22
RDS VIII (2016), 1, 247-268 Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato de mútuo bancário – Especial análise da Carta Circular do Banco de Portugal n.º 26/2015/DSC DR.ª. NÉLIA CARDOSO * 1 Sumário: 1. Introdução. 2. Carta Circular do Banco de Portugal n.º 26/2015/DSC – O caso em estudo. 3. A natureza jurídica do contrato de mútuo bancário: 3.1. O contrato de mútuo bancário é um contrato típico? 4. Sobre as taxas de juro: que tipologias existem?: 4.1. O que são as taxas de juro Euribor? 5. Ainda sobre a Carta Circular n.º 26/2015/ DSC: Exemplos de decisões de outros reguladores. 6. Tudo visto, qual deverá ser a posição sobre a decisão do Banco de Portugal contida na Carta Circular n.º 26/2015/DSC?: 6.1. Análise de doutrina e jurisprudência; 6.2. A onerosidade do contrato de mútuo ban- cário, a variação das taxas de juro e os riscos próprios do contrato; 6.3. A onerosidade do contrato de mútuo bancário: uma necessidade permanente?; 6.4. Argumentos adicionais: aplicação do regime de alteração substancial das circunstâncias entre as partes. 7. Conclusão. 1. Introdução O financiamento externo das sociedades comerciais tem vindo a evoluir ao longo dos anos, cada vez mais se afastando mais da fórmula outrora mais comum: a obtenção de empréstimos bancários. No entanto, o desenvolvimento acentuado das modalidades de financiamento externo não afastou o mútuo bancário do papel central de tal equação. Por esse motivo, o estudo da descida das taxas de juro variáveis por efeitos da alteração dos seus indexantes continua a ser da maior relevância, tendo sempre como pano de fundo o equilíbrio de forças entre o devedor e o credor e as consequências para ambas as partes. * As opiniões transmitidas no presente artigo são pessoais e não vinculam quaisquer entidades com que colabora ou tenha colaborado no passado. Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 247 Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 247 28/07/16 16:36 28/07/16 16:36

Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato de mútuo bancário – Especial análise da Carta Circular do Banco de Portugal n.º 26/2015/DSC

DR.ª. NÉLIA CARDOSO* 1

Sumário: 1. Introdução. 2. Carta Circular do Banco de Portugal n.º 26/2015/DSC – O caso em estudo. 3. A natureza jurídica do contrato de mútuo bancário: 3.1. O contrato de mútuo bancário é um contrato típico? 4. Sobre as taxas de juro: que tipologias existem?: 4.1. O que são as taxas de juro Euribor? 5. Ainda sobre a Carta Circular n.º 26/2015/DSC: Exemplos de decisões de outros reguladores. 6. Tudo visto, qual deverá ser a posição sobre a decisão do Banco de Portugal contida na Carta Circular n.º 26/2015/DSC?: 6.1. Análise de doutrina e jurisprudência; 6.2. A onerosidade do contrato de mútuo ban-cário, a variação das taxas de juro e os riscos próprios do contrato; 6.3. A onerosidade do contrato de mútuo bancário: uma necessidade permanente?; 6.4. Argumentos adicionais: aplicação do regime de alteração substancial das circunstâncias entre as partes. 7. Conclusão.

1. Introdução

O fi nanciamento externo das sociedades comerciais tem vindo a evoluir ao longo dos anos, cada vez mais se afastando mais da fórmula outrora mais comum: a obtenção de empréstimos bancários. No entanto, o desenvolvimento acentuado das modalidades de fi nanciamento externo não afastou o mútuo bancário do papel central de tal equação. Por esse motivo, o estudo da descida das taxas de juro variáveis por efeitos da alteração dos seus indexantes continua a ser da maior relevância, tendo sempre como pano de fundo o equilíbrio de forças entre o devedor e o credor e as consequências para ambas as partes.

* As opiniões transmitidas no presente artigo são pessoais e não vinculam quaisquer entidades com que colabora ou tenha colaborado no passado.

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 247Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 247 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 2: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

248 Nélia Cardoso

O contrato de mútuo bancário tem sido unanimemente classifi cado pela doutrina e jurisprudência como um contrato de natureza onerosa. No entanto, existem situações em que a onerosidade de tal relação jurídica pode ser posta em causa, nomeadamente, face a uma descida abrupta de um indexante da taxa de juro que não seja diretamente controlado pelas partes. Tal situação tem vindo a ocorrer na Europa do Sul, devido à descida acentuada da taxa Euribor, a qual é o indexante mais utilizado em tais territórios, nomeadamente em Portugal.

O presente estudo tem como escopo analisar a questão da natureza onerosa do mútuo bancário, tendo, para tanto, em especial atenção a mais recente deci-são do Banco de Portugal sobre a matéria, tomada por via da Carta Circular do Banco de Portugal n.º 26/2015/DSC.

2. Carta Circular do Banco de Portugal n.º 26/2015/DSC – O caso em estudo

A decisão do Banco de Portugal contida na Carta Circular n.º 26/2015/DSC veio balizar a atividade das instituições concedentes de crédito no que respeita à aplicação do indexante taxa de juro Euribor nos mútuos bancários quando esta seja negativa.

Através desta comunicação, o Banco de Portugal transmitiu que “As insti-tuições de crédito devem respeitar as condições estabelecidas para a determinação da taxa de juro nos contratos de crédito e de fi nanciamento celebrados com os respetivos clien-tes,” pelo que “nos contratos de crédito e de fi nanciamento em curso, não podem ser introduzidos limites à variação do indexante que impeçam a plena produção dos efeitos decorrentes da aplicação desta regra legal.”. O Banco de Portugal esclareceu ainda que “As orientações constantes dos pontos anteriores devem ser observadas por todas as entidades habilitadas a exercer, a título profi ssional, a atividade de concessão de crédito em Portugal, sendo aplicáveis a todos os contratos de crédito e de fi nanciamento celebrados com consumidores e com outros clientes bancários, incluindo, designadamente, contratos de locação fi nanceira e de factoring.”.

3. A natureza jurídica do contrato de mútuo bancário

Enquanto fi gura jurídica, o contrato de mútuo bancário deve ser, em pri-meiro lugar, analisado com base nos preceitos referentes ao mútuo civil.

O mútuo civil, de acordo com o artigo 1142.º do Código Civil, é o con-trato “(…) pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, fi cando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 248Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 248 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 3: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato de mútuo bancário 249

Tal signifi ca que, uma vez tendo sido celebrado o contrato e entregue a coisa mutuada ao mutuário, o mutuante transfere a propriedade da coisa para o mutuário, deixando de ser o seu proprietário.

Como contrapartida de tal transferência de propriedade da coisa mutuada, normalmente (i) existe uma obrigação de pagamento de uma retribuição do mutuário perante o mutuante (a qual não tem lugar nos contratos de mútuo civil gratuitos) e (ii) surge a obrigação de restituir outra coisa do mesmo género e qualidade (e não a obrigação de restituir a coisa mutuada).

Nos termos do artigo 1149.º do Código Civil, quando o mútuo, sendo civil, for referente a outra coisa que não dinheiro, a obrigação supra referida em (ii) pode ser substituída pelo pagamento do valor da coisa (se, devido a uma causa que não lhe seja imputável, a retribuição se torne impossível ou extrema-mente difícil para o mutuário).

Adicionalmente, e ainda de modo a procurar escrutinar qual seja a con-creta natureza jurídica do mútuo bancário, deveremos analisar as disposições do Código Comercial sobre a matéria, nomeadamente, os seus artigos 394.º, 395.º e 396.º relativos ao “empréstimo comercial”. De acordo com o artigo 394.º do Código Comercial, um empréstimo será qualifi cado como comercial quando “…a cousa cedida seja destinada a qualquer acto mercantil”, ou seja, quando o mutuário pretenda afetar o objeto mutuado à sua atividade comercial.

O mútuo comercial tem, essencialmente, as seguintes diferenças relativa-mente ao mútuo civil: (i) é sempre retribuído (de acordo com o artigo 395.º do Código Comercial e com o artigo 1145.º do Código Civil) e (ii) admite a sua comprovação por qualquer meio, independentemente do seu valor (artigo 396.º do Código Comercial).

Face aos argumentos ora enunciados e às similitudes/diferenças do mútuo bancário face ao mútuo civil, a doutrina e jurisprudência dividem-se quanto à questão relativamente a se contrato de mútuo bancário está ou não tipifi cado legalmente. É que, na verdade, o mútuo bancário assume-se como uma fi gura jurídica de inequívoca aceitação social, mas cuja análise legal terá sempre de ser efetuada por via da interpretação dos preceitos contidos na lei civil (Capítulo VII, do Título II, do Livro II do Código Civil, a 1142.º a 1151.º) e comercial sobre o mútuo (artigos 362.º, 394.ºa 396.º do Código Comercial), adaptados à realidade concreta bancária.

Damos ainda nota de que, no que à presente análise diz respeito, o contrato de abertura de crédito deverá ser considerado como um subtipo de contrato de mútuo bancário (independentemente do que se entenda ser a natureza deste último). Tal aproximação é justifi cada, quer pelas suas características, quer pelo facto de o Banco de Portugal não ter efetuado qualquer tipo de diferenciação relativo a este subtipo de contrato de fi nanciamento na sua Carta Circular

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 249Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 249 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 4: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

250 Nélia Cardoso

n.º 26/2015/DSC de 30 de março. Assim, face à falta de especifi cidade dos contratos de abertura de crédito quanto à presente matéria, deve entender-se que a nossa análise se estende igualmente a tal fi gura.

3.1. Natureza gratuita ou onerosa do contrato de mútuo bancário

No que respeita ao contrato de mútuo bancário, poderiam ser abordadas e aprofundadas diversas questões, como sejam as referentes (i) a se o contrato de mútuo bancário é um contrato típico, (ii) à análise do modo de formação do contrato de mútuo bancário e/ou ainda serem efetuadas algumas notas adicio-nais relativas (iii) à forma do contrato de mútuo bancário. No entanto, uma vez que tais questões se mostrariam inócuas no que à temática ora sob escrutínio diz respeito, iremos concentrar-nos no aspeto mais relevante, ou seja, na questão de perceber se os contratos de mútuo bancário terão de ser necessariamente onerosos.

No que concerne à gratuitidade ou onerosidade do contrato de mútuo, terá de indicar-se que o artigo 1145.º do Código Civil estabelece que o mútuo civil possa ser gratuito ou oneroso, presumindo-se a sua onerosidade. Por sua vez, no que respeita ao mútuo mercantil, regulado por via do Código Comercial, estabelece o artigo 395.º deste diploma que o empréstimo mercantil deve ser sempre retribuído, assim se diferenciado claramente, no que ao presente ponto diz respeito, do mútuo civil. Por sua vez, o artigo 362.º do Código Comercial aproxima as operações bancárias às operações comerciais, motivo pelo qual terão de se entender como extensíveis ao mútuo bancário as conclusões que a este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1

Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao contrário do contrato de mútuo civil, é um contrato típico no que respeita a um dos sujeitos outor-gantes do mesmo. Tal signifi ca que o credor é, invariavelmente, entidade habi-litada para a concessão de mútuos bancários.

Ora, em princípio, qualquer entidade habilitada para a concessão de mútuos bancários tem a natureza jurídica societária.

1 A este propósito, vide o disposto no artigo 362.º do Código Comercial sobre a natureza comer-cial das operações de banco “São comerciais todas as operações de bancos tendentes a realizar lucros sobre numerário, fundos públicos ou títulos negociáveis, e em especial as de câmbio, os arbítrios, emprésti-mos, descontos, cobranças, aberturas de créditos, emissão e circulação de notas ou títulos fi duciários pagáveis à vista e ao portador.”

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 250Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 250 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 5: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato de mútuo bancário 251

A natureza jurídica societária do credor não é despida de consequências, tendo como principal consequência, no que ao presente ponto diz respeito, o facto de qualquer sociedade comercial ter como escopo o lucro2.

Assim, muito embora o fi m lucrativo das sociedades comerciais não seja impeditivo que as mesmas tenham legitimidade para, validamente, celebrar negócios jurídicos gratuitos (são exemplos típicos as liberalidade com vista à promoção das sociedades junto dos seus clientes), a verdade é que, enquanto base da sua atividade, as entidades concedentes de crédito procuram obter o lucro como prossecução do seu fi m societário.

Por outro lado, assume-se como decorrência lógica do tipo de atividade das entidades concedentes de crédito que a concessão de empréstimos/mútuos constitui parte relevante da sua atividade comercial, sendo portanto uma ati-vidade essencial com vista ao seu fi m lucrativo. Ora, os empréstimos/mútuos, para que possam ser lucrativos, terão de ser onerosos. Por sua vez, e tal como já supra foi referido, o mútuo bancário é classifi cado como um ato de comércio e, por esse motivo, oneroso por natureza. Como tal, a obrigação de restituição do capital mutuado pelo mutuário surge acrescida da obrigação de restituir os correspondentes juros.

De tal forma a onerosidade é uma característica essencial do contrato de mútuo bancário que Engrácia Antunes3 refere que deve ser qualifi cado como «empréstimo» ou mútuo bancário “o contrato pelo qual o banco (mutuante) entrega ou se obriga a entregar uma determinada quantia em dinheiro ao cliente (mutuário), fi cando este obrigado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (“tantundem”), acrescido dos correspondentes juros”.

No contrato de mútuo bancário, tal onerosidade é conseguida por via da cobrança de juros remuneratórios pela utilização do capital (ou seja, a cobrança de juros tem como pressuposto básico a utilização de capital e a sua remunera-ção – os quais na sua manifestação mais lata, estão previstos nos artigos 559.º a 561.º do Código Civil).

A este propósito, deverá referir-se que as taxas de juros bancários, desde 1993, e nos termos do n.º 2 do Aviso n.º 3/93, de 20 de maio, do Banco de Portugal, estão praticamente liberalizadas, nos seguintes termos:

“São livremente estabelecidas pelas instituições de crédito e sociedades fi nanceiras as taxas de juro das suas operações, salvo nos casos em que sejam fi xadas por diploma legal”.

2 Vide, a este propósito, o artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais.3 Engrácia Antunes, Os Contratos Bancários, Volume II, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, separata, Coimbra: Almedina, 2011, p. 96.

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 251Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 251 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 6: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

252 Nélia Cardoso

No entanto, tal liberdade de fi xação da taxa de juro deve ter como seu limite e corolário o sacrifício que o mutuante tem de efetuar para mutuar a coisa, devendo ser proporcional ao mesmo.

É neste sentido que, muito embora seja entendimento pacífi co que a one-rosidade do mútuo é conseguida por via da cobrança de juros pelo mutuante, existem normas jurídicas espalhadas por vários diplomas legais (desde o Código Civil, passando pelos regimes específi cos dos contratos de crédito ao consumo) com o propósito único e específi co de proibir a cobrança de juros usurários, ou seja, juros que não traduzem uma remuneração proporcional ao serviço prestado pelo mutuante.

4. Taxas de juro: que tipologias existem?

As taxas de juro, tal como defi nidas pelo Código Civil, são formas de remuneração de capital.

O propósito da sua existência visa conferir alguma estabilidade no que res-peita ao cálculo de remuneração do capital, dado que a mesma se traduz numa percentagem que é defi nida por referência ao valor do objeto do mútuo (no mútuo bancário, o capital) e que remunera a disponibilização do mesmo, sendo calculado em função do tempo da disponibilização.

Sendo este o princípio, a evolução dos tempos conduziu a que a criativi-dade no estabelecimento de taxas de juros se cifrasse em dois modelos: taxas de juro fi xas e taxas de juro variáveis.

As taxas de juro fi xas, conforme a sua denominação sugere, consistem em taxas de juro que são determinadas entre o devedor e o credor para o (ou para determinado) período contratual, pelo que a remuneração do capital é calcu-lada tendo por base sempre o mesmo valor percentual de taxa.

Já no que diz respeito às taxas de juro variáveis, o propósito das mesmas é conferir à remuneração do credor uma certa aleatoriedade, a qual poderá ditar o benefício do credor (no caso de a taxa subir) ou o benefício do devedor (quando a taxa desça).

Visto este ponto, a pergunta seguinte surge naturalmente: como é que as taxas de juro variáveis sobem ou descem, ou seja, qual é a variável responsável por tal subida ou descida?

A subida ou descida está normalmente associada à volatilidade de um inde-xante, que ambas as partes confi am como neutro (ou imparcial) e ao qual esco-lhem submeter o seu destino no que ao presente “jogo” diz respeito.

O indexante mais utilizado em Portugal corresponde à taxa Euribor, nas suas diversas maturidades, a qual descreveremos infra com maior detalhe (abar-

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 252Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 252 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 7: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato de mútuo bancário 253

cando o estudo do funcionamento do seu método de cálculo e a origem das suas variações ao longo do tempo).

Ainda relativamente às taxas de juro variáveis, e de modo a acautelar uma eventual descida da componente indexante da taxa de juro, é comum que as entidades concedentes de crédito prevejam contratualmente a existência de uma margem fi xa adicional de lucro (“spread”). A margem adicional de lucro (“spread”) é um valor que é adicionado à taxa de juro indexante e tem o único propósito de garantir uma margem adicional de lucro fi xa para a entidade con-cedente de crédito (para além da margem de risco por si incorrida por via da indexação parcial da taxa de juro à variação de um indexante).

Por último, refi ra-se ainda que, como instrumento comummente associado às taxas de juro variáveis estão alguns produtos de cobertura de risco da variação das taxas de juro variáveis, sendo os mais comuns os swaps de taxa de juro. Os swaps de taxa de juro têm como escopo efetuar contratualmente uma “aposta” (ainda que seja dúbia a sua qualifi cação como contratos de aposta) relativa à variação da taxa de juro. Habitualmente, tal “aposta” ocorre da seguinte forma: o credor “aposta” na descida da taxa de juro e, portanto, acorda que, se a taxa subir acima do valor “x”, o devedor apenas paga a taxa no valor “x”. O deve-dor, por sua vez, “aposta” na subida da taxa de juro, pelo que acorda que, caso a taxa suba acima do valor “x”, apenas paga o valor “x”. Nestes termos, a possi-bilidade que este tipo de contratos oferece é a de transformar uma taxa de juro variável numa taxa de juro fi xa, com as decorrentes perdas e ganhos de valor dos contratantes do swap dependentes da variação da taxa de juro indexante e das respetivas “apostas”. Voltaremos ao tema dos contratos de swap das taxas de juro, a propósito da análise de um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sobre a distribuição do risco.

4.1. O que são as taxas de juro Euribor?

As taxas Euribor são taxas de referência da zona monetário Euro, a par, designadamente, da taxa EONIA4 e dos swaps da taxa EONIA.

4 De acordo com a defi nição do Banco de Portugal, disponível em www.bportugal.pt a “A taxa EONIA é a taxa de juro de referência do mercado monetário do euro para o prazo overnight. A taxa EONIA é calculada diariamente como uma média ponderada das taxas de juro das operações de concessão de crédito efetuadas no mercado interbancário do euro sem garantia pelo prazo overnight, nos países pertencentes à União Europeia e à Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA). As contribuições diárias são fornecidas por um painel de bancos de referência do mercado monetário do euro. A taxa EONIA é calculada com a cola-boração do Banco Central Europeu e a entidade responsável pela gestão desta taxa é a European Banking Federation (EBF).”

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 253Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 253 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 8: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

254 Nélia Cardoso

De acordo com a defi nição constante do sítio da internet do Banco de Por-tugal “As taxas EURIBOR são as taxas de juro de referência do mercado monetário do euro, para os prazos compreendidos entre 1 semana e 1 ano, correspondendo às taxas oferecidas, para os diferentes prazos, por um “prime bank” a outro “prime bank” no mercado interbancário do euro para a concessão de crédito sem garantia.

As taxas EURIBOR são calculadas diariamente como uma média das contribuições diárias de um painel de bancos de referência do mercado monetário do euro. A entidade responsável pela gestão destas taxas é a European Banking Federation (EBF).”5

A informação supra mais não signifi ca que as taxas Euribor são essencial-mente calculadas a partir das taxas bancárias para o fi nanciamento interbancário, pelo que cada uma das suas fl utuações mais não espelha do que as condições em que os Bancos se fi nanciam entre si.

Tais taxas de juro interbancário, por sua vez, são primariamente infl uen-ciadas pela taxa de juro do Banco Central Europeu, o qual atua como entidade fi nanciadora dos bancos na zona euro. Ao efetuar tal tarefa, cobra juros aos ban-cos, que, por sua vez, refl etem o custo do seu fi nanciamento junto do Banco Central Europeu nas taxas de juro cobradas aos restantes bancos nos emprésti-mos interbancários. É por este motivo que, quando o Banco Central Europeu, com o propósito de estimular a zona Euro, efetuou um corte às suas próprias taxas de depósito, as taxas de juro interbancárias começaram a cair rapidamente, levando a Euribor para terreno negativo. Para tanto, contribuiu igualmente o programa de compra de títulos lançado pelo Banco Central Europeu em março de 2015, o qual conduziu a uma ainda mais abrupta descida das taxas de juro.

Assim, podermos concluir que as taxas de juro Euribor são essencialmente determinadas pela oferta e procura de liquidez entre os bancos e pela taxas de juro ofi cial do Banco central Europeu. Devemos, no entanto, salientar que existem outros fatores com infl uência na taxa de juro Euribor, tal como o cres-cimento económico, a infl ação, o nível de solvabilidade dos bancos, a confi ança no sistema fi nanceiro e até as próprias expectativas relativamente à evolução da taxa.

A Euribor (nas suas diferentes maturidades) é frequentemente utilizada como taxa indexante de referência (sendo um dos elementos da taxa de juro oferecida) nos mútuos oferecidos na zona Euro, especialmente na zona sul da Europa (Espanha, Portugal e Itália).

A título de exemplo, em Espanha, a grande maioria dos fi nanciamentos hipotecários têm as taxas de juro dos seus empréstimos indexados à taxa Euribor a 12 (doze) meses.

5 Informação disponível em www.bportugal.pt.

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 254Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 254 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 9: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato de mútuo bancário 255

Já em Portugal, por sua vez, as taxas Euribor mais usuais para efeito do cálculo das taxas de juro são as taxas a 3 (três) e 6 (seis) meses, sendo que mais de 90% dos 2,3 milhões de hipotecas que existem em Portugal têm associadas taxas de juro variáveis indexadas à Euribor6.

Também em Itália cerca de metade dos fi nanciamentos hipotecários têm taxas de juro variáveis indexadas à Euribor7.

Na Alemanha, por sua vez, as taxas de juro aplicadas aos seus fi nanciamen-tos são, na sua maioria, fi xas8.

5. Ainda sobre a Carta Circular n.º 26/2015/DSC: exemplos de deci-sões de outros reguladores

Não sendo a taxa Euribor um indexante largamente utilizado nos países da Europa do Norte e do Centro, o exemplo mais completo sobre esta matéria surge-nos da nossa vizinha Espanha. Embora não tenha havido, nos tempos mais recentes, uma decisão do Banco de Espanha sobre esta matéria (um porta--voz do mesmo indicou estar a estudar a questão), o regulador ora mencionado já havido emitido, em junho de 2014, uma recomendação no sentido de que “a natureza do mútuo não permite que o devedor se converta, em momento algum, em credor” (tradução livre)9.

Verifi camos, assim, que o entendimento do regulador espanhol vertido sobre a matéria é diametralmente oposto ao entendimento do regulador por-tuguês, pelo que importa agora verifi car quais os argumentos de um lado e de outro (sendo que é importante referir que o Banco de Espanha veio já indicar que tal entendimento foi conferido a propósito de um caso concreto, pelo que não deve, sem mais, ser aplicado em abstrato).

Neste sentido, comecemos por citar duas opiniões emitidas em Espanha relativas a tal entendimento, as quais, mais uma vez, se dividem.

Assim, de um lado temos Franciso Rosales, perito independente do site iArrojo.com, o qual entende que não é possível que uma taxa de juro negativa conduza a que o devedor hipotecário deva ser pago, com o argumento de que

6 Informação referente a 2015, de acordo com os dados disponibilizados pelo Wall Street Journal, disponiveis em www.br.wsj.com.7 De acordo com dados da WSF em www.wsj.com apud Mutuionline.8 Igualmente de acordo com os dados disponibilizados pelo Wall Street Journal, disponíveis em www.br.wsj.com.9 A este propósito, ver notícia do jornal El Mundo, disponível em http://www.elmundo.es/economia/2015/03/02/54f30bf7ca474174358b4580.html.

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 255Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 255 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 10: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

256 Nélia Cardoso

“independente do que seja estabelecido por via da escritura de empréstimo hipotecário, na circunstância hipotética de a soma da taxa diferencial da Euribor dar um resultado negativo, simplesmente o mútuo passaria a ser um mútuo gratuito, e o devedor passaria a ter a obrigação de apenas devolver o capital. Uma taxa de juro negativa é equivalente a uma depreciação monetária e não pareceria razoável a ninguém que, se se desvalorizasse a moeda com a qual se deveria pagar o mútuo, deveria correspondentemente aumentar-se o capital”10 (tradução livre).

Com opinião inversa, encontramos o jurista e também colaborador do site iAhorro.com Fernando Zunzunegui, o qual entende que “não é lícito amputar do contrato a fórmula diferencial quando a evolução do mercado determina a obrigação de pagar juros negativos aos clientes, como pretende o Banco de Espanha para justifi car que as entidades não tenham de pagar tais juros.”11 (tradução livre).

Por outro lado, em Itália, os Bancos indicam estar a aguardar indicação da sua associação local, dado que os contratos não preveem o que deva acontecer quando as taxas indexantes desçam abaixo de zero.

Adicionalmente, indicamos ainda que da Suíça surgem igualmente exem-plos dignos de estudo (não obstante não ser relacionados com a taxa indexante Euribor) onde, tendo o Banco Central Suíço conduzido as taxas indexantes para terreno negativo, tornou-se comum que os depositantes pagassem taxas de juro pela manutenção dos seus depósitos – algo que, em Portugal, apenas foi impedido por via do n.º 4 do artigo 3.º do Aviso n.º 6/2009, de 11 de agosto, do Banco de Portugal, o qual impediu a aplicação de taxas de juro negativas nos depósitos bancários12.

6. Tudo visto, qual deverá ser a posição sobre a decisão do Banco de Portugal contida na Carta Circular n.º 26/2015/DSC?

6.1. Análise de doutrina e jurisprudência

A este propósito, cremos que a discussão terá de começar, precisamente, nos termos em que surgiu em Espanha, ou seja, a variação da taxa de juro para terreno negativo coloca em causa a onerosidade do contrato de mútuo bancário?

10 Ver igualmente citação original em http://www.lne.es/fi nanzas-personales/2015/05/15/euribor-negativo-cobrar-credito/1757202.html.11 Ver igualmente citação original em http://www.lne.es/fi nanzas-personales/2015/05/15/euribor-negativo-cobrar-credito/1757202.html.12 Disponível na página da internet do Banco de Portugal em http://www.bportugal.pt.

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 256Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 256 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 11: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato de mútuo bancário 257

Sendo a doutrina omissa a este respeito, cremos que a fonte de raciocínio mais aproximada para esta matéria terá que ver com a recente discussão sobre os contratos de swap de taxa de juro e a decorrente aceitação/rejeição do risco da variação da mesma pelas partes na celebração de tais contratos.

Efetivamente, a disciplina referente aos contratos de swap de taxa de juro afi gura-se, de entre as matérias similares à presente, aquela que mais atenção recebeu da jurisprudência nacional.

Assume especial relevância o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1387/11.5TBBCL.G1.S1 – 7.ª Secção, com o Relator Granja da Fonseca13 (de ora em diante, o “Acórdão”), o qual analisaremos detalhadamente infra.

O que aí estava em causa, de forma muito resumida, era perceber se a alte-ração anormal das circunstâncias (da taxa de juro) em que as partes fundaram a decisão de contratar e que tornava o contrato mais oneroso para uma das partes, permitiria fundar o direito à resolução do contrato.

Como o contrato de swap que ora está em causa é precisamente um swap de taxa de juro e que, nesses termos, está intrinsecamente relacionado com a subida/descida da mesma, assume-se como um indicador razoável para iniciar-mos a nossa análise.

Nesse âmbito, o que foi essencialmente debatido foi o seguinte: de um lado, tínhamos uma parte que considerava que a referida excessiva onerosi-dade não estava coberta pelos riscos próprios do contrato e que, portanto, na qualidade de autora da ação, reclamava o seu direito de resolução do contrato com base no regime da alteração das circunstâncias previsto no artigo 437.º do Código Civil14.

Do outro lado, tínhamos o réu que invocava que, pela própria natureza do contrato de swap (enquanto contrato aleatório), as alterações ocorridas e a one-rosidade daí decorrente estavam cobertas pelos riscos próprio do contrato (pelo que não poderiam ser consideradas uma alteração anormal das circunstâncias nos termos previstos na lei civil).

Têm existido decisões jurisprudenciais no sentido de admitir a resolução de contratos aleatórios com base no regime da alteração anormal das circunstân-

13 Disponível em www.dgsi.pt. 14 Recorde-se, a este propósito, a previsão do Código Civil: “SUBSECÇÃO VII – Resolução ou modifi cação do contrato por alteração das circunstâncias – Artigo 437.º – (Condições de admissibilidade)1. Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anor-mal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modifi cação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.2. Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando aceitar a modifi cação do contrato nos termos do número anterior.”

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 257Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 257 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 12: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

258 Nélia Cardoso

cias, assentes (i) no facto de a referida alteração ser manifestamente excecional, e (ii) da alteração em causa exceder os riscos próprios do contrato.

Por sua vez, no que respeita ao regime legal que regula a alteração das cir-cunstâncias, há interpretações doutrinárias no sentido de interpretar e limitar o escopo do artigo 437.º do Código Civil, dos quais destacamos o entendimento de Almeida e Costa15:

a) Exige-se, antes de mais, que a alteração a ter por relevante diga respeito a circunstâncias em que se alicerçou a decisão de contratar.(...)

b) É necessário que essas circunstâncias fundamentais hajam sofrido uma alteração anormal.(...)

c) Torna-se indispensável, além disso, que a estabilidade do contrato envolva lesão para uma das partes.(...)

d) Ainda forçoso se mostra que tal manutenção do contrato ou dos seus termos afete grave-mente os princípios da boa fé. (...)

e) Também é necessário que a situação não se encontre abrangida pelos riscos próprios do contrato.(...)

f) Exige-se, por último, a inexistência de mora do lesado.

Considerando as diferentes teses em confronto, em primeiro lugar, o Supremo Tribunal de Justiça analisou se teria ocorrido uma alteração anormal das circunstâncias após a celebração do contrato de swap de taxa de juro e por referência a essa data.

Adicionalmente, num segundo momento, procurou o Supremo Tribunal de Justiça verifi car se, ainda que se considerasse existir a referida alteração das circunstâncias, qual seria a sua extensão e se a mesma poderia ou não fundar a resolução do contrato pela parte autora na ação.

A situação referente aos contratos de swap de taxa de juro torna-se tão mais difícil de analisar na medida em que, nos contratos aleatórios, há um elemento essencial a ter em consideração, que é o facto de, por natureza, os seus termos dependerem de um facto futuro e incerto.

Efetivamente, a doutrina hesita em afi rmar a possibilidade de aplicar o regime da alteração de circunstância aos contratos aleatórios. Carvalho Fernan-des defende que não existem razões sufi cientes que justifi quem a exclusão, em absoluto, da aplicação do regime dos artigos 437.º a 439.º do Código Civil aos contratos aleatórios16. No mesmo sentido, Vaz Serra salienta que, embora seja

15 Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª ed., Coimbra: Almedina, pp. 336 a 341.16 Carvalho Fernandes, A Teoria da Imprevisão, Lisboa: Quid Juris? – Sociedade Editora, 2001, p. 279.

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 258Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 258 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 13: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato de mútuo bancário 259

razoável a resolução por alteração das circunstâncias, a mesma será sempre mais difícil (pois as partes já contavam ou deviam contar com a alteração das cir-cunstâncias)17. Lebre de Freitas18, por seu turno, entende que não está excluída a aplicação do artigo 437º do Código Civil, aos contratos aleatórios, dado que, mesmo nesse tipo de contratos, podem verifi car-se “variações de circunstâncias de tal modo consideráveis que excedam a margem razoável de risco próprio do contrato, em medida que as partes não representaram e ponha gravemente em causa o equilíbrio contratual”.

No que ao Acórdão diz respeito, o tribunal considerou que existiu uma alteração das circunstâncias em que foi celebrado o contrato, face à ocorrên-cia de uma variação negativa da taxa de juro muito superior àquela que seria expectável.

Posteriormente, o passo seguinte foi o de perceber se a referida alteração estava ou não coberta pelos riscos próprios do contrato.

A referida análise tornou-se tanto mais complicada na medida em que a existência de risco está inerente à própria natureza do contrato.

Tal como referido acima, o entendimento da doutrina tem sido no sentido de que o risco previsto é o risco tolerável e previsível, fi cando fora do âmbito dos riscos do contrato aquele que se apresente superior a tal expectativa.

No caso em apreço no Acórdão, a variação excessiva da taxa de juro decor-rente da crise fi nanceira (a qual desceu muito abaixo daquilo que seria expec-tável fora daquele contexto) conduziu a que todas as instâncias tivessem enten-dido que a mesma não estaria coberta pelos riscos próprios do contrato, e, portanto, houvesse fundados motivos para que o contrato de swap de taxa de juro fosse resolvido.

Transpondo o que aí foi entendido para a circunstância ora em apreço, daí poderemos retirar os seguintes pilares de raciocínio:

a) De acordo com o Supremo Tribunal de Justiça, o risco próprio do con-trato de swap não compreende uma descida tão abrupta das taxas de juro.

b) Permanece a dúvida relativamente a se – devendo a análise relativa à existência de alteração das circunstâncias ser verifi cada por referência a um momento concreto –, no que respeita aos contratos celebrados a par-tir do momento em que as taxas de juro já apresentavam uma tendência

17 Vaz Serra, Resolução ou Modifi cação dos contratos por alteração das circunstâncias”, BMJ, 68 (1957), p. 332.18 Lebre de Freitas, Contrato de swap meramente especulativo – Regimes de validade e de alteração de Circunstâncias, p. 962, disponível em www.oa.pt.

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 259Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 259 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 14: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

260 Nélia Cardoso

decrescente, poderá considerar-se que não seria expectável para as partes a existência de tal descida.

c) Atenta a circunstância de o contrato de mútuo bancário, ao contrário do contrato de swap da taxa de juro, não ser um contrato aleatório por natureza, terá de entender-se que o risco próprio do contrato se traça por parâmetros mais fechados e, portanto, sob uma moldura interpretativa mais estreita.

Neste sentido, considerando a natureza onerosa – tal como já supra discu-tido – do contrato de mútuo bancário (e não aleatória como ocorre no contrato de swap), o pressuposto lógico é o de que a não onerosidade do mútuo bancário não está coberta pelos riscos próprios inerentes à natureza do contrato.

6.2. A onerosidade do contrato de mútuo bancário, a variação das taxas de juro e os riscos próprios do contrato

Se assumirmos que a não onerosidade do contrato de mútuo bancário não está coberta pelos riscos próprios do contrato, teremos de concluir que as enti-dades concedentes de crédito teriam legitimidade para invocar o regime legal da alteração substancial das circunstâncias de modo a evitar que suas taxas de juros fossem inferiores a zero.

Não obstante, não poderá deixar de se referir, a este propósito que, na prática bancária, a taxa de juro aplicável aos empréstimos/mútuos bancários, quando seja variável, resulta da soma do indexante (normalmente a taxa Euri-bor, em Portugal) com uma margem fi xa adicional de lucro (“spread”) que o Banco reserva para si.

Assim, a taxa de juro Euribor a que a Carta Circular n.º 26/2015/DSC de 30 de março do Banco de Portugal se refere constitui apenas um dos compo-nentes da taxa de juro.

Consequentemente, ainda que o indexante Euribor tenha um valor inferior a zero, uma vez que, na determinação do valor fi nal da taxa de juro, é ainda somado ao mesmo o montante da margem fi xa adicional de lucro (“spread”), a taxa de remuneração do empréstimo/mútuo bancário poderá manter-se positiva.

Tal signifi ca que, aplicando os Bancos uma taxa de margem fi xa adicional de lucro (“spread”), mesmo que o indexante seja inferior a zero, a taxa de juro poderá ser positiva pela soma dos seus componentes.

Assim, da nossa parte, cremos que a possibilidade dos Bancos considerarem que, quando o indexante fosse negativo deveria considerar-se ser zero (com base no princípio da onerosidade do contrato), peca, desde logo, por ser dema-

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 260Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 260 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 15: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato de mútuo bancário 261

siado generalista e não tomar em consideração a concreta margem fi xa adicio-nal de lucro (“spread”). Tal margem, pelo menos na generalidade dos casos, garante, por si só, a onerosidade do contrato de mútuo/empréstimo bancário.

Pondo de parte tal questão, e porque, para efeitos de análise teórica, o exemplo extremo é que permite uma melhor concretização da mesma, con-sideraremos apenas esta problemática com o pressuposto de que, mesmo mediante a aplicação da margem fi xa adicional de lucro (“spread”) em adição à taxa indexante, a taxa de juro contratada num contrato de mútuo permaneça em terreno negativo.

Nesses termos, e assumindo-se que a não onerosidade não está coberta pelos riscos próprios da natureza do contrato de mútuo, terá de considerar-se se, na excecional circunstância de a taxa de juro, somada a componente inde-xante e a componente “spread” ser inferior a zero, há argumentos jurídicos para que a mesma possa ser artifi cialmente aumentada para zero (ou melhor, para montante, ainda que infi mamente, superior a zero).

Tal possibilidade, numa análise analógica simples, seria sustentada em tudo o que foi exposto no Acórdão acima escrutinado.

No entanto, para que tal sucedesse, teríamos de assumir como bom o argu-mento de que as variações na taxa de juro acima do esperado não estão cobertas pelos riscos próprios do contrato, o que nos parece, de todo, discutível.

Na verdade, não poderemos concordar, sem mais, com o entendimento de que o risco da variação da taxa de juro – num contrato de swap de taxa de juro ou num contrato de mútuo bancário com taxa variável por via da sua indexação à variação de um indexante acordado entre as partes – não esteja coberto pelos riscos próprios do contrato.

Num contrato de swap, as partes decidiram contratar um swap de taxa de juro conscientes de que havia um risco associado às variações da taxa de juro indexante. Num contrato de mútuo bancário, é precisamente porque ambas as partes desejaram assumir o risco de variação da taxa de juro que o contrato de mútuo bancário está indexado a uma taxa de juro variável.

Assim, em ambos os contratos, as partes decidiram assumir um risco (no caso dos contratos de mútuo bancário com taxas de juro variável) ou controlar um risco (no caso da celebração de contratos de swap de taxa de juro). Tanto num tipo de contrato como noutro, o risco de subida ou descida da taxa de juro (i) não só fazia parte do contrato como (ii) se assumia como um dos elementos essenciais do mesmo.

Assim, assumindo-se que a subida e descida das taxas de juro estão com-preendidas nos riscos próprios do contrato, chegamos então à questão: poderá aceitar-se uma alteração de taxa de juro que coloque em causa a natureza one-rosa do contrato de mútuo bancário?

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 261Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 261 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 16: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

262 Nélia Cardoso

6.3. A onerosidade do contrato de mútuo bancário: uma necessidade permanente?

Chegados a este ponto, notamos que falta ainda discutir o ponto essencial, o qual consiste no seguinte: admitindo-se, como ponto assente, que o contrato de mútuo bancário é um contrato cuja natureza é onerosa (premissa que assu-mimos, considerando o exposto supra) é condição sine qua non do mesmo que este seja oneroso a todo o tempo, ou terá de considerar-se que a sua onerosi-dade terá apenas de ser tendencial?

Se considerarmos que o contrato de mútuo tem de ser oneroso a todo o tempo, a nossa resposta terá a de ser a do Acórdão analisado, ou seja, a de que os riscos próprios do contrato não comportam a variação da taxa de juro para e dentro de terreno negativo.

Mas, e se entendermos que a onerosidade permanente não é um requisito do contrato de mútuo (uma vez que o mesmo é um contrato de prestação con-tinuada), quando terá então a mesma de ser aferida?

Optando por tal visão mais ampla, surgem-nos três hipóteses:

1) Que a verifi cação da onerosidade seja efetuada no fi nal do contrato de mútuo bancário;

2) Que a verifi cação da onerosidade seja efetuada ao longo de todo o con-trato, de modo a analisar a todo o momento se, atentas as prestações já efetuadas, pode continuar a entender-se que o contrato de mútuo ban-cário é oneroso;

3) Que a verifi cação seja efetuada apenas no início do contrato.

Antes de avançar pela análise de cada uma delas, indicamos, desde já, que as duas primeiras hipóteses permitem a consideração de que a variação da taxa de juro não está coberta pelos riscos próprios do contrato de mútuo bancário.

Efetivamente, apenas no caso de entendermos que a a natureza onerosa do contrato de mútuo apenas deve ser verifi cada no início do contrato é que nos afastaremos, em absoluto, do entendimento do Supremo Tribunal de Justiça vertido no Acórdão supra analisado.

Com vista a verifi car a aplicabilidade de cada uma das hipóteses ora enun-ciadas, vejamos:

Antes de mais, no que respeita à primeira hipótese, a mesma tem a fragili-dade de não se coadunar com a natureza periódica de reembolso das prestações que a grande generalidade dos contratos de mútuo bancário está associada.

Além disso, apenas possibilitaria a elaboração de contas a fi nal, sendo incerto, nesse ponto, caso se concluísse pela não onerosidade do mútuo ban-cário face às taxas aplicadas, como deveria encontrar-se a taxa a aplicar para a

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 262Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 262 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 17: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato de mútuo bancário 263

remuneração do mesmo. Nesse sentido, face à falta de coerência com a reali-dade dos contratos de mútuo bancário e à ausência de soluções que a presente hipótese apresentaria, afastamo-la, desde já.

Por sua vez, no que concerne à segunda hipótese aqui versada, não obs-tante as difi culdades práticas de implementação que certamente comportaria, esta teria a vantagem de possibilitar, a cada momento, perceber se o indexante encontrado pelas partes ainda seria adequado à natureza onerosa do contrato, e, entendendo-se que não, nessa fase, afastar a aplicação do mesmo.

Não se desconhecem as difi culdades e implicações práticas de tal monito-rização permanente. No entanto, mais do que por tais difi culdades – das quais um estudo da presente natureza deverá, sempre que possível, abstrair-se –, a presente solução vê-se desprovida de aplicabilidade dado que, também aqui, fi ca a dúvida relativa a em que medida deveria a taxa indexante ser alterada. O que ora foi dito volta a trazer à colação a permanente questão: logo que o con-trato deixasse de ser oneroso, por força da aplicação da soma do indexante com a margem fi xa adicional de lucro (“spread”), deveria o indexante ser aumentado para zero? Ou deveria, de alguma forma, aumentar-se apenas para o mínimo possível para que o mútuo bancário fosse oneroso?

Não obstante os obstáculos na aplicação desta possibilidade, não se coloca em dúvida que a mesma permitiria obstar às difi culdades relativas à manutenção do mútuo bancário como oneroso. Assim, consideramos esta via preferível face à contida na primeira hipótese, porquanto (i) permite que nunca seja afastada a onerosidade do mútuo bancário, (ii) não fere a natureza periódica do reem-bolso do mútuo bancário e (iii) efetua um balanço entre o risco próprio do contrato que o credor deverá correr e o limite de tal risco próprio do contrato, considerado como sendo a natureza onerosa do contrato de mútuo bancário.

Por último, resta-nos analisar a hipótese de a verifi cação da onerosidade do contrato de mútuo bancário ser efetuada unicamente no início do contrato. Tal hipótese, da nossa perspetiva, parece-nos ser aquela que, à partida, melhor permite encontrar um balanço entre, por um lado, a intenção onerosa que pesa ao contrato de mútuo bancário e, por outro lado, as condições concretas esta-belecidas entre as partes.

A presente solução apresenta, contudo, a fragilidade, ou, se preferirmos, a característica, de não acautelar a onerosidade do contrato de mútuo bancário a todo o tempo. Em adição, e diferentemente da primeira hipótese – que garantia que, pelo menos, a fi nal, o contrato de mútuo bancário seria, no seu balanço global, um contrato oneroso –, neste caso, a onerosidade global não será, de todo, garantida. Ou seja, a terceira hipótese ora aqui em análise tem como pressuposto que a natureza onerosa do contrato de mútuo bancário deverá ser apenas verifi cada tendo em vista a intenção das partes manifestada no início do

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 263Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 263 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 18: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

264 Nélia Cardoso

contrato (por via da contratação das taxas aí previstas), expressamente afastando a análise da onerosidade do contrato ao longo da vida do mesmo.

Pela nossa parte, consideramos que a presente alternativa será a que mais se aproxima da justeza dos conceitos, muito embora tenha, como pressuposto lógico, o afastamento do entendimento perfi lhado pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão já aqui brevemente analisado.

Efetivamente, a consideração de que a natureza jurídica onerosa do mútuo bancário apenas terá de ser analisada por referência às condições inicialmente contratadas pelas partes é uma opção que permite chegar à conclusão de que, ainda que a taxa indexante do contrato desça abaixo de zero, a natureza onerosa do contrato não será posta em causa.

Como decorrência lógica, não sendo posta em causa a natureza jurídica onerosa do contrato de mútuo bancário, poderemos considerar, portanto, que a descida ou subida das taxas de juro está coberta pelos riscos próprios do con-trato, pelo que deverão as mesmas ser aplicadas sem qualquer alteração.

Com a presente conclusão, terá de vir, necessariamente uma crítica ao Acórdão, dado que, no nosso entender, numa tentativa de proteção do cliente – que, naquele caso, foi prejudicado pela alteração da taxa de juro considerando o contrato de swap contratado com a contraparte –, mal andou o Tribunal ao utilizar o regime presente no artigo 437.º do Código Civil com o propósito de resolver tal contrato.

Desta forma, e considerando tudo o que até agora foi indicado sobre esta matéria, é nosso entendimento que a onerosidade no contrato de mútuo ban-cário deverá ser averiguada apenas por referência à intenção das partes, estabe-lecida aquando da celebração do contrato.

De resto, sempre que seja evidente que a intenção das partes era a de que o contrato de mútuo bancário fosse oneroso, deverá aceitar-se a variação do indexante da taxa de juro como um risco próprio do contrato.

Consequentemente, consideramos que foi acertado o entendimento do Banco de Portugal quando, por via da Carta Circular n.º 26/2015/DSC de 30 de março considerou que os Bancos deveriam aceitar as consequências das taxas de juro contratadas ainda que a consequência de tal entendimento pudesse levar a que, no limite, fossem aplicadas taxas negativas aos contratos de mútuo bancário celebrados.

6.4. Argumentos adicionais: aplicação do regime de alteração substancial das circunstâncias entre as partes

Ademais, há que indicar que, ainda que as referidas taxas pudessem ser alte-radas por alteração substancial das circunstâncias – solução com a qual não con-

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 264Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 264 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 19: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato de mútuo bancário 265

cordamos –, tal alteração sempre teria de ser precedida de proposta de modifi -cação por parte da entidade concedente de crédito e consequente possibilidade de resolução do contrato.

Com isto queremos indicar que, ainda que considerássemos que o regime da alteração substancial das circunstâncias pudesse aplicar-se à situação da descida das taxas de juro por via da variação negativa da taxa indexante, tal não poderia ocorrer sem que existisse uma prévia proposta de modifi cação da mesma ou de resolução do contrato da parte das entidades concedentes de créditos aos seus clientes.

A aceitação da modifi cação pela contraparte em causa é sempre um pres-suposto para que o contrato continue em vigor nos novos termos propostos, ferindo a justeza jurídica a sua aplicação unilateral por uma das partes, em espe-cial quando a outra parte nada poderia fazer para evitá-la.

É que, ao contrário daquilo que vinha a prática dos mutuantes bancários, de acordo com os termos do regime da alteração das circunstâncias, caso a contraparte não aceite a modifi cação, o contrato deverá ser resolvido e não unilateralmente modifi cado.

Nesta senda, recorde-se que a oferta de modelos de remuneração por mútuos bancários é sempre dos Bancos, os quais oferecem a possibilidade de concessão de mútuos bancários de acordo com a sua oferta de produtos.

Tal nada mais signifi ca que, e especialmente no que respeita à banca de retalho, a oferta de mútuos bancários cuja taxa de juro remuneratório esteja dependente da variação de uma taxa indexante, consiste numa estratégia de oferta de produtos bancários das instituições fi nanceiras, por via, na sua maioria das vezes, da inclusão de cláusulas contratuais gerais.

Se tal não fosse já bastante, note-se, tal como já anteriormente referido, que as taxas Euribor indexantes ora aqui em causa e referidas na Carta Circu-lar n.º 26/2015/DSC de 30 de março do Banco de Portugal são os mesmos indexantes de taxas que as instituições concedentes de crédito utilizam para se fi nanciarem.

Nestes termos, também as próprias instituições de crédito são benefi ciadas com tais taxas de juro no seu próprio fi nanciamento!

Efetivamente, as taxas de juro negativas representam também uma vanta-gem para as instituições fi nanceiras, na medida em que estas acabam por obter receita adicional ao se fi nanciarem, vantagem essa que, de igual forma, faz sentido que seja repercutida nos contratos de mútuo bancário celebrados com os seus clientes. De facto, não resulta desta repercussão nenhuma situação de injustiça material, mais não sendo do que a natural consequência das condições atuais do mercado.

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 265Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 265 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 20: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

266 Nélia Cardoso

Logo, sob pena de poder considerar-se que há abuso de direito por parte das instituições fi nanceiras ao impedirem que as taxas dos mútuos bancários indexadas desçam abaixo de zero, deverão as mesmas ser aplicadas de acordo com o estipulado entre as partes.

Assim, se as instituições fi nanceiras desejarem evitar as referidas consequên-cias deverão efetuá-lo por via de estipulação contratual, tal como a Carta Cir-cular n.º 26/2015/DSC de 30 de março do Banco de Portugal, resumida supra, bem o explicita.

7. Conclusão

Feito que está o percurso com a análise da natureza do mútuo bancário, com a conclusão de que a onerosidade é uma característica do seu tipo con-tratual, entendemos que tal natureza não implica que o contrato tenha de ser necessariamente oneroso a todo o tempo.

Efetivamente, salvo melhor opinião, consideramos que tal onerosidade deve ser verifi cada tendo por base a vontade das partes aquando da celebração do contrato de mútuo bancário, pelo que a sua natureza compadece-se com a possibilidade de que, em algum ou alguns momentos, durante a sua execução, a sua remuneração seja negativa por efeito da variação do indexante escolhido livremente pelas partes. Nestes termos, consideramos que tal variação negativa está coberta pelos riscos próprios do contrato e, portanto, não pode conduzir à sua modifi cação ou resolução por aplicação do regime da alteração das cir-cunstâncias. Logo, e porque não sendo admissível o menos, também não deve ser admissível o mais, não poderá igualmente considerar-se como aceitável que as instituições concedentes de crédito alterem unilateralmente as taxas de juro do indexante para zero. Consideramos, portanto, que bem andou o Banco de Portugal ao efetuar as conclusões e indicações vertidas na Carta Circular n.º 26/2015/DSC de 30 de março.

8. Bibliografi a

Monografi as e Publicações Periódicas

Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição Revista e Atualizada, Coimbra: Almedina, 2014

Carvalho Fernandes, A Teoria da Imprevisão, Lisboa: Quid Juris? – Sociedade Editora, 2001

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 266Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 266 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 21: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato de mútuo bancário 267

Engrácia Antunes, Os Contratos Bancários, Volume II, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, separata, Coimbra: Almedina, 2011

Ferreira de Almeida, Contratos II, 2.ª Edição, Coimbra: Almedina, 2011Lebre de Freitas, Contrato de swap meramente especulativo – Regimes de validade e de alte-

ração de Circunstâncias, p. 962, disponível em www.oa.pt Menezes Cordeiro, Manual do Direito Bancário, 4.ª Edição, Coimbra: Almedina, 2010Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Dissertação de Doutoramento em

Ciências Jurídicas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra: Almedina, 1997

Menezes Cordeiro, Da alteração das circunstâncias – A concretização do artigo 437.º do Código Civil, à luz da Jurisprudência posterior a 1974, Separata dos Estudos em Memória do Prof. Paulo Cunha, Lisboa: AAFDL, 1989

Oliveira Ascensão, Onerosidade excessiva por “alteração das circunstâncias”, in Albuquer-que, Rui/Cordeiro, António Menezes (coord.), Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 515-536, = ROA, ano 65, vol. III, 2005, disponível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=31559&idsc=44561&ida=44649

Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II (art. 762.º a 1250.º), Reimpressão da 4.ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2010

Vaz Serra, Resolução ou Modifi cação dos contratos por alteração das circunstâncias”, BMJ, 68 (1957)

Legislação/Regulamentação

Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de novembro, conforme alterado

Código Comercial, aprovado pela Carta de Lei de 28 de Junho de 1888, conforme alterado

Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro, conforme alterado

Aviso n.º 3/93, de 20 de maio, do Banco de PortugalAviso n.º 6/2009, de 11 de agosto, do Banco de Portugal

Jurisprudência

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de outubro de 2013, com o Processo n.º 1387/11.5TBBCL.G1.S1 – 7.ª Secção, com o Relator Granja da Fonseca, disponível em www.dgsi.pt

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 267Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 267 28/07/16 16:3628/07/16 16:36

Page 22: Taxas de juro negativas e a natureza onerosa do contrato ... 2016...este respeito se retirem relativamente ao mútuo mercantil.1 Adicionalmente, o contrato de mútuo bancário, ao

RDS VIII (2016), 1, 247-268

268 Nélia Cardoso

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de outubro de 1998, com o Relator Torres Paulo, disponível em BMJ 480 (1998), 465-462 (469)

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de outubro de 1998, disponível no BMJ, 486.º-358

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de maio de 2011, com o Processo n.º 6684/09.7TVLSB.L1-8, com o Relator Catarina Arêlo Manso, disponível em www.dgsi.pt

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24 de novembro de 2009, com o Pro-cesso n.º 117/07.0TBSJP-A.P1, com o Relator Rodrigues Pires, disponível em www.dgsi.pt

Imprensa /Notícias de Jornal

Randow, Jana, Bloomberg Quick Take, 13 de abril de 2015, disponível em www.bloombergview.com

Jornal El Mundo, 2 de março de 2015, Javier G. Gallego, disponível em www.elmundo.es

Jornal La Nueva España, 15 de maio de 2015, Pau A. Monserrat/iAhorro.com, dispo-nível em www.lne.es

ReedSmith, 1 de abril de 2015, Peter Zaman, Claude Brown, Shariq Gilani, disponível em www.reedsmith.com

The Financialist by Credit Suisse, 12 de junho de 2013, Ashley Kindergan, disponível em www.thefi nancialist.com

Kowsmann, Patricia; Neumann, Jeannette, The Wall Street Journal, 13 de abril, dispo-nível em www.wsj.com

Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 268Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 268 28/07/16 16:3628/07/16 16:36