamurbi e detalhe do Cdigo .......................................................................28Figura 2 - Exemplo de rolo utilizado na Antiguidade ........................................................................................29Figura 3 - Cdice Sinatico, um dos mais antigos dos manuscritos bblicos existentes, datado do sculo IV ...... .31Figura 4 - Reproduo de uma pgina de cdice do comeo dos anos mil .........................................................33 Figura 5 - Exemplar da Bblia de Gutenberg.....................................................................................................36Figura 6 - Capa do Index Librorum Prohibitorum de 1559 ................................................................................38Figura 7 - Imagem do ENIAC ..........................................................................................................................50Figura 8 - Tela do Google Books com seus dois espaos para busca por palavra-chave .....................................59 Figura 9 - O iPod, da Apple .............................................................................................................................63Figura 10 - Steve Jobs apresentando o iPad, em 2010 .......................................................................................66Figura 11 - Dynabook, o precursor dos tablets..................................................................................................66Figura 12 - Graphics Tablet, da Apple, de 1979 ................................................................................................67Figura 13 - Kindle, e-reader da Amazon ...........................................................................................................73Figura 14 - Nook Color ....................................................................................................................................76Figura 15 - Positivo Alfa .................................................................................................................................78Figura 16 - iBooks, aplicativo para leitura de livros digitais daApple................................................................79Figura 17 - Tela inicial do Google Books for Android ......................................................................................80Figura 18 - Pgina do livro Toy Story ..............................................................................................................82Figura 19 - Ilustrao para usurio colorir ........................................................................................................82Figura 20 - Usuria demonstra edio de Reinaes de Narizinho para iPad .....................................................85 Figura 21 - "Beba Coca Cola", poema concreto de Dcio Pignatari ...................................................................88Figura 22 -My Body, de Shelley Jackson .........................................................................................................91Figura 23 - Storyland, de Nanette Wylde ..........................................................................................................92Figura 24Cruising, deIngrid Ankerson ........................................................................................................93Figura 25 - Deviant: The Possession of Christian Shaw, de Donna Leishman ....................................................94

    Figura 26 - Stud Poetry, de Marko Niemi .........................................................................................................95Figura 27 -Inveno 5, de Dcio Pignatari .......................................................................................................95Figura 28 -Em torno a Serelepe esplndida, de Haroldo de Campos ................................................................96Figura 29 -Memria, de Alckmar Luiz dos Santos ...........................................................................................97Figura 30 -Mbile 3, de Slvia Laurentiz .........................................................................................................98Figura 31 - Capa da seo de ciberpoemas do site ciberpoesia.com.br ............................................................. 100 Figura 32 - Ch, de Ana Cludia Gruszynski e Srgio Capparelli ................................................................... 101

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    Figura 33 -Dois Palitos, do escritor Samir Mesquita ...................................................................................... 102Figura 34 -Desfocado, de Mauro Paz ............................................................................................................ 103Figura 35 - Alice segura garrafinha com escrito "Drink Me" ........................................................................... 121Figura 36 - Poema em forma de rabo de camundongo .................................................................................... 124Figura 37 - Alice na Casa do Coelho .............................................................................................................. 125Figura 38 - Ilustrao evidencia tamanho de Alice em relao aos animais ..................................................... 125Figura 39 - Ilustrao do gato de Cheshire...................................................................................................... 128Figura 40 - Alice no Ch Maluco ................................................................................................................... 129Figura 41 - Ilustrao do Grifo ....................................................................................................................... 131Figura 42 - As cartas voam sobre Alice .......................................................................................................... 133Figura 43 - Ilustraes eram feitas em um bloco de madeira ........................................................................... 135 Figura 44 - Ilustrao feita pelo prprio Carroll .............................................................................................. 138Figura 45 - Poema em forma de rabo de camundongo manuscrito por Carroll ................................................. 138Figura 46 - Alice no trao do prprio Carroll .................................................................................................. 139Figura 47 - ltima pgina do livro baseado nos manuscrito de Carroll ............................................................ 140Figura 48 - Pgina anterior histria de Atravs do espelho ........................................................................... 143Figura 49 - Alice atravessando o espelho........................................................................................................ 146Figura 50 - Alice e Rainha Vermelha como se estivessem voando .................................................................. 148Figura 51 - Alice com Tweedledum e Tweedledee ......................................................................................... 150Figura 52 - Alice sacudindo a Rainha at virar um gato .................................................................................. 156 Figura 53 - Pgina de The Nursery Alice, com ilustrao colorida de Tenniel .................................................. 158Figura 54 - Ilustrao colorida de Tenniel ...................................................................................................... 161Figura 55 - Cena do curta Alice in Wonderland (1903) ................................................................................... 168Figura 56 - Cena do curta Alice in Wonderland (1903) ................................................................................... 169Figura 57 - Cena do curta Alice in Wonderland (1903) ................................................................................... 170Figura 58 - Cena do curta Alice in Wonderland (1903) ................................................................................... 171Figura 59 - Alice dirigido por Norman Z. McLeod (1933) .............................................................................. 172Figura 60 - Figura 52 - Alice de 1933 utiliza tambm animaes .................................................................... 173Figura 61 - Alice dos estdios de Walt Disney (1951) .................................................................................... 174 Figura 62 - Cena de Alice in Wonderlan, de Tim Burton (2010) ..................................................................... 175

    Figura 63 - Cena do jogo American Mcgee's Alice ......................................................................................... 178Figura 64 - Alice luta com as cartas em cena do jogo Madness Returns .......................................................... 179 Figura 65 - JogoAlice in Wonderlandproduzido pelos estdios Disney .......................................................... 179Figura 66 - Usurio encontra Alice no parque em jogo do XBox..................................................................... 180Figura 67 - Cena do jogo Disneyland Adventures ........................................................................................... 181Figura 68 -Alice no Rocket eBook................................................................................................................. 182Figura 69 - Aparncia de Alice no Kindle ...................................................................................................... 183

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    Figura 70 - Capa deAlice for iPad................................................................................................................. 188Figura 71 - Pgina padro deAlice for iPad................................................................................................... 189Figura 72 - Pgina com poema com fonte diferenciada ................................................................................... 193Figura 73 - Elemento cai na tela ..................................................................................................................... 195Figura 74 - Alice observa pela portinha .......................................................................................................... 196Figura 75 - Alice esticando na tela ................................................................................................................. 197Figura 76 - Usurio pode atirar os doces no Dod .......................................................................................... 198Figura 77 - Alice na cena com a lagarta fumando narguil .............................................................................. 200Figura 78 - Ptalas na tela do iPad.................................................................................................................. 202Figura 79 - Tortas podem ser arremessadas no Rei ......................................................................................... 203Figura 80 - Cartas voam sobre Alice .............................................................................................................. 204Figura 81 - Alice atravessa o espelho ............................................................................................................. 212Figura 82 - Rainha Vermelha, em Alice in New York, a esttua da liberdade ............................................... 214 Figura 83 - Harmonia entre som, animao e movimento ............................................................................... 215Figura 84 - Irmos Tweedle so transformados em taxistas ............................................................................. 217Figura 85 - Tweedledee e Tweedledum duelam na Ponte do Brooklyn ............................................................ 218Figura 86 - Usurio precisa mover a lmpada para visualizar a cena ............................................................... 218 Figura 87 - Alice na loja com a ovelha ........................................................................................................... 219Figura 88 - Cena inspirada em Lunch atop a Skyscraper.............................................................................. 220Figura 89 - Usurio colore a tela com fogos de artifcio .................................................................................. 224Figura 90 - Cidade comparada a um tabuleiro de xadrez .............................................................................. 229

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    SUMRIO

    LISTA DE FIGURAS ..................................................................................................................................... 3INTRODUO .............................................................................................................................................111 A QUESTO DO FIM DO LIVRO E DA LITERATURA ..................................................................17

    1.1 LEITURA E LITERATURA DAS TBUAS DA LEI TELA DO COMPUTADOR........... ...... ....251.2 A ERA DIGITAL E O SURGIMENTO DOE-BOOK(OU LIVRO DIGITAL) ...............................441.3 O TABLETE O IPAD .....................................................................................................................651.4 E-BOOKS,E-READERSE OS NOVOS SUPORTES DE LEITURA ...............................................711.5 A LITERATURA DIGITAL ...........................................................................................................86

    2 ALICE DO LIVRO IMPRESSO AO E-BOOK.................................................................................. 1052.1 ALICE NO PAS DAS MARAVILHAS ....................................................................................... 1142.2 ATRAVS DO ESPELHO E O QUE ALICE ENCONTROU POR L ...... ...... ...... ...... ...... ...... ..... 1412.3 TRADUES E ADAPTAES: LIVROS, FILMES E GAMES................................................. 1572.4 ALICE PARA IPAD E O LIVRO DIGITAL ................................................................................. 1812.5 ALICE IN NEW YORK E A LITERATURA DIGITAL ............................................................... 208

    3 CONSIDERAES FINAIS: A LITERATURA PARA ALM DO LIVRO ........... ...... ...... ...... ...... 234REFERNCIAS .......................................................................................................................................... 239

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    INTRODUO

    Lidar com o contemporneo sempre um enorme risco, tanto pela falta de

    distanciamento temporal em relao ao objeto estudado quanto pela sua incompletude:

    afirma-se com frequncia que s se pode obter e aproveitar o conhecimento sobre coisas de

    alguma maneira acabadas e encerradas (CONNOR, 1996, p. 11). Em tempos de poucas

    certezas como o nosso, lidar com o contemporneo torna-se ainda mais perigoso, pois somos

    obrigados a trabalhar numa espcie de fronteira do presente (BHABHA, 1998, p. 30) ounum tempo depois do tempo (COMPAGNON, 2003, p. 103).Mais ainda quando se trata de

    uma tecnologia de ponta, no caso o iPad, pois as mudanas so ainda mais repentinas e

    substanciais.

    Estas dificuldades, entretanto, no podem nos impedir de olhar para as profundas

    transformaes tecnolgicas deste comeo de sculo e de questionar de que forma elas tm

    influenciado a literatura. Como bem lembra Calvino,

    a literatura s pode viver se se prope a objetivos desmesurados, at mesmo paraalm de suas possibilidades de realizao. S se poetas e escritores se lanarem aempresas que ningum mais ousaria imaginar que a literatura continuar a ter umafuno. No momento em que a cincia desconfia das explicaes gerais e dassolues que no sejam setoriais e especialsticas, o grande desafio para a literatura o de saber tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos cdigos numa visopluralstica e multifacetada do mundo. (1990, p. 127).

    este esprito expresso por Calvino que guia esta tese, encorajando-nos a abordar um

    tema to atual e to polmico, cujos contornos recm comeam a ser delineados. A literaturana era digital, a literatura digital (ou eletrnica), o livro digital (ou e-book) so mais do que

    temas comerciais ou editoriais, eles j se tornam relevantes do ponto de vista dos estudos

    literrios seja pela imensido de suas possibilidades, seja pelo corpus que comea a se

    solidificar.

    Quando iniciamos esta pesquisa, em meados de 2008, o Kindle comeava sua

    trajetria, mas ainda no tinha tanta repercusso na mdia, poucos acadmicos estudavam o

    tema e nossos possveis objetos de estudo concentravam-se todos na web, ainda assim de

    forma dispersa. Ao longo desses quatro anos, o tema cresceu enormemente de importncia

    pela popularizao do Kindle, pela profuso de editoras de livros digitais e, finalmente, pelo

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    lanamento do iPad, que foi visto por muitos como um objeto entre o livro (seu formato,

    tamanho, forma de segurar) e o computador.

    Naturalmente que com o crescimento dos novos suportes de leitura muito se tem

    debatido sobre o futuro do livro, da leitura e da literatura, com profecias utpicas e distpicas.

    A utopia e a distopia, alis, acompanham os estudos sobre a era digital e a cibercultura desde

    o seu princpio:

    a poca , para a conscincia humana, uma poca de esperana e horror, ambgua econfusa. Enquanto num momento a tecnologia igualada ao progresso e promessade um mundo de abundncia, livre de labuta, noutro ela evoca a viso de um mundoenlouquecido, fora de controle, a viso de Frankstein. (EWEN apud RDIGER,2003, p. 10).

    O nosso objetivo, nesta tese, no atacar, promover ou exaltar as novas tecnologias e

    suas possibilidades, e sim fazer uma leitura aprofundada em diferentes mdias, suportes e

    formatos para comparar, investigar e problematizar esses novos formatos para o livro, o

    chamado livro digital, apontando avanos e limitaes, potencialidades e ameaas.

    Machado & Pageaux, ao falarem do contato, matria bsica da literatura comparada,

    afirmam haver contato no apenas entre dois textos, mas tambm entre duas ou mais formas

    literrias, gneros, unidades temticas, () entre duas culturas (2001, p. 28 -9). Deve-seadmitir tambm, neste momento histrico, o contato entre duas mdias, a transposio ou

    traduo de um texto literrio para outro suporte, no caso no mais o livro em papel, mas o

    livro digital.

    Para no nos dispersarmos demais nesse mar de possibilidade em que navegamos,

    escolhemos como objeto de estudo uma edio da Atomic Antelope de Alice no Pas das

    Maravilhas para iPad, Alice for iPad. Esta edio, lanada apenas alguns meses depois do

    lanamento do tablet, repercutiu mundialmente por prometer uma interao nunca antes vistapara os livros, permitindo ao leitor, por exemplo, sacudir o relgio do coelho enquanto sacode

    seu tablet.

    medida que fomos aprofundando a pesquisa em Alice, percebemos que a obra j

    havia sido a escolhida para o lanamento de um e-readerque considerado o primeiro e-

    readerde segunda gerao, o precursor do Kindle, Rocket eBook. Tambm chamou nossa

    ateno a importncia de Alice para a histria do cinema, j que h verses da obra desde

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    1903 at o surgimento do cinema 3D comercial, passando por filmes em preto e branco,

    animaes dos anos 30, a clebre verso da Disney e adaptaes feitas em diversos pases.

    Ao relermos o texto de Alice, encontramos na prpria obra elementos e valores

    prprios da cibercultura, da era digital, que talvez expliquem esse renovado interesse pelo

    universo ficcional de Carroll: os conflitos identitrios da protagonista, o carter ldico do

    enredo e da narrativa, o mundo virtual criado pelo narrador.

    No espere o leitor, entretanto, uma exaustiva reviso bibliogrfica da obra ou

    contribuies acadmicas definitivas para o vasto debate sobre o romance de Carroll. Alice,

    aqui, muito mais um ponto de partida para se pensar a transposio da literatura do papel

    para as mdias digitais, no caso especial, o iPad.

    Vale ressaltar, ainda, que j no meio da produo desta tese foi lanado para iPad, pelamesma Atomic Antelope, o livro Alice in New York, uma releitura de Atravs do Espelho e o

    que Alice Encontrou por l. O livro explora as ferramentas prprias do aparelho de forma

    ainda mais intensa, utilizando, por exemplo, udio em algumas cenas. No hesitamos em

    incluir a obra em nosso estudo, mas ainda assim vale dizer que esta tese a fotografia de um

    momento, nmeros e tecnologias evoluem a cada dia, livros para iPad, Kindle e Android so

    lanados a cada momento, cada vez com mais novidades, e o prprio formato EPUB, que

    apresentamos nesta tese como um formato de texto e imagem estticos, j sofreu alteraesque permitem a utilizao de animaes e hiperlinks, por exemplo1.

    Outro cuidado que tivemos neste estudo foi o de descrever o que j existe, no

    tentando prever o futuro. Na primeira parte, o captulo 1, A questo do fim do livro e da

    literatura, fizemos uma breve retrospectiva do caloroso debate acerca do fim do livro e da

    literatura, iniciando por um histrico da leitura, no subcaptulo 1.1; passando pela

    contextualizao do que essa chamada era digital e do surgimento do e-book, no 1.2;

    demonstrando como o iPad resultado de anos de pesquisas em relao ao chamado tablet, no1.3; delimitando a diferena entre leitores de livro digital (e-readers) e livros digitais (e-

    books), no 1.4; e demonstrando alguns exemplos de literatura digital publicados na web, no

    subcaptulo 1.5.

    A propsito, precisamos aproveitar esta introduo para algumas consideraes.

    Comecemos justificando o uso de dois nomes distintos ao longo deste estudo para representar

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    a mesma coisa: e-book e livro digital. Ocorre que e-book o termo que se consagrou no

    idioma ingls e uma abreviatura de eletronic book, como temos o e-mail (eletronic mail).

    Tal abreviatura originou os nomes de e-literature, para designar a literatura produzida a partir

    das tecnologias digitais, e e-pub, que, como veremos a seguir, o nome do arquivo dado aos

    livros digitais. No Brasil, porm, o termo e-bookconvive com o termo livro digital, tanto que

    as Livrarias Cultura e Saraiva usam designaes diferentes para a respectiva seo no site: a

    Cultura optou por e-book2, enquanto a Saraiva,por livro digital3.

    Para ns, o termo livro digital parece muito mais apropriado que o termo livro

    eletrnico,pois eletrnico no sinnimo de digital. A televiso, o rdio, o micro-ondas, o

    ventilador, o relgio de pulso, o aspirador de p e o marca-passo so eletrnicos, mas nenhum

    deles produz ou distribui bits, essncia dessa vida digital. Entretanto, nos referimos tanto alivros digitais quanto a e-books(inclusive no ttulo da tese) com o objetivo de estar integrado

    s palavras-chave desse campo, dialogando no apenas com os acadmicos de nosso idioma.

    Outra considerao em relao ao uso de numerosas notas de rodap e imagens.

    Como uma tese necessariamente precisa ser apresentada em formato de texto, no sendo

    permitida, pelo menos ainda, sua apresentao em alguma mdia digital, como CD-ROM, em

    que poderamos fazer hiperlinkse reproduzir vdeos, precisamos lanar mo da reproduo de

    diversas imagens e descrever as cenas de movimento de Alice for iPadeAlice in New York.Tambm utilizamos as notas de rodap como o faramos com os hiperlinks, inclusive para

    referenciar reportagens ou pginas da internet citadas uma nica vez, motivo pelo qual no as

    citamos como o fizemos com os livros, artigos ousitesque constam nas Referncias, ao final.

    No que tange literatura, e mais especificamente literatura comparada, procuramos

    trazer a esta reflexo conceitos caros s respectivas reas, como narratividade, literariedade,

    recepo, traduo, adaptao, ainda que no haja um captulo especfico para eles.

    Naturalmente encontramos diversas dificuldades. Capparelli chega a questionar se possvelutilizar conceitos da crtica literria tradicional para explicar a fico hipertextual, ao que

    responde:

    muita gente se faz essa pergunta. O hipertexto, possibilitado pelas novas tecnologias,

    1Um exemplo o livro Yellow Submarine, da Subafilms Ltd., que est disponvel para o iBooks em EPUB, mastem som e movimento dentro do livro.2Disponvel em: . Acesso em: 02 mar. 2012.3Disponvel em: . Acesso em: 02 mar. 2012.

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    tem levantado muitas questes e trazido poucas respostas a respeito de formasnarrativas dele decorrentes. Como em todo perodo de mudana, as pessoastitubeiam quando vo explicar o novo. Inexiste um vocabulrio especfico. Osconceitos so frouxos; os princpios explicativos tradicionais, inexatos, ao seremchamados para explicar a nova realidade. Da o uso de imagens, metforas,

    eufemismos. (2010, p. 222).

    Na segunda parte, o captulo 2, Alice do livro impresso ao e-book, onde fizemos

    essas aproximaes de conceitos da literatura comparada, da teoria literria e da cibercultura

    com nosso objeto de estudo. No subcaptulo 2.1, sumarizamos o enredo de Alice no Pas das

    Maravilhassob a tica de um estudo voltado cibercultura e contemporaneidade. Tambm

    voltamos nosso olhar para as ilustraes de Tenniel e para caractersticas das primeiras

    edies da obra. Metodologia semelhante foi a utilizada no captulo 2.2, quando sumarizamoso enredo de Atravs do Espelho e o que Alice encontrou por l. O captulo 2.3 foi uma

    transio entre as edies de livro impresso de Tenniel e as edies para iPad de Stephens;

    nele abordamos as diversas tradues e adaptaes de Alice, em especial adaptaes para

    livros, filmes e games. No captulo 2.4 chegamos, finalmente, ao nosso objeto central, Alice

    for iPad, analisando e descrevendo a obra do ponto de vista do texto, do design e das

    animaes. O captulo 2.5 semelhante ao anterior, sendo uma anlise de Alice in New York,

    a continuao deAlice for iPad, publicada um ano depois.

    Nosso desejo que professores, estudantes, escritores ou leitores que avanarem nas

    pginas a seguir compreendam o esforo de se tentar apreender um pouco de um tema com

    possibilidades to vastas, mas ainda restrita delimitao. Talvez o que mais nos tenha

    motivado a seguir adiante seja a

    necessidade de formar mediadores que saibam aproveitar esses novos fenmenos eajudar, assim, a uma nova convergncia: a convergncia entre a cultura escolar e acultura acadmica clssica, ao que Chartier chama de cultura letrada (sem seus

    aspectos mais positivos, no os simplesmente doutrinais ou normativos), com essemundo selvtico da internet, de maneira que se possam converter telas emcenrios de novas prticas letradas, com um novo esprito de participao,liberao do conhecimento, etc., prprio dessa nova era digital a que alguns chamamde inteligncia coletiva. (GARCA, 2010, p. 32).

    Ns, em grande maioria, somos imigrantes digitais, seres que aprenderam, de uma

    forma ou outra, a lidar com os equipamentos digitais. Mas quem nasceu a partir dos anos

    noventa, todos aqueles que esto nascendo e nascero ao longo do sculo XXI j so nativos

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    digitais que estaro to familiarizados com o cheiro e a textura do iPad quanto ns hoje

    estamos apegados ao cheiro e textura do papel. Negar literatura essa transposio para

    novas mdias dificultar sua chegada ao terceiro milnio, subtrair sua fora e subestimar sua

    funo na sociedade.

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    1 A QUESTO DO FIM DO LIVRO E DA LITERATURA

    O livro como a colher, o martelo, a roda ou atesoura. Uma vez inventados, no podem ser

    aprimorados.

    (Umberto Eco)

    O livro assistiu conquista dos mares e do espao, ao massacre de tribos inteiras,

    construo de aldeias que viraram cidades e depois metrpoles, a Grandes Guerras Mundiais,

    a Cismas e Revolues no Oriente e no Ocidente; contribuiu com o surgimento de naesfortes e lderes sanguinrios, de ideias que originaram a eletricidade, o avio, o telefone, a

    bomba atmica, o rdio, a vacina, o cinema, a gentica, a internet; consolidou lnguas,

    perpetuou religies, criou mundos imaginrios. O secular e sagrado livro atravessou um

    milnio inteiroo das luzes, o das invenespraticamente inclume, soberano numa era de

    rpidas transformaes tecnolgicas, fazendo-nos acreditar que ele, o livro, era realmente

    como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Mas no.

    Nem o livroe talvez nem a colher, a roda ou a tesoura est livre de transformaonessa passagem do mundo analgico para o mundo digital, do mundo de tomos para o

    mundo de bits4, o que tem provocado verdadeiro alvoroo em uma gerao nascida e criada

    em meio a (muitos) livros. Sim, muitos, porque se em 1427 havia apenas 122 livros na

    Universidade de Cambridge, hoje so mais de 150 milhes de volumes mantidos em 150

    quilmetros de prateleiras s nesta Universidade.5

    Tal profuso sinal de que o livro no conquistou apenas as estantes, mas tambm o

    corao e o imaginrio de seus leitores: preciso reconhecer o mundo como um grandelivro (ECO, 2003, p. 31), nos dir Guilherme de Baskerville, o frade franciscano

    protagonista de O Nome da Rosa; Liesel quase puxou um ttulo do lugar, mas no se atreveu

    a perturb-los, eram perfeitos demais (ZUSAK, 2007, p. 123), contar a protagonista Morte

    emA menina que roubava livros; No era mais uma menina com um livro: era uma mulher

    com o seu amante (LISPECTOR, 2001, p. 314), revelar Clarice Lispector no antolgico

    conto Felicidade Clandestina.

    4No captulo 1.2 abordaremos no que consiste a chamada era digital e a transformao de tomos em bits5 VERSIGNASSI, Alexandre. O fim do livro de papel. Super Interessante, So Paulo, n. 276, mar. 2010.Disponvel em: . Acesso em: 04 fev. 2011.

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    Assim, quando comea a se falar em novos suportes para a leitura que no o bom e

    velho cdice impresso, em livro digital, em e-book, etc., natural que haja uma forte reao

    por parte de uma sociedade acostumada a conviver com livros h milnios, reao que se faz

    sentir nas estantes das livrarias, nos debates acadmicos e nas discusses via internet.

    Nas livrarias, diversas publicaes abordam frontalmente a questo do futuro do livro:

    A aventura do livro: do leitor ao navegador, de Roger Chartier, publicado em 1998; Fim do

    Livro, Fim dos leitores?, de Regina Zilberman, publicado em 2001; So Many Books: Reading

    and Publishing in an Age of Abundance6, de Gabriel Zaid, publicado em 2003; Books in the

    Digital Age: The Transformation of Academic and Higher Education Publishing in Britain

    and the United States, de John B. Thompson, publicado em 2005;Papel Mquina, de Jacques

    Derrida, publicado em 2005; Futuro do livro, com 60 vises e opinies diferentes sobre ofuturo do formato livro, publicado em 2007; A Questo dos Livros, de Robert Darnton,

    publicado em 2010; No contem com o fim do livro, dilogo entre Umberto Eco e Jean-

    Claude Carriere, publicado tambm em 2010.

    Na Academia, j em 2005 o prprio Instituto de Letras da UFRGS sediou o Colquio

    Internacional Literatura Comparada e Novas Tecnologias, organizado pela saudosa Prof

    Tania Carvalhal, para quem ao falarmos de novas tecnologias estamos tratando das

    constantes modificaes introduzidas em nossa vida cotidiana pelos avanos alcanados noscampos das comunicaes, da informtica, da mdia em geral (2005, p. 4), e evidente que

    essas modificaes introduzem novas necessidades nas pesquisas desenvolvidas nos campos

    das cincias sociais, das humanidades e dos estudos literrios (2005, p.5). Hoje encontramos

    importantes grupos de estudos congregando as reas de literatura e tecnologia, como o Ncleo

    de Pesquisas em Informtica, Literatura e Lingustica (NUPILL), da UFSC, o Ncleo de

    Pesquisa em Literatura Digitalizada, da UFPI, o Centro de Estudos sobre Texto Informtico e

    Ciberliteratura (CETIC), da Universidade Fernando Pessoa, o grupo espanhol Literaturasespaolas y europeas: del texto al hipertexto, da Universidad Complutense de Madri, o grupo

    francs Bases, Corpus et Langage, da Universit Nice, e a Eletronic Literature Organization,

    entidade ligada a University of Maryland (EUA).

    Na internet, encontramos opinies apaixonadas e contundentes sobre o tema. Rafael

    Rodrigues, na revista onlineDigestivo Cultural, escreveu uma verdadeira ode ao livro,

    6Quando os livros no foram editados no Brasil, optamos por utilizar o ttulo original.

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    afirmando que sua quase-obsesso por livros no o permite sequer considerar a possibilidade

    do fim do livro impresso: sou do tipo que pega o livro e o aperta como se fosse uma nova

    paixo ou uma paixo j antiga. [...] Para mim, o livro , alm de conhecimento, um

    objeto, um bem material sagrado (2007). Cssio Pantaleoni, escritor e editor, em srie de

    artigos publicados no portal Artistas Gachos tambm defende a permanncia do livro

    impresso em oposio ao livro digital: o livro impresso e editado um rastro de vida,

    vestgio de poca, fato histrico. Nenhum livro digital pode aspirar ter uma arqueologia

    semelhante, pois ele apenas nos d o texto e nada mais (2009).

    O que est por trs desse apego ao livro muito mais do que uma identificao

    ancestral com um objeto que atravessou milnios mais ou menos com o mesmo formato, e

    sim uma errnea percepo de que livro e literatura so uma entidade nica, sendo umincapaz de sobreviver sem o outro.

    Livro e literatura constituem, por fora da ndole da escrita e da materialidadedo papel, as duas faces de uma nica moeda. A expanso do primeiro garantiu aascenso da segunda, que, at a inveno da imprensa, circulava entre grupos seletose aristocrticos; ou ento se sustentava graas circulao oral, efmera pornatureza. No por acaso que os escritores temem que, com o fim da era do livro,desaparea a arte que so capazes de criar. (ZILBERMAN, 2001, p. 119)

    John Coetzee7, em certo dilogo de Vero, sintetiza bem o que representa esse temor

    para os escritores. O protagonista da obra conversa com a psicanalista Jlia, justificando por

    que escreve livros (embora fosse mais preciso dizer literatura) e dizendo que o livro (a

    literatura) uma recusa diante da poca, uma aposta na imortalidade. Jlia retruca afirmando

    que ningum imortal, o globo todo ser queimado e virar cinzas, nada vai sobreviver.

    Coetzee esclarece, ento, que no quis dizer imortal no sentido de existir fora do tempo, e sim

    sobreviver alm da prpria morte fsica. Sigamos, daqui em diante, o dilogo nas belas

    palavras do romancista:

    Quer que as pessoas leiam seus livros depois que voc morrer?Me d alguma consolao contar com essa perspectiva.Mesmo voc no estando mais aqui para saber?Mesmo eu no estando mais aqui para saber.Mas por que as pessoas do futuro deveriam se dar ao trabalho de ler o livro que

    7 John Maxwell Coetzee um escritor sul-africano que recebeu o Nobel de Literatura de 2003. Nos livrosInfncia, Juventude e Vero, faz uma espcie de autobiografia ficcional, convertendo-se em personagem dosprprios romances.

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    voc escreve se ele no disser nada a elas, se no ajudar as pessoas a encontrar umsentido para a vida delas?Talvez elas ainda gostem de ler livros que so bem escritos.Isso bobagem. a mesma coisa que dizer que se eu fizer uma radiovitro la muitoboa ela ainda vai estar sendo usada pelas pessoas no sculo XXV. Mas no vai.

    Porque uma radiovitrola, por mais benfeita que seja, vai estar obsoleta. No vaisignificar nada para as pessoas do sculo XXV.Talvez no sculo XXV ainda exista uma minoria com curiosidade para saber comosoava uma radiovitrola do sculo XX,Colecionadores. Gente que tem hobby. assim que voc pretende passar a suavida: sentado na sua mesa manufaturando um objeto que pode ou no ser preservadocomo curiosidade?Ele deu de ombros: Tem alguma ideia melhor? (COETZEE, 2010, p. 68).

    a materialidade do livro que confere aos escritores uma sensao de permanncia

    alm do corpo fsico, permanncia simblica materializada num objeto concreto que

    repousar com cuidado na estante da sala de um ente querido ou na prateleira de uma

    biblioteca, ao alcance de geraes vindouras. Conforme bem salienta Zilberman, no

    houvesse o suporte atravs do qual ela se manifesta, [a literatura] perder-se-ia no tempo, pois

    seus outros elementos as imagens (); as narraes () mostram-se por demais

    transitrios e efmeros(2001, p. 113).

    Jorge Luis Borges, alis, tem uma bela frase sobre essa imortalidade no do homem,

    mas do livro:

    talvez me enganem a velhice e o temor, mas suspeito que a espcie humana anica est por extinguir-se e que a Biblioteca perdurar: iluminada, solitria,infinita, perfeitamente imvel, armada de volumes preciosos, intil, incorruptvel,secreta. (1998, p. 522).

    Essa materialidade do livro tambm apontada como uma vantagem importante para a

    conservao do livro impresso em relao ao livro digital: bitsse degradam com o passar do

    tempo, documentos podem se perder no ciberespao por conta da obsolescncia da mdia em

    que esto registrados, alerta o historiador Robert Darnton, a menos que o problemaenervante da preservao digital seja resolvido, todos os textos que nasceram digitais

    pertencem a uma espcie em risco de extino (2010, p. 56). Segundo Darnton, a obsesso

    por desenvolver novas mdias inibiu os esforos para preservar as antigas, e como

    consequncia teramos perdido 80% de todos os filmes mudos e 50% de todos os filmes

    produzidos antes da Segunda Guerra Mundial.

    Nada mais eficaz para preservar textos do que tinta engastada em papel,

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    especialmente papel manufaturado antes do sculo XIX, exceto no caso de textosescritos em pergaminho ou gravados em pedra. O melhor sistema de preservaoque j se inventou o antiquado livro pr-moderno. (2010, p. 56).

    Nayla Campos de Alencar, em comentrio a uma coluna de Cssio Pantaleoni sobre olivro digital, tambm questiona a conservao do texto medida que ele perde sua

    materialidade:

    fico imaginando como iro pesquisar os arquelogos do futuro... Se todos os livrosforem digitais, e os formatos de suporte mudam a cada ano, de que vai adiantar umarquelogo futuro encontrar um pen drive com toda a Biblioteca de Alexandriadentro se as mquinas futuras dele no conseguirem ler aquilo? Com o livro digital,jamais teremos os "Manuscritos do Mar Morto" digitais para sacudir a histria doslivros.8

    sintomtico, nesse sentido, que o porta-voz da defesa do livro impresso seja

    Umberto Eco, um dos mais brilhantes escritores da contemporaneidade e tambm um dos

    maiores biblifilos vivos. Para ele, uma biblioteca um pouco uma companhia, um grupo de

    amigos vivos, de indivduos; o dia em que voc se sentir um pouco isolado, um pouco

    deprimido, voc pode se dirigir a eles, eles esto ali(CARRIERE & ECO, 2010, p. 261).

    Carriere e Eco, na verdade, admitem que em alguns domnios o livro eletrnico

    proporcionar um conforto extraordinrio, como no caso do magistrado que levar mais

    confortavelmente para sua casa as 25 mil pginas de um processo em curso se elas estiverem

    na memria de um e-book, mas continuam a se perguntar se mesmo com a tecnologia mais

    bem adaptada s exigncias da leitura, ser vivel ler Guerra e Paz num e-book9 (2010, p.

    17).

    importante notar que preocupaes com o lugar da literatura na contemporaneidade

    existem mesmo antes da discusso sobre o futuro do objeto livro, debate esse que de certa

    forma apenas amplificou tal preocupao. Jameson (1996), Perrone-Moiss (1998), Figueira

    (1999), Fokkema & Ibsch (2005) e Compagnon (2009) so alguns dos estudiosos que

    problematizam o campo literrio no mundo contemporneo.

    Douwe Fokkema e Elrud Ibsch, em Conhecimento e Compromisso, no oitavo e ltimo

    8ALENCAR, Nayla Campos de. Comentrio. In: PANTALEONI, Cssio. Em seu destino digital a Feira doLivro ser uma praa vazia? 2010. Disponvel em: .Acesso em: 05 fev. 2011.9No captulo 2.3 abordaremos com mais vagar os diferentes tipos de e-books, distinguindo tambm o que oaparelho, o aplicativo e o arquivo com o livro em si.

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    captulo referem-se ao espao do livro diante dos avanos eletrnicos, acreditando que

    as novas mdias prejudicam [grifo nosso] o papel dos livros e outras formasimpressas. Nos tempos modernos, com exceo de algumas raras experincias de

    vanguarda, a literatura tem sido transmitida principalmente em forma impressa.Grandes livros uma metfora para a literatura importante. Agora estamostestemunhando a invaso da acumulao eletrnica e da transmisso de informaono domnio dos textos impressos. (2006, p. 228).

    Apesar de usar o termo prejudicar, adiante os autores admitem que a produo

    eletrnica de poesia e fico no impossvel e possa at levar a novos gneros interativos,

    ainda que apontem vrias razes para que no se espere muito de experimentos eletrnicos na

    produo literria, como o fato de a literatura dirigir-se a um pblico relativamente pequeno, a

    forma privada de consumo e a dificuldade de conservao. Dessa forma, concluem que as

    novas mdias podem relativizar o papel da mdia antiga, mas no a destruiro[grifo nosso]

    (2006, p. 229), termo que evidencia a preocupao dos pesquisadores sobre o destino do livro

    e sua concepo como sinnimo de literatura.

    Leyla Perrone-Moiss compartilha de preocupao semelhante e tambm afirma que

    no h sinais de que as novas tecnologias da comunicao estejam contribuindo para a troca

    de informaes culturais consistentes e significativas. Para a autora, o que se v uma

    proliferao de dados superficiais, relativos a todas as reas e todas as culturas, embalados em

    invlucros, vendveis e perecveis na memria dos usurios (1998, p. 204). Nesse sentido,

    Perrone-Moiss chega a questionar se as bibliotecas no estariam em vias de

    desaparecimento, e com elas a literatura, pois os novos meios disponveis obrigariam o livro a

    reformular-se, a encontrar seu lugar entre eles. Opinio semelhante a do norte-americano

    Frederic Jameson, crtico do que chama de capitalismo tardio.

    Para Jameson, a produo esttica hoje est integrada produo das mercadorias em

    geral: a urgncia desvairada da economia em produzir novas sries de produtos que cada vezmais paream novidades (1996, p. 30). No que tange literatura, Jameson questiona se a

    cultura de massa no teria atingido um crescimento tal que no deixaria sobrar espao para

    clssicos literrios, j que haveria um repdio tendencional s formas universais gerais e a

    intensificao do esttico em se identificar cada vez mais de perto com o aqui e o agora de

    uma expresso nica e de uma situao nica (1996, p. 168).

    Antoine Compagnon, importante estudioso da literatura francesa, faz coro a este tipo

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    de preocupao emLiteratura para qu?, conferncia no Collge de France transformada em

    livro. Para o autor, o espao da literatura tornou-se mais escasso em nossa sociedade h uma

    gerao: na escola, onde os textos didticos a corroem, ou j a devoraram; na imprensa, que

    atravessa tambm ela uma crise, funesta talvez, e onde as pginas literrias se estiolam; nos

    lazeres, onde a acelerao digital fragmenta o tempo disponvel para os livros (2009, p. 21).

    Voltando questo especfica da literatura e das novas tecnologias de comunicao, a

    norte-americana Dorothy Figueira, em ensaio intitulado O futuro da literatura no prximo

    milnio e a sobrevivncia da literatura comparada, analisa o statusda literatura na sociedade

    norte-americana e conclui que

    o status dominante da literatura em relao a outras mdias e prticas culturais

    desapareceu. Com uma parte cada vez menor na educao e na socializao, aliteratura tem sido, inclusive, rejeitada como gnero do discurso socialmentedistinto, perdendo a primazia para a imagem e o som. No mais uma representaoessencial da linguagem, mas uma verso entre tantas outras.10(1999, p. 190-1).

    A questo que Figueira prope, entretanto, no sea literatura ir existir no prximo

    milnio (o nosso milnio), e sim onde ela existir, convertendo-se numa das poucas vozes a

    defender a permanncia do conceito de literatura para as manifestaes textuais das novas

    mdias, pois os demais autores, de uma forma ou de outra, demonstram mais preocupao

    com o futuro do objetolivro, ou mdialivro, do que com a literaturaem si.

    pelo caminho de Figueira que seguem Tnia Rsing e Miguel Rettenmaier na

    apresentao do livro Literatura Eletrnica: novos horizontes para o literrio, de Katherine

    Hayles, onde chamam a ateno para a transformao da literatura, acreditando em sua

    permanncia diante de novas possibilidades tecnolgicas: nessa intermediao de

    inteligncias, surgem tambm novas possibilidades estticas que afetam no mago aquilo que

    ilusoriamente parecia ter nascido dos livros e para os livros: a literatura (2009, p. 10).

    Adiante, os autores vo alm ao afirmar que a literatura eletrnica surge como um elemento

    de humanizao das prticas computacionais (2009, p. 11).

    Em linha com a viso de Rsing e Rettenmaier, Marisa Lajolo e Regina Zilberman so

    ainda mais enfticas ao afirmar que a leitura no corre riscos quando se transporta a escrita

    10Traduo livre. No original: Literatures once dominant status among communications media and culturalpractices has disappeared. It plays a smaller and smaller part in education and socialization. Literature may even

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    do papel para o meio digital. Para as autoras, o livro, que j foi considerado a mais completa

    materializao da modernidade, alcana o comeo do novo milnio sem a mesma

    qualificao, contudo, no se trata de uma opo, livros e computadores no se excluem,

    nem o PC pe necessariamente em risco o universo do livro: se o PC se apresenta, por um

    lado, como possvel antagonista do livro, mostra-se, por outro, seu parceiro (2009, p. 30).

    Mesmo em texto anterior, Zilberman observava essa distino que se precisa fazer

    entre a literatura e seu suporte, ainda que por tantos sculos livro e literatura tenham sido

    duas faces de uma nica moeda:

    a se crer nessas observaes, leitura e escrita antecedem e sucedem os meiosutilizados para sua gravao num dado tipo de material, de modo que a troca dessepor outrodisco rgido, disquete de plstico, CD de alumnio ou sitena internetrepresenta to-somente um outro passo (ou vrios) na direo do progresso e doaperfeioamento tecnolgico. Nada a temer, portanto, dando razo aos profetas dootimismo. (2001, p. 106).

    Ainda que no tranquilize escritores e leitores, amantes de suas bibliotecas e amigos

    de seus livros, tal percepo de que a literatura permanecer para alm da existncia do objeto

    livro tem ganhado fora nos ltimos anos medida que novos meios reproduzem contos,

    poemas e romances com qualidade cada vez melhor, e mesmo novos gneros interativos tm

    surgido a partir dos meios eletrnicos.

    As questes do fim do livro e da literatura, dessa forma, devem ser entendidas comoduas questes distintas, sendo o livro um suporte entre tantos possveis para a literatura, o que

    assegura que no podemos falar no fim da literatura, quando muito em uma reinveno, uma

    crise de valores, uma transformao esttica. J o livro, ainda que no possamos determinar

    seu fim, tem perdido seu protagonismo como guardio do conhecimento, funo hoje

    compartilhada com o cinema, a internet, os jornais e revistas, etc.

    Ainda assim, o mais provvel que por muito tempo o livro impresso conviva com os

    formatos digitais, tanto por questes culturais e de preservao, como procuramos demonstrar

    at aqui, quanto por questes econmicas:

    a lgica do capitalismo, fundada na obsolescncia programada, sugere que o livrono vai desaparecer, porque encontrar seu nicho no sistema. Talvez se torne aindamais elitizado; ou, pelo contrrio, ameaado pelo desaparecimento, providencie nobarateamento do custo a renovao de popularidade. (ZILBERMAN, 2001, p. 118).

    be said to have been rejected as the socially distinguished genre of discourse, losing primacy to images and

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    Por outro lado, cada vez mais a escrita em geral e a literatura em particular

    encontra novos e variados suportes digitais com caractersticas distintas e capazes, inclusive,

    de modificar o texto em si, numa revoluo que Chartier considera compoucos precedentes

    to violentos na longa histria da cultura escrita (1998, p. 93). sobre essa histria que

    iremos nos debruar no prximo item, antes de chegarmos era digital propriamente dita.

    1.1 LEITURA E LITERATURA DAS TBUAS DA LEI TELA DOCOMPUTADOR

    Poucas geraes testemunharam tantas mudanas tecnolgicas como a gerao nascida

    em meados do sculo XX, essa gerao que agora, adulta, ocupa os bancos universitrios, as

    redaes de jornais e revistas, as diretorias das grandes empresas, essa gerao que cresceu

    lendo livros impressos e agora resiste ideia de novos suportes para a leitura.

    J em 1965, Gordon Moore, que mais tarde fundaria a Intel com Bob Noyce, previra

    que a capacidade de um chip de computador dobraria anualmente, um crescimento

    exponencial que ficou conhecido como Lei de Moore. Segundo tal Lei, nos ltimos dez anosteramos evoludo (no sentido tcnico) o mesmo que nos cem anos anteriores, e nos prximos

    cinco anos teremos evoludo tanto quanto nos ltimos dez (apud KURZWEIL, 2003). Apenas

    como ilustrao, foram necessrios 40 anos de inovaes tcnicas at se chegar ao primeiro

    computador pessoal, em 1981, mas no precisaram mais de 20 anos para que os computadores

    pessoais, agora interligados via internet, estivessem nos escritrios, empresas e lares de

    grande parcela da populao, nem mais outros 10 anos para os prprios PCs darem lugar a

    aparelhos muito mais portteis, como ossmartphonese os tablets.Um belo miniconto da escritora carioca ngela Schnoor representa bem a enorme

    transformao testemunhada por essa gerao:

    MquinasAcabara de ganhar do neto um iPod. Olhando para o embrulho aberto, o

    velho chorava. Tinha sido um pioneiro da informtica. Como em uma catedral, amquina ocupava toda uma sala, onde era reverenciada como um deus. Ele era o

    sounds. It is no longer an essential embodiment of language, but one version among several others.

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    sacerdote desta nova tecnologia. Assim como os pterodctilos no poderiam seimaginar pernilongos, jamais pensara que, em to pouco tempo, as mquinascaberiam na palma de sua mo tremente. (2009, p. 25).

    Darnton, ao sumarizar as mudanas tcnicas que o livro sofreu, de certa forma

    demonstra a aplicao da Lei de Moore: da escrita ao cdice foram 4300 anos; do cdice aos

    tipos mveis, 1150 anos; dos tipos mveis internet, 524 anos; da internet aos buscadores, 17

    anos; dos buscadores ao algoritmo de relevncia do Google, 7 anos (2010, p. 41).

    Tal acelerao por vezes nos faz esquecer que inovaes tcnicas, ainda que num

    ritmo mais lento, ocorrem desde que o homem homem e foram fundamentais para que um

    ser frgil como o nosso pudesse sobreviver num ambiente hostil e perigoso como a Terra.

    Leroi-Gourhan chega a afirmar que, pela liberao da mo e pela exteriorizao do corpohumano, a apario do homem a apario da tcnica; a ferramenta, isto , a tekhn, que

    inventa o homem, e no o homem que inventa a tcnica (apud LEMOS, 2010, p. 29).

    Transpondo essa afirmao para a histria da leitura, poderamos dizer que so as

    tcnicas de reproduo da escrita que inventam o leitor, e no o leitor que inventa tais

    tcnicas, o que significa que os suportes digitais de leitura no so feitos apenas para a

    gerao acostumada com os textos impressos, e sim ir engendrar um novo leitor

    familiarizado com as novas tecnologias.11

    Tal transformao, ainda que violenta, no exatamente indita na longa histria da

    leitura. Roger Chartier (1998) compara a ruptura provocada por essa revoluo digital com

    dois momentos: primeiro com o incio da era crist, quando os leitores do cdex tiveram que

    se desligar da tradio do livro em rolo, e depois com a impresso em tipos mveis, quando

    foi necessrio adaptar-se a uma circulao muito mais efervescente do livro. Robert Darnton

    (2010) j identifica quatro mudanas fundamentais na tecnologia da informao desde que os

    humanos aprenderam a falar: a inveno da escrita, a substituio dos rolos de pergaminhopelo cdice, a inveno da imprensa com tipos mveis e, finalmente, a comunicao

    eletrnica.

    A inveno da escrita, vale lembrar, tida pelos historiadores como marco de

    transio entre a Pr-Histria e a Idade Antiga, ou Antiguidade, o que revela a absoluta

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    importncia da escrita para o desenvolvimento da nossa civilizao. No h consenso entre os

    historiadores sobre a data ou o local do surgimento da escrita, o mais provvel que sua

    inveno tenha se dado em vrios lugares do mundo de forma independente a partir do

    momento em que as transaes e a administrao dos povos se tornam mais complexas,

    exigindo registros alm das possibilidades da memria.

    Um mito narrado por Plato mostra o quo difcil foi essa substituio da memria

    pela escrita: Thoth, um deus egpcio criador da escrita, dos nmeros, do clculo, da geometria,

    da astronomia e dos jogos de damas e dados, leva seus inventos a Tamuz, rei de Tebas,

    esperando que eles possam ser ensinados aos egpcios; a escrita, segundo seu inventor,

    tornaria os homens mais sbios, fortalecendo-lhes a memria. Comenta Thoth: com a escrita

    inventei a grande auxiliar para a memria e a sabedoria, a que responde Tamuz:

    Tu, como pai da escrita, esperas dela com o teu entusiasmo precisamente ocontrrio do que ela pode fazer. Tal cousa tornar os homens esquecidos, poisdeixaro de cultivar a memria; confiando apenas nos escritos, s se lembraro deum assunto exteriormente e por meio de sinais, e no em si mesmos. Logo, tu noinventaste um auxiliar para a memria, mas apenas para a recordao. Transmitesaos teus alunos uma aparncia de sabedoria, e no a verdade, pois eles recebemmuitas informaes sem instruo e se consideram homens de grande saber emborasejam ignorantes na maior parte dos assuntos. Em consequncia sero desagradveiscompanheiros, tornar-se-o sbios imaginrios ao invs de verdadeiros sbios.(1966, p. 262).

    A escrita, naturalmente, com o tempo mostrou-se fundamental no apenas como

    auxiliar para a memria, mas tambm para materializar um contedo que no pode dispersar-

    se, como o conhecido Cdigo de Hamurbi, datado do sculo XVIII a.C. O Cdigo de

    Hamurbi um monumento monoltico talhado em rocha de diorito sobre o qual se dispem

    46 colunas de escrita cuneiforme acdica. Seu texto expe as leis e punies caso no sejam

    respeitadas, legislando sobre matrias muito variadas. Embora houvesse outros cdigos entre

    os sumrios, que viveram entre 4000 a.C. a 1900 a.C. na Mesopotmia, o Cdigo de

    Hamurbi foi o que chegou at os dias atuais de forma mais completa e simboliza bem, num

    tempo de bitsefmeros, a importncia da palavra talhada na solidez de uma rocha milenar.

    11 A esse respeito, Borges, no conhecido texto Kafka e seus precursores afirma que cada escritor cria seusprecursores, pois seu trabalho modificaria no apenas nossa concepo de futuro, como tambm de passado.(BORGES, 1999, p. 250).

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    Figura 1 - Pedra com Cdigo de Hamurbi e detalhe do Cdigo

    Do mesmo perodo so os Dez Mandamentos entregues a Moiss no Monte Sinai, uma

    das mais contundentes passagens bblicas: Ento disse o SENHOR a Moiss: Sobe a mim ao

    monte, e fica l; e dar-te-ei as tbuas de pedra e a lei, e os mandamentos que tenho escrito,

    para os ensinar.12

    Atendendo ordem divina, Moiss sobe ao monte Sinai, onde permanece por40 dias e 40 noites. A espera longa, no porque leitura e escrita sejam em siprticas demoradas, mas porque, nas tbuas que so entregues a Moiss, registram-se, de forma detalhada, as normas reguladoras da vida social e pessoal do povo deDeus. O episdio tem muita fora, pois encena a plena manifestao da escrita comomecanismo regulador da vida social, tarefa que ela j cumpria desde o Cdigo deHamurbi, que vigorava na Babilnia provavelmente a partir do sculo XVIII a.C. Etarefa que continua cumprindo at hoje no Oriente e no Ocidente, ao Norte e ao Suldo planeta, por meio de livros religiosos e de todo o aparato legal dos estadosestabelecidos, das constituies aos contratos de trabalho e documentos pessoais. Se,da sua parte, o Cdigo de Hamurbi um instrumento histrico e datado, o

    documento entregue a Moiss pela divindade eleva o gesto regulador ao planomtico. (LAJOLO & ZILBERMAN, 2009, p. 161).

    Apesar da importncia desses cdigos escritos em rochas slidas, a escrita no teria se

    tornado marco zero da histria da humanidade no houvesse um suporte capaz de facilitar seu

    manuseio e transporte, o que tornou a escrita um cdigo com fins muito mais amplos do que,

    por exemplo, as pinturas ruprestes feitas nas cavernas pelos homens ditos pr-histricos.

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    O papiro, desenvolvido no Egito por volta de 2500 a.C., hoje considerado o primeiro

    suporte para a escrita. Para confeccionar o papiro, era cortado o miolo esbranquiado e poroso

    do talo em finas lminas. Depois de secas, essas lminas eram mergulhadas em gua com

    vinagre para ali permanecerem por seis dias, com propsito de eliminar o acar. Novamente

    secas, as lminas eram dispostas em fileiras horizontais e verticais, sobrepostas umas s

    outras. A seguir, as lminas eram colocadas entre dois pedaos de tecido de algodo, sendo

    ento mantidas prensadas por mais seis dias. Com o peso da prensa, as finas lminas se

    misturavam homogeneamente para formar o papel amarelado, pronto para ser usado. O papiro

    pronto era, ento, enrolado a uma vareta de madeira ou marfim para criar o rolo que seria

    usado na escrita.13

    Embora a palavra grega biblos () signifique hoje tanto rolo quanto livro, a leitura nesse rolo muito diferente da leitura de um livro como hoje o conhecemos. O rolo

    uma longa faixa de papiroou, mais tarde, de pergaminhoque o leitor deve segurar com as

    duas mos para poder desenrol-la, fazendo aparecer trechos distribudos em colunas. No

    possvel, por exemplo, que um autor escreva ao mesmo tempo que l.

    Figura 2 - Exemplo de rolo utilizado na Antiguidade

    Os rolos, criados depois inveno da escrita e, naturalmente, por causa dela, foram

    12BBLIA.xodo, cap. 24, v. 12.13 Wikipedia (verso em ingls). Disponvel em: . Acesso em: 02 fev.2011.

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    fundamentais para o que hoje chamamos de literatura, pois os textos gregos da poca de

    Scrates, Plato e Aristteles, squilo, Sfocles e Eurpedes se tornaram a base da cultura

    Ocidental e puderam ser preservados em locais especficos para este fim, como a lendria

    Biblioteca de Alexandria.

    A Biblioteca de Alexandria, uma das maiores bibliotecas do mundo antigo, foi

    fundada no incio do sculo III a.C. por Alexandre, o Grande, que teve como tutor ningum

    menos que Aristteles, e existiu at a Idade Mdia, quando foi totalmente (ou quase) destruda

    por um incndio casual. Calcula-se que havia mais de quinhentos mil rolos na Biblioteca de

    Alexandria, mas como uma obra podia ocupar, sozinha, dez, vinte, at trinta rolos, havia um

    nmero de obras muito menos significativo: s o catlogo da biblioteca era constitudo de

    cento e vinte rolos(CHARTIER, 1998, p. 118).Tambm h registros de lojas onde livros eram vendidos em forma de rolos. Contam-

    nos Carriere e Eco que um aficionado encomendava ao livreiro um exemplar de Virglio, por

    exemplo, e o livreiro pedia-lhe para voltar loja dentro de 15 dias, pois o livro seria copiado

    especialmente para ele: talvez tivessem em estoque alguns exemplares das obras mais

    pedidas. Temos ideias muito imprecisas sobre a compra dos livros, e isto at mesmo depois da

    inveno da tipografia(2010, p. 103).

    medida que a escrita foi ganhando em importncia e valor, outro suporte, queembora mais caro era menos quebradio e resistia melhor ao tempo, passou a ser muito

    utilizado nas confeces dos rolos: o pergaminho. O pergaminho um material feito da pele

    de um animal (geralmente cabra, carneiro, cordeiro ou ovelha) e especialmente fabricado para

    se escrever sobre ele. A origem do seu nome a cidade de Prgamo, onde havia uma

    produo vasta e de grande qualidade deste material, mas h controvrsia se sua origem

    remonta mesmo a esta cidade. De qualquer forma, na Biblioteca de Prgamo, contempornea

    a de Alexandria, os rolos em papiro eram copiados em pergaminho, e este material foifundamental para a preservao dos textos da Antiguidade.

    Carrire e Eco contam que Rgis Debray, filsofo francs, perguntou-se o que teria

    acontecido se os romanos e gregos tivessem sido vegetarianos: no teramos nenhum dos

    livros que a Antiguidade nos legou em pergaminho, isto , numa pele de animal curtida e

    resistente(2010, p. 104).

    A segunda grande mudana tecnolgica, a passagem do rolo para o cdice, deu-se logo

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    aps o incio da era crist, durante o Imprio Romano. Nessa poca, juristas decidiram

    manusear o pergaminho de forma diferente, dobrando-o em quatro ou em oito. Esse caderno

    era chamado de volumem, uma denominao usada ainda hoje. Costurando esses cadernos uns

    aos outros, era construdo o que se chamava de cdex(cdice).

    Tal inovao, afora ser crucial para a difuso do cristianismo, foi fundamental para a

    histria da leitura, pois enquanto que os formatos de rolo encorajavam leituras sequenciais a

    expensas do movimento descontnuo para adiante e para trs em um dado texto, a estrutura

    paginada do cdex promovia o desenvolvimento de novas prticas de leitura propriamente

    livrescas (SCHNAPP, 1995, p. 16), uma ruptura muito maior do que seria a inveno da

    imprensa por Gutenberg, segundo Chartier.

    Figura 3 - Cdice Sinatico, um dos mais antigos dos manuscritos bblicos existentes, datado do sculo IV

    nesse perodo que se difunde a prtica da leitura silenciosa, tendncia que, segundo

    Zilberman (2001), se consolida exatamente por causa da mudana tcnica do rolo para o

    cdice. Eco simboliza essa passagem da leitura em voz alta para a leitura silenciosa no

    espanto de Agostinho: a leitura, at santo Ambrsio, era feita em voz alta. Foi ele o primeiro

    a comear a ler sem pronunciar as palavras, o que mergulhara santo Agostinho em abismos de

    perplexidade (2010, p. 73).14

    14Embora haja registro de leitura silenciosa entre os gregos, observa Jesper Svenbro que a leitura silenciosa dosgregos permanece [] determinada pela leitura em voz alta, da qual ela conserva como que um eco interiorirreprimvel. (apud ZILBERMAN, 2010, p. 60).

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    A propsito da leitura silenciosa, os primeiros textos que impunham silncio nas

    bibliotecas so apenas dos sculos XIII e XIV: apenas nesse momento que, entre os

    leitores, comeam a ser numerosos aqueles que podem ler sem murmurar, sem ruminar, sem

    ler em voz alta para eles mesmos a fim de compreender o texto(CHARTIER, 1998, p. 119).

    Alm dessa importante mudana na forma de ler, o cdice seria tambm responsvel

    por grandes mudanas na forma de escrever:

    a pgina surgiu como unidade de percepo e os leitores se tornaram capazes defolhear um texto claramente articulado, que logo passou a incluir palavrasdiferenciadas (isto , palavras separadas por espaos), pargrafos e captulos, almde sumrios, ndices e outros auxlios leitura. (DARNTON, 2010, p. 40).

    Se voltarmos s imagens aqui reproduzidas do Cdigo de Hamurbi, do rolo e do

    cdice medievais, realmente no encontraremos espao entre as palavras, tampouco a diviso

    em pargrafos, uma organizao para o texto que hoje nos parece to natural, mas que est

    ligada ao novo suporte da escrita e superao de suas limitaes. No que um suporte mais

    antigo seja mais limitado que o outro, mais moderno, em geral o que ocorre um ganho em

    alguns aspectos e uma perda em outros.

    O cdice medieval, nesse sentido, era uma pgina elaborada manualmente por um

    copista num processo muito mais demorado, artesanal, com ilustraes, cores, arabescos e,

    por vezes, at comentrios s margens que faziam de cada exemplar algo nico. Esta talvez

    seja a grande diferena do cdice medieval para o livro impresso que viria a seguir.

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    Figura 4 - Reproduo de uma pgina de cdice do comeo dos anos mil

    Umberto Eco, em O Nome da Rosa, resgata o j lendrio ambiente de um scriptorium

    de copistas, representando monges de preferncias e ideologias variadas criando seus cdices

    com cuidado, dedicao e paixo:

    aproximamo-nos daquela que fora o local de trabalho de Adelmo, onde estavamainda as folhas de um saltrio com ricas iluminuras. eram folia de vellum finssimorei dos pergaminhose o ltimo ainda estava preso mesa. Apenas esfregado compedra-pome e amaciado com gesso, fora lixado com a plaina e, dos minsculos furosproduzidos nas laterais com um estilete fino, tinham sido traadas todas as linhasque deviam guiar a mo do artista. A primeira metade j estava coberta pelaescritura e o monge tinha comeado a esboar as figuras nas margens. () Asmargens inteiras do livro estavam invadidas por minsculas figuras que eramgeradas,como por expanso natural, pelas volutas finais das letras esplendidamentetraadas: sereias marinhas, cervos em fuga, quimeras, torsos humanos sem braos

    que se espalhavam como lombrigas pelo prprio corpo dos versculos. () Euseguia aquelas pginas dividido entre a admirao muda e o riso, porque as figurasconduziam necessariamente hilaridade, embora comentassem pginas santas.(2003, p. 80-82).

    importante ressaltar que esse cenrio descrito por Eco j do segundo milnio

    cristo (o romance se passa em 1327 d.C.), poca em que outros importantes acontecimentos

    contribuiriam para o surgimento da prensa de Gutenberg e para a proliferao dos livros alm

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    dos muros eclesisticos. Um deles o surgimento das universidades na Europa, uma

    instituio que de certa forma retomava o ideal das academias gregas, em que atividades

    artsticas, literrias, cientficas e fsicas eram organizadas num nico espao, promovendo a

    universalidade do saber e a integrao das reas.

    Na concepo moderna, a Universidad de Bolonia (Itlia), de 1089, considerada a

    primeira do mundo ocidental: A instituio que ns hoje chamamos Universidade comea a

    tomar forma em Bolonha, no final do sculo XI, quando os mestres da gramtica, retrica e

    lgica comeam a aplicar o direito. 15 Logo a seguir surgiram a Universidade de Oxford

    (Inglaterra), em 1096, a Universidad de Paris (Frana), em 1150, a Universidade de Valncia

    (Espanha), em 1208, precursora da Universidade de Valladolid, a Universidade de Coimbra

    (Portugal), em 1290, entre outras.Aos poucos, as Universidades tambm iam construindo suas bibliotecas, mas nessa

    poca eram as bibliotecas dos colgios que se tornavam relevantes, muitas vezes a partir da

    doao da biblioteca do prprio fundador, que vinha a completar as doaes posteriores dos

    benfeitores ou antigos membros da instituio: a Sorbonne possuiria, desde 1338, uma

    biblioteca de 1772 volumes que a tornavam ento, sem dvida, a mais bela da Frana

    (VERGER, 1999).

    Esse aumento pela demanda de suportes para a escrita fez com que se buscassealternativas ao pergaminho, popularizando o uso do papel. O papel teria sido inventado pelo

    chins Cai Lun em 105 a.C., que sugeriu a utilizao de casca de amora, bambu e grama

    chinesa como matrias-primas. No sculo VII, esse conhecimento foi levado Arbia por um

    monge budista e de l Europa atravs dos mouros.

    Na Itlia, o papel era considerado um produto medocre em comparao ao

    pergaminho, tanto que Frederico II, em 1221, teria proibido o uso em documentos pblicos. O

    consumo, entretanto, s aumentava, e em 1268 foi criada a primeira fbrica de papel daEuropa em Fabriano, uma pequena cidade entre Ancona e Perugia.16O monoplio comercial

    da fabricao italiana durou at o sculo XIV, quando a Frana, que o produzia utilizando

    15 Universit di Bologna. Disponvel em: .Acesso em: 05 fev. 2011. Traduo livre. No original: L'Istituzione che noi oggi chiamiamo Universit inizia aconfigurarsi a Bologna alla fine del secolo XI quando maestri di grammatica, di retorica e di logica iniziano adapplicarsi al diritto.

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    linha desde o sculo XII, a partir da popularizao do uso de camisas e das consequentes

    sobras de tecido e camisas velhas pde passar fabricao de papel a preos econmicos, o

    que seria fundamental para a inveno da impresso por tipos mveis de Gutenberg, na

    dcada de 1450.

    Johannes Gutenberg, apesar de ser considerado o inventor da imprensa, no foi

    propriamente o primeiro a desenvolver tal tecnologia. Hoje se sabe que os chineses haviam

    desenvolvido tipos mveis por volta de 1045 e que os coreanos utilizavam caracteres

    metlicos em vez de blocos de madeira por volta de 1230. Darnton (2010) lembra, entretanto,

    que, ao contrrio das inovaes surgidas no Extremo Oriente, foi a inveno de Gutenberg

    que se propagou de forma avassaladora.

    A impresso por tipos mveis, ou imprensa, um mtodo industrial de reproduo detextos e imagens sobre papel ou materiais similares que consiste em aplicar uma tinta,

    geralmente oleosa, sobre peas metlicas chamadas de tipos, que a transferem para o papel

    por presso. Ainda que fosse um mtodo artesanal, pois era preciso compor com os tipos

    mveis palavra a palavra, pgina a pgina, mostrou-se muito veloz e prtico para seu tempo,

    permitindo a produo de diversos exemplares com o mesmo molde.

    O primeiro livro impresso por Gutenberg foi a Bblia, conhecida hoje como a Bblia de

    Gutenberg, ou aBblia de 42 linhas. A data mais provvel para a publicao entre 1452 e1455 (no h nenhuma data no colofo, isto , na nota informativa encontrada nas ltimas

    pginas dos livros antigos). Uma cpia dessa Bblia completa tem 1282 pginas e a maioria

    foi encadernada em pelo menos dois volumes. Acredita-se que tenham sido impressas 180

    cpias, 45 em papiro e 135 em papel, e depois de impressas elas foram rubricadas e ilustradas

    mo por especialistas, uma a uma, o que faz com que cada cpia seja nica, um

    incunbulo17de valor inestimvel18.

    16Wikipedia (verso em italiano). Disponvel em: . Acesso em: 02 fev. 2011.Traduo livre. No original: L'Istituzione che noi oggi chiamiamo Universit inizia a configurarsi a Bolognaalla fine del secolo XI quando maestri di grammatica, di retorica e di logica iniziano ad applicarsi al diritto .17So ditos incunbulos todos os livros impressos entre a inveno da tipografia e a noite de 31 de dezembrode 1500. Incunbulo, do latim incunabula, representa o bero da histria do livro impresso, em outrostermos, todos os livros impressos at o sculo XV. (CARRIRE & ECO, 2010, p. 109) 18H uma cpia da Bblia de Gutenberg na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Alm disso, a Universidadedo Texas, em Austin, digitalizou cada pgina de sua cpia e disponibilizou as 1300 imagens digitais no site. Acesso em: 18 set. 2011.

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    Figura 5 - Exemplar da Bblia de Gutenberg

    Em geral, se atribui inveno da imprensa o marco de mais importante revoluo nos

    suportes para a leitura, sendo que alguns chamam de livro apenas os cdices impressos a

    partir dessa tecnologia. Chartier, entretanto, afirma que a transformao no to absoluta

    como se diz: um livro manuscrito (sobretudo nos seus ltimos sculos, XIV e XV) e um livro

    ps-Gutenberg baseiam-se nas mesmas estruturas fundamentais as do cdex.

    Evidentemente que, com a nova tcnica, o custo do livro diminui, atravs da distribuio das

    despesas pela totalidade da tiragem. (). Analogamente, o tempo de reproduo do texto

    reduzido graas ao trabalho da oficina tipogrfica (1998, p. 7).

    interessante percebermos, nesse sentido, que por muito tempo o cdice manual tenha

    coexistido com o cdice impresso, o que no nos permitiria falar, realmente, em uma ruptura:

    com Gutenberg, a prensa, os tipgrafos, a oficina, todo um mundo antigo teriadesaparecido bruscamente. Na realidade, o escrito copiado mo sobreviveu pormuito tempo inveno de Gutenberg, at o sculo XVIII, e mesmo o XIX. Para ostextos proibidos, cuja existncia devia permanecer secreta, a cpia manuscritacontinuava sendo a regra. O dissidente do sculo XX que opta pelo samizdat, nointerior do mundo sovitico, em vez da impresso no estrangeiro, perpetua essaforma de resistncia. De modo geral, persistia uma forte suspeita diante do impresso,que supostamente romperia a familiaridade entre o autor e seus leitores ecomprenderia a correo dos textos, colocando-os em mos mecnicas e nasprticas do comrcio (1998, p. 9).

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    Mais do que uma revoluo na forma de ler, a imprensa representou uma

    popularizao jamais vista do livro, deixando o livro ao alcance de crculos cada vez mais

    amplos de leitores, nas palavras de Darnton (2010, p. 40), ou retirando os livros do

    monoplio da Igreja, nos termos de Lemos (2010, p. 116). Foi apenas com a imprensa, por

    exemplo, que A Divina Comdia, de Dante Alighieri, escrita entre 1307 e 1321, tornou-se

    conhecida e forjou o idioma italiano.19

    Fora dos domnios da arte, porm, a nova tcnica logo se mostrou uma ameaa

    dominao da Igreja Catlica. Martinho Lutero, padre e professor de teologia alemo, em

    torno de 1500 d.C. comea a promover a traduo da Bblia para outros idiomas que no o

    latim e chega a dar Bblia aos fiis, provocando uma verdadeira convulso na Igreja e

    iniciando a Reforma Protestante.Como parte da reao da Igreja, criado em 1559, no Conclio de Trento, o Index

    Librorum Prohibitorum, um catlogo de livros proibidos pela Igreja (tal catlogo foi

    atualizado regularmente at a trigsima-segunda edio, em 1948), evidenciando a

    importncia que o livro j havia adquirido naquela sociedade menos de cem anos aps a

    impresso da primeira Bblia de Gutenberg.20

    19A primeira edio da Divina Comdia teria sido impressa em Foligno no dia 6 de abril de 1472, sendo oprimeiro livro impresso em lngua italiana.20 curioso notar, a propsito do poder do livro nas massas, que o prprio Lutero, depois de ter dado a todos aBblia, tem um movimento de recuo quando percebe que ela suscita interpretaes a dos anabatistas, porexemplopoltica e socialmente perigosas (CHARTIER, 1998, p. 109)

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    Figura 6 - Capa do Index Librorum Prohibitorum de 1559

    Vale salientar que esse tipo de catlogo a primeira ocorrncia sistemtica e ordenadaalfabeticamente de nomes de autores e livros, numa poca anterior valorizao do trabalho

    do autor e muito anterior aos direitos autorais, o que significa que antes de ser detentor de

    sua obra, o autor j se encontra exposto ao perigo pela sua obra (CHARTIER, 1998, p. 34).21

    Uma imagem dessa poca tornou-se emblemtica na histria dos livros e, infelizmente,

    repetida at os dias de hoje: a fogueira de livros, onde no se queimam mais (apenas)

    pessoas, mas suas ideias, registros e representaes. Miguel de Cervantes, no clebre Dom

    Quixote, de 1605, tematiza tanto a nsia pela queima de livros que assola sua poca como aleituromaniaque toma conta de parcela da populao, sendo a designao escolhida sintoma

    de que o fenmeno era tratado como doena e requeria tratamento, de que se encarregavam

    educadores e crticos da poca (LAJOLO & ZILBERMAN, 2009, p. 94).

    21Para imprimir o seu livro, em geral os autores contavam com benemritos, em geral reis ou prncipes, a quemagradeciam publicamente nas pginas de ttulos de seus livros ou faziam dedicatria em um exemplar do livroluxuosamente encadernado e impresso sobre pergaminho, enquanto a edio era feita em papel. (CHARTIER,1998, p. 39)

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    Lembremos, nesse sentido, as palavras do captulo inicial deDom Quixote:

    Em suma, tanto naquelas leituras se enfrascou, que passava as noites de claro emclaro e os dias de escuro em escuro, e assim, do pouco dormir e do muito ler, se lhe

    secou o crebro, de maneira que chegou a perder o juzo. Encheu-se-lhe a fantasia detudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendncias, batalhas,desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates impossveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginao ser verdade toda aquela mquina de sonhadasinvenes que lia, que para ele no havia histria mais certa no mundo.(CERVANTES, 2003, p. 32).

    A seguir, no sexto captulo, narrada a limpeza que o padre-cura, o barbeiro e a

    sobrinha de Quixote fizeram na sua biblioteca enquanto ele dormia, com dilogos

    interessantssimos que evidenciam inclusive o desconhecimento e o carter ocultista que o

    livro traria, segundo as personagens, para a parcela mais pobre da populao, temor que emalgum momento nossa gerao tambm vivenciou em relao s tecnologias digitais.

    Pediu sobrinha a chave do quarto em que estavam os livros ocasionadores doprejuzo; e ela a deu de muito boa vontade. Entraram todos e com eles a ama; eacharam mais de cem grossos e grandes volumes, bem encadernados, e outrospequenos. A ama, assim que deu com os olhos neles, saiu muito pressa doaposento, e voltou logo com uma tigela de gua benta e um hissope, e disse:

    Tome Vossa Merc, senhor licenciado, regue esta casa toda com gua benta,no ande por a algum encantador, dos muitos que moram por estes livros, e nosencante a ns, em troca do que ns lhes queremos fazer a eles desterrando-os do

    mundo.Riu-se da simplicidade da ama o licenciado, e disse para o barbeiro que lhefosse dando os livros a um e um, para ver de que se tratavam, pois alguns poderiahaver que no merecessem castigo de fogo.

    Nada, nada disse a sobrinha ; no se deve perdoar a nenhum, todosconcorreram para o mal. O melhor ser atir-los todos juntos pelas janelas do ptio,empilh-los em meda, e pegar-lhes o fogo; e seno, carregaremos com eles para oquintal e ali se far a fogueira, e o fumo no incomodar. (CERVANTES, 2003, p.49).

    O clebre romance de Cervantes, considerado por muitos como o primeiro romance

    moderno da literatura, ainda revela em sua segunda parte, publicada em 1615, outra faceta daproduo livresca desse perodo: a pirataria. J no prlogo, Cervantes, dirigindo-se ao leitor,

    acusa a existncia de continuaes revelia de sua criao, ainda que usem o nome de seu

    protagonista:

    eu quero dizer-te mais a ti, seno advertir-te que esta segunda parte deDom Quixoteque te ofereo cortada pelo mesmo oficial e no mesmo pano que a primeira, e quete di nela Dom Quixote dilatado, e finalmente morto e sepultado, para que ningumse atreva a levantar-lhe novos testemunhos, pois j bastam os passados, e bastatambm que um homem honrado desse notcia destas discretas loucuras, sem querer