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Taysa Schiochet Anuário 2012

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Anuário UNISINOS 2012

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Page 1: Taysa Schiochet Anuário 2012
Page 2: Taysa Schiochet Anuário 2012

Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito

UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS

Reitor: Pe. Marcelo Fernandes de Aquino, S.J.Vice-Reitor: Pe. José Ivo Follmann, S.J.

Diretor da Unidade Acadêmica de Pesquisa e Pós-Graduação

Alsones Balestrin

Coordenador Executivo do Programa de Pós-Graduação em DireitoProf. Dr. Leonel Severo Rocha

Coordenador Adjunto do Programa de Pós-Graduação em DireitoProf. Dr. Wilson Engelmann

Corpo Docente PPGDIREITOAlfredo Santiago Culleton, André Luís Callegari,

Anderson Vichinkeski Teixeira, Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori, Darci Guimarães Ribeiro, Délton Winter de Carvalho, Fernanda Frizzo Bragato, Jânia Maria Lopes Saldanha,

Jose Luis Bolzan de Morais, Lenio Luiz Streck, Leonel Severo Rocha, Luciano Benetti Timm, Marciano Buffom, Sandra Regina Martini Vial, Têmis Limberger, Taysa Schiocchet,

Vicente de Paulo Barretto e Wilson Engelmann.

Índices para o catálogo sistemático Direito Teoria do Direito

C758 Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado / orgs. Lenio Luiz Streck, Leonel Severo Rocha, Wilson Engelmann. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora; São Leopoldo: UNISINOS, 2012. 344 p.; 23 cm.

ISBN 978-85-7348-851-7

1. Direito. 2. Teoria do Direito. I. Streck, Lenio Luiz, org II. Rocha, Leonel Severo, org.

CDU 34

Page 3: Taysa Schiochet Anuário 2012

Constituição, Sistemas Sociaise Hermenêutica

ANUÁRIO

do Programa de Pós-Graduação

em Direito da UNISINOS

MESTRADO E DOUTORADO

n. 9

Lenio Luiz Streck

Leonel Severo Rocha

Wilson EngelmannOrganizadores

editoraDO ADVOGADO

livraria

Porto Alegre, 2012

Page 4: Taysa Schiochet Anuário 2012

© dos autores, 2012

Capa, projeto gráfico e diagramaçãoLivraria do Advogado Editora

RevisãoRosane Marques Borba

Conselho Editorial do Anuário do PPGDireitoAndré Luís Callegari

Darci Guimarães RibeiroJânia Maria Lopes SaldanhaJose Luis Bolzan de Morais

Lenio Luiz StreckLeonel Severo Rocha

Vicente de Paulo BarrettoWilson Engelmann

Direitos desta edição reservados porLivraria do Advogado Editora Ltda.

Rua Riachuelo, 130090010-273 Porto Alegre RS

Fone/fax: [email protected]

www.doadvogado.com.br

Programa de Pós-Graduação em DireitoUniversidade do Vale do Rio dos Sinos

Av. Unisinos, 95093022-000 São Leopoldo RS

Fone/fax (51) [email protected]

(www.unisinos.br/mestrado-e-doutotado/direito)

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Page 5: Taysa Schiochet Anuário 2012

Sumário

Apresentação Lenio Luiz Streck, Leonel Severo Rocha e Wilson Engelmann (orgs.)� 7

I – Qual a função do Estado constitucional em um constitucionalismo transnacional? Anderson Vichinkeski Teixeira� 9

II – Terrorista: um discurso sobre o Direito Penal de exceção André Luís Callegari� 33

III – Reflexões histórico-conceituais sobre constitucionalismo e democracia na Revolução Francesa Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori� 55

IV – Análise epistemológica dos limites objetivos da coisa julgada Darci Guimarães Ribeiro� 81

V – Por um direito dos desastres ambientais Délton Winter de Carvalho� 101

VI – Direitos humanos no segundo pós-guerra: entre as respostas racionalistas da modernidade e o desafio das vulnerabilidades Fernanda Frizzo Bragato� 125

VII – Novas geometrias e novos sentidos: Internacionalização do Direito e internacionalização do diálogo dos sistemas de Justiça Jânia Maria Lopes Saldanha� 137

VIII – Audiências públicas: novas práticas no Sistema de Justiça brasileiro e o princípio democrático (participativo) Jose Luis Bolzan de Morais� 161

IX – Na democracia, decisão não é escolha: os perigos do solipsismo judicial – o velho realismo e outras falas Lenio Luiz Streck� 189

X – A aula mágica de Luis Alberto Warat: genealogia de uma pedagogia da sedução para o ensino do Direito Leonel Severo Rocha� 203

XI – Mudança no modelo regulatório da tecnologia no Brasil: qual deve ser a política do CADE neste cenário Luciano Benetti Timm� 213

XII – Tributação ambiental: a prevalência do interesse ecológico mediante a extrafiscalidade Marciano Buffon� 229

XIII – Sistema da saúde e transformação social Sandra Regina Martini Vial� 247

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XIV – A regulamentação dos bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal no Brasil: reflexões acerca do uso forense do DNA Taysa Schiocchet� 263

XV – Estado, administração, novas tecnologias e direitos humanos: como compatibilizá-los? Têmis Limberger� 277

XVI – Culpa e punição na cultura contemporânea Vicente de Paulo Barretto � 295

XVII – O diálogo entre as fontes do direito e a gestão do risco empresarial gerado pelas nanotecnologias: construindo as bases à juridicização do risco Wilson Engelmann� 319

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Novas geometrias e novos sentidos: Internacionalização do direito e

internacionalização do diálogo dos sistemas de Justiça

Jânia Maria Lopes Saldanha

Yo soy um moro judio. Que vive com los cristianos. No sé que

dios es el mío. Ni quales son mis Hermanos. (Jorge Drexler)

Uma apresentação: Sete dimensões da internacionalização do direito

Esse trabalho pretende analisar a internacionalização do direito, compreendida

como um fenômeno plural e global que resulta de um movimento curiosamente circular

de normas, atores, fatores e que expressa processos de interação, não só complexos

quanto amplos. Considerando-se ser o poder – e a intervenção - crescente dos sistemas

de justiça, nacionais, regionais, supranacionais e internacionais, sobre a vida coletiva,

também um fenômeno global e característica marcante deste início de Século, pretende-

se demonstrar que os espaços judiciários transformaram-se em locus de reconhecimento

e afirmação da internacionalização do direito, já que muito pouco escapa de seu

controle. Assim, a atuação da justiça é, doravante, marcada por diálogos – formais e

informais – desenvolvidos por seus atores, dentre eles, os juízes.

A despeito de movimentos nacionalistas e locais que podem ser percebidos em

inúmeros lugares do globo e que reúnem em si como valor traços de afirmação e

identidade, não se pode ignorar a circulação e até mesmo a superposição de normas

nacionais, regionais e internacionais, tampouco a proliferação de jurisdições que

acompanham tal diversidade das fontes normativas e que, cada vez mais, exercem

competência alargada.1Há, assim, um movimento de mão dupla com visível influência

do direito constitucional sobre o direito internacional e vice-versa. No primeiro caso, o

direito constitucional acopla-se aos standards do internacional e, no segundo caso, há

um relação simbiótica, diante da influência dos direitos humanos sobre os direitos

fundamentais no plano interno.2

1 DELMAS-MARTY, Mireille. Études juridiques comparatives et internationalisation du droit. Paris:

Collège de France/Fayard, 2003, p. 13-14. 2 HERDEGEN, Mathias. La internacionalización del orden constitucional. In: Anuário Latino-Americano

de derecho constitucional. Montevidéo: Fundação Konrad Adenauer, 2010, p. 73.

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Correndo-se os riscos que todo reducionismo produz, à partida, podem ser

identificadas sete dimensões no fenômeno da internacionalização do direito. A primeira,

é que se trata de um processo (1) que se expande para além das fronteiras nacionais e

que envolve uma multiplicidade de atores, fatores e processos. A segunda, é que

apresenta um problema (2) relacionado à ausência de uma verdadeira ordem jurídica

internacional, tendo-se em conta as conhecidas fragilidades do sistema onusiano. A

terceira, é que se constitui numa superposição de regras jurídicas (3) nacionais,

regionais, supranacionais e internacionais. A quarta liga-se à superabundância de

instituições (4), como a dos sistemas de justiça. A complexidade (5), decorrente da

existência de sistemas interativos e instáveis, é a quinta dimensão. A sexta dimensão

pode ser identificada pela tensão (6) existente entre os direitos do comércio, que pautam

a globalização econômica e os direitos humanos que reivindicam seja vista a

humanidade com base numa internacionalização ética resultante de um universalismo

solidário, quiçá, cosmopolita3. A sétima dimensão está associada a uma necessidade (7)

que é a de dar existência jurídica ao universal, condição para estabelecer-se uma nova

linguagem que é a da existência de um patrimônio comum da humanidade ou, em outras

palavras, bens comuns universais que integrariam a chamada comunidade mundial de

valores cujo objetivo mais fundamental seria o de renovar o humanismo jurídico.

Feitas tais considerações, busca-se destacar o papel do sistema de justiça nesse

processo de internacionalização do direito, não porque se defende seu protagonismo,

mas sim porque o acesso à justiça qualificado é um princípio reconhecido pelas

democracias contemporâneas. No campo específico do diálogo judiciário, o que se

constata é a sua decompartimentalização4, a emancipação

5 dos juízes de seu direito e a

sua emulação6. Seguramente, a evolução é o sentido latente dos sistemas de justiça e

uma exigência democrática. Por isso, ao progresso do direito substancial está

umbilicalmente ligado o progresso processual7. O trabalho está dividido em duas partes

3 Sobre o tema: DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (IV). Vers une

communauté de valeurs? Paris: Seuil, 2011, p. 331-392. 4 BOURGORGUE-LARSEN, Laurence. De l’internationalisation du dialogue des juges, p. 97. Disponível em: <http://www.univ-paris1.fr/fileadmin/IREDIES/Contributions_en_ligne/L._BURGORGUE-

LARSEN/M%C3%A9langes/LBL_M%C3%A9langes_Genevois-1.pdf> . Acesso em 20 de agosto de

2012. 5 DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (III). La refondation des pouvoirs. Paris:

Seuil, 2007, p. 42-50. 6 DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (III). La refondation des pouvoirs.op. cit.,

p. 42-50. 7 DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (II). Le relatif et l’universel. Paris: Seuil,

2004, p. 164.

Page 9: Taysa Schiochet Anuário 2012

3

para destacar o papel do processo enquanto viabilizador do diálogo entre juízes e

jurisdições, seja de modo vinculado (Parte 1), seja de modo espontâneo (Parte 2)8.

Parte 1. Mentalidade alargada9 para o exercício de um diálogo vinculado:

Duas fontes

A lucidez de Santi Romano10

anteviu não estar o direito apenas “onde a norma

domina” e que, pensar contrariamente a isso, limita a consideração e análise de outras

fontes. Essa fina e serena percepção inspira explique-se ser o diálogo dos juízes

derivado de uma necessidade advinda do surgimento da “desnacionalização do

Direito”,11

com o quê outras ordens jurídicas extrapolam a noção de ordem restrita ao

modelo estatal e princípios como o do jus cogens e pro homine estão inseridos nessa

abertura de fronteiras. No plano da internacionalização do direito a expansão da

experiência do diálogo judiciário resta por ilustrar ser o processo, enquanto garantia

constitucional e convencional, o que permite tal movimento expansionista para garantir,

senão realizar, o primado dos direitos humanos, até mesmo por meio da chamada

“jurisprudência global”12

. O diálogo interjurisdicional vinculado poderá ocorrer no

âmbito complexo dos processos de integração (1.1) e também como resultado de

compromissos internacionais assumidos pelos Estados em suas relações bilaterais ou

multilaterais(1.2).

1.1. Os processos de integração: primeira fonte

8 A dupla face desse diálogo é extraída do texto de: BOURGORGUE-LARSEN, Laurence. De

l’internationalisation du dialogue des juges, p. 104. Disponível em <http://www.univ-

paris1.fr/fileadmin/IREDIES/Contributions_en_ligne/L._BURGORGUE-

LARSEN/M%C3%A9langes/LBL_M%C3%A9langes_Genevois-1.pdf> .Acesso em 20 de agosto de

2012.

9 Ao tratar de três máximas do entendimento humano comum ligado ao gosto, é que Kant põe a questão

da mentalidade alargada. Primeiro, diz que é preciso “pensar por si”; segundo, diz que é preciso sempre

“pensar no lugar de todo o outro” e, terceiro, é preciso “pensar de acordo consigo próprio”. Assim, de

acordo com o filósofo, a primeira é a máxima da maneira de “pensar livre de preconceito”, a segunda e é

a que interessa para o efeito deste trabalho, é a maneira de “pensar alargada”, enquanto que a terceira é a

maneira de “pensar conseqüente”. KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Lisboa: Imprensa

Nacional-Casa da Moeda, 1998, p. 196-97.. A expressão, no âmbito do texto, refere-se aos casos em que

o juiz, ao fundamentar suas decisões, refere-se às influências jurisprudenciais oriundas de outros sistemas

de justiça. Veja-se também ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Capítulo 6. São Paulo:

Perspectiva, 2001, p. 274.

10 ROMANO, Santi. O ordenamento jurídico. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008, p. 130. 11 GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: justiça e democracia. Lisboa: Piaget, s/a, p. 36. 12 SLAUGHTER, Anne-Marie. A new world order. New Jersey: Princeton, 2004, p. 78.

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4

Na atualidade há um conjunto de processos de integração13

entre Estados a

comprovar que a separação estatal à moda westfaliana não significa mais, na atualidade,

isolamento. Levinas14

pode ser inspirador se tomada por referência sua ácida crítica à

totalidade e ao culto ao pensamento absoluto. É justamente sua concepção de pluralismo

– diferente de pluralidade - que auxilia compreender sejam os processos de integração

entre Estados reconhecidos não apenas sob as bases dos interesses do comércio ou da

guerra e sim sob bases humanistas e éticas. Para Levinas,15

o pluralismo não é uma

multiplicidade numérica e sim pressupõe a consideração da alteridade radical do outro.

Entretanto, a identificação do pluralismo como um valor16

não é garantia de que o

reconhecimento do outro seja plenamente efetivado, justamente porque pressupõe a

reciprocidade no contexto de uma vida social cujos membros constituem uma

comunidade de valores.17

Como lembra Alian Supiot18

, a solidariedade, que está à base

da alteridade, tem adquirido progressivamente o valor de um princípio jurídico no

direito comunitário e, então, nos processos de integração. Daí ser necessário

desenvolver uma base jurídica própria à solidariedade. Serão, então, os sistemas de

justiça importantes coadjuvantes para evitar a hegemonia de um sistema ou ordem sobre

outro quando se está a tratar de processos de integração? Negar essa possibilidade não

seria produzir invisibilidade ao modo da razão metonímica19

, ao encurtar o presente e ao

banalizá-lo?

Tomando-se essas indagações como ponto de partida para reconhecer nos

processos de integração grandes laboratórios do pluralismo, faz-se um recorte para dizer

que apenas os processos de integração da União Européia, da Comunidade Andina e do

Sistema de Integração Centroamericana é que serão levados em consideração para

desenvolver a ideia aqui proposta. A partir da pressuposição de suas existências

jurídicas, visa-se demonstrar certa verticalidade na atuação e na relação entre as

jurisdições nacionais e a jurisdição supranacional desses processos integracionistas.

13 União Européia, Mercosul, Nafta, SICA, Comunidade Andina, entre outros. 14 LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1988. 15 Ibid., p. 106. 16 DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit. Le pluralisme ordonné, op. cit.,p. 19 e

39. 17 HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento. A gramática moral dos conflitos morais. São Paulo:

Editora 34, 2003, p. 200. 18 SUPIOUT, Alain. L’esprit de Philadelphie. La justice social face au marché total. Paris: Seuil, 2010, p.

161. 19 SANTOS, Boaventura de S. Para uma sociologia das ausências e das emergências. In: A gramática do

tempo. Para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 92-102.

Page 11: Taysa Schiochet Anuário 2012

5

Essa verticalidade é viabilizada pelo mecanismo processual do reenvio prejudicial20

, um

poderoso elo que permitiu o diálogo frutuoso e virtuoso entre as jurisdições nacionais e

a jurisdição supranacional, especialmente na Europa, como também o signo de uma

“justiça superior” que se movimenta não só nos Estados, quanto no contexto

transnacional.21

Por isso, contribuiu vivamente para que fosse construído outro modelo

de justiça.22

O reenvio prejudicial23

é um mecanismo processual do direito comunitário

europeu por meio do qual é veiculada grande parte das matérias julgadas pelo Tribunal

de Justiça da União Européia24

. Inicialmente, possibilitou a cooperação “horizontal por

entrecruzamento” entre os juízes nacionais e os juízes do tribunal supranacional,

aumentando a permeabilidade do direito nacional à ordem externa25

. Foi o responsável

pela emergência dos princípios da aplicabilidade imediata, da primazia e do efeito direto

das normas comunitárias. Essa cooperação horizontal por entrecruzamento ao longo dos

anos avançou para uma “integração vertical por harmonização” 26

. Assim, quando o juiz

nacional se depara com dificuldades de interpretação de norma comunitária envia uma

questão prejudicial para o Tribunal de Luxemburgo27

o que favorece o exercício de um

“modelo nacional integrado” voltado à harmonização progressiva.

O diálogo jurisdicional promovido pelo reenvio prejudicial não apenas fortalece

a função do Tribunal comunitário, mas também cria no plano interno uma cultura de

respeito às normas de natureza convencional pois, os juízes nacionais são os aplicadores

20 Sobre o tema consultar: SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Cooperação jurisdicional: reenvio

prejudicial: um mecanismo de direito processual a serviço do direito comunitário: perspectivas para sua adoção no Mercosul, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001. 21 FERRER MAC-GREGOR, Eduardo. Los tribunales constitucionales em Iberoamérica. México:

FUNDAp, 2002, p. 124. 22 A pesquisa e a redação relativa às três Cortes foi realizada com o apoio de Lucas Pacheco Vieira,

integrante do projeto de pesquisa que estuda o Impacto do direito internacional sobre o direito processual

brasileiro, desenvolvido sob os auspícios do Ministério da Justiça e do PNUD. 23 Previsto no art. 234 do Tratado da Comunidade Europeia. 24São mais de duzentas as decisões prejudiciais proferidas anualmente. Disponível em:

http://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2010-05/ra09_stat_cour_final_en.pdf Acesso em:

20 de novembro de 2010. 25 DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (II). Le pluralisme ordonné, op. cit., p. 39-40. 26 A harmonização é uma fase mais avançada dos processos de interação (ou integração regional). Mas a

unificação é a fase mais avançada e, por isso, mais difícil. Exige uma “hibridação” que seria representada

pelo exercício de uma “gramática comum” entre diferentes sistemas e, por isso, um distanciamento com

as formas nacionais. Orientações nesse sentido: DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du

droit (II). Le pluralisme ordonné, op. cit., p. 215. 27 SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Cooperação jurisdicional: reenvio prejudicial: um mecanismo de

direito processual a serviço do direito comunitário: perspectivas para sua adoção no Mercosul, op. cit.,

p. 15.

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natos do direito comunitário. Têm sido eles os principais atores da consolidação da

“Europa de Direito”28

que comporta, talvez pela primeira vez na história, o

reconhecimento de um juiz comum – o do Tribunal de Luxemburgo -, figura singular e

simbólica que suplanta a “ideologia nacional”. A utilização desse mecanismo processual

é, por vezes, obrigatória, quando se tratar de julgamento em última instância pela justiça

nacional. Dessa obrigatoriedade poderia ser extraído o diálogo? A aplicação do

instituto, ao longo do tempo, não ocorreu sem a resistência dos Estados, seja pela

criação da teoria do “ato claro”,29

seja pela rebelião de algumas Altas Cortes de

Justiça30

, cuja paisagem judiciária longe está de ser uniforme, desenho que não apenas

confirma ser a “mundialização da guerra de palácios” 31

uma possibilidade real, como

também um risco ao equilíbrio entre o direito substancial e processual. O fato é que o

mecanismo do reenvio se internacionaliza, com o que tem sido importado por outras

experiências integracionistas mais recentes, como as da América Latina onde o instituto

não é desconhecido.

Com efeito, a Comunidade Andina é um bloco econômico de integração regional

instituído pelo Acordo de Cartagena em 1969. Os cinco países que fundaram o bloco32

tinham por objetivo promover o desenvolvimento equilibrado e harmônico dos países

membros em condições de equidade mediante a integração e a cooperação econômica e

social33

. Em 1996,por meio do Protocolo de Trujillo instituiu-se o Tribunal de Justiça

como órgão jurisdicional34

. Suas decisões obrigam aos Estados-membros, sendo

diretamente aplicáveis a partir da data de sua publicação35

. A Comunidade Andina

instituiu a interpretação prejudicial como ferramenta para articular a cooperação e o

28 JAUME, Lucien. Qu’est-ce que l’sprit européen? Paris: Flamarion, 2010. 29 SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Cooperação jurisdicional: reenvio prejudicial: um mecanismo de

direito processual a serviço do direito comunitário: perspectivas para sua adoção no Mercosul, op. cit. 30 BOURGORGUE-LARSEN, Laurence. De l’internationalisation du dialogue des juges, op. cit., p. 104. 31 DEZALAY, Y. GARTH, Brian G. La mondialização des guerres des palais. Paris: Seuil, 2002, p. 25 e 33. 32Bolívia, Colômbia, Chile, Equador e Perú. A Venezuela entrou no bloco em 1973 e se retirou em 2006.

O Chile, membro fundador, se retirou em 1976, sendo membro associado desde 2006. 33 Art. 1º do Acordo de Cartagena. Disponível em:

http://intranet.comunidadandina.org/IDocumentos/c_Newdocs.asp?GruDoc=14. Acesso em: 2 de março

de 2012. 34 Arts. 40 e 41. 35 Arts. 2 e 3/TCTJCA. As sentenças não requerem homologação ou exequatur em nenhum dos membros

da Comunidade Andina (art. 41/TCTJCA).

Page 13: Taysa Schiochet Anuário 2012

7

diálogo entre jurisdições nacionais e a jurisdição supranacional para atingir a

uniformidade na aplicação do direito comunitário36

.

Sem haver hierarquia – e sim cooperação - entre os órgãos jurisdicionais,3738

a

consulta prejudicial pelo juiz nacional divide-se em obrigatória e facultativa.39

A

primeira ocorre nos casos em que a decisão nacional não seja suscetível de recurso no

sistema jurídico interno. Essa posição jurisprudencial alinha-se com a da Corte

Interamericana de Direitos Humanos que reconhece ser o duplo grau uma garantia de

democracia processual. Por outro lado, será facultativa sempre que contra a sentença

existam vias recursais que permitam sua revisão, o que decorrerá da necessidade do

caso concreto, sempre salvaguardado pela hermenêutica da faticidade e da singularidade

que não escapa da filtragem convencional e constitucional.40

A vinculação do juiz ao

que o caso concreto “lhe diz” sobre o limite necessário para não sucumbir à sedução das

discricionariedades e arbitrariedades, pois julgar colocará sempre em questão a relação

entre as razões apresentadas e o exercício do poder41

.

Mesmo havendo divergências na aplicação do direito comunitário, o Tribunal

Andino demonstra ter sido influenciado em grande escala pela jurisprudência

comunitária europeia. Nesse sentido, pode-se dizer que na América Latina o reenvio

prejudicial andino conheceu um “sucesso exemplar”42

e seu uso numeroso43

demonstra

que as resistências ao diálogo por ele proporcionado não estão presentes em todos os

processos de integração, como também pode ser considerado um importante

36A redação do art. 32 do Tratado de Criação do TJCA confirma esta descrição: “Corresponderá al

Tribunal interpretar por vía prejudicial las normas que conforman el ordenamiento jurídico de la

Comunidad Andina, con el fin de asegurar su aplicación uniforme en el territorio de los Países

Miembros.” 37 DUEÑAS MUÑOZ, Juan Carlos. “La interpretación prejudicial, ¿piedra angular de la integración

andina?”, em Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano 2011, Montevideo: Fundación Konrad

Adenauer, 2011. p. 42. 38 PEROTTI, Alejandro. Algunas consideraciones sobre la interpretación prejudicial obligatoria en el

derecho andino. Lima: Secretaría General de la CAN, Biblioteca Digital Andina, 2005. p. 3. 39 Art. 33 do TCTJCA 40 Sobre a filtragem constitucional consultar: STRECK, Lenio. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 183. 41 JOUNANNET, Emanuelle. La motivation ou le mystere de boite noire. In: RUIZ FABRI, Hélène.

SOREL, Jean-Marc. La motivation des décisions des juridictions internationales. Paris: Pedone, 2008, p.

285. 42 BOURGORGUE-LARSEN, Laurence. De l’internationalisation du dialogue des juges, op. cit., p. 106. 43 Estatísticas do Tribunal Andino demonstram que de 1985 a 2011 o reenvio foi utilizado 2003 vezes.

Dados disponíveis em:

http://www.tribunalandino.org.ec/sitetjca/index.php?option=com_wrapper&view=wrapper&Itemid=24.

Acesso em 28 de agosto de 2012.

Page 14: Taysa Schiochet Anuário 2012

8

instrumento garantista44

de efetivação do direito comunitário por meio do diálogo

judiciário.

Outra experiência decorre do Sistema da Integração Centroamericana (SICA),45

constituído pelo Protocolo de Tegucigalpa em 1991. Seis países o fundaram,46

cujo

objetivo fundamental era a realização da integração da América Central a fim de

constituir uma região de paz, liberdade, democracia e desenvolvimento.47

A pedra

fundamental para a concretização desses propósitos são a tutela, o respeito e a promoção

dos Direitos Humanos48

. Criada pelo Protocolo de Tegucigalpa, a Corte

Centroamericana de Justiça deve garantir o respeito do direito na interpretação e

execução deste Protocolo e seus instrumentos complementares. A consulta prejudicial

está prevista na alínea k, do art. 22, do acordo do Panamá49

. Dois atores nacionais são

responsáveis pela realização da justiça comunitária: o Juiz e o Tribunal de Justiça de

cada Estado membro50

e o motivo fundamental para a solicitação de consultas

prejudiciais provém de dúvidas ou incertezass envolvendo a aplicação do direito

comunitário centroamericano.51

De 2003 até o presente momento inúmeras consultas

prejudiciais foram julgadas, tendo se revelado o principal mecanismo de cooperação e

diálogo entre a jurisdição comunitária e a nacional.52

Laurence Bourgorgue-Larsen53

afirma ser praticamente inexistente o reenvio

prejudicial ante a Corte de Manágua, ausência que viria em desfavor do processo de

44 DUEÑAS MUÑOZ, Juan Carlos. “La interpretación prejudicial, ¿piedra angular de la integración

andina?”, op. cit., p. 45. 45 Art. 2 do Protocolo de Tegucigalpa. 46 Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e Panamá. Posteriormente, Belize foi aceita

como Estado membro. A República Dominicana é Estado Associado, enquanto México, Argentina, Chile

e Brasil figuram como Observadores Regionais. A Espanha, a China, a Alemanha, a Itália e o Japão são

observadores extra-regionais 47 Art. 3 do Protocolo de Tegucigalpa. 48 Art. 4, a, do Protocolo de Tegucigalpa. 49Adotado sobre a base do protocolo de Tegucigalpa de 13 de dezembro de 1991. Diz o dispositivo: k)

Resolver toda consulta prejudicial requerido por todo Juez o Tribunal Judicial que estuviere conociendo

de un caso pendiente de fallo encaminada a obtener la aplicación o interpretación uniforme de las normas

que conforman el ordenamiento jurídico del «Sistema de la lntegración Centroamericana» creado por el «Protocolo de Tegucigalpa» sus instrumentos complementarios o actos derivados del mismo. 50 GALLARDO, Carlos Guerra. “La Corte de Justicia de la Comunidad Centroamericana y la Consulta

Prejudicial. Seminario sobre “La Consulta Prejudicial”. Nicaragua: 9 e 10 de outubro de 2006, p. 2.

Disponível em:

http://cendoc.ccj.org.ni/Documentos/Biblioteca/1792/15288/La_CCJ%20Yla_Consulta_Prejudicial-

%20CARLOS%20GUERRA.pdf Acesso em: 22 de março de 2012. 51 Idem. p. 5. 52 Idem. p. 4. 53 BOURGORGUE-LARSEN, Laurence, op. cit., p. 107.

Page 15: Taysa Schiochet Anuário 2012

9

integração e expressaria um escasso diálogo jurisdicional. Entretanto, as estatísticas54

recentes da Corte indicam ter sido provocada em reenvio prejudicial, por dez vezes,

desde 2005. Embora a experiência europeia seja sim a grande fonte de inspiração e

parâmetro para os demais processos integracionistas, não se pode esperar que esses

funcionem no mesmo ritmo temporal que aqueles alcançados pela União Europeia,

sobretudo porque os países latino-americanos na sua quase totalidade vivenciaram

períodos políticos autoritários. Assim, o ritmo de consolidação de suas instituições –

dentre elas o Poder Judiciário - não pode ser comparado simplesmente com aquele das

instituições centenárias da Europa, uma vez ser diferente o universo dos processos de

integração, considerando-se o número de países, a população, a experiência

democrática, entre outros fatores.

As Convenções internacionais, por outro lado, são poderosa fonte que instiga o

diálogo jurisdicional. É o que segue.

1.2. As Convenções: segunda fonte

Após o fim da Segunda Guerra mundial, o conjunto de marcos normativos

convencionais em matéria de direitos humanos aumentou significativamente. A

assunção de responsabilidade internacional por parte dos Estados jogou-os,

paulatinamente, na condição de autores de violações de obrigações que eles, no

exercício de soberania, comprometeram-se respeitar. Em matéria de convencionalidade,

como se sabe, as decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos, de natureza

declarativa, deixaram ao campo da “margem nacional de apreciação”55

, a possibilidade

de os juízes, com base em suas Constituições, decidirem acerca de inúmeras matérias

particularmente sensíveis à realidade cultural, histórica, política e social de cada Estado.

A engenharia do sistema convencional, à diferença do sistema integrado, que é

caracterizado pela aplicabilidade imediata e pelo efeito direto, faz com as decisões

54 Disponível em <http://portal.ccj.org.ni/CCJ2/Default.aspx?tabid=114> . Acesso em 20 de setembro de

2012. 55 A noção de margem nacional é importante quando se fala em processos de interação por harmonização.

Trata-se, segundo Delmas-Marty, de um conceito chave para tratar da noção de pluralismo ordenado e

está inserido no contexto das relações centrípetas e centrífugas entre as diversas ordens jurídicas,

nacionais, regionais e internacionais. DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (II).

Le pluralisme ordonné, op. cit., p. 78-80.

Page 16: Taysa Schiochet Anuário 2012

10

daquela Corte tenham apenas “autoridade de coisa julgada relativa”56

, bem como sejam

desprovidas de força executória.

Como lembra Laurence Bourgorgue-Larsen57

, o artigo 10, alínea 2 da

Constituição espanhola prevê a incorporação de matéria convencional que deve ser

submetida aos parâmetros de controle de constitucionalidade, ou seja, a interpretação

dos direitos fundamentais deve ser realizada em consonância com os tratados sobre

direitos humanos, comportamento que tem sido praticado pela Corte espanhola que,

numa atitude de abertura, tem seguido a jurisprudência da Corte de Strasburgo, porque

esta é uma “obrigação constitucional”. Contudo, o diálogo judiciário, por vezes, é

constante e, por outras, profundamente marcado pela aleatoriedade, variando conforme

o sistema jurídico, a época política e de acordo a composição dos tribunais.58

Essas

derivas, demonstram quão frágeis são, ainda, as estruturas de uma ordem jurídica

comum e o quanto a presença da ideia de “rede”59

mais se aproxima do atual estágio

desse diálogo judiciário.

Alargando sua competência, os juízes da Câmara dos Lordes inglesa, em 2004,

indagaram se as detenções indefinidas de pessoas suspeitas de praticar atos terroristas

eram compatíveis com o direito fundamental à liberdade e ao devido processo legal.

Buscando limitar o fundamentalismo político60

que tomou contornos sem precedentes a

partir da queda das torres gêmeas em 2001, a resposta – aberta aos princípios jurídicos

nacionais e internacionais - foi que tais detenções violavam não só a Convenção

Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem, quanto também o Human Rights

Act de 1998. Com base em tal entendimento, a Câmara dos Lordes anulou o Terrorist

Act de novembro de 2001.61

Como não ver nessa correlação entre a interpretação

nacional e europeia um trabalho hermenêutico62

exigente, uma vez dever levar em conta

56 DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (III). La refondation des pouvoirs.

Paris : Seuil, 2007, p. 46. 57 BOURGORGUE-LARSEN, Laurence, op. cit., p. 109. 58 Ibid., p. 110 59 Crítica nesse sentido pode ser vista em: ALARD, Julie. GARAPON, Antoine. Os juízes na mundialização. A nova revolução do direito. Lisboa: Instituto Piaget, s/a, p. 32. 60 DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (IV). Vers une communauté de valeurs?,

op. cit., p. 170. 61 Embora haja de ser dito que essa jurisprudência, posteriormente, sofreu muitos abalos. Consulte-se:

DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (III). La refondation des pouvoirs, op. cit.,

p. 46. LAURENS, Henry. DELMAS-MARTY, Mireille (Dir.) JABER, Hana (Coord.) Terrorismes.

Histoire et Droit. Paris : CNRS Éditions, 2010, p. 269-275.

62 STRECK, Lenio. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Editora

Saraiva, 2011, p. 111-132.

Page 17: Taysa Schiochet Anuário 2012

11

tanto o texto das Convenções, quanto o regime constitucional do Estado a que o

julgador está vinculado? Daí ser o diálogo judiciário um trabalho difícil e provocativo,

porquanto as posições tomadas ora poderão ter a natureza “extremista” ou

“integrista”63

o que redunda, como se sabe, em um problema de fundamentação.64

Esse,

enfim, parece ser o desafio para “ordenar o pluralismo”, no sentido de encontrar

respostas alternativas ao fechamento constitucional, ao minimalismo jurisdicional e às

posições amiúde rendidas ao conservadorismo judiciário65

, como também à

fragmentação do direito internacional, para evitar a dupla ameaça de uma “ordem

hegemônica” ou de uma “desordem impotente”66

.

As jurisdições de alguns Estados da América Latina têm dado bons exemplos de

diálogo convencional exercido para enfrentar importantes questões de

“transconstitucionalismo”67

e de convencionalidade. As relações entre a CIDH e as

jurisdições nacionais indicam ter esse diálogo de dupla face experimentado

intensificação e evolução. Das estatísticas da CIDH colhe-se ter ocorrido uma inflação

de demandas contra os Estados a partir do fim dos regimes autoritários. De um período

de fechamento estatal à jurisdição daquele Tribunal e resistência ao diálogo, passou-se à

abertura às decisões da Corte que, embora não sejam hierarquicamente superiores e sim

paralelas às das jurisdições dos Estados, os vinculam68

.

Comparativamente, pode-se perceber que se os juízes nacionais europeus são

apenas “induzidos”69

a controlar a convencionalidade, não é o que ocorre com os juízes

latino-americanos em suas relações com a CIDH. Primeiro, porque essa é a previsão dos

63 BOURGORGUE-LARSEN, Laurence, op. cit., p. 113 64

Associado ao modelo constitucional e convencional. Trata-se de não esquecer as três características

desse modelo de processo: expansividade; variabilidade e perfectibilidade. ANDOLINA, Italo.

VIGNERA, Giuseppe. Il modelo costituzionale del processo civile italiano. Torino: Gaippichelli Editore,

1990, p. 14-15. 65 Posição defendida, por exemplo, pelo juiz americano A. Scalia. SCALIA, A. A Matter of

interpretation: Federal Courts and Law. Princeton, 1997. 66 DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (II). Le relatif et l’universel., op. cit.,

414. 67 Diz Marcelo Neves que “um problema transconstitucional implica uma questão que poderá envolver tribunais estatais, internacionais, supranacionais e transnacionais”. NEVES, Marcelo,

Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. XXII. 68 No Brasil esse tem sido o ponto central do recente debate que surgiu após a CIDH ter julgado o

conhecido “Caso Araguaia”, cuja decisão condenou o Brasil e que teve como um dos pontos

fundamentais a análise da convencionalidade ou não da Lei de Anistia do Brasil e o julgamento da ADPF

153, pelo STF, cujo objeto era justamente se a referida Lei violava ou não a Constituição Federal. As duas

decisões distintas sobre a mesma matéria colocaram em debate a existência ou não de hierarquia entre a

Corte regional e o STF. 69 BOURGORGUE-LARSEN, Laurence, op. cit., p. 113.

Page 18: Taysa Schiochet Anuário 2012

12

artigos 1º e 2º da Convenção Americana de Direitos Humanos. Segundo, porque um

grupo expressivo de Constituições de Estados da América Latina tem incluído em seu

texto um lugar específico70

aos tratados de direitos humanos, obrigando-se a integrar o

direito convencional71

aos parâmetros de controle judicial da constitucionalidade, como

restou assentado no caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras.72

Sérgio Garcia Ramirez73

destacou ser o artigo 2º da Convenção Americana o rosto do artigo 1º por impor ao

Estados um dever amplo de respeito que envolve a adoção de medidas de largo expectro

capazes de alterar as condições estruturais das violações de direitos humanos, como

ficou decidido no caso Servellón García vs. Honduras, cujas razões – que os Estados

possuem a responsabilidade de controle de convencionalidade - foram repetidas em

muitos outros casos.74

No que diz respeito às previsões constitucionais dos países da América Latina

acerca da incorporação e respeito aos tratados internacionais de direitos humanos,

visualiza-se um “bloco de constitucionalidade”75

na matéria. A Colômbia é exemplo de

avanço significativo quanto à aplicação dos tratados de direitos humanos. Sua

Constituição apresenta um conjunto76

de dispositivos sobre a matéria. O artigo 93

estabelece a superioridade daqueles e que as normas protetivas desses direitos não

podem ficar suspensas em caso de estado de exceção, como restou decidido no processo

70 O bloco de constitucionalidade pode ser visto, por exemplo, nas Constituições: argentina: art. 75, n. 22;

da Bolívia: art. 13, IV e art. 410; brasileira: art. 5º, § 3º; do Chile: art. 5º, 2º; da Colômbia: art. 9; da Costa

Rica: art. 48; equatoriana: art. 11, n.3 e 417; da Guatemala: art. 46; da Venezuela: art. 23. 71 FIX-ZAMÚDIO, H. El derecho internacional de los derechos humanos em las Constituciones latino-

americanas y enla Corte interamericana de Derechos humanos. Revista latinoamericana de de Derecho.

Ano 1. Jan-Jun. de 2004, n. 1, p. 141-180. Também em: LÉON, Aníbal Quiroga. Relaciones entre

derecho internacional y el derecho interno: nuevas perspectivas doctrinales y jurisprudenciales en el

ámbito americano. Disponível em: http://www.iidpc.org/revistas/4/pdf/287_308.pdf. Acesso em 1 de

outubro de 2012. 72 Item 166. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_04_esp.pdf. Acesso em 20 de setembro de 2012. 73 RAMIREZ, Sérgio García. El control interno de convencionalidad. IUS. Revista del Instituto jurídico

del Puebla. México. Ano V. Nº 28, Julio-diciembre de 2011, p. 123-159. 74 Veja-se o caso Cesti Hurtado vs. Perú, de 29 de setembro de 1999. Disponível em:

<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_49_esp.pdf>. Acesso em 20 de setembro de 2012. 75 SARLET, Ingo Wolfang. Direitos fundamentais e tratados internacionais em matéria de direitos

humanos na Constituição Federal brasileira de 1988. In: Revista Brasileira de Direito Constitucional. V.

10-A. Curitiba: Juruá, 2006. 76 Arts. 9º; 53; 93; 94; 102, 2 e 214.

Page 19: Taysa Schiochet Anuário 2012

13

C-179 de 1994.77

Nesse sentido, a Corte colombiana tem reconhecido ser a

jurisprudência da CIDH um referencial para a sua interpretação constitucional78

.

No mesmo diapasão é o teor do art. 75, n. 22 da Constituição da Argentina, cuja

Corte Suprema, desde 2005, alterou jurisprudência79

anterior ao julgar caso Simon Julio

Hector e outros por entender ser dever dos juízes nacionais respeitar a

convencionalidade e a jurisprudência da CIDH. Nesse sentido foi esclarecedor o voto de

Raul Zaffaroni80

ao afirmar que “las mencionadas leyes no pueden producir ningún

efecto según el derecho internacional regional americano...” e ao dizer que a positivação

dos direitos humanos em direito internacional, a que os Estados obrigaram-se, vincula

estes últimos e toda lei interna contrária ao seu primado, deve ser repudiada pelas

instâncias judiciais81

. Cada época, como refere Garapon,82

privilegia certos crimes

porque ela os gera, mais do que qualquer outra. A partir do caso Barrios Altos vs. Perú,

cujas razões foram repetidas pela CIDH em casos posteriores, essa Corte reconheceu ser

responsabilidade estatal repudiar os crimes contra a humanidade com base nos valores

éticos, políticos e sociais, aos quais as sociedades estão profundamente vinculadas

coletiva e, muitas vezes, inconscientemente83

e que se refletem no comprometimento

com a integridade do direito84

que deve ser o cimento das motivações das decisões

judiciais.

77 CANTOR, Rey. El bloque de constitucionalidade. Aplicación de tratados internacionales de derechos

humanos. Estudios constitucionales. Año/vol.4. 002. Santiago do Chile, 2006, p. 299-334. 78 No item 7 do caso C-010 a Corte constitucional colombiana afirmou: “es particularmente relevante la doctrina elaborada por la Corte Interamericana de Derechos Humanos, que es el órgano judicial

autorizado para interpretar autorizadamente la Convención Interamericana. En efecto, como lo ha

señalado em varias oportunidades esta Corte Constitucional, en la medida en que la Carta señala em el

artículo 93 que los derechos y deberes constitucionales deben interpretarse “de conformidad con los

tratados internacionales sobre derechos humanos ratificados por Colombia”, es indudable que la

jurisprudencia de las instancias internacionales, encargadas de interpretar esos tratados, constituye un

criterio hermenéutico relevante para establecer el sentido de las normas constitucionales sobre derechos

fundamentales”. Disponível em

<http://www.flip.org.co/resources/documents/66c464528f628f4eee70584d0640cad2.pdf>. Acesso em 20

de setembro de 2012. 79 GLOPPEN, Siri. WILSON, Bruce. GARGARELA, Roberto et. all. Courts and power in Latin America and Africa. New York: Palgrave, 2010, p. 47. 80 Item 14 do voto, ibid. 81 Item 28 do voto, ibid. 82 GARAPON, A. O guardador de promessas. Justiça e democracia. Lisboa: Piaget, s/a, p. 127. 83 JOUNANNET, Emanuelle. La motivation ou le mystere de boite noire. In: RUIZ FABRI, Hélène.

SOREL, Jean-Marc. La motivation des décicions des juridictions internationales. Paris: Pedone, 2008, p.

269. 84 DWORKIN, R. O direito da liberdade. A leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo:

Martins Fontes, 2006, p. 15-16 e 134.

Page 20: Taysa Schiochet Anuário 2012

14

As medidas internas que os Estados da América Latina têm tomado com vistas a

efetivar as decisões da CIDH, como ocorre, por exemplo, com o Brasil, ao criar,

recentemente, a Comissão de Verdade e ao promover políticas públicas de educação em

matéria de direitos humanos para as polícias civis e militares, é o reconhecimento da

vinculação do Estado ao direito convencional e ao imperativo da disciplina

jurisprudencial que deriva daquela Corte, embora a decisão do STF, na ADPF 15385

tenha sido contrária a da CIDH proferida no conhecido “Caso Araguaia”86

. O teor do

julgamento da Lei de Anistia pelo STF demonstra a distância deste Tribunal do

processo de sedimentação e da força inexorável da internacionalização do direito em

matéria de direitos humanos, algo que o Brasil não pode renegar ante sua vinculação ao

direito convencional. A desconsideração do STF à jurisprudência remansosa da CIDH

em matéria de violação de direitos humanos despreza o fato de que as Constituições são

objeto de influência dos standars externos87

e ignora precedentes da CIDH, como o do

caso de Almonacid Arelano e Outros vs. Chile88

que tem em sua ratio decidendi o

exercício do diálogo jurisdicional ao invocar jurisprudência do Tribunal Internacional

para a ex-Iugoslávia, sobre a prática de crime contra a humanidade. Outra posição, no

entanto, pode ser extraída da jurisprudência do STF. O diálogo “convencional” entre

esse Tribunal e a CIDH pôde ser visto quando aquele Tribunal, ao julgar o Recurso

Extraordinário 466.34389

, decidiu sobre a impossibilidade de prisão de depositário

infiel, decisão essa criticável do ponto de vista do fundamento, já que o STF atribuiu

caráter supra-legal aos tratados de direitos humanos, mas elogiável quanto ao resultado,

já que entendeu dever prevalecer a norma internacional mais favorável segundo o

princípio internacional “pro homine”.90

Se o diálogo judiciário, fruto de vinculações sistêmicas e convencionais, não se

realiza sem dificuldades, não há de ser desconsiderado, como refere Laurence

85 Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp>. Acesso em 15 de

setembro de 2012. 86 Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_esp.pdf>. Acesso em 15 de setembro de 2012. 87 HERDEGEN, Mathias. La internacionalización del orden constitucional. In: Anuário Latino-Americano

de derecho constitucional. Montevidéo: Fundação Konrad Adenauer, 2010, p. 71. 88 Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/pais.cfm?id_Pais=4, parágrafo nº 96 89 Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2343529.

Acesso em 1 de outubro de 2012. 90NEDER MEYER, Emílio Peluzo. Responsabilização por grave violação de direitos humanos na

ditadura de 1964-1985: a necessária superação da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF

153/DF pelo direito internacional dos direitos humanos. Tese de doutorado, 2012, p. 50.

Page 21: Taysa Schiochet Anuário 2012

15

Bourgorgue-Larsen, que ele também pode ser resultado da emancipação e da emulação

dos juízes. É o que segue.

Parte 2. Fertilização recíproca como condição de possibilidade para um

diálogo espontâneo: O traçado e o sentido

Cumpre perguntar, de início, qual é exatamente o papel dos juízes e do processo

para a construção de uma teoria jurídica compatível com o fenômeno da

internacionalização do Direito. Duas manifestações podem derivar desse papel: a

primeira estaria ligada à realidade de ser inegável o caráter político das decisões dos

juízes, uma vez decidirem verdadeiras questões da sociedade e da democracia e não

mais simples disputas entre particulares e sua restrita esfera jurídica. A reivindicação

por mais Justiça faz emergir ações espontâneas entre os sistemas de Justiça para dar

conta das respostas que estão obrigados a ofertar à pluralidade de litígios com elementos

nacionais e não nacionais, mas também, a demandas que reivindicam abertura

hermenêutica para aprender com os outros, uma vez que sua natureza extrapola as

noções limitadamente nacionais dos direitos. Há um crescente número de temas que

ganham fóruns de universalidade e que formam uma espécie de biotopos91

jurídico

como, por exemplo, tudo o que hoje diga respeito aos direitos humanos e sua

concretização, bem como com a concretização da ordem democrática organizada em

dois pilares fundamentais: o Estado de Direito e o pluralismo. Daí a exigência do

diálogo interjurisdicional, mesmo que informal, cuja geometria pode ser variável (2.2.1)

e derivada de influências recíprocas (2.2.2.)

2.1. O traçado: A “geometria” do diálogo transversal para além do desenho

horizontal/vertical

A referência cruzada à jurisprudência de variados sistemas de Justiça parece

alinhar-se ao fenômeno global pautado pela circulação das relações e das informações e,

ao mesmo tempo, ser resultado dele. Se as relações substanciais reuniram o elemento da

desterritorialização e destemporalização, ambos provocados pela troca de informação

em tempo real, independentemente da localização no espaço, não poderia se esperar

fosse diferente com as reivindicações em Justiça, eis que essas, evidentemente, tendem

a ter a mesma natureza dos conflitos que lhes dão origem. Esse alinhamento

91 HERDEGEN, Mathias. La internacionalización del orden constitucional. In: Anuário Latino-Americano

de derecho constitucional. Montevidéo: Fundação Konrad Adenauer, 2010, p. 79.

Page 22: Taysa Schiochet Anuário 2012

16

jurisdicional ao contexto global consiste em fator de legitimidade e afirmação dos

sistemas de justiça, como também em resposta às demandas da contemporaneidade.

Desse modo, centrar a atenção no diálogo dos juízes explica parte desse

fenômeno, porquanto são os responsáveis por dar a última palavra no julgamento de um

caso concreto. A necessidade de entender-se esse mosaico amplo e diverso pressupõe

que se abdique das concepções e visões do paradigma da unidimensionalidade, para

reivindicar na complexidade as orientações basilares para aceitar o novo em matéria de

prestação de Justiça, como também mudanças de perspectivas sobre o que é o direito.

Nesse sentido, a complexidade não é mais pensada a partir da oposição à simplicidade

mas sim como contrária à unilateralidade e ao monismo como negação da força criadora

da realidade, como refere J. Le Goff92

.

Sem ser uma “palavra solução”, a complexidade é, como diz Edgar Morin93

,

uma “palavra problema”. Assim, recusar – e ignorar o que já existe - o diálogo

judiciário, mesmo que informal, em nome do tradicional fechamento ao “seu direito” ou

à “territorialidade processual” é pretender fazer sim da complexidade uma “palavra

solução” quando, em verdade, resta ser a complexidade “inevitável”94

no contexto da

mundialização – pela interdependência entre sistemas de direito e entre espaços

normativos nacionais e internacionais -, razão que justifica seja – a complexidade - uma

“palavra problema”, porquanto “inextrincável”95

já que ligada às questões de coerência

e completude que condicionam a legitimidade dos sistemas jurídicos. Com isso, a

geometria do diálogo jurisdicional talvez não possa ser explicada tão somente a partir

do traçado de relações horizontais e verticais que compõem o desenho desse diálogo,

embora ele explique mais fácil e habitualmente, o que acontece. A identificação de um

novo desenho, composto por linhas transversais, possivelmente ajudará a entender o

magma dos diálogos judiciais, exigindo, desse modo, uma inteligência mais fina que

abra a via a um novo realismo quanto à atuação dos sistemas de justiça.

92 LE GOFF, Jacques. Introdução. DOAT, Mathieu. LE GOFF, Jacques. PÉDROT, Philippe. Droit e

complexité. Pour une nouvelle intelligence du droit vivant. Rennes: Presses Universitaires de Rennes,

2007, p. 14. 93 MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo.3. ed. Lisboa: Piaget, 2001, p. 8. 94 DELMAS-MARTY, Mireille. Prefácio. In: DOAT, Mathieu. LE GOFF, Jacques. PÉDROT, Philippe.

Droit e complexité. Pour une nouvelle intelligence du droit vivant. Rennes: Presses Universitaires de

Rennes, 2007, p. 12. 95 Id., ibid.

Page 23: Taysa Schiochet Anuário 2012

17

Considerando-se a inevitável complexidade do real, o que se pretende não é

romper com as noções de horizontalidade/verticalidade. Do ponto de vista da

horizontalidade, essa pode ser tanto nacional, quanto internacional. A primeira derivada

do diálogo entre juízes nacionais de distintos países. A segunda, decorrente do diálogo

entre os diversos sistemas de justiça internacionais. Da ótica da verticalidade, pode-se

constatar o diálogo interjurisdicional que se produz, por exemplo, entre os sistemas de

justiça estatais, regionais e internacionais. Contudo, diálogos transversais são produto

das conversações entre sistemas de justiça nacionais e internacionais, como também

entre os primeiros e os supranacionais ou entre esses e os internacionais, justamente

porque há uma transversalidade na produção normativa que acaba por extrapolar as

fronteiras nacionais e abarcar atores jurídicos das mais diversas procedências. Trata-se,

assim, de jogos de referências cruzadas de uma jurisdição a outra, sem estar reduzido à

horizontalidade ou verticalidade.

Entretanto, no que diz respeito aos diálogos horizontais nacionais96

ou ao

transconstitucionalismo entre ordens jurídicas estatais97

, se é possível afirmar, de um

ponto de vista prático, que tem sido enormemente facilitado pelas novas tecnologias de

informação e pelas técnicas de cooperação jurisdicional, como também deriva da

publicidade processual, garantia processual98

presente em inúmeros textos

constitucionais e convencionais. A disposição das cortes de justiça para o diálogo nem

sempre obedece ao mesmo padrão comportamental. Os Estados Unidos é um País que,

em inúmeros casos, denotou resistência à abertura ao diálogo. Alguns dos juízes de sua

Corte Suprema, em atitude provincial,99

rejeitam decidir tomando por referência a

jurisprudência estrangeira, tema central do caso Lawrence vs. Texas100

, quando os juízes

Sthefan Breyer e Antonin Scalia dissentiram sobre o uso da jurisprudência da CEDH e

de outras nações. O primeiro disse que embora as diferenças políticas e estruturais entre

outros sistemas legais e o dos EUA, a experiência dos outros pode lançar uma luz sobre

as consequências de um “problema jurídico comum”. O segundo afirmou que “we must

96 BOURGORGUE-LARSEN, Lawrence, op. cit. p. 117. 97 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo, op. cit., p. 166.

98 SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Bloco de constitucionalidade em matéria de garantias processuais

na América Latina: Ultrapassando o perfil funcional e estrutural hipermoderno de processo rumo à

construção de um direito processual internacional dos direitos humanos. In: André Luís Callegari; Lenio

Luiz Streck; Leonel Severo Rocha. (Org.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica, Anuário do

Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos: mestrado e doutorado. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2010, v. 7, p. 123-144. 99 NEVES, Marcelo, op. cit., p. 168 100 Ver comentários em NEVES, Marcelo., op. cit., p. 143-144.

Page 24: Taysa Schiochet Anuário 2012

18

not forget that it is the Constitution for the United States that we are expounding”.101

Tal

dissidência de posições ficou evidente em muitos casos. Nesse sentido, sobre as

políticas de ação afirmativa a juíza Ginsburg,102

referiu que no âmbito dos direitos

humanos “a experiência de uma nação ou região pode inspirar outras nações e regiões”,

sendo lamentável o fechamento daquela Corte aos precedentes estrangeiros.

A fragilização dessa posição introvertida da Corte Suprema americana pôde ser

vista recentemente no julgamento de casos em que se manifesta o diálogo horizontal

nacional ou transconstitucional entre cortes de Estados diferentes. Em Rasul v. Bush, de

2004, e Boumediene v. Bush, de 2008, ambos fundados no direito de os indivíduos

detidos na prisão militar de Guatánamo ajuizar habeas corpus em tribunais civis norte-

americanos, destacou-se entre os motivos da decisão a discussão a respeito dos

precedentes iniciais do habeas corpus, fixados pela Câmara dos Lordes no começo do

século XVIII, mais precisamente no período posterior a 1711. Em Rasul v. Bush,

mencionou-se na Opinion proferida pelo Justice Stevens a lição de Lord Mansfield,

escrita em 1759, no caso King v. Cowle, de que mesmo se o território não fosse parte do

Reino, não haveria dúvidas a respeito do poder da Corte para conceder o writ do habeas

corpus se o território estivesse sujeito à Coroa.

Na decisão do caso Boumediene v. Bush, de 2008, em Opinion redigida pelo

Justice Kennedy, entendeu-se que apesar de o Habeas Corpus Act de 1679 ser remoto

no tempo e de haver controvérsias a respeito do sentido e alcance dos precedentes

firmados por Lord Mansfield no Reino Unido, a doutrina legal estabelecida desde os

primórdios do instituto deve ser respeitada, pois foi com base nela que os Framers

arquitetaram as liberdades fundamentais na Constituição, prevendo o habeas corpus

como instrumento vital para assegurar a liberdade.103

A abertura ao “transjudicialismo”104

e à conversação constitucional, pode

também ser vista nas decisões de outras Cortes Supremas nacionais, como, por

exemplo, a Corte Suprema da África do Sul ao referir a julgamentos da Corte dos

Estados Unidos, da Suprema Corte do Canadá, do Tribunal Constitucional da

101 Essas referências estão em SLAUGHTER, Anne-Marie. A new world order, op. cit., p. 2004, p. 76. 102 Também nesse caso a passagem está em SLAUGHTER, Anne-Marie. A new world order. New Jersey:

Princeton, 2004, p. 76-77. 103 553 U. S. ____ (2008). Opinion of the Court.p. 9 e 68. 104 Expressão de autoria da juízo O’Connor da Corte Suprema americana referida por SLAUGHTER,

Anne-Marie. A new world order, op. cit., p. 76.

Page 25: Taysa Schiochet Anuário 2012

19

Alemanha, etc.105

Berço do common law e destituído de uma Constituição, o sistema de

justiça da Inglaterra tem reconhecido autoridade persuasiva dos valores constitucionais

de outros países democráticos, especialmente quando dizem respeito aos direitos

humanos.Tal conduta, segundo Marcelo Neves,106

é um forte indício de que esse País

está aberto ao diálogo transconstitucional. Veja-se que a Corte constitucional da

Colômbia em matéria de aborto abriu-se à força persuasiva da jurisprudência nacional

estrangeira quando detalhadamente, na sentença C-355-2006, citou, farta e

minuciosamente, a jurisprudência alemã sobre a matéria.

Novamente chama-se a atenção para o caso brasileiro no que diz respeito à

justiça de transição. A ausência do transjudicialismo nessa matéria por parte do STF

também ficou marcada no julgamento da ADPF 153, já que as razões de decidir o caso

evidenciam que os agentes do Estado responsáveis por graves violações de direitos

humanos foram mantidos na condição de irresponsabilidade. Entretanto, mesmo que

pudesse ter tomado como inspiração os precedentes das Cortes nacionais dos países

vizinhos em matéria transicional, em face da força do jus cogens e do direito

convencional e, diante da autoridade persuasiva dos mesmos, por tratar-se de crimes de

igual matéria, o STF não o fez.

Essas reflexões sinalizam ser preciso tomar em conta que as bases próprias de

cada tradição jurídica – civil law e common law – indicam a impropriedade do simples

transplante, nas razões de decidir casos concretos, de instituições jurídicas de outros

sistemas, ante o risco de o mesmo tornar-se hegemônico ou de não ofertar as respostas

adequadas que o sistema importador necessita para resolver suas demandas internas

com base em sua realidade cultural, histórica e jurídica. Pretendendo encontrar respostas

ao pluralismo, Mireille Delmas-Marty107

sugere a construção de um pluralismo

ordenado, cuja fase mais arrojada seria a da unificação108

, a qual não é só de difícil

concretização quanto de escassa aceitação. A simples transplantação (a) e a hibridação

(b) seriam as duas expressões desse fenômeno. A primeira (a) de sentido negativo,

porquanto pode decorrer da dominação cultural, econômica, política ou militar,

tipificando uma aculturação jurídica muito própria dos processos de colonização. A

105 Ibid., p. . 74. Também em NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo, op. cit., p. 172. O caso em

referência é o State v. Makwanyane de 1995. 106 Id. Ibid., p. 177. 107 DELMAS-MARTY, M.. Les forces imaginantes du droit II. Le pluralisme ordonné, op. cit., p. 101-

108. 108 As outras duas e anteriores, seriam a da coordenação e da harmonização.

Page 26: Taysa Schiochet Anuário 2012

20

principal fragilidade da “transplantação unilateral” 109

ou da simples “transposição”110

para os processos de integração jurídica - e também para a realização das conversações

interjurisdicionais – seria transportar um sistema – na condição de “chave” - de um país

a outro, sem reciprocidade em nome de uma eficiência de pouca expressão e que não

integra os direitos fundamentais previstos em instrumentos internacionais de proteção

dos direitos humanos. A mesma preocupação, quanto às conversações jurisdicionais,

demonstrou a juíza da Suprema Corte canadense L’Heureux-Dubé111

ao afirmar ter o

processo de influências internacionais modificado-se da recepção para o diálogo, isto

porque juízes em várias partes do mundo procuram mutuamente autoridade persuasiva,

deixando de ser “doadores” ou “receptores” de direito, ou seja, a recepção transformou-

se em diálogo.A segunda (b) possui um sentido positivo, pois importa numa

reciprocidade de trocas, uma “mestiçagem jurídica”112

que se constitui em fonte de

enriquecimento e não de empobrecimento ou dominação.

Quanto aos diálogos horizontais internacionais, pode-se afirmar que são

caracterizados pelo reconhecimento de autoridade persuasiva da ratio decidendi de

casos julgados por tribunais internacionais ou regionais diferentes daquele que a invoca

– também internacional ou regional-, podendo envolver Cortes de mesmo continente ou

de continentes diversos. Nesse sentido, é pertinente chamar a atenção para a

conversação constitucional e convencional realizada entre a CIDH e a CEDH. Cançado

Trindade113

, ao destacar o papel fundamental de ambas as Cortes, anuncia a

contribuição das mesmas para a consolidação internacional das cortes de direitos

humanos, das quais testemunha-se um progresso notório para o aprimoramento da

efetividade desses direitos. Para isso, há que se destacar o importante papel do diálogo

mantido entre as duas jurisdições, o que evidencia um permanente espírito de

cooperação e de respeito mútuo em favor de um ideal e de um causa comum que é o

direito internacional dos direitos humanos.

109 DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (II). Le pluralisme ordonné, op. cit., p.

107. 110 Entendida como a passagem de um sistema a outro, podendo ser uma simples transcrição, ou seja, uma

transferência integral de uma norma estrangeira ante o direito nacional. DELMAS-MARTY, M. Critique

de l’integration normative. Paris: PUF, 2004, p. 114-115. 111 L’H’EUREUX-DUBÉ, C. The importance of dialogue, apud SLAUGHTER, Anne-Marie. A new

world order, op. cit., p. 74. 112 Ibid., p. 109 113 CANÇADO TRINDADE, A. A. Le dévelopement du droit international dus droits de l’homme à

travers d ela ativité et la jurisprudence des courts européenne et interaméricaine des droits de l’homme.

In: A humanização do direito internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, 353-362.

Page 27: Taysa Schiochet Anuário 2012

21

Finalmente, os diálogos transversais entre cortes nacionais e não nacionais e

vice-versa representam que o olhar recíproco aos standards internacionais, praticado

pelas jurisdições nacionais e, aos standards constitucionais, desenvolvido pelas

jurisdições não nacionais, muito mais do que vínculos meramente normativos, denotam

uma reserva de interpretação em favor de uma base intersubjetiva e intercultural para a

conformação de uma comunidade mundial de valores, em que estejam à base os direitos

humanos. Com efeito, julgamentos que envolvem questões sobre direitos humanos são

bastante propícios para essa modalidade de comunicação transversal interjurisdicional.

É o que sobreveio no caso Al-Skeini v. Secretary of State for Defense, de 2007, julgado

pela Câmara dos Lordes, no Reino Unido. Na espécie, os parentes próximos de cinco

iraquianos brutalmente mortos por soldados britânicos em Basra durante a Guerra do

Iraque, em 2003, recorreram à Câmara dos Lordes alegando que o Estado britânico

violou a Convenção Européia de Direitos Humanos, internalizada pelo Reino Unido

através do Human Rights Act em 1998. Os Lordes realizaram uma profunda análise a

respeito da jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos em relação à

interpretação do art. 1º da Convenção, especificamente se o caso poderia ser julgado

pela jurisdição britânica, dado que os fatos ocorreram fora do território do Reino Unido.

Os Lordes apresentaram em seus votos os precedentes da Corte Européia, como em

Loizidou v. Turquia (1995)114

, Issa v. Turquia (2004), Öcalan v. Turquia (2005)115

e em

Bankovic v. Bélgica (2007).116

Ao final, os Lordes negaram provimento ao pedido dos

recorrentes, pois, a jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos não provê

uma orientação clara e eles não poderiam motivar a sua decisão nas razões constantes

dos precedentes da CEDH relativos à extensão da jurisdição de países em guerra que

tem o controle efetivo da área onde ocorreram violações.

Se a transversalidade desse diálogo, por um lado, demonstra a capacidade estatal

de conversação com o mundo exterior, por outro, demonstra a superação da recepção

acrítica. A busca de equilíbrio entre autonomia e abertura elástica à jurisprudência de

outros tribunais é tarefa hermenêutica cuidadosa dos intérpretes que, se não devem

esquecer sejam as Constituições instrumentos vivos, tampouco lhes é dado ignorar a

força da integridade dos interesses da comunidade internacional.

114 SUDRE, Frédéric. MARGUÉNAUD, Jean-Pierre et. all. Les grands arrêts de la Cour européenne des

Droits de l’homme. 6. ed. Paris: PUF, 2011, p. 7-17. 115 Id., ibid., p. 147-153. 116 Em particular, a opinion do Lord Rodger of Earlsferry e do Lord Brown of Eaton-Under-Heywood:

[2007] UKHL 26. pp. 35-38; 49-65.

Page 28: Taysa Schiochet Anuário 2012

22

2.2. O sentido com dois ideais: ideal sistêmico e ideal humanista entre a

sabedoria do diálogo e a autoridade persuasiva

Padecendo do perigo da simplificação, parece ser possível identificar, como o

faz Lawrence Bourgorgue-Larsen,117

dois sentidos na conversação judicial. O primeiro

destaca um ideal de coerência presente em sistemas similares. Trata-se, assim, de um

ideal sistêmico. O segundo destaca um ideal humanista, porquanto decorre de um uma

visão comum do ser humano e da humanidade.

O ideal sistêmico, para a autora citada, corresponde aos processos de integração

econômica, política e, mais amplamente, como é o caso da União Européia, integração

cultural e social. Como foi possível observar na primeira parte deste trabalho, a

contribuição que os sistemas de justiça dos três processos de integração referidos

ofertaram decorreu da utilização em maior ou menor medida do instrumento processual

do reenvio prejudicial. É relevante observar, no entanto, que o ideal sistêmico pode ser

visto nas razões de decidir dessas jurisdições quando invocam as decisões

paradigmáticas de outros processos de integração. Veja-se que a referência, pela Corte

de Quito, acerca de emblemáticos casos julgados pelo Tribunal de Luxemburgo na

década de 60 do Século XX, como o conhecido caso Costa vs. Enel, derivou da vontade

de consolidar na região os princípios da primazia e do efeito direto do direito

comunitário.

Ora, se os processos de integração justificam-se em marcos normativos cuja

existência é marcada pelos princípios da primazia, do efeito direto e da eficácia

imediata, é certo que a coerência sistêmica é condição basilar para a concretização dos

mesmos. Porém, Burgorgue-Larsen destaca que quando as Cortes de Quito ou Manágua

citam a jurisprudência da Corte de Luxemburgo não haveria propriamente um diálogo e

sim muito mais unilateralidade por parte das primeiras. Contudo, não se pode

simplesmente afirmar ser atitude mimetista, em geral criticável. Trata-se, sim, de

reconhecimento do pioneirismo da jurisprudência do tribunal comunitário europeu, ou

seja, uma jurisprudência guia. Seguramente o contrário não se pode afirmar, pois

embora não inexistente, ainda é acanhada a referência às jurisprudências das outras

Cortes pela do Tribunal de Luxemburgo. Sua omissão é favorecida pelo peso de sua

história. De todo o modo, o ideal de coerência sistêmica atende, nesse campo, à

117 BOURGORGUE-LARSEN, Lawrence, op. cit., p. 122.

Page 29: Taysa Schiochet Anuário 2012

23

manutenção das organizações de integração em nome, sobretudo, dos interesses

econômicos e políticos.

Por outro lado, o ideal humanista pode ser vislumbrado na busca de

concretização de valores comuns, especialmente no que diz respeito aos direitos

humanos. Então, nesse sentido, a coerência almejada concerne aos valores

humanistas118

e ao reconhecimento de sua condição de “universalizáveis”. Nesse

sentido, o “diálogo judicial” ou o “comércio de juízes”119

é fonte importante para a

construção de uma teoria desses valores comuns ou, até mesmo mais ousadamente, para

a construção de uma teoria dos bens comuns mundiais. Com efeito, se em âmbito

interno, como se sabe, a efetivação dos direitos humanos, individuais e sociais ainda é

uma dificuldade, a situação se passa de modo ainda mais difícil no plano global, ante a

ausência de previsão de responsabilização ou falta de força executória dos marcos

normativos e das decisões dos tribunais que tratam da matéria. Qualquer tentativa de

estabelecimento de bens públicos mundiais não pode abdicar de reivindicar um quadro

normativo capaz de responsabilizar os atores por sua efetivação e por sua violação. Em

razão disso, conforme destaca Delmas-Marty120

o que se constata é um “grande

chamado aos juízes”, porque os indivíduos sentem-se incompreendidos e “abandonados

pelos políticos” e, amiúde, pela política – aqui o Poder Executivo, ante a escassez e os

limites de um Estado Social alicerçado em bases capitalistas – senão a ausência - de

políticas públicas eficazes.

Em nome de que princípio democrático poderão os juízes procurar suas razões

em outras fontes que não nas palavras de seu legislador? Com efeito, essa é uma

lancinante pergunta democrática formulada por Allard e Garapon121

cuja resposta pode

ser encontrada na “emancipação dos juízes” pelo aumento, crescente, da inclusão nas

razões de decidir, de texto de direito internacional. Os juízes, com isso, liberam-se de

aplicar apenas o direito interno, pois além do dever de controlar a constitucionalidade,

como demonstra o direito comparado, possuem o dever de controlar a

118 BURGORGUE-LARSEN, Lawrence. op. cit. p. 124. 119 A expressão é de ALARD, J. GARAPON, A. Os juízes na mundialização. A nova revolução do

direito, op. cit., p. 9. 120 DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (III). La refondation des pouvoirs, op.

cit, p. 41. 121 ALLARD, J. GARAPON, A. Os juízes na mundialização, op. cit., p. 12

Page 30: Taysa Schiochet Anuário 2012

24

convencionalidade122

, ou seja, de aplicar no plano da jurisdição interna os tratados e

convenções firmados pelos Estados a que estão vinculados.

Nesse sentido, trata-se de reconhecer no ius commune um sentido de tradição,

composta por um modo de pensar e um modo de vida que, ao contrário do pensamento

de MacIntyre123

, não representa o relativismo de uma dada tradição mas, antes, o

esforço de construir valores comuns. Consiste na necessidade de que seja reconhecido

um horizonte aberto que veja e compreenda a tendência do ser humano para a unidade e

universalidade, justamente porque todas as culturas são incompletas124

.

O fenômeno da ”emulação dos juízes” provocada pelas jurisdições dos

tribunais internacionais, sobretudo dos tribunais de direitos humanos em relação aos

juízes nacionais comprova que, como nunca antes, eles mostram-se permeáveis às

influências estrangeiras. Um caso claro dessa influência ocorre, por exemplo, em

matéria penal quanto às disposições de imprescritibilidade, anistia e imunidades. Desse

modo, as referências à jurisprudência dos tribunais estrangeiros, nacionais ou não

nacionais, pertence a uma prática que se consolida significativamente na atualidade. Em

matéria de direitos humanos, o famoso caso Perruche é um bom exemplo,125

ocasião em

que a jurisdição francesa foi buscar na jurisprudência americana argumentos que

justificassem sua posição.

Desse modo, o que pode ser percebido é uma grande porosidade e

permeabilidade entre sistemas jurídicos que toma a forma desse cruzamento de

referências com juízes externos126

a compor a vasta rede de comunicação

transjurisdicional formada por meio do diálogo de juízes de diferentes origens e

instâncias a delimitar o que Burgorgue-Larsen denomina de “diplomacia judiciária”127

.

122 OST, F. KERCHOVE, M. v. De la pyramide au réseau? Pour une théorie dialectique du droit, op.

cit. , p. 101. 123 MACINTYRE, A. Depois da virtude. Bauru: São Paulo, 2001, p. 422-427. Crítica à obra de MacIntyre no sentido exposto no texto, veja-se em: FISS, O. El derecho como razón pública. Madri: Marcial Ponz,

2007. 124 SANTOS, Boaventura de S. A gramática do tempo, São Paulo: Cortez, 2006, p. 93-166. 125 DELMAS-MARTY, M. Les forces imaginantes du droit. Vers uma communauté de valeurs? , op. cit.,

p. 251-252) 126 DUBOUT, E.; TOUZE, S. La fonction des droits fondamenataux dans les rapports entre orders et

systemes juridiques.In: DUBOUT, E. TOUZE, S. Les droits fondamentaux: Charnieres entre orders et

systemes juridiques. Paris: Pedone, 2010, p. 13. 127 Ibid, p. 18.

Page 31: Taysa Schiochet Anuário 2012

25

Os efeitos da emancipação e da emulação fomentam a construção de uma base

teórica e de referenciais concretos acerca dos bens públicos mundiais que tem a

pretensão de transcender as fronteiras nacionais, ante a circularidade que pode orientar

as decisões dos juízes nacionais. Todavia, ante a imprecisão que ainda domina esse

âmbito, resta reforçada a margem nacional de apreciação. Em verdade, a consolidação

da tradição do diálogo entre juízes a par de reconhecer uma jurisprudência

constitucional global referida por Slaughter, também desenha uma jurisprudência

convencional global e com isso forma um contexto de tradição com a integridade de

princípios globais em matéria de direitos humanos, onde os bens públicos mundiais

podem ser inseridos. Favorável à idéia que a mundialização contribui para estabilizar as

relações entre os homens no plano cosmopolítico, para além do Estado Nacional e do

direito internacional, Delmas-Marty128

reconhece no diálogo entre os juízes uma

dialética entre o mais geral e o particular. Nesse o global tomaria concretude e a

dialética serviria para dar conta de uma ameaça de dupla face: a) do risco da ordem

hegemônica e; b) da desordem impotente.

Trata-se da reconstituição do romance em cadeia que forma a integridade do

direito, lembrando Dworkin129

, para inserir um elemento novo que é a possibilidade da

internacionalização dos juízes nacionais ditada por exigências advindas da

complexidade das relações do mundo contemporâneo que não obedecem os limites das

bordas nacionais. Essas redes de relacionamento o que fazem, todavia, é estabelecer

uma modificação profunda no estilo judicial, criando um outro tipo de racionalidade que

diz respeito à motivação das decisões dos juízes.

Para quem conhece a sistemática dos tribunais internacionais/regionais, não é

nenhuma novidade dizer que o conteúdo de suas decisões não tem caráter

hierarquicamente superior. Porém, à base da fertilização cruzada está um tipo de

autoridade persuasiva que deriva muito menos da força do processo e muito mais do

direito material envolvido. Assim, a subordinação estreita dos juízes ao direito, implica

dizer que não estão isentos de considerar o direito convencional130

e o jus communne

128 DELMAS-MARTY, M. Les forces imaginantes du droit(II). Le relatif et l’universel., op. cit., p. 414. 129 DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 275-279. 130 Veja-se que em âmbito latino-americano a Corte Interamericana de Direitos Humanos no conhecido

caso Almonacid-Arellano contra Chile afirmou ter todo juiz nacional competência para aplicar o controle

de convencionalidade (parágrafo 124). Trata-se de uma espécie de controle de convencionalidade difuso.

Veja-se: CANTOR, R. Control de convencionalidad de las leyes y derechos humanos. México: Editorial

Porrúa, 2008, p.49.

Page 32: Taysa Schiochet Anuário 2012

26

com base nas exigências do caso concreto. Por isso, o recurso à jurisprudência

estrangeira em matéria de direitos do homem pode significar a assunção em favor de

marcos normativos internacionais de direitos humanos que fazem parte da tradição

construída pela comunidade inter-humana.

As exigências de racionalidade dos sistemas jurídicos devem estar afinadas com

a percepção de que, embora importante a atuação da jurisdição, dela não se pode esperar

tudo, porque a mundialização da justiça não significa necessariamente construção de

uma ordem cosmopolita. Quando muito poderá colaborar para a sua construção. Em

matéria de bens públicos mundiais essa é uma saída interessante porque reconhece e

respeita as diversidades nacionais, sem abrir mão de patamares mínimos legislativos e

de políticas sociais com vistas a sua implementação, como em matéria de direitos

fundamentais sociais, por exemplo. Esse é o sentido humanista do diálogo judicial.

Page 33: Taysa Schiochet Anuário 2012

A AULA MÁGICA DE LUIS ALBERTO WARAT:

Genealogia de uma Pedagogia da Sedução para o Ensino do Direito

Leonel Severo Rocha1

PRÓLOGO

Em um romance famoso durante a revolução francesa nas masmorras de Paris uma

mulher morria ao dar a luz a um filho: - quem proverá essa criança? Perguntavam-se

todos! Essa sensação de orfandade atingiu a todos nós e marcou para sempre o

imaginário das Faculdades de Direito do Brasil em dezembro de 2010.

1.INTRODUÇÃO

Em 1977, a Coordenação do Curso de Direito da UFSM, convidou alguns alunos

para assistirem a uma palestra de um professor argentino. Os quatro interessados em

Filosofia do Direito imediatamente compareceram: Antonio Flávio Xavier, Reni Pires,

Juan Carlos Duran e eu. O professor chamava atenção pelo fato de estar vestido, por

baixo de um casaco de veludo marrom, com uma camisa de seda com pequenos

orifícios, os quais, ao nos aproximarmos, percebemos que eram provocados pelas cinzas

de um cigarro que somente era retirado da boca pela substituição de um novo. Porém, o

mais surpreendente era a temática abordada: O Direito e a sua Linguagem. A base

epistemológica era a teoria de Gaston Bachelard e a Semiologia de Saussure. Hoje,

trinta e cinco anos depois, ainda tenho presente em minha memória esse dia.

Luis Alberto Warat é um grande pensador que, a partir de um sólido

conhecimento do Direito, transita livremente desde a filosofia, psicanálise, literatura até

a teoria do Direito. Com suas ideias contestadoras e radicais, vindas de lugares

inesperados, marcou profundamente o universo jurídico. Warat sempre foi Professor de

Direito. A sua vida se confunde com a história da crítica do Direito que caracterizou a

pós-graduação brasileira dos anos oitenta, onde formou muitos juristas que hoje são

destaque no cenário nacional. Warat teve como grande diferencial a capacidade de

1 Dr. EHESS-Paris. Pesquisador do CNPq. Coordenador e Prof. Titular do PPGDireito da Unisinos.

Page 34: Taysa Schiochet Anuário 2012

inspirar pessoas e reunir amigos em torno de suas ideias, motivação que por si só

transformava qualquer encontro em um espaço de grande afetividade e genialidade.

Em outubro de 2011, durante o II Congresso da Associação Brasileira de

Pesquisadores de Sociologia do Direito, Abrasd, realizado em Porto Alegre, ministrei

palestra em homenagem a Luis Alberto Warat, intitulada Aula Mágica2. De alguma

maneira, entendo que esses significantes atraem no outro a compreensão da

possibilidade de existência de um professor capaz de produzir em seus alunos a

sensação de que eles são protagonistas. Um professor que comunica ao exigir a abertura

do sentido. Não pretende exercer uma postura dominadora e centralizadora do processo

pedagógico, mas uma atitude capaz de proporcionar um tapete mágico onde os alunos

começassem a assumir um papel mais ativo nessa viagem. Com isso revelou o segredo

para um momento importantíssimo de criação, quando um professor conseguiria

transformar a sala de aula num lugar mágico, onde se criaria algo que, a princípio, seria

impossível. Esse processo pressupõe a afetividade como um elemento fundamental.

Na constituição desses espaços é notável a capacidade de Warat em fazer com

que todos os seus alunos se sentissem como sendo prediletos. Como um bom sedutor,

todos se sentiam escolhidos. Uma espécie de Don Juan dos professores, num bom

sentido, ou em todos os sentidos. Embora todos os alunos se sentissem privilegiados,

por acharem terem sido escolhidos por ele, lamento dizer, nem todos eram

contemplados. Esta é a ideia da Aula Mágica. A partir da afetividade todos sentem a

capacidade de participar e construir, desde a sala de aula, um novo mundo.

No presente texto, assim sendo, farei um breve histórico do pensamento de Luis

Alberto Warat, centrado em uma espécie de gênese do seu pensamento. Pretende-se

realizar, portanto, uma perspectiva de observação possível sobre Warat; uma visão, que

outras pessoas localizadas em outros lugares, talvez tenham percebido de outra maneira.

Como se sabe, o Warat é um argentino, ao menos na origem, pois ele brincava

dizendo que era o único latino americano que tinha dupla nacionalidade na América

Latina. Normalmente se escolhe um país europeu para ter dupla nacionalidade, mas ele

escolheu o Brasil por opção, e os baianos estão de parabéns, pois ele dizia que o lugar

em que ele mais se identificava era a Bahia, assumindo abertamente sua influência e

2Este texto é em grande parte a transcrição desta palestra. Em homenagem a Warat usarei o mínimo de

citações necessárias.

Page 35: Taysa Schiochet Anuário 2012

fascínio. Por tudo isto, não existe de maneira nenhuma uma interpretação oficial de

Warat. O que se pretende fazer aqui é mais um depoimento.

2. MAIO DE 68: Um Momento Inspirador

A Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires foi o palco argentino

da formação jurídica de Luis Alberto Warat, inclusive onde ele realizou o seu

Doutorado entre 1969 e 1972. Este período histórico é esclarecedor, e deve ser levado

sociologicamente em consideração, pois, este acontecimento, maio de 68, coincide com

o inicio de seu curso de doutoramento. Nestes anos, emerge na França, uma revolta

cultural que denunciava, sobretudo, a crise da universidade. Claude Lefort e Edgar

Morin chamaram essa quase ruptura de “La Brèche”. Durante o seu doutorado ele

vivenciaria existencialmente esse furacão que derrubou o método de ensino tradicional

no ocidente.

Não é sem motivo, então, o fato de que muitos dos eventos que nós realizamos,

traziam como temática reflexões sobre Maio de 68. Realmente foi uma cicatriz social

cujo significado, inesgotável, acabou com a legitimidade do ensino tradicional. Nesse

percurso, se colocou os estudantes como foco principal da sociedade, e a importância do

prazer, do desejo e da criatividade na educação. Ou seja, Warat é alguém que, na

América Latina, percebeu imediatamente esse movimento, que chegaria ao Brasil, como

se sabe, muito tempo depois. Claro, um dos motivos pelos quais existiu certa demora foi

porque, nesse período, o pais vivia uma ditadura militar.

Esse é um dos motivos chaves para se deixar envolver e acompanhar sem

preconceitos a vida de Warat (e de toda uma geração). O Brasil em 1964 teve uma

ditadura militar, e, posteriormente, a Argentina também sofreria com alguns períodos de

autoritarismo. O fato é que o mundo inteiro estava passando por um movimento, uma

mudança cultural extraordinária, e, Warat percebeu isto com uma rara lucidez (algo que

alguns medíocres perceberam somente anos depois), apesar dos mecanismos de censura

que todos conhecemos. Ele teve a perspicácia e a coragem de construir, e dar forma, no

meio das lavas do vulcão, um pensamento crítico arrasador.

Page 36: Taysa Schiochet Anuário 2012

3. BUENOS AIRES E A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA ANALÍTICA

Luis Alberto Warat durante o seu doutoramento na Universidade de Buenos

Aires sofreu forte influência da Filosofia Analítica. Inicialmente, foi orientado por

Ambrosio Gioja, que era um professor extremamente rigoroso e formalista. Durante a

orientação ocorre o seu falecimento, e Warat passou a ser orientado por Roberto José

Vernengo. Os dois professores orientadores tinham uma postura extremamente

distanciada dos alunos, dois catedráticos, tidos por Warat, como sendo muito esnobes.

Esse tipo de Professor iria marcar profundamente Warat, que sempre teceu fortes

críticas a esse modelo docente, às vezes ocultas, às vezes mais declaradas. Ele

discordava drasticamente da metodologia de mestres que ministram suas aulas

magistralmente, e exigiam que os alunos apenas seguissem o que eles determinassem.

Nessa ótica, Warat formularia toda uma proposta pedagógica, que, no começo,

consistiria em uma forma de compreensão e experiência do mundo, na medida em que

ia, dialeticamente, negando os professores mais importante que teve. A Faculdade de

Direito de Buenos Aires, coloca um ponto de partida para entender Warat: um grande

conhecimento de filosofia analítica e do normativismo, na linha de um autor chamado

Hans Kelsen. Embora, em seus estudos, nos últimos anos de seu doutoramento, inicie o

declínio da filosofia analítica, que surge, principalmente, com as críticas de Alf Ross.

O realismo jurídico demonstrou que a teoria normativista era insuficiente para

explicar o Direito, pois deixava de lado a sociedade. O marxismo também levantou os

comprometimentos ideológicos da pseudoneutralidade do normativismo. A partir deste

debate, na Argentina, houve um espaço para estudos sobre a linguagem na linha do

segundo Wittgenstein e da Semiologia. Neste contexto, não é por acaso que Warat iria

decidir elaborar a sua tese sobre Semiótica Jurídica3.

Na época, devido a forte influência da Filosofia Analítica inglesa em Buenos

Aires, existia uma grande preocupação em publicar textos mais na Inglaterra, do que na

Argentina. Tanto é que existiu um célebre concurso para professor titular da

Universidade de Buenos Aires, no qual Warat participou (e eu presenciei), em que ele e

todos os outros candidatos foram reprovados, porque a banca dizia que os postulantes

não tinham publicações sérias, de forma que, por este motivo, não considerava nenhum

3 O livro “O Direito e sua Linguagem” publicado em Porto Alegre pela SAFE em 1984, com a nossa

colaboração, resume essa questão.

Page 37: Taysa Schiochet Anuário 2012

deles como detentor de um currículo suficiente. Na oportunidade, ajudei Warat a levar

para a banca mais de trinta livros de sua autoria, que não foram devidamente

valorizados por tratarem de temáticas “críticas” do Direito; portanto, não científicas. Em

razão disso, o seu currículo não foi aceito4.

3. APROXIMAÇÕES COM AUTORES BRASILEIROS

No início, a literatura seria o caminho de fuga. Recorrendo a escritores

argentinos, como Cortazar e Borges, Warat procuraria o fantástico. Depois ele se

interessaria por leituras de autores brasileiros, como por exemplo, Mário de Andrade,

Oswald de Andrade e Jorge Amado, que trabalhavam mais questões nacionais. Um livro

que impressionaria Warat seria Macunaíma. Neste sentido, simbolicamente, Warat

começou a agir como tendo um alter ego Macunaíma.

E, desse modo, vivenciaria dialeticamente um choque entre a sua identidade

argentino-judaica e o fascínio da liberdade de ser um malandro, algo voltado para uma

síntese antropofágica. Estamos assim a um passo do surrealismo.

4. TESE DE DOUTORADO E A PREOCUPAÇÃO COM O ENSINO JURÍDICO

A tese de doutorado waratiana naturalmente seria sobre Semiótica e Direito. A

Semiótica poderia ver vista como uma metodologia crítica do ensino do Direito.

Começa a surgir uma tese muito forte: se o ensino do Direito baseado na analítica é um

ensino conservador e dogmático, talvez aí esteja o problema.

Portanto, é preciso mudar o ensino e com isso surge a ideia da ALMED -

Associação Latino Americana de Metodologia do Ensino do Direito - uma associação

voltada a crítica da Epistemologia dominante no Direito. Uma teoria que hoje se

aproxima muito daquela do Warat é a de Humberto Maturana. Para este último, criador

da teoria da autopoiese, o centro de toda a comunicação, é a aprendizagem. A questão

relevante residiria assim no seguinte ponto: como aprender? Assim, a metodologia do

ensino é o caminho para se repensar a aprendizagem e, a partir daí, produzir condições

4 A obra de Warat é muita extensa. Entre tantos, sugiro para uma boa iniciação, os seguintes livros:

Introdução Geral ao Direito, 3 volumes, Porto Alegre: SAFE; e a Coleção LAW, 4 volumes, publicada

em Florianópolis pela Fundação Boiteux.

Page 38: Taysa Schiochet Anuário 2012

de mudança na vida das pessoas. Esse era o ideal que Warat sempre defendeu, por meio

da ALMED.

5. WARAT NO BRASIL: a partir de Santa Maria

Warat, Doutor, vai ao Rio de Janeiro, convidado por Joaquim Falcão, para

ministrar um curso na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ.

Por motivos pessoais e políticos decide fixar residência no Brasil. Depois de alguns

trabalhos, terminou indo para UFSM em 1977 (provavelmente pela proximidade com a

Argentina). Em Santa Maria, em 1979, organizou, no sul do Brasil, um encontro onde já

figuravam grandes nomes como, o próprio Joaquim Falcão, Tércio Sampaio Ferraz

Júnior, Aurélio Wander Bastos, e outros; culminando com a fundação da Almed-Brasil.

Posteriormente, ocorreu um encontro na cidade de Santo Ângelo, com a criação do

núcleo missioneiro.

6. EM FLORIANÓPOLIS

No final dos anos setenta estavam sendo criados os primeiros Programas de

Mestrado em Direito conforme as exigências da Capes, e um dos pioneiros foi o da

Universidade Federal de Santa Catarina. Contudo, na época enfrentava-se um grande

problema para constituir o corpo docente desses programas. Tratava-se do pouco

número de doutores no mercado. Assim, quando se ficou sabendo que Luis Alberto

Warat, residia em Santa Maria, o coordenador do Mestrado em Direito da Universidade

Federal de Santa Catarina, Prof. Paulo Blasi, foi buscá-lo; e ele terminou assumindo

como professor de Filosofia do Direito. Graças a Warat, o curso foi facilmente

credenciado pela Capes.

Entretanto, no PPGD-UFSC, o trabalho de Warat passou a ter uma ressonância

muito maior. Assim como eu, outros alunos que estiveram com Warat em Santa Maria5,

o seguiram também para Santa Catarina. Vieram alunos de todo Brasil, e, inclusive da

Argentina. Em razão disso é fácil perceber que a partir do período em Florianópolis as

ideias waratianas passaram a se difundir por todo o país.

5Eu iniciei o Mestrado em Florianópolis em 1980, defendendo a dissertação em fevereiro de 1982, em um

período de trabalho profundamente compartilhado com Warat, que foi o orientador.

Page 39: Taysa Schiochet Anuário 2012

7. REENCONTRO COM KELSEN: concurso para professor em Florianópolis

Warat decidiu fazer o concurso para professor titular da Universidade Federal de

Santa Catarina. Nessa oportunidade, o tema indicado por Warat, para a apresentação de

sua tese foi: "Reencontro com Kelsen". Convém mencionar que Kelsen se tornou um

autor emblemático porque, de alguma maneira, quando Warat criticava o Direito,

também estava criticando o modelo kelseniano. Obviamente nem todo jurista pensa

como Kelsen, mas Warat sempre criticava a dogmática como se fosse inspirada no autor

da Teoria Pura do Direito. Esse "Reencontro com Kelsen" foi uma maneira que ele

encontrou para apresentar a sua tese e, ao mesmo tempo, retomar esse debate. Uma das

coisas que nós pensamos na época, e depois Warat conseguiu realizar, foi fazer o

"Kelsen em quadrinhos".

Do mesmo modo, nos anos oitenta, igualmente repercutiu em Florianópolis um

movimento que já existia na Europa, mas que aí se tornou muito forte, de cunho

marxista, assentado na proposta de uma Teoria crítica do Direito (alguns grupos

também denominaram de Uso Alternativo do Direito). Warat entendia que se deveria

contrapor a Teoria Crítica à Dogmática Jurídica. E para se referir a isso de modo mais

criativo e até bem humorado, Warat se utilizaria, mais tarde, da ideia dos "pinguins".

Dizia que o sonho de todo estudante de Direito era se tornar o que já são os

profissionais da nossa área: "pinguins". Todos iguais, sem desejos, sem vontades, uma

padronização, além de tudo, estética. E, sobretudo, conformista e comprometida com os

valores dos grupos dominantes.

8. A REVISTA CONTRADOGMÁTICA

Um dos frutos desse período em Florianópolis foi, portanto, a revista

Contradogmática. Uma revista que nós fizemos quase artesanalmente em 1980. O título

foi sugerido por André-Jean Arnaud, que sempre enviava algum artigo da França. Foi

uma publicação importante, uma das primeiras revistas críticas que surgiram no Brasil

desta época.

Page 40: Taysa Schiochet Anuário 2012

9. UMA FASE MUITO PRODUTIVA: Várias publicações e muita criatividade

Neste período em Florianópolis, Warat começou a publicar vários livros

criticando o Direito, e o que muitos falam hoje como uma nova Hermenêutica Jurídica,

ele já pensava desde aquela época. Nesse sentido, se poderia citar os livros "Mitos e

Teorias da Interpretação da lei" ou mesmo "Direito e sua linguagem". Muitos estão hoje

descobrindo o que Warat, de certa forma, já havia mencionado naquela época, às vezes

inclusive sem citá-lo. Por isso, deve ficar claro que desde o final dos anos 70, início dos

anos 80, já havia em Warat uma forte análise crítica à interpretação formalista da lei.

Existe, assim, um momento extremamente criativo em Florianópolis, no qual Warat

começa a liderar a crítica, tendo influências teóricas surpreendentes para quem é da área

do Direito. Por exemplo, surge a noção de carnavalização, o Manifesto do Surrealismo

Jurídico, a Cinesofia, e a ideia de uma Pedagogia da Sedução.

O conceito de Carnavalização, que aparece em Bakthin (autor russo) em um

primeiro escrito, na perspectiva waratiana, sugere que para se pensar o Direito é preciso

uma linguagem carnavalizada, sem um lugar único, ou ponto certo, constituindo

basicamente uma polifonia de sentidos. Trata-se de uma linguagem que não possui um

centro, configurando-se em um lugar onde todos podem falar.

Porém, no Manifesto do Surrealismo jurídico começam a nascer rompantes de

imensa criatividade, definindo o novo pensamento waratiano. O surrealismo é muito

importante, porque graças a ele, Warat postula, e os seus alunos ainda mais, que o que

se pensa pode acontecer. Essa é uma ideia baseada na psicanálise e nas loucuras de

Breton. Ou seja, a realidade é criada pela nossa imaginação. Também se pode

mencionar, na data, um outro texto: "Manifestos para uma ecologia do desejo"6.

Do mesmo modo, divulgando suas teorias, na cidade de Curitiba, Warat também

fez vários encontros sobre o amor. Seminários onde se relacionava o Direito com o

amor. Começa-se a sair da sala de aula. As coisas vão acontecendo fora da instituição e

isso configura a sua grande crítica ao ensino do Direito. Finalmente, o mais importante

seria, para a construção do saber, a liberação da afetividade, e precisamos de outros

lugares para isso. Com o livro o Amor Tomado pelo Amor surgiu a proposta de se fazer

um filme com o mesmo titulo, inspirado no cinema cubano. Porém Warat que tentou

colocar uma triz cubana como protagonista, nunca gostou da versão realizada.

6 WARAT, Luis Alberto. Manifestos para uma ecologia do desejo. São Paulo: Acadêmica, 1990.

Page 41: Taysa Schiochet Anuário 2012

Por outro lado, outro aspecto marcante do pensamento waratiano é o fato de que

a literatura passa a aparecer cada vez com mais intensidade. Warat seria também o

primeiro a ministrar a disciplina de Linguagem e Argumentação Jurídica, em

Florianópolis. Para tanto, ele utilizaria o livro "O nome da rosa" de Humberto Eco,

como texto da disciplina, algo surpreendente para muitos. Também teve interesse por

Jorge Amado, tendo lugar de destaque, um de seus livros mais famosos, revisto como:

"A Ciência Jurídica e seus dois Maridos"7. Jorge Amado, para ele, era inovador pela

possibilidade que tem dona Flor de conciliar dois tipos de personagens diferentes, como

maridos. Ele brincava muito com isso. No livro inspirado em Jorge Amado, ele coloca

dois pontos opostos, uma pessoa mais racional e outra mais sentimental (vamos dizer

assim). Warat vai criticar duramente o formalismo e a criação desses espaços dotados de

verdade única como polo dominante no Direito.

Para aplicar suas teses, Warat propõe, como uma espécie de cartografia, a

Didática da Sedução: um território onde as pessoas se apaixonam pelo saber. Assim, ao

mesmo tempo em que ele pensava a sala de aula, também apresentava duras críticas ao

universo jurídico, direcionadas tanto, ora para juízes, como, ora para promotores (e

também para professores), que eram os Teodoros da história. Assim, ele iria preparando

a saída da sala de aula (e do Direito oficial). Para tanto, uma das estratégias que Warat

também adotaria foi o tema da mediação, compreendida por ele como um espaço onde

realmente as pessoas poderiam, talvez, manifestar e demonstrar seus desejos. Em todo

esse processo permeava um tema muito forte, que trazia o seguinte questionamento:

qual seria o ensino ou a didática mais adequada? Para Warat, era preciso um ensino

voltado ao prazer, que ele chamou de Didática da Sedução. Não é fácil, mas todo o

professor deveria ser um sedutor.

10. BALANÇO DA VIDA: protagonista em seus textos

Pode-se perceber, em textos que vão de 1997 a 2000, que Warat começa a fazer

uma espécie de balanço de sua vida. Já havia ocorrido uma Parada da Meia-idade em

1990. Mas, a virada do milênio é um significante tanático. Tudo isto porque, cada vez

mais, o crepúsculo, colocava-o como um personagem, protagonista, de tudo. Na ânsia

de aproveitar ao máximo o prazer da vida. O famoso caderno de anotações, borrador,

7 WARAT, Luis Alberto. A Ciência Jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000.

Page 42: Taysa Schiochet Anuário 2012

que segundo Russo, o acompanhava até na banheira (Prefácio de Derecho al Derecho),

seria substituído pelo notebook, transformando-se em um blog.

Realmente, o blog foi usado por Warat como forma de comunicação simbólica

universal para colocá-lo democraticamente em rede (luisalbertowaratblogspot). Warat

deixaria de ser um privilégio de poucos, para entrar no ciberespaço. Houve projetos até

de se fazer um canal de TV, que experimentalmente se chamou Arte e Direito. Deste

modo, conseguiu assimilar facilmente novas tecnologias. Com o seu blog, adotou a

ideia da aprendizagem em rede, como exatamente aquilo que ele precisava para sair da

prisão da sala de aula.

11. OS CABARÉS: a saída da sala de aula

Outrossim, em consonância com tudo isso, Warat recriaria a ideia de Cabarés.

Trata-se de uma inspiração que ele trazia de sua juventude, ou seja, de utilizar o teatro

como uma forma de expressão. Entendia ele que as pessoas que estão estudando

precisam ter a possibilidade de expressar seus dons e competências mais profundos, e o

professor teria como principal função permitir isso. Assim, desde as formas artísticas

mais tradicionais, música, poesia, até as mais inusitadas, todos merecem um instante,

pelo menos, das luzes do cabaré. De qualquer maneira, seria um lugar de liberação,

inclusive sexual. Então, o cabaré seria um espaço fantástico, que de alguma forma

responderia a questão que coloquei no início: a construção de um portal diferenciado

que pode ser chamado de Aula Mágica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: Aula Mágica e a pedagogia waratiana da sedução

A Aula Mágica é um Cabaré. O mal estar da civilização é a repressão do desejo.

As pessoas vivem em uma sociedade de incertezas, quanto ao que é certo ou errado,

dominadas pela tecnologia e o consumismo. Então, em uma sociedade desse tipo, o

mais importante, talvez, seja ter, ao menos, alguns momentos de prazer. Esse, junto com

a afetividade, talvez seja o caminho. Se na universidade não tenho esse lugar: invento o

Cabaré.

Page 43: Taysa Schiochet Anuário 2012

No início, houve o Cabaré Macunaíma, em homenagem a literatura

antropofágica brasileira; depois, os cafés filosóficos, que transformavam uma mesa de

bar em um circo mambembe. Tudo isso atravessado pelo amadurecimento do blog.

Houve até um momento Warat-Avatar. Mais tarde, com a materialização (mágica) da

Casa Warat, este movimento rompeu todas as fronteiras. A partir daí, Warat tem

compartilhado como nunca, com todos, os seus cumplices a solidariedade do desejo.

Warat, insisto, nos ensinou com seu próprio exemplo que é possível desenvolver

uma pedagogia voltada à criatividade. Como exemplo de sucesso desta pedagogia, nós

temos que, todos os alunos mais diretos do Warat conhecem muito bem a teoria de

Kelsen. Mas, Warat, poucas vezes, ensinou Kelsen em sala de aula. Tratava de ensinar

com paixão e criatividade, colocando as pessoas no centro do processo didático.

Embora, não se ensinasse, às vezes, diretamente o tema, as pessoas vivenciavam um

processo de aprendizagem. Isto quer dizer que, com Warat, se aprendia Kelsen sem ter

grandes aulas magistrais. Criava-se uma motivação, um desejo, e as pessoas

participavam de forma ativa desse processo. Essa didática waratiana é extremamente

interessante, porque, ao contrário, do que todo professor tradicional pensa, somente se

tem acesso ao saber, e a construção de memória, com afetividade. Pelo menos essa é a

interpretação que eu faço da didática waratiana.

São Leopoldo, 14 de dezembro de 2012.

Page 44: Taysa Schiochet Anuário 2012

TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL: a prevalência do interesse ecológico mediante a

extrafiscalidade.

MARCIANO BUFFON1

O contemporâneo formato do Estado não prescinde da arrecadação de tributos. Isso

implica reconhecer que um dos principais deveres inerentes à cidadania consiste em pagar

tributos, uma vez que, com isso, o Estado assegura os recursos necessários para garantir a

realização de programas e políticas direcionadas à obtenção do denominado bem comum -

razão da própria existência do Estado.

Quando se examina o sentido do referido bem comum, há de se ter presente que seus

contornos conceituais não podem ficar à mercê de programas governamentais unilateralmente

elaborados. Em um Estado Democrático de Direito - tal qual o existente formalmente no

Brasil desde 1988 - a idéia de bem comum está constitucionalmente positivada, razão pela

qual existe uma vinculação e um comprometimento de todos os Poderes e em todas as esferas

com a sua realização. Pode-se dizer, dessa forma, que o bem comum corresponde à

concretização dos objetivos e princípios constitucionalmente postos, especialmente mediante

a realização de direitos fundamentais.

Portanto, à medida que os direitos fundamentais alcançam um grau satisfatório de

realização, automaticamente pode-se dizer que se trilha o caminho da maximização da

densidade normativa do princípio da dignidade da pessoa humana e, num plano pragmático,

caminha-se na direção do bem comum.

Em vista do exposto, faz-se necessário examinar como a tributação pode servir de

instrumento à realização dos direitos fundamentais denominados de terceira dimensão ou

geração, notadamente o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A questão a ser discutida não diz respeito à aplicação dos recursos obtidos com a

exigência de tributos para concretizar o bem comum, isto é, a fórmula segundo a qual os

direitos se realizam mediante a instituição de uma fonte de custeio, com a aplicação do

produto da arrecadação em programas sociais tendentes a tal fim.

Refere-se, sim, à possibilidade de que o Estado utilize a tributação como instrumento

de intervenção na sociedade, sobretudo no campo econômico e social, com vistas a

1 Doutor em Direito do Estado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, com período de

pesquisa na Universidade de Coimbra. Professor de Direito Tributário da Graduação e no Programa de Pós-

Graduação em Direito -PPGD da UNISINOS. Advogado.

Page 45: Taysa Schiochet Anuário 2012

concretizar suas diretrizes constitucionalmente previstas. Ou seja, ao invés de apenas

arrecadar tributos e aplicar os recursos respectivos, o Estado estimula ou desestimula

comportamentos, visando atingir os mesmos fins que tradicionalmente buscava tributando.

Esse fenômeno é denominado de extrafiscalidade.

Não seria possível sustentar que a extrafiscalidade viesse a substituir, completamente,

a clássica fórmula, pois o Estado continuará a ter que arrecadar recursos para fazer frente ao

ônus decorrente da sua própria razão de existir - sobretudo com a realização dos direitos

sociais, de cunho prestacional. No entanto, paralelamente a isso, é possível que políticas

tributárias extrafiscais cumpram um importante papel na realização dos objetivos

constitucionais, em especial o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado.

Há de se reconhecer que o grau de importância atribuído especificamente ao referido

direito, decorre justamente do fato de que o ambiente encontra-se em uma situação de risco,

em face de escolhas relacionadas às formas predatórias de desenvolvimento utilizadas,

sobretudo, ao longo do último século. O resultado destas escolhas implica um meio ambiente

degradado - cujos recursos naturais beiram o esgotamento - sendo que a própria perspectiva

humana, dessa e das futuras gerações, resta comprometida.

Em vista disso, faz-se necessário que todos os meios possíveis e disponíveis sejam

utilizados, com vistas a minimizar os devastadores efeitos deste modo de existir, pois se este

processo seguir seu inexorável curso até aqui experimentado, caminhar-se-á para a própria

inviabilidade do futuro.

Nesta perspectiva, a tributação tem uma importante contribuição a dar e ocupa uma

posição privilegiada entre os mecanismos disponíveis à proteção e preservação ambiental,

notadamente em seu viés interventivo. Por isso, serão analisados a seguir, pressupostos,

limites e fins possíveis para as políticas extrafiscais, além da possibilidade de instituição de

normas indutoras de práticas que busquem a efetivação e operacionalização do direito ao meio

ambiente ecologicamente equilibrado.

1 O MEIO AMBIENTE COMO DIREITO FUNDAMENTAL E A

SUSTENTABILIDADE

Tendo em vista que se pretende discorrer acerca da densificação da eficácia social do

direito fundamental ao meio ambiente por meio da tributação, nada mais oportuno do que

Page 46: Taysa Schiochet Anuário 2012

iniciar esta discussão a partir da compreensão de fundamentalidade de tal direito.

A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, realizada em Estocolmo2, em

1972, consagrou em seu Princípio I que:

O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de

condições de vida adequada em um meio, cuja qualidade lhe permita levar uma vida

digna e gozar de bem-estar, e tem a solene obrigação de proteger e melhorar esse

meio para as gerações presentes e futuras.

Esse princípio, do ponto de vista internacional, significou o reconhecimento do direito

do ser humano a um bem jurídico fundamental: o meio ambiente ecologicamente equilibrado

e a dignidade humana. Além disso, firmou um comprometimento de todos com a preservação

do meio ambiente, para as presentes e futuras gerações.

Como resultado desse reconhecimento internacional, a Constituição Brasileira de 1988

estabeleceu, em seu artigo 225 que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao

Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras

gerações”.

Ao declarar que todos têm direito ao meio ambiente sadio e ao impor posteriormente a

incumbência do Estado e da coletividade de protegê-lo, não há como negar que se trata de um

direito fundamental, mesmo não estando inserido no capítulo dos direitos e deveres

individuais e coletivos.3

É neste sentido a afirmação de Canotilho ao referir “que o direito ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado é direito de terceira geração, alicerçado na “fraternidade” ou na

“solidariedade”. E segue mencionando que nessa categoria, tem-se “direitos que não se

destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um

2 A Conferência de Estocolmo sobre Meio Ambiente de 1972, ficou caracterizada como o primeiro instrumento

em matéria de Direito Internacional Ambiental. Em seu texto, preâmbulo e 26 princípios, foram abordadas as

principais questões que assolavam o planeta, recomendando critérios para sua salvaguarda. 3 Ao fazer referência aos direitos de terceira geração, onde está incluído o direito ao meio ambiente, Bonavides

declara que: “Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira

geração tendem a cristalizar-se neste fim de século enquanto direitos que não se destinam especificamente à

proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Tem primeiro por

destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em

termo de existencialidade concreta. Os publicistas e juristas já os enumeram com familiaridade, assinalando-lhe

o caráter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos anos na esteira da concretização dos direitos

fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente,

à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade”. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional.

12 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 523.

Page 47: Taysa Schiochet Anuário 2012

determinado Estado”.4 Ou seja, tratam-se de direitos destinados e direcionados a todos

indistintamente.

Disso decorre a associação direta entre o direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado e o direito a vida - motivo que reforça seu caráter de fundamental - posição

compartilhada por Milaré na seguinte passagem:

[...] o reconhecimento do direito a um meio ambiente sadio configura-se, na

verdade, como extensão do direito à vida, quer sob o enfoque da própria existência física e saúde dos seres humanos, quer quanto ao aspecto da dignidade desta

existência – a qualidade de vida –, que faz com que valha a pena viver. Deveras, “o

caráter fundamental do direito à vida torna inadequados enfoques restritos do

mesmo em nossos dias; sob o direito à vida, em seu sentido próprio e moderno, não

só se mantém a proteção contra qualquer privação arbitrária da vida, mas além disso

encontram-se os Estados no dever de buscar diretrizes destinadas a assegurar o

acesso aos meios de sobrevivência a todos os indivíduos e todos os povos. Neste

propósito, têm os Estados a obrigação de evitar riscos ambientais sérios à vida.5

Fica evidente assim que o direito a um meio ambiente sadio e ecologicamente

equilibrado configura-se como extensão ou corolário do direito à vida, e daí o seu caráter de

fundamental. Reconhecido o caráter de fundamentalidade ao meio ambiente, resta responder a

seguinte indagação: como conciliar o ímpeto do sistema capitalista com a preocupação com o

meio ambiente, em um contexto marcado por um modelo de desenvolvimento que

compromete o meio ambiente?

Há de se reconhecer, pois, que são necessárias medidas urgentes a fim de salvaguardar

os recursos naturais não renováveis e, por conseguinte, diversas espécies da fauna e da flora

em extinção. É fato que o processo de industrialização e o modelo de crescimento ilimitado

presente em grande parte dos países resultaram consequências imprevisíveis para a atmosfera,

o solo, a água e, portanto, para todos os seres vivos.

A Constituição traz um determinação de como fazê-lo quando estabelece em seu artigo

170 que o desenvolvimento econômico encontra-se condicionado à observância dos princípios

ambientais, propondo assim o desenvolvimento sustentável.

Por desenvolvimento sustentável, entende-se o desenvolvimento capaz de suprir as

necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade de atender as necessidades das

futuras gerações. É o desenvolvimento que não esgota os recursos para o futuro. Sobre a

sustentabilidade afirma Juarez Freitas:

4 LEITE, José Rubens; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. SP:

Saraiva, 2007. p. 103. 5 MILARÉ, Édis, Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 96.

Page 48: Taysa Schiochet Anuário 2012

Sustentabilidade é o princípio constitucional que determina, independentemente de

regulamentação legal, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do Estado e

da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e imaterial,

socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e

eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente de modo preventivo e

precavido, no presente e no futuro, o direito ao bem-estar físico, psíquico e

espiritual, em consonância homeostática com o bem de todos.6

Quando se examina a questão da sustentabilidade, enfim, impõe-se repensar o dogma

da busca do desenvolvimento econômico a qualquer preço, pois a “noção de crescimento

econômico iníquo e a qualquer custo, tão cara a economistas, juristas e políticos superficiais,

passa a ser agudamente problematizada e tendencialmente desconstituída pelos intelectos

mais bem equipados.”7

Esta, pois, é a discussão que se pretende alcançar. Especificamente, há de se examinar

de que forma a tributação poderá servir de instrumento de concretização do direito

fundamental em questão e, portanto, transformar-se numa aliada importante da causa

ambiental. Em vista disso, passa-se a examinar quais os caminhos constitucionalmente postos

para alcançar tal intento.

2 CONCEITO E FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DA EXTRAFISCALIDADE

O Estado contemporâneo tem na tributação seu principal meio de financiamento. Sem

a arrecadação de recursos, não há como realizar políticas públicas que sirvam à concretização

das promessas constitucionais, nem como manter a própria estrutura estatal em

funcionamento. Esta atividade é comumente designada de fiscalidade.

A fiscalidade, portanto, refere-se a forma como o Estado arrecada tributos com o

objetivo prover recursos a serem utilizados na realização do seu fim maior - que é o bem

comum de todos. Como menciona Paulo de Barros Carvalho:

Fala-se em fiscalidade sempre que a organização jurídica do tributo denuncie que os

objetivos que presidiram sua instituição, ou que governam certos aspectos da sua

estrutura, estejam voltados ao fim exclusivo de abastecer os cofres públicos, sem

que outros interesses – sociais, políticos ou econômicos – interfiram no

direcionamento da atividade impositiva.8

6 Freitas, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 147.

7 Freitas, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 30. 8 CARVALHO, Paulo de Barros. In SOUZA, Jorge Henrique de Oliveira Souza. Tributação e meio ambiente.

Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 99.

Page 49: Taysa Schiochet Anuário 2012

Por conseguinte, se o viés fiscal da tributação diz respeito a como o Estado abastece os

cofres públicos, a extrafiscalidade ocupa um espaço em seu entorno e se caracteriza por seu

notório mecanismo interventivo. Como explica o referido autor:

[...] a compostura da legislação de um tributo vem pontilhada de inequívocas

providências no sentido de prestigiar certas situações, tidas como social, política ou

economicamente valiosas, as quais o legislador dispensa tratamento mais

confortável ou menos gravoso. A essa forma de manejar elementos jurídicos usados

na configuração dos tributos, perseguindo objetivos alheios aos meramente

arrecadatórios, dá-se o nome de extrafiscalidade.9

Isso não significa que um tributo predominantemente extrafiscal não resulte

arrecadação. Pode ser, inclusive, que a arrecadação seja maximizada em face de uma política

tributária extrafiscal. Dessa forma, a extrafiscalidade se apresenta como um típico mecanismo

de intervenção do Estado, ou ainda, nas palavras de Casalta Nabais consiste num:

[...] conjunto de normas que, embora formalmente integrem o direito fiscal, têm por finalidade principal ou dominante a consecução de determinados resultados

económicos ou sociais através da utilização do instrumento fiscal e não a obtenção

de receitas para fazer frente face às despesas públicas.10

Quanto a sua operacionalidade, Carrazza explica que a extrafiscalidade se manifesta

quando, visando o bem comum, é editada uma norma que aumenta ou diminui as alíquotas

e/ou as bases de cálculo dos tributos, como o objetivo principal de induzir os contribuintes a

fazer ou deixar de fazer alguma coisa.11

O que se percebe a partir destes conceitos é que toda tributação implica intervenção

do Estado na economia. A distinção, pois, reside na intensidade da intervenção, bem como na

preponderância da finalidade. Quando o objetivo meramente arrecadatário mostra-se mais

intenso, está-se diante da fiscalidade; quando o objetivo é estimular/induzir ou desestimular

determinados comportamentos, trata-se de prevalência da conotação extrafiscal. De qualquer

forma, não se pode dizer que um tributo terá caráter somente fiscal ou extrafiscal. Os

objetivos fiscais e extrafiscais coexistem.

De outra baila, pode-se afirmar que, tanto na fiscalidade como na extrafiscalidade,

busca-se a obtenção do bem comum, haja vista que, se por um lado o Estado necessita de

recursos para fazer frente aos dispêndios necessários na promoção de suas políticas públicas,

9 Ibid., op. cit.

10 CASALTA NABAIS, José. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 2004. p. 629. 11 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto Sobre a Renda: perfil constitucional e temas específicos. São Paulo:

Malheiros. 2005. p. 101.

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por outro, o Estado mediante a indução ou o desestímulo de condutas direciona

comportamentos que estejam em consonância com seu fim maior.

Definidas as diferenças entre a fiscalidade e a extrafiscalidade, e, considerando que o

objetivo desta abordagem é tratar das normas indutoras de práticas ambientais, a

extrafiscalidade ocupará um espaço de centralidade, nos termos que segue.

Como fora dito, a tributação extrafiscal implica o tratamento diferenciado para aqueles

que se encontram em situação de igualdade, haja vista, que se pretende, por meio desta,

estimular uma determinada prática ou conduta, ou desestimular outras.

A primeira vista, tal afirmação conduziria à conclusão de que a extrafiscalidade

afrontaria ao principio da igualdade. No entanto, tal assertiva estaria destituída de

fundamentação, uma vez que o eventual tratamento desigual visaria concretizar os objetivos

constitucionais tão ou mais relevantes que a igualdade perante a lei.

Não se pode falar, desse modo, que as discriminações perpetradas pela extrafiscalidade

sejam contrárias à constituição, desde que tais discriminações tenham por objetivo efetivar e

concretizar aqueles princípios consagrados no próprio texto constitucional. A priori, portanto,

a extrafiscalidade se legitima na exata proporção da legitimidade dos objetivos, e isso se

verificará, certamente, quando os fins visados passarem pela realização dos direitos

fundamentais, notadamente aquele em questão.

Com base no exposto, a extrafiscalidade tributária, desde que observados

determinados limites e tendo objetivos constitucionalmente justificáveis se constitui, não

numa afronta, mas num eficaz meio de densificação do direito fundamental ao meio em

ambiente ecologicamente equilibrado.

A aplicação deste instrumento pode ocorrer de duas formas: estimulando ou

desestimulando comportamentos. Para o estímulo podem ser utilizados os benefícios ou

incentivos fiscais, enquanto que, para o desestímulo deve-se ampliar ou agravar a exigência

tributária.

Nesta linha, Casalta Nabais apresenta as duas formas de extrafiscalidade:

[…] a extrafiscalidade se expande por dois grandes domínios, cada um deles

traduzindo uma técnica de intervenção ou de conformação social por via fiscal: a dos

impostos extrafiscais, orientados para a dissuação ou evitação de determinados

comportamentos (em que são de integrar os chamados agravamentos extrafiscais de

impostos fiscais), e a dos benefícios fiscais dirigidos ao fomento, incentivo ou

Page 51: Taysa Schiochet Anuário 2012

estímulo de determinados comportamentos.12

De qualquer sorte, vale sempre lembrar que a utilização de qualquer uma das formas

da extrafiscalidade não impõe o sacrifício de direitos fundamentais de primeira dimensão ou

geração, em especial aqueles que limitam a ação estatal no campo tributário.

Noutras palavras, não se faz necessário que aqueles direitos fundamentais,

representativos do princípio da segurança jurídica, sejam sacrificados para que o intento

propugnado com a extrafiscalidade possa ser alcançado. Como menciona Carrazza:

De qualquer modo, os tributos extrafiscais, tanto quanto os fiscais, devem submeter-

se aos princípios que informam a tributação: igualdade, legalidade, generalidade,

proporcionalidade, não-confiscatoriedade etc. Além disso, à medida em que interferem nas condutas das pessoas, precisam encontrar respaldo num valor

constitucionalmente consagrado, nunca em concepções ideológicas ou morais,

incompatíveis com a liberdade na atuação da vida privada das pessoas, que deve

imperar num Estado Democrático como o nosso.13

Reconhece-se, por conseguinte, a importância de se observar as denominadas

“limitações constitucionais ao poder de tributar”, especialmente no que tange a legalidade,

anterioridade, irretroatividade, igualdade perante lei, livre circulação e vedação ao confisco,

nos termos preconizados pelo artigo 150 da Constituição Brasileira.

Não obstante a extrafiscalidade se manifeste sob duas formas antagônicas (oneração e

desoneração fiscal), há de se reconhecer previamente que o enfoque dos benefícios e

incentivos fiscais visando estimular comportamentos ambientalmente adequados, mostra-se

mais eficaz na concretização do objetivo perseguido.

Enfim, uma vez que se reconhece que a tributação tem um importante papel a cumprir

em prol da causa ambiental, há de se examinar de que forma ela poderá ser moldada levando-

se em consideração o interesse ecológico, isto é, há de se intensificar os mecanismos de

extrafiscalidade com vistas à eficazmente fazer prevalecer o interesse ecológico na tributação.

3 A prevalência do interesse ecológico na tributação

Os contornos da carga tributária brasileira, tradicionalmente, foram definidos levando-

se principalmente em consideração o interesse econômico. Qualquer discussão sobre a

12 CASALTA NABAIS, José. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 2004. p. 630. 13 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto Sobre a Renda: perfil constitucional e temas específicos. São Paulo:

Malheiros. 2005. p. 132.

Page 52: Taysa Schiochet Anuário 2012

temática passava (e ainda passa) pelo crivo de “ser economicamente interessante ou útil”. No

entanto, o sistema tributário de um país não pode ficar exclusivamente a mercê do interesse

econômico. Há de prevalecer o interesse humano, pois o sistema tributário existe em função

do homem, não vice-versa.

Quando se fala em interesse humano, é inescapável pensar na preservação do meio

ambiente, uma vez que não é possível dignamente viver em um espaço físico degradado,

tampouco se admite que em prol de uma fausta existência seja comprometido o ambiente de

futuras gerações. Por isso, impõe-se pensar um modelo tributário que possa servir como

instrumento de preservação ambiental.

Especificamente nesta linha, Herrera Molina14

sustenta seja introduzido o interesse

ecológico na tributação, o que significa, noutras palavras, a gestação de um sistema tributário

que tenha como norte e razão de ser a realização dos direitos fundamentais, notadamente

aqueles que estejam o mais conectados possível, com a ideia de dignidade humana. Por óbvio,

o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado ocupa um espaço de

central importância.

Numa concepção mais conservadora, essa idéia foi desenvolvida mediante a simples

instituição de impostos afetados ou contribuições sociais, cujo produto da arrecadação estava

previamente destinado a servir de fonte de recursos para o desenvolvimento de políticas

públicas aptas à preservação ambiental.

Entretanto, a simples instituição de uma contribuição, cujo produto da arrecadação

seja destinado para o fim ambiental não significa que, de fato, tal fim seja alcançado. Não

bastasse isso, os recursos com destinação previamente estabelecida são, por vezes,

canalizados para “outras áreas” de atuação do Estado, as quais, nas raras oportunidades, estão

descompromissadas com os objetivos que deram ensejo à instituição da exação fiscal.

De um modo geral, lamentavelmente tem que se reconhecer que uma parte

significativa de tais recursos sequer é empregada em quaisquer áreas de atuação estatal, em

face de ações ilícitas que endemicamente ainda usurpam recursos públicos neste país.

Dessa forma, não obstante as intenções sejam meritórias, a instituição de uma

contribuição social não garante que o objetivo originalmente visado (preservação do meio

ambiente) seja efetivamente atingido. Tampouco significa que os recursos obtidos sejam

utilizados para alcançar os fins almejados quando da instituição da contribuição social

14

O mencionado autor defende seja realizada uma reforma - que denomina de ecológica - no sentido de ser

introduzido “interesse ecológico” no sistema fiscal. HERRERA MOLINA, Pedro Manuel. Derecho Tributário

Ambiental: la introducción del interés ambiental en el ordenamiento tributario. Madrid: Marcial Pons, 2000. p.

46.

Page 53: Taysa Schiochet Anuário 2012

respectiva.

Por isso, faz-se necessário encontrar meios indiretos de atuação estatal, mediantes

políticas tributárias cujo objetivo seja garantir a máxima eficácia ao direito fundamental ao

meio ambiente ecologicamente equilibrado. Isto é, uma vez que se constata a não efetividade

de políticas sociais financiadas com a arrecadação de tributos afetados, impõe-se direcionar

ações com vistas à implementação de uma fórmula alternativa à desgastada opção de se

instituir uma contribuição para financiar a proteção ambiental.

Seguir essa proposta alternativa também se faz necessário, porque há um relativo

consenso acerca da impossibilidade de ampliação da carga tributária brasileira, tendo em vista

que esta já alcançou o patamar próximo à insuportabilidade. Deve-se, pois, buscar meios de

reduzir a carga tributária, e não ampliá-la com a majoração ou instituição de novas

contribuições, pretensamente destinadas a servir de fonte de custeio à proteção ambiental.

Nesse contexto, emerge a extrafiscalidade ambiental como um importante instrumento

de densificação de eficácia do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado. Não se trata, por óbvio, de algo inédito, uma vez que há muito tempo a

extrafiscalidade vem sendo utilizada para esta finalidade, notadamente mediante a concessão

de benefícios e incentivos fiscais.

O que se advoga é a ampliação do uso da tributação como meio direcionador de

comportamentos potencialmente úteis à causa ambiental. Isto é, o sistema tributário deve ser

moldado, levando-se em consideração o interesse humano, para que a tributação passe a

existir em função do ser humano, e não vice-versa. Quando o meio ambiente é levado em

consideração, certamente o homem recupera seu espaço de centralidade nas preocupações do

Estado.

Muitas objeções podem ser levantadas à ampliação dessa fórmula, especialmente uma

aparente quebra da neutralidade econômica do sistema tributário, bem como a maximização

de sua complexidade.

Todavia, ainda que, para o mercado, o ideal é que o sistema tributário seja

economicamente neutro, não é necessariamente o interesse econômico que deve preponderar.

Ao contrário disso, como sustentam Murphy e Nagel:

Há muito se reconhece que o sistema tributário tem de levar em consideração a

moralidade política ou justiça. Todo aquele que defende um sistema tributário que

seja simplesmente “o melhor para o crescimento econômico” ou “o mais eficiente”

tem de fornecer não somente uma explicação de por que o sistema de sua predileção

tem essas virtudes, mas também um argumento de moralidade política que justifique

a busca do crescimento ou da eficiência sem que se levem em conta outros valores

Page 54: Taysa Schiochet Anuário 2012

sociais.15

Embora seja indiscutível a necessidade de se reduzir a complexidade no campo

tributário - especialmente no que tange à gama infindável de deveres instrumentais - isso não

significa que se defenda um modelo tributário, voltado, exclusivamente, à simplificação,

desconsiderando o princípio da capacidade contributiva e as possibilidades de utilização da

extrafiscalidade. Como lembra Albano Santos:

Um sistema fiscal constitui uma realidade complexa, isto é irredutível a um único elemento, desde logo porque só uma pluralidade de impostos é capaz de

corresponder adequadamente a uma base económica multifacetada onde coexistem

as formas mais desencontradas de matéria tributável. Do mesmo modo, também a

diversidade de objectivos que, geralmente, se colocam ao sistema tributário,

sobretudo com o desenvolvimento do moderno intervencionismo – alguns deles,

aliás, contraditórios entre si -, exige a conveniente combinação de diferentes

impostos, por forma a que, visando um leque de bases de incidência suficientemente

largo, possam, para além de gerar indispensável receita, produzir efeitos distintos no

plano social e económico.16

Outrossim, se um sistema tributário de reduzida complexidade é entendido como

incompatível com o mecanismo da extrafiscalidade, por que optar pela simplificação em

detrimento e com o sacrifício da realização de um direito tão vinculado à própria dignidade,

como é o caso do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado?

Além disso, a realidade multifacetada que ora se apresenta, forjada a partir de uma

crescente complexidade das relações sociais e econômicas, torna a simplificação do sistema

tributário um objetivo muito próximo da utopia.

Enfim, o que se sustenta na questão da complexidade é que ela é inerente à realidade

socioeconômica atual, razão pela qual um modelo tributário que tenha por objetivo se

aproximar da justiça fiscal necessariamente será um modelo identificado como complexo.

Não contraditoriamente a isso, existe um espaço bastante expressivo de simplificação do

sistema, sem a necessidade de sacrificar objetivos mais significativos. Basta, pois, lembrar da

infindável teia de obrigações acessórias existentes, cuja simplificação se impõe como

condição de sanidade do próprio sistema.

Assim, superando as objeções que tradicionalmente são levantadas, constata-se que a

extrafiscalidade tem um importante papel a desempenhar em um cenário que vise a

15

MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O Mito da Propriedade: os impostos e a justiça. Trad.: Marcelo Brandão

Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 16. 16 SANTOS, J. Albano. Teoria Fiscal. Lisboa: Universidade Técnica de Lisboa – Instituto Superior de Ciências

Sociais e Políticas, 2003. p. 371.

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densificação do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Uma vez pensada a tributação a partir do interesse humano e ecológico, não parece ser

difícil encontrar os meios com os quais se possa garantir que, indiretamente, seu formato

privilegie a preservação ambiental. É certo também que não se pode mergulhar no fosso da

ingenuidade, mediante a adoção da crença de que a tributação tenha condições de cumprir tão

gigantesca tarefa de efetivar a proteção ambiental.

A partir disso, questiona-se: como a tributação pode servir de instrumento de

concretização do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, via extrafiscalidade?

Dificilmente, a resposta a essa questão poderá ser esgotada, pois uma vez em que o paradigma

do interesse ecológico torna-se o norte do sistema tributário, surgem variadas possibilidades

de efetivá-lo.

É certo que a fórmula de concessão de incentivos e benefícios fiscais mostra-se

concomitantemente mais aceitável e eficaz no intento perseguido. Vale sempre lembrar que a

concessão de benefícios/incentivos deve estar voltada à concretização dos direitos

fundamentais - caso este do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Os benefícios fiscais estão vinculados, portanto, à concretização das grandes

promessas constitucionais, não podendo ficar à mercê de interesses econômicos ou políticos,

influenciados por lobbies particulares.

Assim, a concessão de benefícios e incentivos fiscais conduz a um debate aberto

acerca do tipo de Estado que se quer ter, do tamanho deste e dos objetivos propostos, uma vez

que, os benefícios fiscais não podem ser compreendidos como “prêmios” concedidos pelo

Estado para determinado segmento ou setor, sem quaisquer contrapartidas.

Por envolver a transferência de recursos de toda sociedade, é de fundamental

importância a participação desta no processo de decisão dos beneficiários, e ainda, a

observância aos pressupostos, limites e objetivos constitucionais que condicionam e

legitimam a extrafiscalidade.

Como ocorre com os outros direitos fundamentais, a forma como a tributação poderá

servir de instrumento a preservação do meio ambiente deverá ser fruto de uma escolha

substancialmente democrática.17

Ou seja, a decisão passa pelo efetivo exercício da cidadania

17 Relativamente a essa questão, como lembra Bolzan de Morais, faz sentido a advertência de François Ost: “E

voltamos assim [...] ao essencial: a pratica renovada e aprofundada da democracia. O ‘meio justo’ não derivará

nunca da planificação de especialistas, por mais bem intencionados que sejam e qualquer que seja o nível,

mesmo mundial, das suas intervenções. É do debate democrático, agora interpelado pela urgência de desafios

inéditos, que deverão proceder as decisões susceptíveis de inflectir a nossa forma de habitar a Terra [...]. Resta,

portanto, inventar práticas concertadas, públicas, privadas ou associativas, para dar corpo a um outro modelo de

desenvolvimento. BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Novos Direitos e Tributação: perspectivas necessárias para

Page 56: Taysa Schiochet Anuário 2012

fiscal, até porque a definição dos contornos da carga tributária – onerações e desonerações –

trata-se de algo tão importante que não pode ficar, exclusivamente, sob a responsabilidade de

técnicos e políticos.

A partir do exposto, ruma-se para o exame dos meios pelos quais a extrafiscalidade

possa servir como um instrumento à preservação e garantia do direito fundamental ao meio

ambiente ecologicamente equilibrado.

4 NORMAS TRIBUTÁRIAS INDUTORAS EM MATÉRIA AMBIENTAL

Da análise precedente, constata-se que a extrafiscalidade pode ser implementada

mediante a oneração ou a desoneração fiscal. Conforme dito, a face mais visível e eficaz da

extrafiscalidade reside na concessão de benefícios ou incentivos fiscais, operacionalizada

mediante isenções parciais ou totais, redução de alíquotas ou concessão de créditos fiscais.18

Pode-se dizer que, uma vez pensada a tributação a partir do paradigma ecologicamente

adequado, não parece difícil encontrar os meios com os quais poderá garantir-se que,

indiretamente, seu formato privilegie o direito fundamental ao meio ambiente.

Há de se ter presente, no entanto, que a denominada tributação ambiental não tem o

condão de, por si só, fazer frente à tão imponente tarefa. Por mais meritória e eficaz que seja,

é quase impossível que a extrafiscalidade ambiental se constitua no elemento primordial para

o êxito desta gigantesca empreitada. Não obstante, a tributação pode e deve ser considerada

como um dos importantes instrumentos à disposição do Estado, visando a proteção e a

preservação ambiental.

A partir disso, questiona-se: de que forma esta tarefa pode ser cumprida? Como a

tributação pode servir de instrumento de concretização do direito fundamental ao meio

ambiente equilibrado, via extrafiscalidade? A resposta a este questionamento não conseguirá

esgotar as possibilidades de uso da ferramenta, mas poderá conduzir ao estabelecimento de

parâmetros mínimos que devem orientar o uso desta.

O primeiro parâmetro a ser estabelecido para o uso de políticas extrafiscais de caráter

uma eco-tributação. Anotações Preliminares. In: TORRES, Heleno Taveira (org.). Direito Tributário Ambiental.

São Paulo: Malheiros, 2005. p. 620. 18 Nesta mesma linha de raciocínio, Casalta Nabais sustenta que: “Efectivamente, é no domínio dos chamados

benefícios fiscais que a extrafiscalidade se revela em termos mais significativos e freqüentes, pois que é

geralmente reconhecido integrar o seu próprio conceito a natureza ou carácter extrafiscal como, de resto, se

verifica no conceito legal que a nossa ordem jurídica nos fornece – o art. 2º, nº 1, do EBF, que define os

benefícios fiscais como medidas de caráter excepcional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais

relevantes e que sejam superiores aos da própria tributação que impedem”. CASALTA NABAIS, José. O Dever

Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 2004. p. 630.

Page 57: Taysa Schiochet Anuário 2012

ambiental é no sentido de utilizá-las para estimular comportamentos ambientalmente corretos,

ou seja, estimular políticas preventivas que evitem o risco ambiental, ou ainda, que

desestimulem a poluição e a degradação ambiental.19

Há de se frisar que a extrafiscalidade ambiental não tem a pretensão de proibir ou

desestimular a prática de atos ilícitos. Uma vez que se defende a utilização da tributação como

um indutor de condutas, obviamente seu campo de atuação está circunscrito aos atos lícitos.

Os atos contrários à lei continuam a ser objeto de sanções por parte do Estado, tanto na esfera

administrativa como na penal, sem prejuízo de respectiva reparação pelos prejuízos causados.

Com a extrafiscalidade, supera-se, porém, a concepção de que a proteção do meio ambiente

esteja restrita a imposição de sanções ou reparações ambientais.

A intenção de se desestimular um determinado comportamento ambiental inadequado

é no sentido de, por exemplo, convencer determinada empresa de que a utilização de uma

matéria-prima menos poluente pode, além de correta, ser economicamente mais vantajosa. O

estímulo fiscal resulta, assim, produção ou consumo “ecologicamente correto” ou

“ambientalmente sustentáveis”.

A extrafiscalidade ambiental, mediante a utilização de impostos ou contribuições

sociais incidentes sobre o consumo, pode ser viabilizada pelo o mecanismo da seletividade, ou

seja, a denominada tributação ambiental pode ser implementada mediante a fixação de

alíquotas seletivas, conforme o grau de adequação da atividade ao meio ambiente.

Por meio da extrafiscalidade, pode-se, inclusive, desonerar por completo da incidência

tributária, quando for demonstrado que determinados produtos e serviços sejam

imprescindíveis para alcançar o intento da preservação do meio ambiente, desde que tal

medida se mostre necessária para viabilizar o seu consumo.

Cabe reconhecer, entretanto, que um dos pontos mais tortuosos relativamente à

desoneração fiscal, diz respeito justamente à tributação indireta. Isso ocorre, porque os

tributos indiretos incidem sobre os bens e serviços consumidos por todos, sendo que o custo

dos tributos está embutido dentro do preço final daqueles.

Em vista disso, uma das objeções que razoavelmente se levanta quando se defende a

seletividade ambiental, reside na impossibilidade de se garantir que os efeitos do benefício

fiscal sejam de fato repassados ao consumidor final, de tal sorte que este opte pela aquisição

19 Casalta Nabais reforça a importância desta busca quando afirma que “no respeitante ao suporte financeiro da

acção do estado em matéria de proteção do ambiente, já quem defenda e proponha a instituição de tributos ou

taxas ambientais que, para além de constituírem um suporte financeiro da acção do estado nessa área, teriam

também por objetivo a orientação dos comportamentos dos indivíduos e das empresas no sentido da defesa

ambiental” CASALTA NABAIS, José. Estudos de Direito Fiscal: por um estado fiscal suportável. Coimbra:

Almedina, 2005. p. 50.

Page 58: Taysa Schiochet Anuário 2012

do produto ou serviço ambientalmente corretos. Ou seja, uma vez que os preços são

livremente fixados pelo mercado (na maioria dos casos), fica bastante restrita a possibilidade

de se garantir o repasse indireto do benefício, mediante redução do preço final.

Não obstante, é preciso levar em consideração que o mercado se mostra cada vez mais

competitivo, havendo uma constante oferta de preços menores para atrair consumidores e,

além disso, a demanda – em regra - é menor que a oferta. Inegavelmente, os tributos se

constituem em um importante componente do preço final dos produtos ou serviços fornecidos

aos consumidores, podendo-se inclusive afirmar que, conquanto não sejam sujeitos passivos

da obrigação tributária, são eles que efetivamente arcam com o ônus econômico decorrente da

exação fiscal.

Em vista disso, se houvesse redução ou, até mesmo, isenção total de tributos indiretos

incidentes sobre uma gama de produtos e serviços consumidos - levando-se em consideração

seu grau de adequação ao meio ambiente - haveria inequívoca redução do preço final dos

referidos bens e, com isso, restaria estimulado o consumo dos produtos e serviços em questão.

Por outro lado, naqueles casos em que o mercado está concentrado - inexistindo

efetiva concorrência - caberá a própria norma que institua a desoneração prever mecanismos

de controle, no sentido de que o benefício concedido esteja condicionado ao efetivo repasse

ao consumidor final de seus efeitos econômicos.

Em relação aos parâmetros básicos, há se de mencionar, por fim, que não se pode falar

em tributação ambiental quando se discute a forma pela qual os recursos arrecadados serão

partilhados. Isso ocorre com o caso do denominado “ICMS ecológico”. Alguns estados

brasileiros (PR, SP, MT, PE e RJ, entre outros) implantaram o denominado “ICMS

ecológico”, o que implica adoção de critérios ambientalmente relevantes para o repasse de

parte da arrecadação que cabe aos municípios, beneficiando aqueles que promovem a

proteção ambiental20

. Como se percebe, a fórmula em questão não guarda relação ao aqui

propugnado, pois ela diz respeito apenas à partilha de receitas.

Enfim, a ampliação da utilização da extrafiscalidade ambiental implica rompimento

com a desgastada fórmula de se arrecadar recursos para - exclusivamente com estes -

concretizar o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente adequado. É certo que

esse rompimento não é total. No entanto, mediante a indução de comportamentos, o Estado

20 No Rio de Janeiro, desde 2007, o ICMS contempla municípios cariocas que alcançam determinadas metas

ambientais como a ampliação do sistema de esgoto, melhoria na coleta e destinação de resíduos, ampliação e

conservação de áreas verdes, entre outros. A partir do exercício fiscal de 2011, a participação do componente

ambiental no cálculo do repasse do ICMS aos municípios subiu de 1,8% para 2,5%, como previsto no decreto.

FREITAS, Ghedes de. Estado distribui mais de R$ 100 milhões de ICM Verde. Disponível em

http://www.rj.gov.br/web/imprensa/exibeconteudo?article-id=376224. Acesso em: 29 mar. 2011.

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tem potencialmente a possibilidade de dar a máxima eficácia ao direito fundamental ao meio

ambiente equilibrado, o que reconhecidamente não é possível fazer apenas com a existência

de recursos financeiros disponíveis.

A partir disso, passa-se a analisar alguns exemplos de normas tributárias desta

natureza, bem como examinar algumas possibilidades que se apresentam para que o intento da

preservação ambiental encontre na tributação um forte e eficaz aliado. É evidente que seria

absurdo imaginar que as possibilidades esgotar-se-iam nas sugestões que seguem. A

pretensão, pois, é singelamente apresentar algumas alternativas potencialmente úteis.

No caso do Imposto de Importação, quando da nacionalização de produtos

compreendidos como nocivos ao meio ambiente, o Poder Executivo, com base no § 1° do art.

153 da CF/88, pode majorar a alíquota deste imposto, com o objetivo de desestimular tal

operação. É óbvio, pois, que os referidos produtos seriam apenas aqueles cuja importação não

fosse proibida, como ocorre com os pneus usados, com lixo hospitalar e com alguns

pesticidas. Conforme visto anteriormente, para estes casos, funciona apenas a sanção

administrativa e penal.

No que se refere ao Imposto Territorial Rural (ITR), além de se levar em conta as áreas

de preservação permanente, há de se lembrar das Reservas Particulares do Patrimônio Natural

- RPPNs, instituídas pelo Decreto Nº 5.746, de 05 de abril de 2006. Num e noutro caso, para

fins de determinação do valor da terra nua (base de cálculo do imposto) não há de se levar em

consideração as referidas áreas. Isso ocorre porque seria insustentável dizer que uma

propriedade com APPs ou RPPNs não estaria cumprindo com sua função social (critério

determinando para fins de tributação do ITR). De todo modo, o imposto em questão é tão

vexatoriamente insignificante, que qualquer estímulo ou desestímulo fiscal produz efeitos

econômicos muito próximos à insignificância.

Acerca do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores -IPVA, as alíquotas

de tal imposto poderiam ser diferenciadas segundo a função e utilização dos veículos, tendo

como parâmetro a diminuição da emissão de gases poluentes. A utilização de combustíveis

ecologicamente corretos poderia ser estimulada, mediante a desoneração da incidência do

IPVA. De outra banda, veículos que utilizam combustíveis fósseis mais poluentes poderiam

vir a pagar alíquotas maiores.

Pode-se citar, ainda, o caso do Imposto Predial e Territorial Urbano de competência

dos municípios. O IPTU pode ser o responsável pelo estímulo à manutenção de vegetação em

imóveis urbanos, ou ainda, pela adoção de práticas ambientalmente adequadas de construção.

O município poderia, por exemplo, aplicar alíquotas menores, para os proprietários

Page 60: Taysa Schiochet Anuário 2012

que mantivessem um percentual previamente estabelecido de vegetação sobre o imóvel, ou

ainda, para os proprietários que viessem a adotar práticas ecologicamente corretas, como a

coleta da água da chuva para determinados usos, a captação de energia solar, a adoção de

compostagem de resíduos orgânicos, entre outros.

No que tange ao Imposto de Renda das Pessoas Físicas, a admissão como despesa

dedutível do custo de aquisição de um produto ou serviço eficaz a causa ambiental pode

alcançar os efeitos propugnados aqui (placas solares para produção de energia ou

aquecimento de água, por exemplo). Quanto ao Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (e

Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, por conseqüência), a legislação pode estimular

práticas ambientalmente corretas, mediante a dedutibilidade imediata como despesa dos

custos necessários à implementação das referidas ações. A Lei de Inovação (Lei 11.196/05)

corresponde a um exemplo muito elogiável neste sentido, muito embora a referida norma não

tenha na inovação - voltada a preservação ambiental - a razão principal de sua existência.

De qualquer sorte, é em relação aos tributos indiretos que a extrafiscalidade ambiental

encontra seu terreno mais fértil, não obstante as ressalvas antes mencionadas. Os tributos que

incidem sobre o consumo (notadamente ICMS, IPI, ISS, PIS e COFINS) poderão ter suas

alíquotas fixadas de acordo com a adequação dos produtos, mercadorias ou serviços, aos

requisitos e critérios ambientais. Neste ponto, acredita-se que reside o espaço mais

privilegiado de eficácia da extrafiscalidade ambiental, pois a fixação do ônus tributário em

face de ser ou não ambientalmente adequado, tem uma potencialidade incalculável para de um

lado estimular o consumo de “produtos verdes” e, de outro lado, desestimular a aquisição de

mercadorias ou serviços ambientalmente nocivos.

Enfim, conforme já exposto, no momento que o interesse ecológico for entendido

como aquele a pautar as ações do Estado, não fica difícil pensar e implementar políticas

tributárias voltadas a garantia de proteção a tal interesse, sendo que a extrafiscalidade pode

desempenhar uma tarefa de sobremaneira importância no cumprimento da inadiável tarefa de

preservar o ambiente para as presentes e futuras gerações.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Haverá um momento no futuro em que os pósteros olharão para seus antepassados e

farão uma espécie de julgamento histórico sobre o que esta geração fez com os dias que lhes

foram dados a existir. Quando este momento chegar, os que hoje coexistem têm o dever de

Page 61: Taysa Schiochet Anuário 2012

garantir que seus filhos e netos possam sentir orgulho do que foi feito ao seu tempo.

Esse é um compromisso histórico que a sociedade atual tem. O compromisso moral de

legar aos que estão por vir um mundo menos injusto, mais humanizado e preservado. Isso não

ocorrerá, se o processo de degradação ambiental continuar sua inexorável marcha; se - em

nome do interesse econômico - a devastação e a destruição da flora e fauna ocupar espaço

central no noticiário

Também isso não ocorrerá, se hipocritamente a questão ambiental, permanecer como

um instrumento de “marketing” de tantos ou um assunto sobre o qual poucos ousam se

declarar contrários, não obstante adotem práticas diametralmente opostas. Aliás, neste ponto,

se os comerciais veiculados na mídia, tendo a “causa ambiental” como razão de ser,

resultassem em práticas ecologicamente adequadas, provavelmente artigos como este sequer

seriam necessários. O que se percebe, pois, é que até esta nobre causa tornou-se um pretexto

para maximização do interesse econômico.

Vive-se, pois, num momento decisivo para o futuro desta e das próximas gerações.

Poucas vezes, as opções e os caminhos adotados tiveram tanto impacto no tempo que

sucederá. Em poucos momentos da história, o risco da inviabilidade esteve tão próximo e tão

perceptível, exceto para aqueles que se recusam a percebê-la em prol de seus individuais

interesses.

Em vista disso, há de se reconhecer que o status de direito fundamental do direito ao

meio ambiente ecologicamente equilibrado, vincula e compromete todos os Poderes e

evidentemente toda sociedade. Esta vinculação impõe ao Estado à busca de mecanismos e

instrumentos eficazes à realização de tão significativa tarefa. Neste contexto, a

extrafiscalidade ambiental apresenta-se como uma ferramenta inequivocamente útil.

No âmbito ambiental, a extrafiscalidade pode ser utilizada para estimular

comportamentos preventivos, levando-se em consideração também o conceito de risco

ambiental, ou ainda, para desestimular práticas contrárias ao meio ambiente. No entanto, a

face mais eficaz da extrafiscalidade ambiental diz respeito à concessão de benefícios fiscais.

De qualquer sorte, é necessário ter sempre presente que a concessão dos benefícios ou

isenções fiscais deve observar processos democráticos de discussão e aprovação, sob pena

destes também se transformarem em mecanismos de favorecimento de poucos ou de

distribuição de privilégios.

Com esta abordagem, pretendeu-se defender que a tributação passe a existir em razão

do ser humano e não do interesse econômico de alguns - também seres humanos – embora

desprovidos de sentimento de solidariedade para com seus pares e pósteros. Para tanto,

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impõe-se a adoção do interesse ecológico, de tal forma que a exigência fiscal esteja

intimamente vinculada com a grande promessa feita pela revolucionária Carta Brasileira de

1988.

Enfim, há de se garantir, a todo custo e com toda energia possível, que a existência

neste privilegiado espaço do planeta possa restar assegurada dignamente a todos, em um

ambiente que permita com que as mais diversas manifestações de vida sejam harmonicamente

viáveis e possíveis. Este é o tempo em que se vive e o que nele for feito dependerá a vida dos

que estão por vir. Está posto o grande desafio!

Page 63: Taysa Schiochet Anuário 2012

A REGULAMENTAÇÃO DOS BANCOS DE PERFIS GENÉTICOS

PARA FINS DE PERSECUÇÃO CRIMINAL NO BRASIL:

REFLEXÕES ACERCA DO USO FORENSE DO DNA

Taysa Schiocchet1

1 Pressupostos para o debate pós-regulamentação

As descobertas na área da genética humana são consideravelmente amplas e sua

aplicação técnica cada vez mais diversificada, não apenas na área da identificação civil

e penal, mas também no contexto da pesquisa e da medicina. Os resultados obtidos no

campo do diagnóstico genético são significativos e seu principal benefício consiste na

possibilidade de prevenir doenças ou evitar o seu desenvolvimento, já que é possível

descobrir precocemente a presença de genes e cromossomos alterados, os quais são

responsáveis por inúmeras enfermidades genéticas. Com os avanços das biotecnologias

nos últimos anos, mais precisamente com a possibilidade de estabelecer a função e

regulação dos genes, a pesquisa e a medicina são efetivamente as áreas que contam com

um arcabouço normativo mais avançado em detrimento de outras, como a do Direito

Penal.

No entanto, o vácuo normativo, existente em diversos países, não é óbice para a

criação de bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal. Ao contrário, a

criação dos referidos bancos acaba servindo como força propulsora à elaboração

normativa. No Brasil não foi diferente. Os anos de 2011 e 2012 foram decisivos para a

aprovação da Lei n° 12.654 de 28 de maio de 20122, que autoriza a coleta de material

genético para fins de persecução criminal e regulamenta o banco de perfis genéticos

para esse mesmo fim, nos seguintes termos:

(...) ‘Art. 5o-A. Os dados relacionados à coleta do perfil genético deverão ser armazenados em banco de dados de perfis genéticos, gerenciado por unidade

oficial de perícia criminal.

1 Doutora em Direito pela UFPR, com período de pesquisas doutorais na Université Paris I – Panthéon

Sorbonne. Professora do Programa de Pós-graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da UNISINOS.

Líder do Grupo de Pesquisa BioTecJus (Direito, tecnociência e biopolítica: a vida entre as fronteiras do

corpo e vulnerabilidade). E-mail: [email protected]. 2 Com vacatio legis de 180 dias.

Page 64: Taysa Schiochet Anuário 2012

2

§ 1o As informações genéticas contidas nos bancos de dados de perfis

genéticos não poderão revelar traços somáticos ou comportamentais das

pessoas, exceto determinação genética de gênero, consoante as normas

constitucionais e internacionais sobre direitos humanos, genoma humano

e dados genéticos.

§ 2o Os dados constantes dos bancos de dados de perfis genéticos terão

caráter sigiloso, respondendo civil, penal e administrativamente aquele que permitir ou promover sua utilização para fins diversos dos previstos nesta Lei

ou em decisão judicial.

§ 3o As informações obtidas a partir da coincidência de perfis genéticos

deverão ser consignadas em laudo pericial firmado por perito oficial

devidamente habilitado.’

‘Art. 7o-A. A exclusão dos perfis genéticos dos bancos de dados ocorrerá no

término do prazo estabelecido em lei para a prescrição do delito.’

‘Art. 7o-B. A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.’

(...)

‘Art. 9o-A. Os condenados por crime praticado, dolosamente, com

violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes

previstos no art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, serão submetidos,

obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de

DNA - ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor.

§ 1o A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.

§ 2o A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz

competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de

identificação de perfil genético.’ (grifado)

A despeito da presença maciça das biotecnologias e pesquisas genéticas no país,

inclusive forense, bem como da proliferação de documentos normativos no plano

internacional, a população brasileira é particularmente afetada pela criminalidade e

pelos reflexos de um sistema jurídico debilitado e titubeante. A incipiência e mesmo

imaturidade jurídica sobre o tema no Brasil, tanto na literatura quanto na

regulamentação do Direito estatal positivo, deve-se ao impacto recente das

biotecnologias na temporalidade e na espacialidade do Direito, bem como nas categorias

jurídicas clássicas.

É sabido que a criação de bancos genéticos ocorre com finalidades distintas, no

entanto é preciso considerar a complexidade e o necessário imbrincamento dessas

finalidades, especialmente na criação e gestão dos biobancos, pois há um fator comum

anterior a todos os bancos que é o acesso ao material biológico ou genético humano.

Page 65: Taysa Schiochet Anuário 2012

3

Inclusive, quando da criação de bancos de perfis genéticos para fins de persecução

criminal.

Levando em consideração esses pressupostos, o presente artigo3 tem como

objetivo identificar e analisar, com base no sistema jurídico brasileiro e no direito

comparado, os possíveis riscos/benefícios, bem como os limites/possibilidades à

utilização do DNA para fins forenses e, mais concretamente, a regulamentação de

bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal, de forma a respeitar os

direitos e as garantias fundamentais do cidadão, seja em termos de efetiva tutela

jurisdicional, seja em termos de privacidade e autodeterminação corporal e

informacional.

2 Da coleta do material biológico ao armazenamento do perfil genético

Primeiramente, convém destacar, especialmente àqueles que não estão

familiarizados com o tema, que existe uma diferença fundamental entre material

biológico ou genético e perfil genético. O material biológico, neste caso humano, pode

consistir em uma amostra de sangue, saliva, bulbo capilar, entre outros, a partir do qual

se fará a análise para a extração do chamado “perfil genético”.

Segue abaixo, uma imagem de um perfil genético após análise do material

genético/biológico.

3 Este artigo apresenta os resultados parciais de algumas pesquisas realizadas anteriormente e em curso.

Dentre elas, destaca-se a principal, realizada entre 2011 e 2012 e vinculada ao projeto intitulado “Bancos

de perfis genéticos para fins de persecução criminal”, financiado pelo Programa das Nações Unidas para

o Desenvolvimento (PNUD) em parceria com a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da

Justiça (SAL/MJ), junto ao programa Pensando o Direito. Além disso, convém destacar o financiamento

tanto da Fundación Carolina (2011/2012) por meio do Programa para professores brasileiros para estudos

pós-doutorais sobre o tema na Universidad Autónoma de Madrid/UAM, quanto do CNPq/CAPES, por

meio da Chamada n. 07/2011. Alguns destes resultados também podem ser lidos em: Schiocchet (2011 e

2009).

Page 66: Taysa Schiochet Anuário 2012

4

Figura: Imagem de um perfil genético (JACQUES; MINERVINO, 2008, p. 18).

A técnica de coleta do material genético por meio do suabe (swab, em inglês) é

considerada não-invasiva, nos termos da Declaração Internacional sobre Dados

Genéticos Humanos (UNESCO, 2003). Apesar de não haver danos à integridade física,

isso não significa, entretanto, que tal coleta não possa atingir outros direitos e garantias,

como a autodeterminação corporal e informacional, especialmente quando a técnica de

coleta for compulsória.

Uma amostra de DNA possui regiões codificantes e não-codificantes. Os

denominados perfis genéticos constituem uma parte das informações contidas na

amostra de DNA e são extraídos de regiões ditas não-codificantes. Os testes que visam a

determinar as impressões genéticas ou perfis genéticos são destinados, em geral, à

identificação de uma pessoa no âmbito criminal em função da distribuição de

marcadores genéticos polimórficos. As características genéticas nas regiões codificantes

seriam, a priori, conservadas e utilizadas apenas para fins médicos ou de investigação

científica, enquanto os perfis genéticos utilizados pela polícia e pela Justiça

identificariam, segundo os cientistas, apenas os marcadores sexuais e seqüências

teoricamente não-codificantes.

Em síntese, portanto, as informações contidas no material genético de um

indivíduo podem dizer respeito a aspectos físico do mesmo. Isso depende de onde essa

informação é retirada. Nem todas as regiões do DNA possuem informações sobre

características físicas da pessoa-fonte. Segundo Lima (2008, p. 9), “mais de 95% do

Page 67: Taysa Schiochet Anuário 2012

5

genoma não trazem informação alguma que se converterá em características físicas. Foi

por muito tempo chamado de junk DNA (DNA lixo, em inglês)”. Isso porque apenas 5%

do DNA teriam influência em características físicas, ainda que atualmente existam

novas descobertas acerca da parcela junk do DNA, como uma utilidade na estabilidade

da molécula.

Nesta esteira, Jacques e Minervino (2008, p. 19) afirmam que:

(...) é preciso que fique clara a distinção entre o DNA (uma molécula que contém muitas

informações) e o perfil genético (uma pequena informação extraída do DNA). O DNA como um

todo pode, realmente, revelar muitas informações sensíveis, como a propensão a doenças, entre

outras. O perfil genético, entretanto, é incapaz de revelar qualquer característica física ou de

saúde. A única aplicação do perfil genético é a individualização. Infelizmente, devido ao parco

entendimento público sobre a ciência e a tecnologia envolvidos nesta questão, muitas pessoas

são levadas a acreditar que o perfil genético tem muito mais informações do que ele realmente

tem.

Em que pese a afirmação de que haveria uma clara distinção entre a parte

codificante e não-codificante do DNA, é preciso levar em consideração que essa

taxionomia e distinção é resultado do estado atual do conhecimento científico, o qual

tende a apresentar novas descobertas. Nesse sentido, muitos biológicos tem

demonstrado que essa distinção categórica é falaciosa, pois mesmo a parte não-

codificante do DNA pode apresentar informações específicas (e, portanto, sensíveis)

atinentes ao sujeito analisado.

Casabona e Malanda (2010, p. 62) lembram que o perfil genético traz

informação sobre a descrição étnica do sujeito (independentemente de esta característica

ter se manifestado fenotipicamente) e sobre o sexo (o que poderia revelar alguma

anomalia patológica, como as trissomias, ou mesmo uma característica psicológica e

social relacionada ao sexo). Além disso, não se descarta a possibilidade de que no futuro

(próximo) os estudos do DNA dito não-codificante aportem outros tipos de informação

(como a cor dos olhos), afinal as pesquisas genéticas são recentes na história da

humanidade e avançam vertiginosamente.

Contudo, é preciso enfatizar que, de qualquer modo, existe sempre a coleta da

amostra de DNA que contém toda a informação genética humana – seja ela codificante

ou não-codificante, pequena ou não, de mera individualização genotípica ou acerca das

Page 68: Taysa Schiochet Anuário 2012

6

características de saúde e comportamento – que pode ser utilizada inadequadamente,

inclusive como meio de estigmatização ou discriminação. Um exemplo ocorreu nas

décadas de 1960 e 1970, quando surgiu um debate acerca da propensão dos homens

com um Y a mais (“síndrome XYY”) a cometer crimes. “Após alguns estudos

indicarem que a freqüência de homens XYY era maior em presídios do que na

população em geral, os portadores de cromossomo Y passaram a ser discriminados,

mesmo que não apresentassem comportamento agressivo ou criminoso” (JACQUES;

MINERVINO, 2008, p. 18).

Corroborando esse entendimento, Casabona e Malanda (2010, p. 63) afirmam:

(...) la disponibilidad de muestras biológicas que, como se recordó, contienen en secuencias tanto

la parte codificante como no codificante del ADN, y el potencial acceso irrestricto a las mismas,

legítimamente autorizado o no, supone una nueva fuente de peligro de utilización desviada o

abusiva de la información sobre la salud presente o futura del individuo que contiene, lo que no

ocurre en otros casos, p. ej., con las huellas dactilares, con las cuales suelen equipararse los

perfiles de ADN. Por tanto, la unión indisoluble del conjunto del ADN y la necesidad de su

manipulación conjunta comporta también un mayor riesgo de impunidad, a lo que se suma la

dificultad de detectar la realización ilícita del análisis.

Assim sendo, qualquer dado pessoal de caráter genético deve ser considerado

um dado que afeta a intimidade genética da pessoa e, portanto, deve ser protegido pelo

direito fundamental a intimidade.

3 Do singular ao coletivo: sobre a genética de indivíduos e populações

A informação genética, nesses casos, será necessariamente objeto de

comparação para ter algum valor científico e mesmo jurídico-probatório. Diante disso,

destaca-se o caráter probabilístico dessa informação genética, por um lado, e a relação

com estudos populacionais e comparativos, por outro.

Além disso, é preciso ainda levar em consideração a denominada “teoria do

mosaico”, segundo a qual existem dados que isoladamente não aportam informações

pessoais, mas que, uma vez cruzados com outros dados, sim podem trazer informações

que afetam a intimidade genética pessoal. Como exemplo, Casabona e Malanda (2010,

Page 69: Taysa Schiochet Anuário 2012

7

p. 62) mencionam a descoberta da existência ou da inexistência de relação parental

biológica desconhecida anteriormente.

Os dados apurados e anonimizados pelos arquivos genéticos para fins criminais

se limitam ao âmbito não-codificado do DNA, que possibilita aos biólogos moleculares

determinar a identidade da pessoa e possíveis relações de parentesco. De todo modo,

convém lembrar que a amostra armazenada (material genético) contém todas as demais

informações genéticas do indivíduo.

Por outro lado, mesmo tratando-se de perfil genético (e não informação sobre

características físicas) é preciso avaliar os riscos relativos ao armazenamento destas

informações em um banco. Em outras palavras, é preciso avaliar a vulnerabilidade das

mesmas, seja em termos de acesso (restrito a quem e controlado por quem) ou, mais

especificamente, em termos de codificação (dissociação do perfil ao nome da pessoa).

Fatos como estes demonstram que o acesso à tecnologia e à informação por ela

gerada pode ser utilizado – atualmente ou no futuro - de diversas maneiras, muitas vezes

desconhecidas ou não previstas, inclusive de forma antiética ou ilegal. Por essa razão,

incumbe ao Direito levar em consideração essas possibilidades (ainda que não

desejadas) no momento da elaboração de uma legislação.

Existe uma grande diversidade de modelos de bancos e bases de dados

genéticos. Os bancos de DNA podem ser conceituados como conjuntos de materiais ou

dados genéticos, informatizado ou não. Em outras palavras, os bancos de DNA ou

biobancos podem ser definidos como grandes coleções de material genético (amostras

de DNA, células, tecidos, tumores ou órgãos) associados a dados de diversas naturezas

(genéticos, médicos, biológicos, familiares, socioambientais). Já as bases de dados

genéticos referem-se aos elementos genéticos já sequenciados e digitalizados.

Segundo o relatório Creation and governance of Human Genetic Research

Databases da Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico

(OCDE): “any collection of samples from which genetic samples can be derived and

related data (e.i. genealogical, clinical, etc.) organised in a systematic way and used for

Page 70: Taysa Schiochet Anuário 2012

8

purpose of research”4. No entanto, essa definição exclui as denominadas bases de

dados genéticos, ou seja, os bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal.

Na obra intitulada “Les biobanques” (“Os biobancos”), as autoras Noiville e

Bellivier (2009, p. 5) apresentam um panorama sobre a complexa realidade de

“collectioner le vivant” (“colecionar o vivente”). Elas referem-se aos bancos ou

repositórios de amostras biológicas humanas e seus respectivos dados. A terminologia é

vasta: biobancos, biotecas, coleções de amostras biológicas, centros de recursos

biológicos, bancos de viventes, bancos de dados genéticos, base de dados genéticos,

base de dados de pesquisa em genética humana, biobancos virtuais, biorepositórios,

bancos de tecidos, bancos de genes, registros. Essa diversidade terminológica denuncia

a vagueza semântica dos conceitos.

No entanto, os biobancos diferenciam-se dos bancos de perfis genéticos, de

modo que, segundo Noiville e Bellivier (2009, p. 6) não é possível qualificar um banco

de perfis genéticos para fins de persecução criminal como biobanco. Isso porque ele não

tem finalidade terapêutica ou de pesquisa. A finalidade dos bancos de perfis genéticos é

identificar, mais eficazmente, os autores de delitos, de modo a prevenir, inclusive, a

reincidência. Nesse sentido, seria incorreto abarcar no conceito de biobanco também os

bancos de perfis genéticos para fins de identificação criminal.

Os biobancos teriam, portanto, como características comuns: uma infraestrutura

pública ou privada, o agrupamento organizado de amostras biológicas (células, tecidos,

urinas, genes, fragmentos de ADN) e dados (clínicos dos pacientes, familiares ou

mesmo de toda a população, dados genealógicos ou biológicos, relativos ao modo de

vida) por um determinado período de tempo, com finalidade de pesquisa médica

(NOIVILLE; BELLIVIER, 2009, p. 6).

Em que pese tal diferenciação conceitual, de um modo geral, os biobancos e

bancos de dados genéticos podem ser classificados a partir dos seguintes critérios:

estatuto jurídico público ou privado (refere-se ao ato de criação, isto é, se foi criado por

4 Tradução livre: “qualquer coleção de amostras das quais podem derivar amostras genéticas e dados

relacionadas (tais como genealógicos, clínicos etc.) organizados de modo sistemático e usados para fins

de pesquisa” (OCDE, Creation and governance of Human Genetic Research Databases. p.34).

Page 71: Taysa Schiochet Anuário 2012

9

uma lei ou por contrato); finalidade (refere-se à destinação do banco e de suas amostras

e dados armazenados), conteúdo (a depender do tipo de material ou dado armazenado);

tamanho e grau de organização e, por fim, circulação das amostras e dados ao

exterior (NOIVILLE; BELLIVIER, 2009, p. 35-45). No que se refere aos bancos de

dados genéticos é importante a tipologia com base no conteúdo e na finalidade.

De acordo com o conteúdo, os bancos de dados genéticos podem ser divididos

em: Base de dados de identificação genética; Arquivos de DNA e Arquivos de amostras

biológicas.

TIPOLOGIA DOS BIOBANCOS E BANCOS DE DADOS GENÉTICOS

CONTEÚDO DEFINIÇÃO

Dados de

identificação

genética

Dados alfanuméricos (letras e números associados ao código de

identificação de uma pessoa, observando-se o princípio da

dissociação)

Arquivos de DNA Amostras de DNA, normalmente congeladas e com DNA já

extraído do núcleo celular, pronto para ser analisado (em suas

regiões codificantes e não-codificantes)

Arquivos de

amostras biológicas

Não são bancos de dados propriamente, mas de material

biológico. Potencial imediato de informação menor, pois o DNA

ainda não foi extraído.

4 Contribuições normativas do Direito Internacional da Bioética

Os bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal necessitam do

acesso ao corpo humano ou parte dele, enquanto fonte biológica, para alcançar algum

tipo de resultado. Esse acesso é, em geral, viabilizado mediante o consentimento

informado da pessoa, enquanto expressão da sua vontade. A obtenção da amostra

biológica é, assim, a ponte de acesso ao corpo. Nesses casos, é preciso questionar se é

devido, permitido ou proibido utilizar o mesmo enquadramento normativo da disposição

corporal, realizado mediante disposição gratuita e operacionalizada pelo consentimento

informado, para o campo criminal.

Page 72: Taysa Schiochet Anuário 2012

10

A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005), em seu

artigo 9°, trata da privacidade e confidencialidade ao afirmar que:

A vida privada das pessoas em causa e a confidencialidade das informações que lhes dizem

pessoalmente respeito devem ser respeitadas. Tanto quanto possível, tais informações não devem

ser utilizadas ou difundidas para outros fins que não aqueles para que foram coligidos ou

consentidos e devem estar em conformidade com o direito internacional, e nomeadamente com o

direito internacional relativo aos direitos humanos.

Ainda que a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos

(UNESCO, 2003) não se aplique especificamente aos bancos de perfis genéticos para

fins de persecução criminal, é importante considerar sua preocupação com o acesso e

manipulação de material e dados genéticos humanos. Ao mesmo tempo em que aceita as

diretrizes legislativas internas de Direito Penal, ela sinaliza os limites para a criação do

denominado “banco de dados de DNA”. Para tanto, a referida Declaração traz

definições importantes, inclusive para os bancos de perfis genéticos para fins de

persecução criminal.

Os dados associados a uma pessoa identificável, previstos no item IX, são

fundamentais para atingir o objetivo de um banco de dados para identificação criminal,

já que identificam e qualificam o doador do material genético. Porém, para evitar

divulgação ilícita e garantir a proteção dos dados, o item X, corresponde a não

identificação direta da pessoa, que é feita apenas através de um código. Na perspectiva

de um banco de dados para persecução penal, os dados irreversivelmente dissociados

seriam aqueles que confrontados com outros perfis não apresentaram coincidência,

conforme o item XI.

O banco de dados genéticos identificará as pessoas suspeitas que se dispuserem

a doar o material biológico, e seus dados poderão servir para fins estatísticos, ou como

padrão de melhoria do sistema de base de dados. Interessante notar que o artigo 6º,

estabelece os padrões para a criação de bancos de dados para persecução criminal, com

bases éticas, baseadas no consentimento prévio, livre, informado e expresso, e

principalmente sem coerção.

(d) Do ponto de vista ético, é imperativo que sejam fornecidas informações claras, objetivas,

adequadas e apropriadas à pessoa a quem é solicitado consentimento prévio, livre, informado e

expresso. Estas informações, além de fornecerem outros pormenores necessários, especificam as

Page 73: Taysa Schiochet Anuário 2012

11

finalidades para as quais serão obtidos, utilizados e conservados os dados genéticos humanos e

dados proteômicos da análise das amostras biológicas. Estas informações deverão se necessário,

indicar os riscos e consequências em causa. Deverão igualmente indicar que a pessoa poderá

retirar o seu consentimento sem coerção e que daí não deverá resultar para ela qualquer

desvantagem ou penalidade (UNESCO, 2003).

Como já mencionado, no campo da pesquisa e da medicina é que se explicita a

regra do consentimento informado, para pessoa submetida a uma investigação ou

diagnóstico genético conforme artigo 8º da Declaração (UNESCO, 2003). Questiona-se,

portanto, a extensão do consentimento ao âmbito penal e a possibilidade de sua

utilização na esfera dos bancos de dados genéticos para fins criminais.

(a) O consentimento prévio, livre, informado e expresso, sem tentativa de persuasão por ganho

pecuniário ou outra vantagem pessoal, deverá ser obtido para fins de recolha de dados genéticos

humanos, de dados proteômicos humanos ou de amostras biológicas, quer ela seja efetuada por

métodos invasivos ou não-invasivos, bem como para fins do seu ulterior tratamento, utilização e

conservação, independentemente de estes serem realizados por instituições públicas ou privadas.

Só deverão ser estipuladas restrições ao princípio do consentimento por razões imperativas

impostas pelo direito interno em conformidade com o direito internacional relativo aos direitos

humanos (UNESCO, 2003).

Tendo em vista a possibilidade da prova obtida através do DNA, contribuir para

a condenação do indivíduo, é necessário que a decisão de inserção do material biológico

ou perfil genético no banco de dados, seja feita com o consentimento esclarecido do

acusado.

5 Parâmetros jurídicos para a regulamentação dos banco de perfis genéticos para

fins de persecução criminal no Brasil

É possível verificar que diversos países estão com seus bancos de perfis

genéticos para fins de persecução criminal regulamentados. No entanto, esse panorama

não se consolida sem debates contínuos acerca dos direitos envolvidos, garantidos e,

eventualmente, desrespeitados.

Assim, torna-se imprescindível a discussão sobre os limites que a Constituição

Federal brasileira pode apresentar, no sentido de proteção aos bens jurídicos

fundamentais protegidos. Entretanto, o que se tem observado, na prática legislativa, é o

recurso constante às finalidades de política criminal, sobretudo no que tange à

persecução criminal, para relativizar direitos e garantias fundamentais em nome da

Page 74: Taysa Schiochet Anuário 2012

12

observância e atendimento ao direito da coletividade à segurança. Busca-se o

instrumento imediatista e simbólico da lei penal como solução para os problemas de

segurança pública e para os déficits do aparato do Estado no combate à criminalidade.

A própria ideia de Constituição sofreu uma mudança paradigmática: outrora o

constitucionalismo liberal com ênfase na organização do Estado e na proteção de um

elenco de direitos de liberdade cedeu espaço para o constitucionalismo social, em que

direitos ligados à promoção da igualdade material passaram a ter assento constitucional

e ocorreu uma ampliação notável das tarefas a serem desempenhadas pelo Estado no

plano econômico e social (BARROSO, 2011, p.107).

A promulgação da Constituição Federal de 1988 abriu para o Brasil uma nova

gama de possibilidades de reestruturação social, estatal e jurídica, com a positivação de

diferentes núcleos de direitos fundamentais – individuais, coletivos e culturais com uma

profundidade como nunca ocorrera anteriormente na vida constitucional do País,

estando, entre as transformações ocorridas, a edição da legislação penal.

Diferentemente do que a lógica sintática nos demonstra, na qual a expansão do

direito e o surgimento de novas leis e normas deveria representar uma melhor e mais

abrangente proteção dos bens jurídicos devido ao aumento do espectro de condutas

sujeitas à incidência da lei penal, a potencial inefetividade da legislação penal pós-

Constituição de 1988 é aparente pela incidência de alternativas às penas privativas de

liberdade em crimes leves ou, muitas vezes, em crimes mais graves dentro do sistema

jurídico brasileiro. No mesmo sentido, pode-se citar o caso do terrorismo nos países

europeus, por exemplo, onde o que se percebe é que, segundo Meliá (2011), o

terrorismo não é efetivamente combatido através de uma saturação de leis criminais,

mas pelo contrário, as mesmas sobrecarregam a capacidade preventiva, realçando ainda

mais a ideia de que, muitas vezes, lançamos inúmeras regras em nosso sistema jurídico

sem ao menos saber sua função e o que está sendo protegido.

É possível perceber que, apesar do crescente expansão do direito penal e o

surgimento de inúmeras leis referentes a novas situações antes desconhecidas pelo

ordenamento, apenas estamos suprindo de forma simbólica as necessidades da

sociedade no momento em que criamos leis que, muitas vezes, não são efetivas,

Page 75: Taysa Schiochet Anuário 2012

13

portanto em meio à situação da possível implementação de um banco de perfis

genéticos para fins de persecução criminal é necessário um enorme cuidado na

formulação das leis referentes ao tema, para que haja assim parâmetros bem definidos

quanto a sua utilização e seus limites impostos pelo Direito. Isso porque a legitimação

do referido banco não representa uma melhor proteção e abrangência jurídica, já que, se

o mesmo não for aplicado correta e cuidadosamente, não possuirá a efetividade buscada

em sua idealização.

Por essas razões, somente depois de enfrentadas e superadas as discussões de

ordem constitucional é possível pensar na regulamentação específica referente aos

bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal. Dentre as questões

consideradas fundamentais, destacam-se algumas delas.

Primeiramente, é imperioso analisar se é constitucional que a coleta de material

genético ocorra compulsoriamente (mesmo mediante técnica não invasiva de coleta)

ou se deve ser voluntariamente (mediante consentimento informado ou assentimento),

tendo em vista os direitos fundamentais possivelmente afetados, dentre eles: integridade

corporal (em sentido amplo), intimidade (tanto corporal quanto genética),

autodeterminação informacional, presunção de inocência, direito ao silêncio e não auto

incriminação, liberdade de decisão e física, liberdade religiosa, assim como a tutela

judicial efetiva.

Desse questionamento, decorre a necessidade de analisar qual é a extensão ou o

sentido do princípio constitucional relativo à proibição de produção probatória

contra si mesmo no direito brasileiro (do ponto de vista da legislação, da jurisprudência

e da doutrina) Especialmente tendo em vista que o DNA nesses casos possui dupla

natureza, isto é, trata-se de um ato de investigação (identificação) e, ao mesmo tempo,

um ato de produção probatória (prova), ainda que probabilística e falível - convém

lembrar.

Pode-se considerar este aspecto um dos maiores desafios jurídicos a ser

enfrentado, isto porque a Constituição Federal brasileira (além da Convenção

Interamericana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário) prevê expressamente

como direito fundamental - portanto cláusula pétrea – que ninguém tem o dever de

Page 76: Taysa Schiochet Anuário 2012

14

produzir prova em seu desfavor (auto incriminação), mesmo diante de uma acusação

formal. Trata-se, em outras palavras, do princípio da autodefesa que integra o direito ao

silêncio, o direito de não produzir provas contra si mesmo, bem como o direito de não

confessar.

Além disso, do ponto de vista jurisprudencial, convém considerar a interpretação

– fortemente garantista - que vem sendo dada a esse direito pelo Supremo Tribunal

Federal em diversos casos, inclusive aqueles envolvendo a obrigatoriedade (ou não) do

condutor de automóvel submeter-se ao teste de alcoolemia, os quais possuem -

guardadas as devidas distinções - diversos aspectos em comum com a obrigatoriedade

(ou não) de submeter-se ao exame de DNA (com a coleta do material biológico para

extração do perfil genético).

Em segundo lugar, é imperioso analisar a forma de constituição do banco, ou

seja, se é adequado, ética e juridicamente, criar um banco de perfis genéticos cujas

amostras coletadas originam-se de um determinado grupo da população (com base em

determinados critérios, como condenado, suspeito etc.) e, nesse caso, quais critérios de

coleta de material biológico deveriam ser utilizados com base no postulado da

proporcionalidade. Ou, por outro lado, se seria mais adequado criar um banco universal,

com amostras de todos os cidadãos de determinado Estado, sem qualquer distinção ou

critério para a realização da coleta.

Nesse sentido, cumpre analisar também em que medida a criação de um banco

de perfis genéticos para fins de persecução criminal ofenderia ou restringiria direitos e

garantias fundamentais, como a privacidade e a intimidade da pessoa (o que implica,

por consequência, analisar a questão do armazenamento das amostras e perfis genéticos,

bem como a questão da responsabilidade pela gestão do banco) e se haveria algum outro

princípio ou direito constitucional que justificaria juridicamente tal relativização ou

restrição aos direitos fundamentais.

Os perfis genéticos não oferecem resultados de identificação plena, absoluta

(100%) e, portanto, não são irrefutáveis, como sugerem erroneamente algumas pessoas

envolvidas cientifica e politicamente com o tema. Em outras palavras, a genética

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forense não valora os resultados das análises em termos de fiabilidade absoluta, mas o

menor ou maior grau de incerteza em termos de probabilidades.

Trata-se, portanto, de um resultado ou prova de probabilidade. Por essa razão, os

resultados não podem ser aceitos de forma automática. Desse modo, o laudo pericial

não deve mascarar fragilidades encontradas no decorrer das análises. Para esse cálculo

de probabilidade recomenda-se a utilização de uma fórmula de base estatística, que é o

denominado Teorema de Bayes, o qual permite inserir informações adicionais ao

número de polimorfismos coincidentes. Para tanto, é preciso levar em consideração

quais os marcadores serão utilizados, qual a frequências dos polimorfismos na

população (estudos genéticos populacionais), bem como qual é a população de

referência (de determinado estado, região, país, etnia etc.).

De fato, para que haja efetivamente um resultado mais próximo da realidade, é

preciso levar em consideração dados adicionais não estatísticos que são conhecidos pelo

juiz e não pelo perito. Portanto, ressalta-se, é preciso relativizar os resultados da prova

genética e compreender que o poder da perícia é limitado. Isso implica para os

operadores do direito (juízes, advogados, promotores etc.) em não aceitar os resultados

do perfil genético automaticamente como se fosse prova irrefutável, bem como em

apresentar rigor e fundamentação na valoração dessa perícia, necessariamente, em

conjunto com as demais provas e indícios do caso concreto.

Nesse sentido, Casabona e Malanda (2011, p. 43) alertam que muitas vezes a

coincidência do perfil do suspeito com o perfil da cena do crime pode sugerir apenas

que o suspeito esteve presente na cena do crime (e, em algumas ocasiões, nem mesmo

isso pode ser concluído, pois os vestígios podem ter sido transferidos de um lugar a

outro – intencionalmente, por descuido ou mesmo por casualidade). Os autores

esclarecem, por exemplo, que:

(...) aunque del informe se derive que el semen encontrado en la cavidad vaginal de la mujer que

denuncia una violación se corresponde con el ADN del sospechoso, ello únicamente nos

informará, en su caso, de que ha existido una relación sexual, pero no de que ésta se haya

producido sin el consentimiento de la presunta víctima. Esto último requerirá realizar otras

investigaciones probatorias.

Por ello, un resultado positivo en el análisis de ADN no puede servir, por un lado, para

establecer una conexión irrefutable entre el vestigio biológico y el sospechoso; y por otra parte,

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tampoco afirmar la culpabilidad del mismo. Sin embargo, un resultado negativo sí podría llevar a

la absolución pese a la existencia de indicios de culpabilidad.

Por fim, é preciso dar especial atenção à denominada cadeia de custódia5 como

forma de garantia da fiabilidade, segurança e credibilidade da informação genética

levada a termo em laudo pericial. Sem tais garantias toda e qualquer informação

proveniente da pesquisa genética e do laudo pericial carecerão de qualquer valor

jurídico probatório. A incolumidade da cadeia de custódia é fundamental para assegurar

a adequação e transparência das técnicas utilizadas, bem como o estado das amostras

coletadas e armazenadas. Na verdade a referida cadeia de custódia serviria ainda para

assegurar a adequada identificação, coleta, conservação, verificação e custódia da

amostra de DNA, desde a sua obtenção até que se incorpore definitivamente no

processo como meio de prova.

Nesse âmbito é que se sugere a harmonização das normas referentes aos

procedimentos uniformes com aquelas reconhecidas em âmbito internacional de modo

que haja efetivo controle dos procedimentos técnicos e científicos e a possibilidade de

contra-perícia. No Reino Unido, por exemplo, existe regulamentação6 detalhada e

rigorosa que determina, dentre outras questões, que as mostras devem ser lacradas e

etiquetadas na frente do doador, a temperatura de conservação da amostra e o prazo de

entrega em 48h. Além disso, dispõe que o laboratório não deve aceitar as amostras que

sejam entregues em condições insatisfatórias, ou seja, sem a devida identificação ou

cuja consistência seja motivo de suspeita.

Além dos aspectos anteriormente tratados, é fundamental enfrentar

concretamente questões como: a) os critérios de inserção, manutenção e exclusão tanto

dos perfis extraídos e analisados, quanto das amostras coletadas; b) os requisitos para

que não haja anulação pelo Poder Judiciário da prova produzida caso não observe os

direitos e garantias constitucionalmente reconhecidos; c) a eventual necessidade de que

a coleta da amostra genética seja realizada com o acompanhamento de um advogado;

assim como, d) a possibilidade de utilizá-la para a apuração de outros delitos (prova

emprestada).

5 Sobre as garantias relacionadas à fiabilidade técnica e licitude, além de aspectos referentes ao conteúdo

do informe pericial, recomenda-se a leitura de María José Cabezudo Bajo (2011 e 2012). 6 Circular do Ministério do Interior sobre o Banco Nacional de DNA (Homme Office Circular n°

16/1995).

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Uma lei que estipule tamanha mudança na forma de investigação e identificação

criminal deve vir acompanhada de estudos aprofundados sobre o assunto, através de

estudos de caso, análises de constitucionalidade em relação ao mérito, das formas como

colocar esses novos procedimentos em prática, dos benefícios e prejuízos por eles

trazidos, da segurança e garantia que deve envolver os materiais coletados, tudo isso

para que não se tenha mais uma lei sem utilidade prática e que não satisfaça as

necessidades, ou pior, que agrida os direitos dos cidadãos e os princípios ditados pela

Constituição Federal brasileira. Por isso, é preciso que se leve em consideração

invariavelmente os postulados processuais penais – fundados nos postulados

constitucionais - de modo que se compreenda o Direito Processual Penal não apenas

como instrumento do Direito Penal, mas como mecanismo concretizador das promessas

constitucionais.