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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – Natal -RN – 02 a 04/07/2015
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Investigação sobre memória e apropriação na obra de Rosangela Rennó12
Taís MONTEIRO
3
Pedro CANDIDO4
Osmar GONÇALVES5
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE
RESUMO
Buscamos, através do trabalho de Rosângela Rennó, refletir sobre a produção
contemporânea de imagens que se baseia em relatos que giram em torno da memória,
intimidade e reinvenção. Para tanto, nos valemos de alguns autores como Barthes,
Bazin, Walter Benjamin e Phillipe Dubois que buscam pensar as imagens
contemporâneas relacionadas aos pequenos relatos íntimos, bem como um diálogo com
outras obras imagéticas, como é o caso do trabalho do artista Christian Boltanski. A
obra de Rennó perpassa na memória acumulativa de uma sociedade, e em paralelo com
Boltanki percebe-se a dicotomia entre o homem e o tempo, figura da memória e a
apropriação afetiva do outro.
PALAVRAS-CHAVE: memória; fotografia contemporânea; apropriação.
INTRODUÇÃO
Rosangela Rennó iniciou sua carreira nos anos 1980. O cunho de seus trabalhos
permeia o universo familiar, feminino, o anonimato nos retratos, o comum, o outro e a
percepção de si através do outro. Entre esses trabalhos, encontra-se Pequena Ecologia
da Imagem (1988), no qual a artista se apropria de seus álbuns de família, de
lembranças da infância e dos negativos que não foram revelados de seu pai, fotógrafo
amador, para construir a partir das imagens um relicário.
O resgate dessas fotografias questiona o excesso de produção, o abandono, o
acúmulo e o esgotamento de imagens, transformando-os em um canal de uma crítica
cultural a esse processo. Ao apropriar-se dessas imagens, Rennó as coloca no alcance de
1 Este artigo possui trechos e é uma versão modificada, em parte, do trabalho de conclusão Imagem, Memória e
Afeto: o cotidiano na obra de Luis Alvarez de Pedro Henrique Cândido 2 Trabalho apresentado no DT 4 – Estudos Multidisciplinares em Comunicação do XVII Congresso de Ciências da
Comunicação na
Região Nordeste realizado de 2 a 4 de julho de 2015. 3 Taís Marques Monteiro, estudante de graduação 8º semestre do Curso de Jornalismo na Universidade Federal do
Ceará, e-mail: [email protected] 4 Pedro Henrique Cândido Silva, mestrando de Comunicação na Universidade Federal do Ceará, e-mail:
[email protected] 5 Osmar Gonçalves dos Reis Filho. Orientador do trabalho. Professor do Curso de Pós-Graduação em Comunicação
da UFC, email: [email protected]
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identificação da identidade do outro. O trabalho reflete, como iremos explanar a seguir,
uma reflexão sobre imagem, percepção, memória e tempo.
A obra Pequena Ecologia da Imagem possui cerca de 11 fotografias colocadas
em uma espécie de relicário com legendas posteriores e escolhidas por Rennó, escritas
em letra cursiva, é uma investigação sobre a memória e seus apagamentos. Müller-Pohle
(1985), que influenciou a criação da obra segundo a artista6, define essa conduta como
uma espécie de ecologia da informação, ao se tratar de intervir sobre o que se perde no
excesso e introduzir uma nova significação no que é descartado pelo motor da
reprodutibilidade técnica.
FOTOGRAFIA: VIDA E MORTE PELA IMAGEM
A fotografia, desde as suas primeiras utilizações, seja na arte, ou na pura
documentação, esteve relacionada à ideia de memória e, portanto, de esquecimento. A
imagem fotográfica, mais do que qualquer outra, produz a sensação de se estar diante da
coisa em si, do objeto capturado pelas lentes da câmera. Foi exatamente essa ligação
entre a imagem e o objeto real a direção sobre a qual muito da teoria fotográfica se
guiou. Entre os teóricos está o filósofo e semiólogo francês Rolan Barthes (1984), que
possuía o desejo ontológico de saber o que é essa fotografia e o que a distingue das
outras imagens, como a pintura, por exemplo. O filósofo fala do “noema”, a essência da
fotografia, que reside no fato de o seu referente, o referente da imagem, ter de fato
existido em um determinado tempo e espaço. Existiu no momento em que o objeto
esteve diante do dispositivo. O “isto-foi”. Tal existência não é metafórica, mas real.
A coisa, o referente, permanece no passado. O que vemos não é o objeto real,
mas o que resta, o que sobra com o passar do tempo. Para Barthes (1984), a imagem
fotográfica representa a morte. O instante capturado pelas lentes do dispositivo só
existem no exato momento dessa mesma captura. O que permanece depois disso é a
imagem de algo que já não existe. Ao olharmos para a imagem congelada sobre o papel,
nos deparamos com o passado, que já foi e não retornará mais.
Todos esses jovens fotógrafos que se movimentam no mundo, dedicando-se à captura
da atualidade, não sabem que são agentes da Morte. É o modo como o nosso tempo
6 Informação retirada do documentário As Imagens de Rosângela Rennó - http://tal.tv/video/as-imagens-de-
rosangela-renno/
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assume a Morte: sob o álibi denegador do perdidamente vivo, de que o Fotógrafo,
historicamente, deve ter alguma relação com a “crise de morte”, que começa na segunda
metade do século XIX; de minha parte preferia que a vez de recolocar incessantemente
o advento da Fotografia em seu contexto social e econômico, nos interrogássemos,
também sobre o seu vínculo antropológico com a Morte, em uma sociedade, esteja em
algum lugar; se não está mais(ou está menos) no religioso, deve estar em outra parte:
talvez nessa imagem que produz a morte ao querer conservar a vida. Contemporânea do
recuo à intrusão, em nossa sociedade moderna, de uma Morte assimbólica, fora da
religião, fora do ritual, espécie de brusco mergulho na Morte Literal. A Vida / a Morte:
o paradigma reduz-se a um simples disparo, o que separa a pose inicial do papel final.
(BARTHES, 1984, p.137)
De acordo com os apontamentos do crítico de cinema André Bazin (1991), o
homem sempre usou a linguagem para registrar e resgatar as suas memórias, escapar da
ação do tempo, da morte – a morte entendida como essa perda das lembranças. Dentre
essas possibilidades de linguagem, a imagem é o recurso mais utilizado, na
contemporaneidade, para preservar a memória. O crítico aponta que a necessidade
humana de registrar tais memórias afetivas por meio de imagens é um modo de se
posicionar frente ao tempo, escapando do esquecimento e preservando sua existência.
O que Bazin (1991) pretende, ao por em discussão as imagens, é falar da relação
do homem com o tempo. A passagem temporal representa a proximidade da morte e do
esquecimento. O ato de fixar memórias através de imagens será mais intensamente
problematizado com o advento da fotografia. Ela, segundo Bazin, proporcionou uma
credibilidade em relação à sobrevivência do objeto:
Esta gênese automática subverteu radicalmente a psicologia da imagem. A objetividade
da fotografia confere-lhe um poder de credibilidade ausente de qualquer obra pictórica.
Sejam quais forem as objeções do nosso espírito crítico, somos obrigados a crer no
objeto representado, literalmente re-presentado, quer dizer, tornado presente no tempo e
no espaço[...]O desenho o mais fiel pode nos fornecer mais indícios acerca do modelo;
jamais ele possuirá, a despeito do nosso espírito crítico, o poder irracional da fotografia,
que nos arrebata a credulidade.” (BAZIN, 1991, p.23).
A fotografia não inaugura essa relação imagética entre o homem e a
morte, mais precisamente, a necessidade humana de escapar da morte. Hans Belting
(2005), um dos grandes nomes da História da Arte, em seu artigo intitulado Por uma
antropologia da imagem, vai promover a discussão em torno da ligação entre imagem e
morte, em diversas culturas. Ele defende uma relação direta entre as imagens e o corpo.
As primeiras eram produzidas de forma a substituir o corpo dos entes mortos. No
entanto, as mesmas precisam de uma materialidade, de um “corpo”, um meio para
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tornarem-se visíveis. As imagens funcionam, como ele próprio afirma, como esse corpo
virtual no lugar do corpo perdido.
O corpo e o meio estão igualmente envolvidos no sentido das imagens em funerais, à
medida em que é no lugar do corpo ausente do morto que são instaladas as imagens.
Mas essas imagens, por sua vez, permaneciam na carência de um corpo artificial, para
ocupar o lugar vago do falecido. Aquele corpo artificial pode ser chamado meio (não só
material), no sentido em que as imagens necessitavam de corporificação para adquirir
qualquer forma de visibilidade. Nesse sentido, o corpo perdido é trocado pelo corpo
virtual da imagem. É nesse ponto que alcançamos a origem da exata contradição que
para sempre caracterizará a imagem: imagens, como todos concordamos, fazem uma
ausência visível ao transformá-la em uma nova forma de presença. A presença icônica
do morto, todavia, admite, e até mesmo encena intencionalmente, a finalidade desta
ausência – que é a morte. Logo, a medialidade de imagens é originada da analogia ao
corpo físico e, incidentalmente, do sentido em que nossos corpos físicos também
funcionam como meios – meios vivos contra meios fabricados. (BELTING, 2005, p.69)
A morte aqui tenciona, de acordo com os apontamentos do crítico de cinema
André Bazin (1991), a ideia de esquecimento. Morrer significa não mais existir; não se
limita ao fim de uma existência material, mas a perda das memórias. Como Bazin
defende, o homem sempre usou a linguagem para registrar e resgatar as suas memórias
afetivas. Dentre essas possibilidades de linguagem, a imagem é o recurso mais utilizado,
na contemporaneidade, para preservar a memória. O crítico aponta que a necessidade
humana de registrar tais memórias afetivas por meio de imagens é um modo de se
posicionar frente ao tempo, escapando do esquecimento e preservando sua existência.
É importantes pensarmos que tanto as ideias de Barthes (1984) quanto Bazin
(1991) pensam a fotografia como túmulo. O primeiro acredita que a imagem estática da
fotografia retrata algo que, em sua essência, já está morto. O segundo acredita em uma
fotografia que permite uma não morte, assim como as múmias egípcias, a ideia de uma
eternidade embalsamada. No entanto, encaramos as ideias desses dois autores como
apontamentos que nos fazem ir além, pensar em sobrevivências e possibilidades de
criação a partir disso. Ambos partem de uma perspectiva ontológica, que defende uma
essência e o “isso foi” da fotografia. No entanto, é exatamente a partir desses restos,
dessas ruínas de um passado já a muito esquecido que a artista Rosângela Rennó parece
criar esse universo imagético.
Encaramos o fazer fotográfico aqui muito mais como campo de possibilidades e
reinvenções. Resgatamos Didi-Huberman (2011) e suas discussões em torno das
intermitências, como os vaga-lumes que ascendem diante dos olhos de quem os
observam. Tratamos a Pequena Ecologia da Imagem como coisa viva, como narrativa
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visual. Embora parta de uma tentativa de resgate, de construção de relicários, espécies
de altares de exaltação da memória, o que Rennó parece promover está muito mais na
ordem de uma reinvenção, da sobrevivência.
MEMÓRIA, INTIMIDADE E MOVIMENTO
A memória aqui, em sua existência enquanto imagem, não será encarada como
relicário, como coisa fixa e petrificada, mas como matéria fluida, composta de finas
camadas que se sobrepõem umas as outras, como defendeu Benjamin (2001).
Trabalhamos com a ideia de imagem mental, na qual Philipe Dubois afirma que “uma
foto é sempre uma imagem mental (...) em outras palavras, nossa memória só é feita de
fotografias”. (2007, p. 314). O autor trata as memórias como imagens fotográficas.
Portanto, assim como as imagens mentais, as memórias não existem dentro de uma
linearidade ou de uma fixidez. Essas imagens-memória se intercruzam, se chocam,
“ardem” como diria Didi-Huberman (2012) em seu contato com o real, com o presente e
com nossas imagens mentais.
A memória aqui, enquanto imagem, não é encarada como marcas feitas sobre pedra,
que sobrevivem à ação do tempo, porém permanecem sólidas e fixas por toda a
eternidade. As imagens-memória são, utilizando a metáfora de Etienne Samain (2012),
como o mar. Ele fala do “trabalho da memória”, como o trabalho que o mar promove,
de ir e vir, que mantem um movimento ao mesmo tempo em que preserva mistérios e
zonas obscurecidas, que só podem ser vistas se mergulharmos em sua profundidade.
Para ele, as imagens pertencem à “ordem das coisas vivas”, das coisas que pulsam e se
alimentam do mundo a sua volta.
Pensamos então na ideia de Didi-Huberman (2012,) que fala de imagens que nos
devolvem o olhar, que também nos interrogam. Imagens que estão repletas de outras
imagens, de outros tempos, tanto dos que estão presentes nela, quanto dos que
possibilitaram a sua existência. O que tanto Samain quanto Didi-Huberman levantam é
uma espécie de metodologia, a qual nos inclinamos a seguir. Encarar imagens não como
monumentos em honra ao passado ou como relicários, mas como esse movimento,
repleto de camadas, com as quais precisamos lidar. Samain (2012), ao problematizar sua
relação com as imagens, ao encará-las como não “domáveis”, utiliza outra metáfora que
pode indicar pistas de como a memória é entendida aqui.
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O que Rennó faz, ao trazer à superfície essas imagens de um passado que nem
mesmo a pertence é reinventar memórias. Não se trata, portanto, de criar altares nos
quais deposita essas imagens de seus mortos, mas na possibilidade que esse passado se
choque com o presente, tanto da artista quanto do observador. Quando me deparo com
as fotografias de Rennó eu as misturo com minhas próprias memórias. É nesse instante
que o relicário, o túmulo se desfaz, eu o ponho em movimento, o faço arder, como diria
Didi-Huberman (2012).
Deparamo-nos aqui com duas ideias principais, que podem, dependendo da sua
utilização, complementar-se ou opor-se. De um lado a memória como arquivo, de outro,
a memória como intermitência e quebra. Não se pode perder de vista que ao falarmos
em memória, falamos de imagem. Não de uma obrigatoriedade visual - não encaramos
imagem como um domínio do visual – mas de um conjunto de relações; de encontros e
quebras entre essas mesmas imagens. Ela é composta por camadas e por encruzilhadas.
Didi-Huberman (2012) fala de uma imagem que não é um simples recorte do mundo
real, mas uma impressão, composta por rastros, anacronismos, uma “encruzilhada”:
Sabemos que cada memória está sempre ameaçada pelo esquecimento, cada tesouro ameaçado
pela pilhagem, cada tumba ameaçada pela profanação. Assim, cada vez que abrimos um livro —
pouco importa que seja o Gênesis ou Os Cento e Vinte Dias de Sodoma —, talvez devêssemos
nos reservar uns minutos para pensar nas condições que tenham tornado possível o simples
milagre de que esse texto esteja aqui, diante de nós, que tenha chegado até nós. Há tantos
obstáculos. Queimaram-se tantos livros e tantas bibliotecas. E mesmo assim, cada vez que
depomos nosso olhar sobre uma imagem, deveríamos pensar nas condições que impediram sua
destruição, sua desaparição. Destruir imagens é tão fácil, têm sido sempre tão habitual. (DIDI-
HUBERMAN, 2012, p. 210)
Didi-Huberman (2012) fala da memória enquanto arquivo. Para ele a imagem,
repleta de memória e sendo ela mesma a matéria prima da memória, é uma espécie de
arquivo. Inclinamo-nos a imaginar um arquivo como algo no qual a integridade do
conteúdo está sempre garantida. No entanto, para o filósofo, o que caracteriza o arquivo
é exatamente a ausência, a “lacuna”. “O próprio do arquivo é a lacuna, sua natureza
lacunar” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 210). Atenta para o fato de que, ao nos
depararmos com uma imagem, precisamos pensar em todas as outras que desapareceram
para que ela pudesse acender diante dos nossos olhos. É através das ausências, dos
tempos não presentes na imagem e dos esquecimentos, que poderemos enxergar as
lembranças e a memória sobrevivente. O filósofo afirma que o arquivo é cinza. Quando
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fala de cinza, além de aludir à ideia de fogo, da imagem que ascende em seu contato
com o real, fala também do que sobra entre todas as ausências.
A imagem como arquivo, em sua ligação direta com a ideia de memória, não se trata
de um monumento ao passado, utilizando a metáfora do baú. Samain (2012), também
irá defender o arquivo como algo vivo, esperando para ser revelado. É, nas palavras do
próprio antropólogo, “uma memória em latência”. É em direção ao futuro que ele se
volta. As imagens do passado esperam sua “salvação”:
As fotografias são tecidos, malhas de silêncios e de ruídos. Precisam de nós para que sejam
desdobrados seus segredos. As fotografias são memórias, histórias escritas nelas, sobre elas, de
dentro delas, com elas. É por essa razão, ainda, que as fotografias se acumulam como tesouros,
dentro de pastas, de caixinhas, de armários, que elas se escondem dentro de uma carteira. Elas
são nossos pequenos refúgios, os envelopes que guardam nossos segredos. As pequenas peles, as
películas, de nossa existência. As fotografias são confidências, memórias, arquivos. (SAMAIN,
2012, p. 160)
Rennó, Boltanski e uma memória encenada
Trazemos nesse momento, um pouco do trabalho do artista plástico francês
Christian Boltanski. O trabalho dele, como define MENDONÇA (2010), “tem como
principal tema a sua vida pessoal, a verdadeira ou uma reinventada, abordando a
memória, a identidade, a ausência, a perda ou a morte” (MENDONÇA, 2010, p. 289).
Interessa-nos aqui suas obras, principalmente instalações fotográficas, feitas durante boa
parte dos anos 70, nas quais ele trabalhava de forma bastante intensa com temáticas
ligadas a memória pessoal, com a invenção dessas mesmas memórias e o esquecimento.
Tanto Boltanski quanto Rennó parecem encontrar nos registros fotográficos de
outras pessoas – as velhas fotos do pai, no caso de Rennó e fotografias totalmente
anônimas, como no caso de Boltanski a matéria prima dessa reencenação das suas
memórias. Se a primeiro busca a vida a partir do passado, o segundo parte da morte –
encaramos morte aqui como esquecimento – em direção a uma vida reinventada. Se
pensarmos na teoria desenvolvida por Benjamin (2001), quando o mesmo fala do
narrador como esse homem que articula as experiências e as comunica ao mundo,
podemos pensar em Boltanski ainda como um narrador. Ao nos depararmos com as
imagens de um e de outro, acreditamos que aquelas são imagens de um “outrora” do
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qual os artistas experimentaram, mas que no momento que ascendem diante de nós,
tornam-se novas imagens, pouco importando se são ou não fictícias.
Como dito, Christian Boltanski parte em busca das suas lembranças perdidas. Já não
possui imagens mentais ou materiais que possam revivê-las. É nesse ímpeto que ele
recria, ou melhor, inventa tais lembranças. Em um trabalho de 1986, no qual utiliza
fotografias de vários garotos, com idades diferentes, ele recria um autorretrato no qual
mostra uma espécie de linha do tempo (ver figura 5). Ao nos depararmos com as
imagens, cremos serem todos aqueles garotos o próprio artista, em fases diferentes de
sua vida, como nos mostra MENDONÇA (2010). Em algum momento no qual as
fotografias foram tiradas, garotos com idades diferentes foram registrados por uma
câmera a fim de ciar no expectador a ideia de uma memória, de um passado. É
importante pensar até que pondo Rennó também não o faz. Os personagens que ele nos
apresenta são tão reais, para a plateia quanto os garotos de Botalski.
Figura 1 – 10 Portraits, Christian Boltanski, 1972
O próprio Boltanski, nas palavras de Mendonça (2010) acredita que a imagem não
revela algo que reside na objetividade. Ela pode ser lida e compreendida por diversos
ângulos e essa é a intenção do artista. Não se trata, tanto em Boltanski quando em
Rennó de expor documentos de um tempo ou de uma vida, trata-se muito mais de criar
realidades possíveis, narrativas que reinventam a imagem. Se de um lado há a
reinvenção a partir de imagens ditas reais e pessoais, do outro se tem uma memória
inventada. Buscamos na obra de Boltanski compreender o processo da memória dentro
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das narrativas pessoais.. O próprio artista francês comenta, em um texto de 1986 trazido
por Mendonça (2010), uma de suas obras:
Eu estou entre os outros nesta fotografia; é o final do ano, nós nos reunimos uma última vez, o
acaso nos uniu para sempre. É um monumento, ele ‘auxiliará a lembrança’ e ‘comemorará o
passado’. Eu não me lembro de nada, já não sei mais quem eles são, quem eu era. Deveria
existir, contudo, entre eles, aquele que era meu amigo; aquela que eu amava. Eles estão mortos
hoje; nós todos estamos, ao menos o que está presente nestas imagens desapareceu para sempre.
Rostos sem memória, sem nomes, intercambiáveis como cadáveres (BOLTANSKI, 1989 apud
MENDONÇA, 2010, p. 65)
Figura 2 – Fotografia, Christian Boltanski, 1986
O mais importante é pensar nessas imagens e na sua relação com memória. Trata-se
aqui não de fotografias que testemunham os horrores de uma guerra ou de algum tipo de
acontecimento social e coletivo. Tanto em Boltanski quanto em Rennó, nos deparamos
com imagens que se comportam como um diário íntimo do próprio artista. Mesmo que
esse tipo de tendência individualista, de uma “cultura de si”, seja uma tendência dentro
das manifestações artísticas, mas do que uma inclinação individual, as imagens que
investigamos partem das impressões e memórias de um indivíduo.
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Susan Sontag (2004) afirma que fotografias são coleções de realidades. Sontag
elucida que a fotografia é uma montagem surrealista da história, busca-se através da
imagem, um local em comum, uma memória do outro e nossa, ao mesmo tempo,
constrói-se uma história a partir dos detritos de uma memória.
As fotos são, é claro, artefatos. Mas seu apelo reside também parecerem, num
m mundo atulhado de relíquias fotográficas, ter o status de objetos
encontrados – lascas fortuitas do mundo. Assim, tira partido simultaneamente
do prestígio da arte e da magia do real. São nuvens de fantasia e pílulas de
informação. (SONTAG, 2004, p.84)
Figura 3 – A mulher que perdeu a memória – Rennó 1988
A obra chamada “A mulher que perdeu a memória” (1988), da série “Pequena
Ecologia da Imagem” ilustra essa posição. A foto é uma mulher desfocada, onde a
mesma é um individuo sem face. Trata-se de uma pessoa sem passado, sem memória, de
lembranças ocas. A partir do anonimato, Rennó traz à superfície a pertença atemporal
de cada ao observar a imagem.
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Essas imagens são verdadeiramente capazes de usurpar a realidade porque, antes de
mais nada, a fotografia é não só uma imagem (como o é a pintura) – mas também um
vestígio, diretamente caucado sobre o real, como uma interpretação do real, como uma
pegada ou uma máscara fúnebre. (Sontag, 1981: 148)
Ambos os artistas constroem, a partir de imagens que não foram produzidas por
eles, uma memória encenada, inventada por e na imagem. Não se trata de apontar um
jogo de mentiras, mas de compreender que é através desse processo de reinvenção e de
movimento que nos podemos nos relacionar com as imagens e, portanto, com nossas
memórias. Cada um a sua maneira, Boltanski e Rennó parecem buscar meios de resistir
ao seu próprio esquecimento e com isso liberam essa constelação ficcional na qual nós,
enquanto expectadores, também nos envolvemos com nossas próprias memórias e
imagens.
CONCLUSÃO
Os trabalhos de Rosângela Rennó e de Boltanski, se constroem como tentativa
de preservação de memórias, com o escopo de impedir que o tempo inevitavelmente
apague os traços e restos que sobram das lembranças. A matéria prima de ambos, um
em fotografias de família, o outro em fotografias de anônimos, é a reencarnação de
memórias. No entanto, ao observarmos as obras em questão, percebemos que não se
trata mais de pensar o lugar dos relicários e dos santuários nos quais as imagens devam
pousar, mas na possibilidade mesmo de que essas imagens-memória, da qual falava
Dubois (2005) seja essa matéria fluida e em constante movimento.
Sontag (2004) categoriza que fotografia é, apesar de registro, apropriação. A
realidade apropriada nas imagens de Boltanki e Rennó vira uma lembrança de quem vê
a foto, uma memória de pessoas anônimas.
No pensamento contemporâneo sobre o campo artístico e fotográfico, muitas
questões giram em torno do legado e da memória que se pode construir. O mais
importante é que essa pesquisa não é encerrada. Em um espaço, este que habitamos,
onde tudo vira imagem e nada escapa de ser imagem, a potência dos trabalhos de ambos
pulsa na reapropriação de uma memória e de a partir dela, identificar-se.
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REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobe a fotografia. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
BAZIN, André. Ontologia da Imagem Fotográfica. In: Cinema e outros ensaios. São
Paulo: Brasiliense, 1991.
BELTING, Hans. Por uma antropologia da imagem. Concinnitas: Rio de Janeiro, ano
6, volume 1, n 8, p 65-78, 2005.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 2001.
BONFIM, Maria Aracy. Espelhos impressos: autobiografias e diários, representação e
memória. Littera: São Luiz, v. 1, nº 1, 2010.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. Pós: Belo Horizonte,
v.2, n. 4, p. 204-219, 2012. ________________ Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2011.
DUBOIS, Phillipe. A Imagem-Memória. Laika. São Paulo: USP, 2012.
MENDONÇA, Célia Salume. Aproximações entre a obra de Christian Boltanski e o
estímulo composto no drama. Ouvirouver: Uberlândia, v.6, n.2, p 288-300, 2010.
SAMAIN, Etienne. As peles da fotografia: fenômeno, narrativas, memórias, desejos.
Visualidades: Goiânia, v 10, n 1, p. 151 - 164, 2012.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. Rio de Janeiro:
Companhia das Letras, 2004.
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