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PAULA TAVARES ENTRE LUZ E SOMBRA (A Leopold Sédar Senghor) A sombra desliza por detrás dos vimes celebra-se a hora os mortos abandonam os vivos para viver em paz por entre as veias finas da terra. Acendo com as mãos das mães a candeia antiga de óleo de palma A serpente do lugar dorme sobre seus ovos de vida Os guardiães das fontes preparam a madrugada enquanto as mulheres dos clãs de cima provam a comida da noite e velam pelo fogo das oferendas. Uma antiga fúria oferece a fórmula limpa as palavras de todas as sílabas mortas. Regressa a velha canção serere de seda e sombra como o silêncio das mães. O nó da voz atravessou a vida sustenta a metade da terra onde deslizam as sombras por detrás dos vimes Celebra-se então a hora os mortos abandonam os vivos entre sombra e luz nas veias finas da terra. *** BOI À VELA Os bois nascidos na huíla são altos, magros navegáveis de cedo lhes nascem cornos

TAVARES, Paula - Poesias

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  • PAULA TAVARES ENTRE LUZ E SOMBRA

    (A Leopold Sdar Senghor)

    A sombra desliza

    por detrs dos vimes

    celebra-se a hora

    os mortos abandonam os vivos

    para viver em paz

    por entre as veias finas da terra.

    Acendo com as mos das mes

    a candeia antiga de leo de palma

    A serpente do lugar dorme

    sobre seus ovos de vida

    Os guardies das fontes

    preparam a madrugada

    enquanto as mulheres dos cls

    de cima

    provam a comida da noite

    e velam pelo fogo

    das oferendas.

    Uma antiga fria oferece

    a frmula

    limpa as palavras

    de todas as slabas mortas.

    Regressa a velha cano serere

    de seda e sombra

    como o silncio das mes.

    O n da voz atravessou a vida

    sustenta a metade da terra

    onde deslizam as sombras

    por detrs dos vimes

    Celebra-se ento a hora

    os mortos abandonam os vivos

    entre sombra e luz

    nas veias finas da terra.

    ***

    BOI VELA

    Os bois nascidos na hula

    so altos, magros

    navegveis

    de cedo lhes nascem

    cornos

  • leite

    cobertura

    os cornos so volantes

    indicam o sul

    as patas lavram o solo

    deixando espao para

    a semente

    a palavra

    a solido

    ***

    ALPHABETO

    Dactilas-me o corpo

    de A a Z

    e reconstris

    asas

    seda

    puro espanto

    por debaixo das mos

    enquanto abertas

    aparecem, pequenas

    as cicatrizes

    ***

    Chorar no chorar

    a plancie fica na mesma

    PROVRBIO CABINDA

    colonizmos a vida

    plantando

    cada um no mar do outro

    as unhas da distncia da palavra da loucura

    enchendo de farpas a memria

    preenchemos os dias de vazio

    no alto destes muros

    muito brancos

    duas bandeiras velhas

    a meia-haste

    sadam-se, solenes

    ***

    Perguntas-me do silncio eu digo

    meu amor que sabes tu

    do eco do silncio

    como podes pedir-me palavras

    e tempo

  • se s o silncio permite

    ao amor mais limpo

    erguer a voz

    no rumor dos corpos

    ***

    MUKAI (2)

    O ventre semeado

    desgua cada ano

    os frutos tenros

    das mos

    ( feitio)

    nasce

    a manteiga

    a casa

    o penteado

    o gesto

    acorda a alma

    a voz

    olha pra dentro do silncio milenar.

    ***

    AMARGOS COMO OS FRUTOS

    Dizes-me coisas to amargas

    como os frutos KWANYAMA

    Amado, porque voltas

    com a morte nos olhos

    e sem sandlias

    como se um outro te habitasse

    num tempo

    para alm

    do tempo todo

    Amado, onde perdeste tua lngua de metal

    a dos sinais e do provrbio

    com o meu nome inscrito

    Onde deixaste a tua voz

    macia de capim e veludo

    semeada de estrelas

    Amado, meu amado

    o que regressou de ti

    a tua sombra

    dividida ao meio

    um antes de ti

  • as falas amargas

    como os frutos

    ***

    VIAGEM

    Preparei-te na pedra da casa

    asas do pssaro Kalulu

    com pedaos de rvores destroadas pelos raios

    e resina quente.

    Chamei a metade gmea do esprito

    para te passar remdios

    da cabea aos ps.

    No fundo de meu corpo perfeito

    escondi

    pedaos de argila e feitios fortes.

    Em cada uma das doze cabaas da origem

    deitei o vinho dos votos

    um pano novo da costa

    trs missangas azuis

    e cera da colmeia menor.

    Todos os dias conservei aceso o fogo sagrado

    Na hora dos fantasmas

    o vento diz-me a tua voz

    a voz das viagens

    sem regresso.

    ***

    TECIDOS

    Meu corpo

    um tear vertical

    onde deixaste cruzadas

    as cores da tua vida: duas faixas um losango

    marcas da peste.

    Meu corpo

    uma floresta fechada

    onde escolheste o caminho

    Depois de te perderes

    guardaste a chave e o provrbio.

    ***

    O CERCADO

    De que cor era o meu cinto de missangas, me

  • feito pelas tuas mos

    e fios do teu cabelo

    cortado na lua cheia

    guardado do cacimbo

    no cesto tranado das coisas da av

    Onde est a panela do provrbio, me

    a das trs pernas

    e asa partida

    que me deste antes das chuvas grandes

    no dia do noivado

    De que cor era a minha voz, me

    quando anunciava a manh junto cascata

    e descia devagarinho pelos dias

    Onde est o tempo prometido pra viver, me se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera

    pra l do cercado ***

    No digo a palavra mesmo que o musgo Nasa na tua sede

    Os olhos brilhem de sono antigo

    No, no digo a palavra

    Mesmo que seja tua a casa

    A palmeira, a esteira, o cho dos dois

    No, no me pea a palavra

    Essa que abre o cofre

    A montanha e as outras rvores

    De mim s tens o silncio

    O sono desacordado das horas

    Infinitas horas

    Pudesse eu abrir os lbios

    E a palavra simples

    A do verso e da gua

    Soaria contra a parede

    ***

    Fosse urdu a minha lngua

    E o mais antigo som

    Encheria de eco

    O corao

    Fosse msica a minha lngua

    E voariam pssaros

    Do meu peito e minha rvore

  • Fosse dana a minha lngua

    E meu corpo do vime

    Saberia a dobra