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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA TALITHA MIRIAN DO AMARAL ROCHA QUEM DIRIGE EM SÃO GONÇALO DIRIGE EM QUALQUER LUGAR”: UMA ETNOGRAFIA SOBRE AS PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES DA GUARDA MUNICIPAL DE SÃO GONÇALO (RJ). Niterói 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA

TALITHA MIRIAN DO AMARAL ROCHA

QUEM DIRIGE EM SO GONALO DIRIGE EM QUALQUER

LUGAR: UMA ETNOGRAFIA SOBRE AS PRTICAS E

REPRESENTAES DA GUARDA MUNICIPAL DE SO GONALO

(RJ).

Niteri

2015

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA

TALITHA MIRIAN DO AMARAL ROCHA

QUEM DIRIGE EM SO GONALO DIRIGE EM QUALQUER

LUGAR: UMA ETNOGRAFIA SOBRE AS PRTICAS E

REPRESENTAES DA GUARDA MUNICIPAL DE SO GONALO

(RJ).

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

Antropologia da Universidade Federal Fluminense como

requisito parcial para a obteno do Grau de Mestre

Vnculos temticos: Cultura Jurdica, Segurana Pblica e administrao de conflitos

Linha de pesquisa do orientador e coorientadora: Cultura Jurdica, Segurana Pblica e

administrao de conflitos

Niteri

2015

Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

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R672 Rocha, Talitha Mirian do Amaral.

Quem dirige em So Gonalo, dirige em qualquer lugar: uma etnografia sobre as prticas e representaes da Guarda Municipal de So Gonalo (RJ). / Talitha Mirian do Amaral Rocha 2015.

147 f.

Orientador: Edilson Mrcio Almeida da Silva. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Antropologia, 2015.

Bibliografia: f. 140-147.

1. So Gonalo (RJ) Guarda Municipal 2. Trnsito urbano So Gonalo (RJ) 3. Segurana pblica So Gonalo (RJ) I. Silva, Edilson Mrcio Almeida da. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo. CDD 363.2

______________________________

Prof. Orientador Dr. Edilson Mrcio Almeida da Silva

Universidade Federal Fluminense

______________________________

Profa. Coorientadora Dra. Ana Paula Mendes de Miranda

Universidade Federal Fluminense

______________________________

Prof. Dr. Roberto Kant de Lima

Universidade Federal Fluminense

______________________________

Profa. Dra. Joana Domingues Vargas

Universidade Federal do Rio de Janeiro

______________________________

Profa. Dra. Glaucia Pontes Mouzinho

Universidade Federal Fluminense

______________________________

Prof. Dr. Jorge da Silva

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Para meus pais, Joo Bosco Rocha e

Odete Maria do Amaral Rocha

AGRADECIMENTOS

As palavras que vou expressar certamente sero poucas para demonstrar o quanto sou

grata pelo apoio e ajuda que tive durante a minha caminhada at a finalizao desta

pesquisa. Por isso, agradeo de antemo a todos que de alguma maneira fizeram parte

nesse meu processo de aprendizagem, j que cada um com quem convivi foi, sem dvida,

essencial em todo esse caminho. Contudo, seria injusta se no agradecesse nominalmente

a algumas pessoas.

Inicialmente, sou muito grata ao meu orientador, Edilson Mrcio Almeida da Silva, pelo

apoio, dedicao e, principalmente, pela pacincia em todos os momentos de orientao.

Edilson, muito obrigada por todos os conselhos dados e todas as conversas que tivemos.

Sem isso, certamente, no teria condies de finalizar esta dissertao!

Agradeo tambm professora Ana Paula Mendes de Miranda que, alm de minha

coorientadora, possibilitou-me participar do Sub-Projeto Desenvolvimento e

Monitoramento de Indicadores de Segurana Social e de Segurana Pblica a partir dos

atendimentos realizados pela Guarda Municipal de So Gonalo. Ana, obrigada por todas

as oportunidades e por todo apoio que voc sempre me deu.

Aos professores que compuseram minha banca: professor Roberto Kant de Lima,

professora Joana Vargas, professor Jorge da Silva, professora Glaucia Mouzinho. Muito

obrigada pela gentileza de terem aceitado meu convite. Fico muito honrada de ter o meu

trabalho examinado por professores e profissionais que eu admiro tanto.

Agradeo tambm professora Ktia Sento-S Mello que, ainda na defesa do projeto, me

deu sugestes e crticas valiosas para a continuao do trabalho de campo.

CAPES, sou grata pela bolsa de estudos que me foi concedida durante esses dois anos

de mestrado.

Aos meus amigos e companheiros de pesquisa e/ou de Programa: Bris Maia e Silva,

Cristina Marins, Charles Rodrigues, Diano Massarni, Joelma Azevedo, Leonardo

Pompont, Roberta Boniolo, Roberta Correa, Sandro Massarni e Victor Rangel. Agradeo

muito pelas importantes contribuies que deram ao meu trabalho e pela leitura atenta que

tiveram! As questes que vocs levantaram foram muito importantes para construo

desta dissertao.

Agradeo aos colegas e professores do Ncleo Fluminense de Estudos e Pesquisas

(NUFEP) e do Instituto de Estudos Comparados em Administrao Institucional de

Conflitos (InEAC), que sempre esto dispostos a contribuir na formao de qualquer um.

No poderia deixar de citar minha imensa gratido aos guardas municipais de So

Gonalo, pela generosidade de terem me recebido to bem desde o primeiro momento que

l estive.

Sou grata tambm a todos meus amigos, de Resende e de Niteri, que sempre me

apoiaram. Obrigada por entenderem meus momentos de ausncia e por partilharem

comigo momentos to importantes da minha vida.

Por fim, mas no menos importante, agradeo minha famlia. Aos meus pais, Joo Bosco

Rocha e Odete Maria do Amaral Rocha, pelo amor incondicional e pelo apoio emotivo e

financeiro nessa minha caminhada. Obrigada por tudo que vocs me proporcionaram e por

colocarem minha educao como prioridade na vida de vocs. Agradeo tambm a meu

irmo e companheiro para todos os momentos, Josu Augusto do Amaral Rocha, pelo

exemplo de luta e de dedicao. Vocs so a base da minha vida e tudo que sou devo aos

trs.

RESUMO

O principal objetivo desta dissertao analisar as prticas e representaes que so

acionadas pelos guardas municipais de So Gonalo (RJ) durante o trabalho de regulao

do trnsito. Almeja-se, ainda, refletir sobre o papel dessa instituio na rea de Segurana

Pblica, visto que, embora a Constituio de 1988 no deixe claro qual sua funo,

ultimamente, algumas aes tm sido adotadas no sentido de uma pretensa

descentralizao do poder federativo e estadual de tomada de deciso em relao s

polticas pblicas de segurana. Para isso, foi realizado um trabalho de campo entre

novembro de 2013 e novembro de 2014, buscando, por meio da observao direta,

compreender a atuao profissional dos guardas municipais, em um contexto no qual o

trnsito representado como catico e desorganizado. Alm disso, ressalta-se que, mesmo

que o municpio possua mais de um milho de habitantes, as relaes que so construdas

nas ruas e nos seus espaos pblicos so pautadas pela pessoalidade e proximidade, o que

produz efeitos na atuao da Guarda Municipal. Por fim, assinala-se que o contexto

sociocultural em que a instituio est inserida influencia na maneira como se do as aes

dos guardas municipais, levando-os a construir um saber prtico e localmente estabelecido

a partir de suas prticas cotidianas.

Palavras-chave: Segurana Pblica, Guarda Municipal, trnsito

ABSTRACT

The present work aims to investigate practices and representations evoked by guardas

municipais in So Gonalo (RJ), while carrying out traffic control duties, taking into

consideration their position in a context strongly focused on public security at the

municipal level. For this purpose, we carried out fieldwork between November 2013 and

November 2014 in order to better understand, through direct observation, the performance

of the guardas municipais in So Gonalo. Although Brazilian Federal Constitution

(1988) states that the functions of Guarda Municipal are related solely to protecting

public property, we can notice that what defines their duties may vary according to the

particular needs of each city. As to So Gonalo, we seek to demonstrate that, despite

being regarded as chaotic and disorganized, the traffic constitutes a significant issue. In

order to know its importance, we aim to discuss native category associated with that city

which somehow allow us to understand why the traffic is defined in that way. We also

discuss some points concering the performance of the officers and how they view it. At

last, we stress that they do not act uniformly, but rather guided by bom senso, a locally-

constructed practical knowledge which empowers them to decide on when to follow either

formal or informal plans.

Keywords: Public Security, Guarda Municipal, traffic

SUMRIO

1. Introduo .................................................................................................................... 10

2- So Gonalo e suas representaes: pensando sobre a cidade .................................... 29

2.2. O Alcntara e a pequena ndia .......................................................................... 38

2.3. O Centro da cidade e o Rodo de So Gonalo: construindo e demarcando as

diferenas ..................................................................................................................... 46

2.4. As ruas do Centro durante os grandes eventos da cidade .................................... 50

3. A Guarda Municipal de So Gonalo: funes, atribuies e representaes ............ 54

3.1. Regulamento Interno ............................................................................................ 55

3.2. Autoridade e Poder: estrutura hierrquica do Comando da Guarda Municipal ... 58

3.3. Ser ou estar guarda municipal? Pensando a maneira como os agentes se classificam

..................................................................................................................................... 66

3.4. Entre o bom e o mau setor: trnsito de bairro, o buraco e a proximidade.75

3.5. Punies ................................................................................................................ 81

3.6. Outras atribuies da Guarda Municipal de So Gonalo: pensando sobre o papel e

a(s) identidade(s) ......................................................................................................... 86

4. Prticas e Representaes dos guardas municipais no trnsito de So Gonalo ......... 88

4.1. Como fazer o trnsito fluir? Entre o plano formal e informal .............................. 91

4.2. A formao de um saber prtico ........................................................................... 98

4.3. Cada caso um caso: instrumentos necessrios para a construo de um saber103

4.4. Proximidade e pessoalidade: construindo relaes e identidades ...................... 109

4.4.1. As mltiplas relaes e identidades no espao pblico .................................. 110

4.4.2. As relaes personalizadas entre as instituies e um dilogo informalmente

constitudo ................................................................................................................. 117

4.5. Respeito e autoridade: a multa e a arma ............................................................. 121

4.5.1. Em busca de uma legitimidade ....................................................................... 126

4.6. Reciprocidade, jeitinho e esquema ..................................................................... 129

5. Consideraes Finais ................................................................................................. 134

6. Referncias Bibliogrficas......................................................................................... 141

10

1. Introduo

Com base em um amplo levantamento da produo bibliogrfica produzida sobre

as temticas da violncia, criminalidade, segurana pblica e justia criminal no Brasil,

Kant de Lima, Misse e Miranda (2000) apontam que h, hoje, um campo do conhecimento

cujos estudos empricos tm, cada vez mais, buscado explicitar os modos de

funcionamento das instituies ligadas execuo e planejamento das aes relativas

segurana pblica. No o fazem para critic-las, mas, fundamentalmente, para entender

como funcionam. O meu trabalho est orientado por esse tipo de perspectiva, ou seja, mais

do que apontar defeitos ou enfatizar faltas e ausncias dos agentes/rgos da rea de

segurana pblica, pretendo entender qual a lgica com que eles operam, focando,

especificamente, no caso, na atuao da Guarda Municipal1 de So Gonalo (RJ).

A frase que intitula este trabalho Quem dirige em So Gonalo dirige em

qualquer lugar faz referncia a uma representao associada, de modo recorrente, ao

trnsito do municpio, segundo a qual esse seria caracteristicamente catico e

desorganizado. Como, em So Gonalo, o trnsito regulado pela Guarda Municipal, tive

por objetivo analisar as prticas e representaes cotidianamente acionadas pelos agentes

durante o desempenho do seu ofcio, considerando no s a referida representao do

trnsito, como tambm o lugar ocupado por aquela instituio num contexto de nfase na

municipalizao da Segurana Pblica.

O contato do Ncleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da Universidade Federal

Fluminense (NUFEP/UFF), do qual fao parte, com o contexto emprico de So Gonalo

comeou no ano de 2007, quando foram realizados o diagnstico e o plano de segurana

municipal. Desde ento, tm sido realizadas reflexes sobre o papel do municpio nas

polticas de Segurana Pblica e, mais especificamente, sobre a atuao da Guarda

Municipal. Um exemplo o trabalho de Barbosa, Mouzinho, Kant de Lima e Silva (2008),

que destaca como uma possvel atribuio do poder da polcia para a Guarda Municipal

poderia ser capaz de afast-la de sua principal vocao, qual seja: a administrao de

conflitos baseada em relaes de proximidade e aes preventivas.

1 No presente trabalho utilizo a expresso Guarda Municipal para se referir instituio, j para me reportar

aos agentes uso o termo guarda municipal, em minsculo.

11

No Brasil, a questo da Segurana Pblica compete, formalmente, ao chamado

Sistema de Segurana Pblica, que composto por diversos rgos em nveis federal,

estadual e municipal. As diretrizes gerais desse sistema foram elaboradas pela

Constituio Federal de 1988, prevendo, entre outras coisas, quais seriam os rgos

responsveis por sua manuteno. No artigo 144, definido que a segurana pblica um

dever do Estado e, tambm, responsabilidade de todos. Esse artigo estabelece que o papel

da polcia, tanto militar quanto civil, cabe ao governo estadual. Dessa forma, grande parte

das polticas pblicas desenvolvidas na rea de segurana elaborada pelo poder estadual.

Em relao ao papel dos municpios, o artigo prev, somente, que eles podero constituir

guardas municipais destinadas proteo dos bens, servios e instalaes, conforme

dispuser a lei (Brasil, 1988, art 144, 8o).

Ao procurarem compreender o funcionamento das Guardas Municipais do pas,

alguns autores questionaram a maneira como a definio de suas funes aparece no texto

constitucional (Brasil, 1988). Vargas e Oliveira Junior (2010), por exemplo, destacaram

que a parte da Constituio que define o papel das Guardas Municipais considerada

ambgua, no estabelecendo, com preciso, como a segurana pblica deve ser tratada em

mbito municipal. Mello (2011) tambm assinala que, no artigo 144 da Constituio, no

se definem claramente as competncias e rotinas de trabalho nas Guardas, nem o seu lugar

em meio a outras instituies ligadas Segurana Pblica. Dada a relativa impreciso do

texto constitucional, o municpio acabou, assim, por assumir, formalmente, um papel

secundrio no que concerne implementao e elaborao das polticas da rea.

Em contrapartida, os ltimos programas e planos de segurana pblica

desenvolvidos no pas tm buscado incentivar as aes municipais, estimulando a

descentralizao do poder no que concerne tomada de decises relativas s polticas de

segurana pblica (Brasil, 2000, 2003, 2007). Nesse sentido, em mbito nacional, pode se

dizer que, pelo menos, formalmente, desde 2000, os municpios vm tendo um maior

destaque no campo da segurana pblica. Tanto o , que a atuao das Guardas

Municipais objeto de ateno dos dois primeiros programas e planos de segurana

pblica elaborados em mbito federal. Contudo, se, no de 2000, h meno participao

das Guardas no ordenamento do trnsito e um incentivo criao da instituio fora de

padres militares, no Programa Segurana Pblica para o Brasil, publicado em 2003,

assinala-se que a Guarda Municipal no possui funes e metas bem definidas, o que,

consequentemente, a priva de uma identidade institucional formalmente estabelecida. Em

12

lugar disso, haveria, to somente, um princpio orientador da ao dos guardas municipais

relacionado com a ideia de que eles devem atuar junto populao, habilitados a

compreender a complexidade pluridimensional da problemtica da segurana pblica e

agir em conformidade com esta compreenso, atuando, portanto, como solucionadores de

problemas (Brasil, 2003, p. 58). J em 2007, com a implementao do Programa

Nacional de Segurana Pblica com Cidadania (PRONASCI), as aes municipais de

combate e preveno da violncia comearam a ganhar um pouco mais de destaque,

difundindo-se, inclusive, para alm da Guarda Municipal. Isso pode ser observado, por

exemplo, com a criao dos Gabinetes de Gesto Integrados Municipais (GGIM) e dos

Conselhos Comunitrios de Segurana Pblica.

Nesse sentido, cabe reconhecer que o governo federal tem apresentado estmulos

atuao dos municpios no que concerne s polticas de segurana, ainda que muitas delas

continuem sendo preferencialmente desenvolvidas e implementadas pelos governos

estaduais. Um desses incentivos advm da Secretaria Nacional de Segurana Pblica

(SENASP), que, juntamente com o Ministrio da Justia, vem liberando recursos para que

os municpios invistam na rea. Isso ocorre porque posto que as prefeituras, por estarem

mais prximas s populaes locais e, portanto, conhecerem (ou deveriam conhecer)

melhor suas peculiaridades e demandas, estariam mais aptas a implementar polticas de

administrao dos conflitos no-repressivas. Por isso, pelo menos formalmente, o

incentivo municipalizao da Segurana Pblica pode ser entendido como parte de um

esforo na busca pela consolidao de um Estado Democrtico de Direito2 no Brasil.

Em sua tese de livre docncia, Amorim (1975) aponta que, historicamente, a

administrao pblica federal nunca adotou polticas de descentralizao, mas, sim, de

desconcentrao do poder, o que tem, por consequncia, a manuteno de uma rede de

dominao imposta pelo poder central aos poderes locais. Embora o trabalho de Amorim

tenha como foco a burocracia do nordeste do Brasil, pode se afirmar que, a despeito de

seus avanos, o atual movimento de municipalizao da segurana pblica tem esbarrado

no mesmo tipo de centralismo poltico, posto que as aes municipais permanecem

submetidas regulao federal. Da vem a concluso tomada de emprstimo da sociloga

de que no vivemos propriamente um quadro de descentralizao, mas de desconcentrao

de certas polticas de segurana, uma vez que as mesmas so induzidas pela esfera central

2 Anteriormente a 1988, no perodo do Regime Militar (19641985), a segurana pblica era tratada em

nvel de Segurana Nacional e, por conta disso, no era tratada como direito e responsabilidade de todos.

13

e, portanto, continuam direta ou indiretamente submetidas s tomadas de deciso e aos

recursos federais.

Nesse particular, Vargas (2010) observa que a suposta descentralizao das

polticas pblicas assumiu uma caracterstica peculiar na rea de segurana, j que a

Constituio no conferiu protagonismo aos municpios no que tange s funes de

elaborao e desenvolvimento das polticas pblicas do setor. Prova disso reside no fato

de que o texto constitucional, embora tenha previsto e, pode se dizer, estimulado a criao

das Guardas Municipais no por acaso, foi tambm restritivo ao seu mandato, no

especificando a sua organizao, funcionamento ou atribuies (ibid., p. 47).

A ideia de elaborar um sistema integrando as informaes e aes das instituies

ligadas Segurana Pblica foi apresentado, pela primeira vez, em 2004, junto com o

Programa Segurana Pblica para o Brasil (2003), atravs do Sistema nico de

Segurana Pblica (SUSP). O projeto, que foi reelaborado em 2007, depois da

implementao do PRONASCI, tinha o objetivo de propiciar a articulao entre aes

federais, estaduais e municipais no campo da segurana pblica e justia criminal,

integrando, tambm, os prprios rgos de segurana (Miranda, 2008). Os principais eixos

de atuao eram: gesto unificada da tecnologia da informao; gesto do sistema de

segurana; formao e aperfeioamento de policiais; valorizao das percias e a melhora

da produo de prova; preveno da violncia e instalao de ouvidorias independentes; e,

finalmente, modernizao da gesto da segurana pblica nos rgos de segurana

pblica.

O projeto, embora tenha sido considerado estrategicamente interessante, acabou se

confrontando com uma srie de obstculos. Segundo pesquisadores da rea (Miranda,

2008; Miranda, Oliveira, e Paes, 2010; Ribeiro e Silva, 2010; e Azevedo e Vasconcelos,

2011), um dos mais evidentes reside na resistncia quanto divulgao dos registros

produzidos por cada uma das instncias envolvidas, o que dificulta a efetiva integrao

dos dados e informaes sobre criminalidade, violncia e justia, tal qual proposto pelo

SUSP (Miranda, 2008). Isso ocorre, conforme assinalam Azevedo e Vasconcelos (2011),

devido desarticulao verificada tanto no Sistema de Segurana Pblica quanto no

Sistema de Justia Criminal, o que tem a ver com as disputas por prerrogativas entre as

agncias que o compem. De acordo com os autores,

A inexistncia de padro de registro unificado para os casos, o descompasso entre

as formas organizacionais das diferentes agncias [...] e as deficincias e

http://lattes.cnpq.br/9208010575645615http://lattes.cnpq.br/2285619103268687

14

incapacidades histricas de comunicao entre todas as agncias so alguns dos

indicadores dessa desarticulao. A prpria ideia de Sistema de Justia Criminal

parece mais um artifcio conceitual (e quase retrico) utilizado por ns, cientistas

sociais, para referirmo-nos a um objeto por vezes inatingvel empiricamente.

(Ratton apud Azevedo e Vasconcelos, 2011, p 64).

Como apontam diversos estudos da rea de Cincias Sociais3, a noo de sistema

pressupe harmonia, comunicabilidade e interdependncia entre os seus elementos, de tal

maneira que a alterao em uma das partes, consequentemente, causa efeito no conjunto.

Nesse sentido, pode se afirmar que no h, na verdade, um Sistema de Segurana Pblica

no Brasil, posto que no se verifica uma integrao sistmica entre os rgos e instituies

que o compem. Todavia, embora no seja possvel encar-lo como um sistema

propriamente dito, no h como avaliar corretamente a atuao de instituies como, por

exemplo, as Guardas Municipais sem levar em conta as relaes que os seus agentes

estabelecem com outros agentes da rea de segurana pblica. Como pretendo apontar no

decorrer do trabalho, a relao da Guarda Municipal de So Gonalo com outras

instituies se d, sobretudo, por meio das relaes pessoais que os seus agentes

estabelecem entre si, o que, de alguma maneira, promove a difuso de algumas ideias e

valores como, por exemplo, as derivadas da influncia militar sobre as prticas e

representaes dos agentes da Guarda. No caso especfico de So Gonalo, desde a

elaborao do Plano Municipal de Segurana Pblica, pelo Ncleo Fluminense de Estudos

e Pesquisas (NUFEP/UFF), em 2008, notrio que muitos dos guardas municipais, apesar

de reclamarem da disciplina militarizada que lhes imposta, ainda desejam possuir um

status semelhante ao dos militares. Como irei ressaltar, muitos deles acreditam que a

instituio a que pertencem somente ter credibilidade diante dos outros rgos de

segurana pblica e do pblico em geral se os seus atributos puderem ser comparados aos

da Polcia Militar.

Em contraposio a esse tipo de influncia na organizao e constituio das

Guardas Municipais, foi instituda, em agosto de 2014, a lei 13.022, tambm conhecida

como Estatuto Geral das Guardas Municipais. Essa lei afirma que as Guardas so

instituies de carter civil, ficando, assim, proibida a incorporao de princpios militares

em sua estrutura hierrquica e, tambm, nos seus regulamentos disciplinares. Do ponto de

vista legal, buscou-se, fundamentalmente, definir a abrangncia e esmiuar as

3 Alguns autores que trataram e discutiram a noo de sistema nas Cincias Sociais foram Durkheim (2009),

Radcliffe-Brown (2013) e Lvi-Strauss (1991).

15

competncias das Guardas Municipais no Brasil. Desse modo, se o texto constitucional

centrava o papel das Guardas Municipais somente na proteo do patrimnio pblico, com

o Estatuto Geral das Guardas Municipais, as suas funes teriam se ampliado

significativamente, conforme possvel observar abaixo:

Captulo III

Das Competncias

Art. 4o competncia geral das guardas municipais a proteo de bens, servios,

logradouros pblicos municipais e instalaes do Municpio.

Pargrafo nico. Os bens mencionados no caput abrangem os de uso comum, os

de uso especial e os dominiais.

Art. 5o So competncias especficas das guardas municipais, respeitadas as

competncias dos rgos federais e estaduais:

I - zelar pelos bens, equipamentos e prdios pblicos do Municpio;

II - prevenir e inibir, pela presena e vigilncia, bem como coibir, infraes penais

ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, servios e

instalaes municipais;

III - atuar, preventiva e permanentemente, no territrio do Municpio, para a

proteo sistmica da populao que utiliza os bens, servios e instalaes

municipais;

IV - colaborar, de forma integrada com os rgos de segurana pblica, em aes

conjuntas que contribuam com a paz social;

V - colaborar com a pacificao de conflitos que seus integrantes presenciarem,

atentando para o respeito aos direitos fundamentais das pessoas;

VI - exercer as competncias de trnsito que lhes forem conferidas, nas vias e

logradouros municipais, nos termos da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997

(Cdigo de Trnsito Brasileiro), ou de forma concorrente, mediante convnio

celebrado com rgo de trnsito estadual ou municipal;

VII - proteger o patrimnio ecolgico, histrico, cultural, arquitetnico e

ambiental do Municpio, inclusive adotando medidas educativas e preventivas;

VIII - cooperar com os demais rgos de defesa civil em suas atividades; IX -

interagir com a sociedade civil para discusso de solues de problemas e projetos

locais voltados melhoria das condies de segurana das comunidades;

X - estabelecer parcerias com os rgos estaduais e da Unio, ou de Municpios

vizinhos, por meio da celebrao de convnios ou consrcios, com vistas ao

desenvolvimento de aes preventivas integradas;

XI - articular-se com os rgos municipais de polticas sociais, visando adoo

de aes interdisciplinares de segurana no Municpio;

XII - integrar-se com os demais rgos de poder de polcia administrativa, visando

a contribuir para a normatizao e a fiscalizao das posturas e ordenamento

urbano municipal;

XIII - garantir o atendimento de ocorrncias emergenciais, ou prest-lo direta e

imediatamente quando deparar-se com elas;

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9503.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9503.htm

16

XIV - encaminhar ao delegado de polcia, diante de flagrante delito, o autor da

infrao, preservando o local do crime, quando possvel e sempre que necessrio;

XV - contribuir no estudo de impacto na segurana local, conforme plano diretor

municipal, por ocasio da construo de empreendimentos de grande porte;

XVI - desenvolver aes de preveno primria violncia, isoladamente ou em

conjunto com os demais rgos da prpria municipalidade, de outros Municpios

ou das esferas estadual e federal;

XVII - auxiliar na segurana de grandes eventos e na proteo de autoridades e

dignatrios; e

XVIII - atuar mediante aes preventivas na segurana escolar, zelando pelo

entorno e participando de aes educativas com o corpo discente e docente das

unidades de ensino municipal, de forma a colaborar com a implantao da cultura

de paz na comunidade local.

Pargrafo nico. No exerccio de suas competncias, a guarda municipal poder

colaborar ou atuar conjuntamente com rgos de segurana pblica da Unio, dos

Estados e do Distrito Federal ou de congneres de Municpios vizinhos e, nas

hipteses previstas nos incisos XIII e XIV deste artigo, diante do comparecimento

de rgo descrito nos incisos do caput do art. 144 da Constituio Federal, dever

a guarda municipal prestar todo o apoio continuidade do atendimento.

(BRASIL, Lei n 13.022, 2014, art. 4 e 5)

Como possvel se notar na reproduo acima, com a aprovao da lei 13.022, fica

estabelecido que uma das possveis funes da Guarda Municipal diz respeito ao exerccio

das competncias de trnsito, desde que essas lhes sejam formalmente conferidas. No caso

de So Gonalo, foi sobre tal exerccio, suas prticas e representaes que recaiu a minha

ateno.

***

Meu interesse pelo tema surgiu quando realizei uma etnografia na Guarda

Municipal de Rio Bonito (RJ), que posteriormente resultou no meu trabalho monogrfico

de concluso da graduao em Cincias Sociais, intitulado Telefone sem fio: Uma

etnografia do processo de registro dos atendimentos prestados pela Guarda Municipal de

Rio Bonito (Rocha, 2013)4. Para produzi-lo, procurei compreender as diferentes vises dos

agentes envolvidos nos processos de registro dos atendimentos, desde o momento em que

o fato operacional ou administrativo acontecia, passando pelo registro propriamente dito,

at chegar aos seus possveis usos e destinos. Em relao a este trabalho, foi possvel

perceber que as funes que um guarda municipal deve realizar, muitas vezes, no so

4 Durante o desenvolvimento dessa pesquisa, fui bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciao

Cientfica (PIBIC).

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art144http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art144

17

formalmente conhecidas nem pela populao e nem pelos prprios agentes, o que

prejudica a construo de uma identidade institucional formal que sirva de base para a sua

atuao (Miranda, Mouzinho e Mello, 2003; Mello, 2011).

O presente trabalho corresponde a um desdobramento da minha participao no

subprojeto Desenvolvimento e Monitoramento de Indicadores de Segurana Social e de

Segurana Pblica a partir dos atendimentos realizados pela Guarda Municipal de So

Gonalo, coordenado pela professora Ana Paula Mendes de Miranda e integrante do

Instituto Nacional de Cincia e Tecnologia Instituto de Estudos Comparados em

Administrao Institucional de Conflitos (INCT-InEAC). O objetivo do subprojeto era

compreender o processo de classificao das ocorrncias atendidas pelos agentes da

Guarda Municipal, visando o desenvolvimento de um banco de dados que viabilizasse a

construo de um painel de indicadores para o monitoramento das polticas pblicas de

segurana.

Durante o desenvolvimento do projeto, Azevedo (2012) observou que os registros

realizados em livros de ocorrncias e no Talo de Registro de Ocorrncia (TRO) no

eram organizados para subsidiar o trabalho da instituio e, sim, para resguardar o

guarda de eventuais problemas ou, ento, para punir outro(s) agente(s). A autora concluiu

que a introduo do TRO no alterou a maneira como eram registrados os atendimentos,

percebendo, assim, que no adianta ter o melhor programa de computador para estruturar

um banco de dados se os agentes envolvidos no compartilharem da mesma lgica

(Miranda, Azevedo e Rocha, 2014). A no sistematizao das informaes levou os

pesquisadores do projeto a desenvolvermos uma pgina virtual, chamada Informaes

sobre conflitos no espao Urbano CEU5 , que se constituiu enquanto uma proposta

alternativa frente ao cenrio encontrado, possibilitando, por essa via, a construo de um

instrumento que contribusse para o aperfeioamento e a acessibilidade dos registros

realizados6. A partir das informaes inseridas no site, observamos que os casos

categorizados como Coliso sem vtima constavam como os principais atendimentos

registrados pelos guardas municipais desde o incio de 2010 at agosto de 2013. Com isso,

comecei a perceber que a principal atividade da Guarda Municipal de So Gonalo era a

organizao do trnsito da cidade e, a partir de ento, passei a ter interesse em

compreender como ocorre essa atividade e quais so os instrumentos usados pelos agentes

5 URL: < http://www.uff.br/ceu-ineac>. Acesso: 16/11/2015.

6 As informaes presentes na pgina virtual so oriundas do Talo de Registro de Ocorrncia (TRO).

http://www.uff.br/ceu-ineac

18

para a sua organizao. Em 2010, em razo do subprojeto supracitado, acompanhei o

trabalho dos guardas municipais por um perodo de trs meses, observando, sobretudo, a

sua atuao na regulao do trnsito pelas ruas da cidade. Posteriormente, j inserida no

Programa de Ps-Graduao em Antropologia (PPGA), da Universidade Federal

Fluminense, para cursar o mestrado, voltei a realizar observao direta das atividades

desenvolvidas pelos guardas, inspirada pela questo que acabou por se tornar o meu objeto

de pesquisa.

A primeira vez que fui a So Gonalo foi no incio do ano de 2010. Antes disso, j

tinha escutado, algumas vezes, a mxima que intitula este trabalho, e foi ela que guiou

minhas primeiras idas cidade. Com o passar do tempo, medida que frequentava as suas

ruas, fui observando o trabalho dos guardas municipais e percebendo que a representao

associada ao trnsito no municpio correspondia a uma imagem genrica e

homogeneizante. No entanto, no poderia desconsider-la, muito embora, ao analisar o

trabalho dos guardas municipais de So Gonalo, tenha me dedicado a compreender o

contexto no qual a instituio estava inserida, de modo a identificar at que ponto a

atuao da Guarda Municipal dialogava com esse tipo de representao, assim como com

as demais ideias e valores presentes no entorno social.

O fato de o meu lcus de pesquisa ser em So Gonalo me proporcionou o acesso a

algumas informaes que serviram de base preliminar para a realizao da pesquisa.

Alguns colegas e companheiros da Universidade Federal Fluminense moram e/ou

possuem famlia nessa cidade, e, por isso, conversar e trocar ideias com eles, a respeito

dos meus interesses de pesquisa, me ajudou a entender um pouco da representao que os

moradores tm do municpio, principalmente, quando se trata do trnsito. Muitas vezes,

quando falava da pesquisa para algum que morava ou tinha alguma relao com o

municpio, escutava diversos comentrios sobre as caractersticas do trnsito do Alcntara,

inclusive sobre o porqu do ditado que nomeia este trabalho. Apesar de meus colegas e

amigos no terem sido, propriamente, os interlocutores da pesquisa, o dilogo com eles foi

til para que eu comeasse a refletir a respeito das questes das quais iria me ocupar. De

certa maneira, era como se eles, em nossas conversas sobre o trnsito da cidade,

estivessem me introduzindo no universo com o qual eu iria lidar durante o trabalho de

campo.

Como disse, j tinha feito algumas incurses e observaes para o projeto de

pesquisa do qual tinha participado anteriormente. Contudo, a tarefa de comear a fazer

19

trabalho de campo naquela Guarda Municipal, agora movida por novas inquietaes e

perguntas, fazia parecer como se estivesse iniciando minha primeira experincia

etnogrfica.

1.1- Um (re)comeo

Era a primeira semana de novembro de 2013 quando voltei a frequentar e

acompanhar o trabalho dos guardas de So Gonalo. A agente Fabiana7, que tinha mais de

vinte anos na instituio, convidou a mim e outros colegas para fazermos uma palestra

sobre nossa pesquisa8. A palestra seria dirigida nova turma de guardas municipais que

havia sido convocada no meio do ano. Como tinha ocorrido em outras oportunidades, a

agente ficou responsvel por organizar o curso de formao dos novatos. Segundo ela, sua

base para estruturar o curso foi a Matriz Curricular Nacional para as Guardas Municipais,

e, a partir da, ela buscava parcerias com outras instituies ou, mesmo, com guardas que

pudessem ministrar os contedos da grade curricular. Antes de participar da palestra que

eu e meus colegas iramos fazer, fui at o colgio onde estavam sendo ministradas as aulas

do curso para, de alguma maneira, comear a me aproximar dos agentes. O colgio ficava

na Avenida Maric, ao lado de um grande supermercado. Quando cheguei, os recrutas9 e

demais guardas j estavam em uma sala, esperando o palestrante do dia. Assim que entrei

na sala, os guardas olharam para trs, achando que era eu quem iria fazer a palestra.

Cumprimentei a guarda Fabiana e um outro agente que estava ao seu lado. Sentei-me

numa carteira ao fundo da sala, um pouco longe de onde eles estavam. Antes da fala do

palestrante, um guarda chamado Walace tinha dado uma aula para os recrutas sobre

Tcnicas de telecomunicao, focando no alfabeto fontico que deve ser utilizado em

comunicaes com rdio e na possibilidade de se montar uma rede de comunicaes na

Guarda Municipal. Um pouco antes de o agente terminar, o palestrante chegou. Era um

senhor vestido de terno, que, depois fiquei sabendo, se tratava de um agente da Polcia

Federal. O guarda Walace, ento, interrompeu sua aula para apresentar o palestrante:

Bom dia senhores, aqui est o senhor Fernandes, agente da Polcia Federal, que dar,

7 Optei por usar nomes fictcios para preservar a identidade dos agentes

8 Os colegas que tambm foram convidados a participar da palestra para a Guarda Municipal de So

Gonalo foram: Joelma de Souza Azevedo e Marcos Vincius Moura. 9 Recrutas era a maneira como os demais guardas municipais se referiam aos guardas que ainda estavam

em processo de formao.

20

hoje, uma palestra sobre o Estatuto do Desarmamento. Um, dois!. Assim que o agente

concluiu a frase, os recrutas levantaram, ficaram em posio de sentido e falaram: Trs,

quatro! em um tom de voz elevado, s voltando a se sentar quando o agente da Polcia

Federal falou descansar.

Durante a aula, o palestrante focou nos pontos necessrios para a obteno do porte

de arma de fogo. Por conta disso, a discusso sobre a sua pertinncia ou necessidade na

atividade da Guarda foi o tema central naquela manh. A guarda Fabiana havia dito que,

h algum tempo, eles fizeram uma pesquisa entre os guardas de So Gonalo para saber a

sua opinio sobre o assunto. Segundo ela, os guardas, em sua maioria, eram favorveis ao

armamento da Guarda, mas ela acreditava que, para isso, era preciso que o comando e

demais gestores tambm estivessem de acordo. O guarda Walace, por sua vez, disse que

no era nem a favor nem contra o armamento da Guarda, mas que, na sua viso, seria

preciso, antes de mais nada, discutir qual a funo da Guarda Municipal para, s ento,

decidir quais eram os equipamentos e treinamentos realmente necessrios.

Observar cenas como essas, alm de outras ocorridas durante as aulas do curso, me

fizeram notar que havia alguns valores e princpios militares influenciando, de alguma

forma, a ao daqueles agentes, a despeito de seu papel estar mais ligado administrao

dos pequenos conflitos existentes nas ruas e no trnsito. Comecei a perceber isso mais

claramente quando passei a frequentar, com regularidade, as ruas da cidade, observando e

acompanhando o trabalho deles.

1.2- Algumas observaes metodolgicas

Depois de assistir a algumas palestras realizadas durante o curso de formao da

turma 22 mil10

, passei a acompanhar os estgios11

. Essa atividade era a forma como os

guardas municipais mais antigos ensinavam aos recrutas como deveriam atuar na

organizao e nos atendimentos prestados no trnsito. Ficava, normalmente, um grupo de

dois ou trs guardas mais novos com um outro agente mais antigo. A primeira vez em que

10

Conforme irei explicar posteriormente, os guardas municipais de So Gonalo se classificam de acordo

com as turmas de ingresso na instituio. Os dois nmeros iniciais da matrcula dos agentes servem para

diferenciar a turma a que cada um pertence. 11

Estgio era a maneira como os guardas municipais chamaram as primeiras incurses dos recrutas no

trabalho junto aos guardas mais antigos nas ruas da cidade.

21

testemunhei esse tipo de atividade foi no Alcntara, quando acompanhava o trabalho dos

recrutas Mrcia, Jnior e Umberto, ento supervisionados pelo guarda Fbio. A partir de

ento, passei a ir com mais frequncia a esse bairro, no s para observar o trabalho dos

guardas municipais, como tambm para conhecer as suas ruas.

Mesmo j tendo ido algumas vezes a So Gonalo, aquela realidade era um pouco

distante da minha, j que moro na cidade vizinha, Niteri. Lembro-me, at hoje, de uma

situao que me fez perceber isso, quando passei pela primeira vez na frente de um

inusitado estabelecimento comercial. Fiquei um tempo na frente da loja, tentando entender

o que era aquilo. Na frente do estabelecimento, ocupando uma parte da calada, ficavam

algumas mesas com verduras e legumes. Ao fundo, havia um balco com um senhor logo

atrs. Compondo o ambiente, havia, ainda, um freezer com carnes e algumas pessoas

fazendo compras. No canto esquerdo, uma parede inteira era ocupada por gaiolas com

galinhas vivas e presas. Fiquei um tempo ali, observando, quando percebi que o senhor

atrs do balco me olhava fixamente, e, por isso, decidi ir embora sem saber, afinal, o que

era o estabelecimento, se um aougue, um armazm ou uma verduraria. Depois,

conversando com uma guarda, descrevi a loja e perguntei o que era. Ela me respondeu, em

tom de gozao: Ah, o abatedouro! Tem muitos por aqui.. A situao me fez

compreender que o que tinha naquele bairro ainda era muito estranho para mim, assim

como eu tambm era uma estranha naquele lugar. Passei, ento, a flanar pelas ruas sem um

ponto fixo de observao, buscando, de alguma maneira, realizar aquilo a que Da Matta

(1978) se referiu como a primeira operao do ofcio do etnlogo: a transformao do

extico em familiar (p. 04). Com o passar do tempo, medida que os guardas iam se

acostumando com minha presena, tambm fui me acostumando com a deles e com as

ruas, de modo que aquilo que antes me surpreendia passava tambm a fazer parte do meu

dia-a-dia.

Passei a frequentar as ruas de So Gonalo em novembro de 2013, quando os

guardas da ltima turma eram ainda recrutas. Continuei fazendo campo no municpio

at novembro de 2014. Ia de duas a trs vezes por semana cidade, acompanhando e

observando o trabalho dos guardas nas ruas do Alcntara e do Centro. Durante a

realizao do projeto sobre as formas de registro dessa Guarda, percebi que a maior parte

deles envolvia coliso sem vtima e com vtima e se concentrava no Alcntara. Por isso,

num primeiro momento, minha inteno era fazer trabalho de campo observando apenas a

atuao dos guardas que trabalhavam nesse bairro. Com o passar do tempo, os prprios

22

guardas comearam a me perguntar por que eu no ia aos setores12

localizados em outros

bairros, incentivando-me a ir ao Centro, j que l, segundo eles, havia menos movimento

de veculos e pessoas. Resolvi comear, ento, ainda no incio de 2014, a ir ao Centro de

So Gonalo. L tambm se concentrava grande parte dos setores de atuao dos

guardas responsveis pela regulao do trnsito. Por conta do trabalho de campo, acabei

frequentando mais o Centro e o Alcntara, embora tambm tenha ido a outros setores,

como os que ficam no bairro Paraso e no Coluband.

Chegava a So Gonalo por volta das nove horas e ficava at as 18 horas, mais ou

menos. Quando estava ainda no nibus, indo de Niteri para So Gonalo ou fazendo o

caminho inverso, procurava conversar com passageiros enquanto prestava ateno no

itinerrio que fazamos at chegar ao meu destino. Como, no incio, So Gonalo se

mostrava relativamente distante de minha realidade, esse exerccio me ajudava a

compreender como as pessoas usufruam e se apropriavam daqueles espaos. Quando

chegava ao Alcntara ou ao Centro, procurava andar pelas ruas e observar as primeiras

movimentaes da manh: os comerciantes abrindo suas lojas, os camels montando suas

barracas, as filas dos nibus com destino ao Rio de Janeiro e a Niteri aumentando.

Andava pelas ruas da cidade para conhecer um pouco melhor aquela realidade, procurando

me perder em cada local potencialmente capaz de me surpreender com o novo e o

diferente. Por vezes, apenas procurava por um guarda municipal ao qual, caso no

conhecesse, prontamente me apresentava.

A observao direta foi uma estratgia metodolgica importante. Quando no

estava andando pelas ruas, mantinha-me prximo a um guarda, procurando observar seu

trabalho e sua interao com o entorno. Tambm conversava com eles; mas, na maior

parte das vezes, ficava um pouco afastada para no atrapalhar e/ou interferir

demasiadamente em suas aes. Aproximava-me, porm, quando ocorriam imprevistos,

tais como, colises, acidentes, pequenos conflitos etc. Buscava no ficar muito tempo

junto a um nico guarda. Durante o dia, ia de um lado a outro do bairro observando o

trabalho de diversos agentes e conversando com eles. A observao do trabalho dos

guardas foi realizada, portanto, do ponto de vista de um transeunte, mesmo porque nunca

cheguei a dirigir pelas ruas da cidade.

12

Setor a maneira como os guardas municipais de So Gonalo denominam os locais de trabalho no

trnsito da cidade.

23

Ao andar pelas ruas e vagar pelas esquinas, era confrontada com uma srie de

informaes, sons e significados difceis de assimilar em sua totalidade. Da emerge a

necessidade do exerccio de transitividade a que me submeti frente aos variados

estmulos que surgem quando se observa a cidade, mesmo que de uma determinada

perspectiva (Caruso, 2009). Essa estratgia foi empregada, tambm, por Caruso (2009) em

sua tese de doutorado intitulada Entre ruas, becos e esquinas: por uma antropologia dos

processos de construo da ordem na Lapa carioca. No caso, o trabalho de campo da

autora foi marcado por um exerccio de transitividade (p. 37), que lhe permitiu

compreender as especificidades na relao espao-tempo observadas no contexto em

questo. Ao demonstrar o desafio de experimentar a cidade em sua totalidade, ela (2009)

enfatiza que

os fragmentos de realidade que compem o mosaico da vida metropolitana trazem

baila o desafio de observar o que est em movimento, em repensar, o que para

qualquer antroplogo crucial, que definir o seu ponto de observao. Nesse

sentido, o trabalho etnogrfico na metrpole imps o desafio de perambular pela

cidade, num estado de deriva (p. 37, grifos da autora)

Em grande medida, o meu trabalho de campo tambm foi marcado por esse

perambular pela cidade, por esse estado de deriva (p. 38) que me levava a flanar e

transitar pelos mais variados caminhos percorridos no s pelos guardas municipais, como

tambm por outros agentes que transitavam pela cidade. Observar essa interao entre os

guardas municipais e demais agentes era importante para perceber como os seus espaos

de atuao eram construdos, assim como para compreender as ideias e valores presentes

nos mltiplos atendimentos prestados. A arte de perambular ou de flanar pelas ruas de So

Gonalo me permitiu perceber de que maneira diferentes agentes construam seus trajetos,

revelando, assim, a forma como significavam as suas relaes e os seus pertencimentos

quele(s) espao(s).

Conforme comecei a vagar pelas ruas, percebi que os guardas mais antigos em

atividade no Alcntara j me conheciam, sobretudo, por conta do mencionado projeto de

que participei. Mesmo assim, muitos deles se sentiam intimidados a conversar comigo, j

que no sabiam se a pesquisa que eu estava fazendo poderia exp-los de alguma forma.

Alguns chegaram a me perguntar se eu tinha alguma ligao com o secretrio de

Segurana Pblica da cidade, desconfiados de que eu poderia ser algum tipo de espi ou

algo assim. Deve ser mesmo algo incmodo ter alguma pessoa ao seu lado observando o

24

seu trabalho sem se saber ao certo quem ela ou o que pretende fazer. Por mais que eu me

apresentasse e falasse qual era meu objetivo, todas as vezes em que me dirigia a um agente

com o qual no tinha proximidade, permanecia uma certa desconfiana sobre quem eu era

e as razes que me levavam quelas ruas. Devido ao curso de formao e palestra que

ministrei, j tinha conseguido construir uma relao de proximidade com os guardas

municipais mais novos, inteirando-os, antecipadamente, da minha inteno. Por isso, num

primeiro momento, o trabalho de campo acabou se centrando na observao do trabalho

dos guardas municipais que tinham entrado na instituio no ano de 2013.

Com o passar do tempo e medida que ia mais vezes a campo, fui criando maior

intimidade com os outros guardas municipais, mesmo com aqueles mais antigos que, a

princpio, me evitavam. Percebi que estava comeando a ser aceita entre eles quando

comearam a lembrar do meu nome. No incio, como disse, alguns acreditavam que eu

estava indo ao Alcntara para vigi-los. Gustavo, um agente que possua trs anos na

instituio, era um deles. O guarda chegou at a me falar isso algumas vezes, mesmo que,

reiteradas vezes, eu tentasse explicar o que fazia ali. Certo dia, estava prximo entrada

do terminal de nibus, ao lado dos guardas Las e Gustavo, e esse perguntou, mais uma

vez, qual era o meu nome. Depois de responder, ele me questionou sobre a pesquisa.

Expliquei novamente e, ento, o agente me falou um pouco da sua maneira de atuar ali. A

partir de ento, ele e sua colega no esqueceram mais o meu nome, passando a se mostrar

mais abertos a conversar comigo, inclusive sobre os assuntos relacionados ao seu trabalho.

Assim como aconteceu no Alcntara, inicialmente, minha presena tambm foi

vista com certa desconfiana pelos guardas que atuavam no Centro de So Gonalo. Mas,

medida que a pesquisa se desenvolvia, tambm construa com eles uma relao de maior

proximidade. certa altura, minha presena nas ruas do Alcntara e do Centro j tinha se

tornado to comum que passei a escutar frases como: J pode se tornar guarda!, Vou te

dar um apito para puxar o trnsito tambm. ou, ainda, S falta vestir a farda!.

Percebi que construir uma relao de proximidade com as guardas que trabalhavam

no Alcntara foi essencial para que os demais agentes, inclusive homens, me aceitassem.

Inicialmente, elas se sentiam mais vontade com minha presena, mostrando-se curiosas

sobre meu trabalho e conversando bastante comigo. Na maioria das vezes, as respostas s

minhas perguntas geravam interaes mais detidas, ou seja, no eram monossilbicas

como aquelas que alguns guardas homens forneciam em uma primeira aproximao. Criei

uma intimidade maior com as guardas Flvia e Las, ambas pertencentes ltima turma de

25

agentes que entraram na instituio. Com elas, conversava desde assuntos relacionados a

sua atuao profissional at curiosidades sobre cabelo e maquiagem. Las, por exemplo,

chegou at a me dar um presente quando estava prximo do meu aniversrio. As duas, em

diferentes momentos, passaram a me convidar para lanchar ou acompanh-las at o local

onde costumavam tomar gua e ir ao banheiro. Estar presente nesses momentos de

informalidade, em que os guardas poderiam ficar sem a cobertura13

e sem a rigidez que o

uniforme exigia, foi essencial no s para criar uma proximidade maior com os demais

agentes, mas, tambm, para conhecer e entender quem era cada um deles. Alguns guardas

tinham, mais ou menos, minha idade, outros eram mais velhos. Nas conversas que

tnhamos, passava a conhecer um pouco da famlia de cada um, o que faziam em seus

momentos de folga, as situaes que ocorreram por aquelas ruas nos dias em que eu no

estava presente etc. Com o passar do tempo, j sabia os locais onde eles costumavam

comer, os horrios em que chegavam ou iam embora, aqueles que eram reconhecidos

como dures e aqueles que eram vistos como bonzinhos. Muitas vezes, ia lanchar com

os guardas, andava com eles pelas ruas, de um lado a outro do setor, e participava de

uma srie de momentos de suas rotinas dirias.

Com o passar do tempo, alguns guardas comearam a acreditar que a realizao da

pesquisa seria uma forma de divulgar ou, at mesmo, de dar visibilidade ao seu trabalho.

Foram vrias as vezes em que escutei que eu deveria colocar minha pesquisa em uma

matria de jornal para que a populao, de alguma forma, pudesse ver o que os guardas

fazem diariamente. O guarda Fbio, por exemplo, mencionou isso algumas vezes. Ele era

um dos criadores de um jornal que, alm de veicular reportagens com contedos sobre a

instituio, apresentava notcias sobre variedades, tendo como fonte os jornais e pginas

virtuais de grande circulao. Outros guardas achavam que eu deveria escrever uma

matria no jornal contando os problemas estruturais da cidade, tais como os relativos

sinalizao e ao asfaltamento das ruas. Diante de tais expectativas, procurava deixar

claro que eu no era jornalista e no tinha inteno de fazer uma matria de jornal, mas

um trabalho acadmico, tendo por base aquilo que eu estava observando em suas rotinas

dirias.

Para a realizao da pesquisa, assumi como pressuposto epistemolgico que a

etnografia busca compreender o outro atravs dos atos de olhar, ouvir e escrever, trs

faculdades fundamentais para o fazer antropolgico (Cardoso de Oliveira, 1998, p.17).

13

Cobertura o nome dado pelos guardas municipais ao bon que faz parte do uniforme oficial.

26

Nesse sentido, vagar, perambular, flanar pelas ruas de So Gonalo, sem um ponto fixo de

observao, a fim de experimentar a cidade e realizar observao direta do trabalho dos

guardas municipais, foram, sem dvida, as estratgias metodolgicas que mais utilizei

durante o ano em que empreendi o trabalho de campo. No entanto, empreguei tambm

outros recursos que foram igualmente importantes para a construo dos dados. Por meio

de entrevistas informais, busquei entender como era a atuao dos guardas nas ruas, assim

como obter informaes especficas sobre a instituio a que serviam. Muitas vezes, ficava

prxima dos guardas, em seus setores, e conversava sobre situaes ocorridas naquele

momento ou em outro qualquer, sobre as quais ainda me restavam dvidas. Quando no

tinha muita proximidade com o agente, costumava fazer perguntas mais amplas para, de

alguma forma, iniciar uma conversa. Fazia perguntas como, por exemplo: Como sua

relao com a populao que passa por aqui? ou O que voc faz para organizar o

trnsito no seu setor?. A partir da, dispunha-me a escutar aquilo que o guarda tinha a

dizer e, em seguida, fazia uma ou outra pergunta para dar sequncia ao dilogo.

A partir de um roteiro pr-estruturado, fiz, tambm, entrevistas com alguns guardas

que trabalhavam na sede da instituio e com o Comandante da Guarda Municipal de So

Gonalo. Por conta da pesquisa anterior, j conhecia parte dos guardas, tendo, inclusive,

proximidade com alguns deles. Contudo, o fato de ter ido mais vezes s ruas do que sede

fez com que me aproximasse mais dos agentes do trnsito e acabasse me distanciando dos

guardas que ficavam na base14

. Todas as vezes em que ia l, era bem recebida; os

agentes me ofereciam caf, diziam para eu voltar mais vezes e respondiam prontamente s

minhas perguntas. Todavia, por no possuirmos mais tanta proximidade, as conversas e

entrevistas informais j no fluam to bem. No raro, eles se mostravam mais

preocupados em me ouvir do que em falar, dando respostas curtas para o que era

perguntado. Por isso, optei por realizar entrevistas pr-estruturadas com guardas que

ocupavam posies hierarquicamente destacadas, como, por exemplo, a guarda Fabiana,

que era assessora da Ronda Escolar e trabalhava no setor administrativo. O mesmo se

passou com o guarda Abreu, que trabalhava no setor responsvel por fazer as escalas de

servio15

e alocar os guardas nos setores e postos fixos16

de trabalho. Em ambas as

14

Base era a maneira como os guardas municipais que trabalhavam nas ruas chamavam a sede da

instituio. 15

Escala de servio um documento produzido pela Guarda Municipal de So Gonalo a fim de distribuir

os agentes de acordo com os plantes e horrios de trabalho disponveis. 16

Postos fixos era a maneira como os guardas municipais denominavam os locais de trabalho em prdios

pblicos.

27

ocasies, pedi permisso antecipada para fazer as entrevistas, retornando num dia

posterior para realiz-las, com base num roteiro previamente estruturado. A entrevista com

o Comandante seguiu o mesmo protocolo.

Acompanhar pginas e grupos no Facebook foi, tambm, importante para

comear a compreender as vises dos guardas municipais e de moradores de So Gonalo

a respeito de alguns assuntos de meu interesse. Durante a pesquisa, acompanhei duas

pginas17

que faziam postagens sobre temas como as mazelas por que o municpio

passava. Tanto aquilo que era publicado quanto os comentrios feitos por pessoas que

curtiam as pginas foram importantes para eu comear a perceber qual era a viso que

parte da populao tinha a respeito de determinadas reas, assim como da cidade em geral.

Adicionar alguns interlocutores da guarda municipal ao meu perfil em uma rede social

tambm foi importante para construir uma relao de maior proximidade com alguns

agentes. Percebi que estar aberta para compartilhar alguns assuntos, tambm virtualmente,

poderia ser uma forma de manter ou cultivar o vnculo estabelecido. De certa forma, era

como se, com isso, eu me aproximasse um pouco mais de um mundo que ainda estava

relativamente distante. Por isso, alm de adicion-los, procurei fazer parte dos grupos nos

quais os guardas partilhavam assuntos entre si, como, por exemplo, sobre as motivaes

que os levaram a organizar uma manifestao que ocorreu em novembro de 2014.

Participei, tambm, de grupos e comunidades dos quais guardas de todo Brasil faziam

parte e nos quais eram discutidas pautas mais gerais, como as referentes votao da lei

13022, chamada de Estatuto Geral das Guardas Municipais.

Antes de tratar especificamente dos contextos em que a Guarda Municipal de So

Gonalo est inserida, importante ressaltar que optei por utilizar nomes fictcios para, de

alguma forma, preservar a identidade dos guardas com quem mantive contato. Alm disso,

procurei, tambm, mudar ou ocultar os nomes das ruas e pontos de referncias que faziam

parte dos documentos oficiais e internos a fim de respeitar o sigilo dessas informaes.

No que se refere estrutura desta dissertao, alm de uma introduo e das

consideraes finais, ela composta de mais trs captulos. No captulo dois, denominado

So Gonalo e suas representaes: pensando sobre a cidade, enfatizo que, muito antes

de a lei 13.022 ser sancionada, o trnsito j era uma questo cara ao municpio.

17

A saber: So Gonalo da depresso (URL: .

Acesso: 16/11/2015) e So Gonalo tenso (URL: .

Acesso: 16/11/2015).

https://www.facebook.com/SaoGoncaloDaDepressao?ref=ts&fref=tshttps://www.facebook.com/saogoncaloetenso?ref=ts&fref=ts

28

Concentro-me em apresentar So Gonalo, descrevendo mais pormenorizadamente o

bairro do Alcntara18

e o Centro da cidade, onde concentrei meu trabalho de campo. De

maneira geral, o objetivo do captulo discorrer sobre algumas categorias nativas que se

costumam associar cidade e que, de alguma maneira, ajudam a entender por que o seu

trnsito descrito como catico e desorganizado. Isso, por consequncia, contribui para a

compreenso das formas de atuao da Guarda Municipal de So Gonalo.

No terceiro captulo, intitulado A Guarda Municipal de So Gonalo: funes,

atribuies e representaes, empenho-me em apresentar alguns pontos relativos ao

funcionamento da instituio e maneira como ela costuma ser representada por seus

membros. Nesse sentido, so expostas: as competncias previstas no Regulamento Interno

da Guarda Municipal de So Gonalo; a maneira como a autoridade e a estrutura

hierrquica tendem a ser vistas pelos agentes que trabalham nas ruas; a forma como esses

guardas classificavam a si mesmos e seus locais de trabalho; as punies normalmente

estabelecidas etc.

No quarto captulo, cujo ttulo Prticas e representaes dos guardas municipais

no trnsito de So Gonalo, me dedico a descrever a atuao desses agentes na regulao

do trnsito da cidade. A exemplo do que foi observado por outros pesquisadores (Miranda,

2002; Mello, 2011), o bom senso aparece enquanto uma categoria chave para se

entender a maneira como eles agem, que, por vezes, tem como base o plano formal e, em

outras ocasies, o plano informal. So apresentadas vrias situaes que nos permitem

entender de que maneira eles classificam os atendimentos e suas aes, como, por

exemplo: o que preciso para fazer o trnsito fluir; quais os aspectos que devem ser

levados em conta para saber quando multar e quando no; quais as maneiras de se usar o

apito; quando as relaes de proximidade e pessoalidade devem ser levadas em conta; por

que o porte de arma de fogo continua sendo exigido por alguns guardas; e, no menos

importante, como so estabelecidas as relaes de reciprocidade no trnsito.

18

Neste trabalho, fao referncia ao bairro como o Alcntara, assim como alguns guardas municipais e

demais agentes o chamavam. Por isso, esclareo que, mesmo em possveis situaes em que no seria

preciso us-lo, utilizo o artigo definido o para me aproximar da maneira como esse bairro era, por vezes,

caracterizado.

29

2- So Gonalo e suas representaes: pensando sobre a cidade

Ao distinguir o objeto de estudo do lcus de uma pesquisa, Geertz (1989)

estabelece que os antroplogos no estudam as aldeias (tribos, cidades, vizinhanas...),

eles estudam nas aldeias. (p. 32). Nesse sentido, antes de observar como os guardas

municipais organizavam o trnsito de So Gonalo, foi preciso me familiarizar um pouco

mais com aquele contexto emprico que era, at ento, relativamente distante de mim. Por

isso, conforme mencionado, procurava conversar com amigos e colegas que moravam ou

nasceram em So Gonalo, a fim de ter acesso a informaes iniciais sobre a cidade.

Desde ento, j escutava a mxima quem dirige em So Gonalo dirige em qualquer

lugar. Ao me dizerem essa frase, eles no pretendiam enfatizar a destreza dos motoristas

que transitavam pelas ruas da cidade, mas pr em evidncia uma imagem do trnsito que

seria, supostamente, catico e desorganizado.

Neste captulo, procuro explorar os aspectos e efeitos simblicos que acompanham

esse tipo de representao construda sobre o trnsito de So Gonalo. Considero o termo

representao da maneira proposta por Durkheim (2009), segundo a qual as ideias que

os homens tm sobre si so forjadas no interior das relaes, coletivamente, ultrapassando,

assim, a autonomia dos indivduos. importante ressaltar que, segundo o autor, as ideias

alimentam os fazeres, muito embora as prticas no sejam estritamente um reflexo daquilo

que se pensa. Dessa maneira, dependendo do contexto, ideias e prticas podem tanto se

coadunar como se contrapor.

Essa discusso possui uma relao direta com o objetivo deste captulo, j que

pretendo analisar como se constitui a morfologia social de So Gonalo, especialmente

dos bairros do Alcntara e do Centro da cidade. Assim como definiram Mauss (2013) e

Halbwachs (2006), a morfologia social tem a ver com a maneira como, a partir de

determinados usos e costumes, so organizadas e estruturadas as relaes num

determinado contexto socioespacial. Com base nessa perspectiva, procurei mapear a

maneira como as ruas dos referidos bairros so ocupadas e utilizadas pelos agentes que

nelas transitam e/ou atuam, de modo a compreender, com isso, como tais espaos so

socialmente construdos.

2.1. So Gonalo: nomes e esteretipos

30

So Gonalo uma cidade que fica na regio metropolitana do Rio de Janeiro, a

apenas vinte quilmetros da capital. Sua populao estimada pelo Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatstica (IBGE), em 2014, consta de 1.031.903 de habitantes, uma das

maiores do estado19

. O municpio faz divisa com Niteri, Maric e Itabora, apresentando

uma ampla extenso territorial de 247.709 km (Mapa 1).

Mapa 1 Municpio de So Gonalo

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatsticas. URL:

. Acesso: 25/08/2014.

Os 91 bairros de So Gonalo (Mapa 2) esto divididos em cinco distritos (Mapa

3). So eles: So Gonalo (distrito sede), Ipiiba, Monjolo, Neves e Sete Pontes20

(Quadro

1).

19

URL. Acesso: 01/04/2015 20

As informaes oficiais so oriundas da pgina virtual oficial da prefeitura municipal de So Gonalo.

URL: . Acesso: 13/01/2015.

http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=&codmun=330490&search=||infogr%E1ficos:-dados-gerais-do-munic%EDpiohttp://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=&codmun=330490&search=||infogr%E1ficos:-dados-gerais-do-munic%EDpiohttp://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=330490http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php

31

Mapa 2 Bairros de So Gonalo

Fonte: Prefeitura Municipal de So Gonalo. Disponvel em:

http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php. Acesso em 13 de janeiro de 2015 s 10h32min

Mapa 3 Distritos de So Gonalo

Fonte: Prefeitura Municipal de So Gonalo. Disponvel em:

http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php. Acesso em 13 de janeiro de 2015 s 10h25min

http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.phphttp://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php

32

Quadro 1 Diviso dos bairros de So Gonalo por distritos

Fonte: Prefeitura Municipal de So Gonalo. Disponvel em:

http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php. Acesso em 13 de janeiro de 2015 s 10h38min

O Centro (tambm apontado, no Quadro 1, como rodo de S.G.) e o Alcntara se

encontram no primeiro distrito da cidade. Grande parte dos nomes das localidades,

principalmente, dos primeiros bairros, se refere s fazendas, indstrias ou portos que antes

existiam na regio. Em meados do sculo XX, quando a cidade comeou a crescer

industrialmente, muitas fazendas comearam a fazer loteamentos, o que deu origem a

muitos dos bairros hoje existentes. Segundo um guarda municipal, essa transformao do

municpio tem consequncias diretas na maneira como o trnsito da cidade se apresenta na

atualidade:

http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php

33

So Gonalo era, antes, tudo fazenda. At pouco tempo, era tudo mato. Depois,

foram vendendo as fazendas para fazer loteamentos de casas. [] por isso que,

aqui, tem todas essas ruas estreitinhas. No se v uma avenida grande, no teve

planejamento, tudo rua. Agora, qualquer coisa que acontece fica tudo parado [o

trnsito].

(Joo, guarda municipal h 13 anos)

Durante o trabalho de campo, percebi que vrias categorias nativas eram

empregadas para fazer referncia cidade de So Gonalo, tais como: Manchester

Fluminense, cidade invadida, cidade dormitrio e cidade das praas. A partir do

que depreendi, cada uma delas diz respeito a um perodo da histria do municpio, de

modo que, para analis-las corretamente, preciso respeitar uma sequncia, ao mesmo

tempo, lgica e cronolgica. Durkheim (2009) j nos demonstrou que as categorias usadas

por nossos interlocutores fazem parte de um sistema classificatrio, o que pressupe que

elas possuem significados que, quando decodificados, permitem compreender a lgica

com que operam em determinado sistema. Com isso, o que pretendo enfatizar que, a

partir do tipo de categoria que os agentes empregam para se referir cidade, possvel

entender o tipo de compreenso que levada em conta sobre So Gonalo.

No ano de 1948, o IBGE realizou uma Sinopse Estatstica, abrangendo dados

sobre os municpios brasileiros ento existentes. A pesquisa englobou os aspectos

histricos, geogrficos e censitrios da dcada. So Gonalo havia se emancipado

politicamente havia pouco mais de 50 anos, e sua populao era de apenas 94.446

habitantes. Em relao produo industrial, o documento afirma que:

Atualmente, o Municpio de So Gonalo atingiu um elevado grau de

desenvolvimento e prosperidade econmica. O seu parque industrial considerado

um dos mais importantes do Estado e mesmo do pas, tendo localidade merecida

a cognominao de Manchester Fluminense. Nos setores social e agrcola,

intenso o progresso que se verifica, ensejando a que se tenha So Gonalo como

uma das mais produtivas e adiantadas comunas fluminenses.

(IBGE, 1948, p. 05)

34

Como mostra a pesquisa do IBGE, a partir da dcada de 1940, o municpio chegou

ao auge de sua produo e concentrao industrial, fazendo com que So Gonalo

figurasse como um dos mais importantes plos industriais do antigo estado do Rio de

Janeiro. Segundo Araujo e Mello (2014), o processo de industrializao da regio foi

deflagrado por iniciativa do setor privado que, quela altura, contava com incentivos

oferecidos pelo governo federal. Essa poca de pujana econmica rendeu ao municpio a

alcunha de Manchester Fluminense, em analogia famosa cidade industrial britnica21

.

Uma das consequncias desse alardeado crescimento econmico foi a ida de amplos

segmentos sociais, das mais diversas procedncias, para o municpio em busca de

trabalho.

A esse respeito, o jornal O So Gonalo enfatiza, na edio comemorativa do

aniversrio de 119 anos da cidade, publicada em 2009, que, poca, muitas pessoas

foram do nordeste do pas e do interior do estado para a cidade. A matria reala, ainda,

que, por estar perto da ento capital do estado, Niteri, e da capital federal, Rio de

Janeiro, [So Gonalo] ocupava lugar estratgico nesse fluxo migratrio.22

. Como

assinala Mendes (2002), por conta da grande afluncia de migrantes, o municpio passou

pelo mais alto crescimento populacional de sua histria, o que ocasionou a ampliao do

movimento de loteamentos de antigas fazendas, a que j fiz meno. A denominao de

cidade invadida est diretamente relacionada a esse momento histrico, j que foi depois

do perodo de crescimento econmico que ocorreu uma maior diversificao da

populao, haja vista que vrios tipos de pessoas, com diferentes origens e modos de vida,

passaram a conviver num mesmo espao.

Segundo Guedes (1997), esses so episdios importantes na constituio da

identidade do gonalense (p. 58). Tal identidade, como qualquer outra, construda de

forma contrastiva e relacional, sendo que, no caso de So Gonalo, as fronteiras

simblicas que separam seus habitantes de niteroienses e cariocas se revelam de forma

especificamente significativa. Isso se d por meio das representaes produzidas pelos

21

A cidade britnica a qual estou me referindo Manchester, importante, at hoje, pelo seu grande centro

industrial e econmico. Durante a Revoluo Industrial, no sculo XIX, a cidade comeou a ganhar uma

posio central para o desenvolvimento da Inglaterra, j que l se concentrava grande parte das industrias

fabris. Engels (2008), quando escreveu sobre a situao dos trabalhadores na Inglaterra, j falou da

importncia da cidade para a industrializao do pas e enfatizou, tambm, a misria e as pssimas condies

de trabalho que os operrios e proletariados possuam. 22

A matria est disponvel em URL:

. Acesso: 18/03/2015.

http://www.osaogoncalo.com.br/esg+119+anos/2009/9/22/2271/uma+cidade+em+constante+transformacaohttp://www.osaogoncalo.com.br/esg+119+anos/2009/9/22/2271/uma+cidade+em+constante+transformacao

35

autointitulados gonalenses histricos (que possuem uma forte identificao com a

cidade), segundo as quais os desenraizados teriam transformado So Gonalo numa

cidade-dormitrio (ibid., p.59). Numa entrevista realizada pela autora, um antigo

morador fala da reconfigurao da cidade a partir da invaso desses gonalenses

desenraizados:

uma So Gonalo que, se voc chegar a e perguntar quem nasceu em So

Gonalo, s as criancinhas com menos de cinco anos, porque os outros tm origem

fora de So Gonalo. Essas pessoas vieram pra ocupar os terrenos dos

loteamentos, porque elas j eram fruto do xodo rural, da especulao imobiliria

do Rio de Janeiro... Ento o que aconteceu? Essas pessoas fizeram uma So

Gonalo absolutamente diferente, desenraizadas, elas no conhecem algumas a

maioria delas no passam nem por aqui, os nibus sobem pela Rodovia Amaral

Peixoto, se voc perguntar a elas onde fica o centro administrativo, onde fica a

prefeitura, elas no sabem. Ento, essa uma outra So Gonalo.

(Guedes, 1997, p. 60)

De acordo com essa viso, a cidade teria sido invadida por gonalenses

desenraizados, que no conhecem e no se identificam com o municpio, o que a

transformou em uma outra So Gonalo, muito diferente daquela que era conhecida

como a Manchester Fluminense. Segundo essa perspectiva, a invaso da cidade

tambm estaria relacionada posterior decadncia industrial que o municpio sofreu.

Sobre essa decadncia, Araujo e Melo (2014) observam que o processo de crescimento

industrial teve pouco flego, em pouco tempo, os investimentos industriais deram sinais

de esgotamento, e, j no incio da segunda metade do sculo, deu-se incio ao processo de

esvaziamento industrial (p. 84). De acordo com esses autores, por mais que as indstrias

contassem com incentivo fiscal para permanecer na cidade, o tardio investimento em obras

infraestruturais, como em gua e saneamento bsico, fez com que vrias delas passassem a

deixar o municpio a partir da dcada de 1970. Ao apontar como essa decadncia

econmica afetou mais especificamente o bairro de Neves, Guedes (1997) afirma que,

nessa poca, aconteceu o fechamento de fbricas, como, por exemplo, a Companhia

Fluminense de Manufatura, a Fiat Lux e algumas indstrias de conservao de pescado

(p.68).

O descompasso entre a grande procura de empregos e a pouca oferta fez com que

a populao passasse a procurar empregos na capital do estado e, tambm, na ento capital

federal, Rio de Janeiro. Em consequncia, So Gonalo passou a ser conhecida como uma

36

cidade dormitrio. At os dias de hoje, o municpio assim caracterizado, conforme

podemos ver na introduo da Leitura Tcnica do Plano Diretor da Cidade23

:

Terceiro municpio mais populoso do Estado do Rio de Janeiro So Gonalo

caracteriza-se como cidade dormitrio. Essa situao no recente; distante

apenas cerca de 10 km de Niteri, h muitos anos verifica-se entre as duas

localidades um intenso movimento de migrao pendular diria, concentrando-se

em So Gonalo o reservatrio de mo-de-obra e as funes complementares,

sobretudo de moradia para os trabalhadores, ficando Niteri com as tarefas

produtivas e de acmulo do capital.

(So Gonalo, 2006)

A intensa frequentao das praas, nos mais diversos bairros de So Gonalo, tem

relao direta com uma das maneiras como a cidade costuma ser representada. A primeira

vez que escutei a expresso cidade das praas ocorreu quando um guarda municipal

conversava comigo a respeito das obras que um antigo governante municipal havia

realizado na cidade. Naquela ocasio, lembrei que esse governante, ao tentar eleger seu

sucessor, exaltava o fato de ter revitalizado grande parte das praas da cidade. Segundo o

guarda, a campanha que elegeu o referido gestor ficou popularmente conhecida como

campanha do tijolinho e contava com a seguinte frase de impacto: Vamos reconstruir

So Gonalo. o que, no caso, significava, fundamentalmente, pavimentar ruas e

construir praas. O agente, ento, me disse que So Gonalo sempre foi a cidade das

praas, elas sempre foram importantes para a vida dos bairros. Posteriormente, em outras

conversas com guardas municipais e alguns colegas, voltei a escutar essa expresso. No

entanto, a ideia de se encarar So Gonalo como a cidade das praas parece ser

relativamente recente, no porque no houvesse praas antigamente ou porque as pessoas

no as frequentassem, mas porque a valorizao pblica desses espaos como um

patrimnio dos gonalenses tem a ver com um contexto histrico bastante atual. claro

que a Praa do bairro Trindade24

, a Praa dos Ex-combatentes25

, a localmente conhecida

23

A Leitura Tcnica do Plano Diretor do municpio de So Gonalo, pode ser vista na ntegra na seguinte

pgina virtual, URL:. Acesso: 18/03/2015. 24

O bairro de Trindade se localiza no terceiro distrito da cidade. 25

A praa dos ex-combatentes est localizada no bairro Paraso, mais especificamente, no quarto distrito de

So Gonalo. No centro dessa praa, encontra-se uma rplica de um tanque de guerra, em homenagem aos

http://www.pmsg.rj.gov.br/urbanismo/plano_diretor/leitura_tecnica/index.htm

37

Praa Z Garoto26

ou quaisquer outras praas da cidade possuem diferenas e

peculiaridades quanto s formas de sociabilidade nelas desenvolvidas. No me cabe, aqui,

enfatiz-las ou discuti-las. Entretanto, acredito que esse um aspecto importante para a

compreenso do modo como muitas das relaes sociais so estabelecidas em So

Gonalo, sobretudo, no que concerne pessoalidade tpica das interaes desenvolvidas

em tais espaos. impossvel no passar pela praa do bairro Trindade, por exemplo,

numa sexta ou num sbado noite, e no encontrar ela cheia tanto de jovens como,

tambm, de famlias com suas crianas. Nesse sentido, So Gonalo ser reconhecida

enquanto cidade das praas significa se identificarem e se assumirem a familiaridade, a

pessoalidade e a coletividade, por exemplo, enquanto caractersticas importantes para a

construo das relaes sociais na cidade.

Outro ponto abordado por Guedes (1997), e que, ainda hoje, muito representativo

de So Gonalo, diz respeito proximidade social do municpio com queles da chamada

Baixada Fluminense, a saber: Nova Iguau, Nilpolis, So Joo de Meriti e Duque de

Caxias. Se levarmos em conta somente os termos geoespaciais, percebemos, como

demonstrado no primeiro mapa (Mapa 1), que So Gonalo se situa na outra margem da

Baa de Guanabara e no tem nenhuma proximidade com tais municpios. Entretanto,

apesar de essas cidades no estarem fisicamente prximas, suas caractersticas sociais as

aproximam. Essa questo vai ao encontro de uma crtica feita por um guarda municipal

durante meu trabalho de campo. Era muito comum que os agentes reclamassem dos

pedestres, tanto por no atravessarem na faixa como por o fazerem com o sinal aberto para

carros. Em uma dessas circunstncias, um guarda me disse que So Gonalo parecia ser

uma extenso da Baixada Fluminense, j que a Baixada uma terra sem lei, e So

Gonalo parece que tambm . Os pedestres nunca acham que as leis de trnsito tambm

valem para eles. Desse ponto de vista, embora So Gonalo e a Baixada Fluminense

estejam a quilmetros de distncia um do outro, sendo, portanto, fisicamente distantes,

esses dois espaos acabam por ser representados como semelhantes e, desse modo,

socialmente prximos (Park, 1979), uma vez que recebem o esteretipo de terras sem

lei, onde pedestres e motoristas acreditam que podem tudo.

gonalenses que serviram na Segunda Guerra Mundial. URL:

. Acesso: 14/01/2015. 26

A praa Z Garoto oficialmente conhecida como Praa Estefnia de Carvalho e se localiza no bairro Z

Garoto. O nome do bairro e o nome popular da praa se referem a um comerciante, filho de imigrante

portugus, que possua um armazm prximo de onde se encontra a praa hoje em dia. URL:

. Acesso: 14/01/2015.

http://www.saogoncalo.rj.gov.br/historia.phphttp://www.saogoncalo.rj.gov.br/historia.php

38

Ao desenvolver os seus estudos em um bairro habitado por imigrantes pobres

descendentes de italianos (ento identificado como Corneville), Foote-Whyte (2005) se

defrontou com uma srie de representaes previamente construdas sobre o local. A rea

era vista como problemtica e degradada, com altos ndices de criminalidade e

delinquncia juvenil, o que foi gradativamente superado medida que era realizada a

pesquisa emprica por meio da qual o autor conseguiu lanar um outro olhar sobre aquela

realidade. De certa forma, foi um movimento parecido com esse que tentei empreender ao

realizar a pesquisa em So Gonalo. Busquei, fundamentalmente, ir alm de um olhar

generalizante e homogeneizante para, a partir da pesquisa emprica, confront-lo com a

lgica local conforme foi apresentada pelo(s) ponto(s) de vista nativo(s) a que tive acesso.

2.2. O Alcntara e a pequena ndia

Comecei a frequentar as ruas do Alcntara em novembro de 2013. Desde o

primeiro dia, tive contato com os diversos sons e movimentos caractersticos daquele

local. O calor escaldante do vero j se anunciava. As ruas e caladas estavam cheias de

camels27

, assim como de possveis compradores, por conta do Natal que se aproximava.

Era preciso prestar muita ateno ao andar pelas caladas para no pisar nos produtos que

os ambulantes estendiam no cho ou, mesmo, para no tropear em algum caixote ali

deixado ao acaso. Alguns camels montavam barracas provisrias com caixotes e

madeiras, ocupando grande parte das caladas. Esses espaos eram como uma espcie de

quebra-cabea, onde cada coisa tinha o seu lugar: uma parte da calada era destinada aos

camels, outra era ocupada pelas enormes filas de pessoas que esperavam nibus, e o

que restava era destinado ao fluxo de pessoas que iam e vinham em sentidos contrrios.

Aquelas que estavam com mais pressa cortavam caminho pelos cantos das ruas. Nesse dia,

apesar de j conhecer alguns guardas municipais, resolvi no conversar com eles.

Interessava-me observar as atividades e as maneiras como aqueles espaos eram ocupados,

o que, mal sabia eu, levaria muito mais do que um dia.

O bairro do Alcntara um dos importantes plos de negcios e comrcio de So

Gonalo. Como mostra o Quadro 1, ele fica situado no primeiro distrito da cidade. L se

27

Apesar de saber que as categorias camel e ambulante possuem diferenas quanto ao uso, emprego as

duas com o mesmo sentido, assim como alguns guardas municipais o faziam.

39

encontram lojas de eletrodomsticos, lojas de mveis, bares, agncias bancrias,

lanchonetes, hospitais, supermercados, escolas, clnicas, shopping centers e diversos

outros edifcios comerciais. Quando vagava, pelas primeiras vezes, nas ruas do bairro,

ainda tomada de um estranhamento inicial, indagava-me sobre como era possvel

aglutinar, em um mesmo local, linhas comerciais e de servios to diferentes, que iam

desde barbeiros, sapateiros e abatedouros at lojas de grife, alm de grandes redes de

fast food.

A localmente conhecida rua da feira (Rua Joo Caetano) se destaca pelo

comrcio de txteis, contando com muitas lojas conhecidas no setor varejista. Alm dos

inmeros e variados estabelecimentos comerciais, a rua apresenta uma grande

concentrao de ambulantes em toda a sua extenso, que destinada, exclusivamente,

ao fluxo de pessoas (Fotografia 1). Quando andava por essa rua, ficava sem saber