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LUCIANA FERNANDES ROCHA LUTO MATERNO PELO FILHO SUICIDA Pontifícia Universidade Católica São Paulo 2007

TCC LUTO MATERNO PELO FILHO SUICIDA · Luciana Fernandes Rocha: LUTO MATERNO PELO FILHO SUICIDA, 2007 Orientadora: Profª Drª Flávia Arantes Hime ... VINCULAÇÃO MÃE – FILHO

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LUCIANA FERNANDES ROCHA

LUTO MATERNO PELO FILHO SUICIDA

Pontifícia Universidade Católica São Paulo

2007

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LUCIANA FERNANDES ROCHA

LUTO MATERNO PELO FILHO SUICIDA

Trabalho de Conclusão de Curso como exigência para a graduação no curso de Psicologia, sob orientação da Profª Drª Flávia Arantes Hime

Pontifícia Universidade Católica São Paulo

2007

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AGRADECIMENTOS

A Deus em primeiro lugar, pela saúde, pela vida plena, pela força no

enfrentamento deste trabalho, pela minha família e pela descoberta

da Psicologia como profissão que me realiza.

À minha orientadora Flávia Hime, minha especial admiração pelo

exemplo de dedicação, pelo respeito na relação com o outro e pelo

profissionalismo. Agradeço a ajuda valiosa neste trabalho.

À toda minha família, principalmente à minha tia Regina, que me

acolheu em um dos momentos de maior dificuldade desta trajetória,

meu agradecimento pela prontidão em me ajudar. Agradeço a ajuda

especial, a amizade e a alegria que sua presença traz.

Ao meu marido Álvaro, luz da minha vida, que com seu amor,

paciência e compreensão sempre esteve comigo nesta trajetória e

quero que esteja em todas as outras que ainda estão por vir.

À minha mãe Teresa, ao meu pai Vicente (in memorian), a Ricardo,

meu pai de coração e aos meus avós, pelo carinho, pelo permanente

cuidado e preocupação, pelos valores ensinados, pelo empenho em

minha formação pessoal e profissional.

À minha querida irmã Alice e ao meu cunhado Paulo pelo

compartilhar do convívio em família, pelo interesse em saber do

andamento do estudo e pelo incentivo para que chegasse à

finalização.

À minha sogra Eunice, ao meu sogro Valdemir, à minha cunhada

Andréia e à minha sobrinha Isabelle, por todo amor, por me

aproximar de Deus e pelo incentivo quanto à realização deste

trabalho.

Às amigas da faculdade e turma do “BOC” pelos inesquecíveis dias

de convivência, pela cumplicidade, incentivo e apoio nos momentos

de dificuldade. Às minhas queridas supervisoras Felícia Knobloch,

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Isabel Kahn e Luciana Braga e a todos os professores que nos

incentivaram e acreditaram em nossas potencialidades.

Às participantes deste estudo, manifesto a minha gratidão especial e

infindável respeito. Agradeço por terem concordado em participar

deste trabalho, mesmo sabendo que tocaríamos em dolorosas

recordações de uma perda tão significativa.

A todas as pessoas que colaboraram direta ou indiretamente para

que esta trajetória se completasse.

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Luciana Fernandes Rocha: LUTO MATERNO PELO FILHO SUICIDA, 2007

Orientadora: Profª Drª Flávia Arantes Hime

Palavras-chave: Luto materno; suicídio; processo de elaboração.

RESUMO

O luto pela perda de uma pessoa amada é a experiência mais universal e, ao

mesmo tempo, mais desorganizadora e assustadora que vive o ser humano.

Em razão disto, existe uma grande dificuldade de se tratar deste tema,

principalmente quando envolve a relação mãe-filho(a) e quando a causa da

morte do filho foi o suicídio. A morte por suicídio freqüentemente instiga a

desaprovação social por resultar de causas obscuras ou fortemente

estigmatizadas. Perdas desta natureza tendem a ser socialmente não

autorizadas, levando igualmente a lutos não autorizados. O sofrimento trazido

pelo suicídio de um filho é de tal ordem que acredito na validade de pensarmos

nos preconceitos e na ambivalência de sentimentos que o cercam a fim de

compreendê-lo melhor e tentar levantar propostas que possam atenuá-lo. O

objetivo desse trabalho foi identificar e analisar as manifestações de luto em

mães que perderam um filho por suicídio, com foco nos recursos com que

enfrentaram essa perda, bem como no sentido que atribuíram a essa

experiência. O estudo foi conduzido a partir da avaliação de entrevistas semi-

dirigidas com três mães enlutadas pelo suicídio do filho. As entrevistas foram

analisadas qualitativamente, utilizando-se o referencial da Psicanálise para

interpretação dos dados. A análise das entrevistas indicou a falta de suporte

social devido principalmente à dificuldade de encontrar interlocutores para

compartilhar a dor do luto. Além disso, foi possível perceber que existem outros

fatores complicadores desse tipo de luto (culpa, estigma, circunstância da

perda, raiva, entre outros), assim como fatores que podem facilitar a

recuperação da mãe enlutada (religião, rede social, tratamento psiquiátrico e

psicológico, etc.).

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................p.7

CAPÍTULO I - SUICÍDIO............................................................................................p.13

SUICÍDIO: UMA VISÃO SÓCIO-HISTÓRICA-CULTURAL..................................p.14

SUICÍDIO, MITOLOGIA E RELIGIÕES.................................................................p.20

SUICÍDIO E FILOSOFIA........................................................................................p.23

SUICÍDIO, PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA..........................................................p.24

SUICÍDIO NO BRASIL...........................................................................................p.26

REPRESENTAÇÃO SOCIAL DAS MENSAGENS SUICIDAS.............................p.28

A VISÃO DO SUICÍDIO NA ATUALIDADE............................................................p.29

EPIDEMIOLOGIA DO SUICÍDIO NA ATUALIDADE.............................................p.31

CAPÍTULO II - LUTO.................................................................................................p.32

FASES DO LUTO...................................................................................................p.33

SINTOMATOLOGIA...............................................................................................p.37

LUTO NORMAL E LUTO COMPLICADO..............................................................p.38

CAPÍTULO III – LUTO MATERNO.............................................................................p.41

VINCULAÇÃO MÃE – FILHO.................................................................................p.41

A PERDA DE UM FILHO........................................................................................p.43

CAPÍTULO IV– LUTO POR SUICÍDIO......................................................................p.46

CAPÍTULO V – METODOLOGIA...............................................................................p.50

PARTICIPANTES...................................................................................................p.52

INSTRUMENTOS...................................................................................................p.52

PROCEDIMENTO..................................................................................................p.53

PROCEDIMENTO PARA ANÁLISE DOS RESULTADOS...................................p.54

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CAPÍTULO VI – RESULTADOS................................................................................p.55

CAPÍTULO VII – CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................p.82

REFERÊNCIAS..........................................................................................................p.87

ANEXO 1 – TERMO DE CONSENTIMENTO ESCLARECIDO E INFORMADO

ANEXO 2 – ENTREVISTAS

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INTRODUÇÃO

Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento, Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade.

Alberto Caeiro

Do nascimento até o fim da vida, enfrentamos situações de vínculos e

separações, de perdas e lutos, que podem ou não estar relacionadas à morte

de um ente querido. No entanto, não há dúvida de que o luto pela morte é uma

das experiências mais dolorosas que qualquer pessoa irá viver.

O luto pela perda de uma pessoa amada é, segundo Franco (2007), a

experiência mais universal e, ao mesmo tempo, mais desorganizadora e

assustadora que vive o ser humano. Ele acontece quando a nossa vida se

encontra de tal forma ligada a outras vidas que, perdendo-se alguma delas, a

nossa é abalada nas suas mais profundas raízes. De acordo com Geraldo

(2007) com a morte da nossa mãe, de um filho, da mulher, do marido,

perdemos, de algum modo, o nosso sol e as nossas flores.

É indescritível o sofrimento que advém da perda de alguém que nos é querido.

Talvez não exista palavra que consiga expressar esse sentimento. E se não há

palavra que expresse tal sentimento, é preciso de tempo e trabalho de

elaboração interna para que o pensamento possa exprimir realidade tão dura.

Apesar de vivermos perdas sucessivas durante toda a nossa vida, a morte não

é vista como decorrência natural do viver, principalmente numa sociedade

como a nossa em que a vitalidade e a longevidade são cada vez mais

cobiçadas. A civilização ocidental tem dificuldade para aceitar a morte, e o

medo diante dela tornou-se parte dos principais conflitos psíquicos. No entanto,

a morte é uma das etapas da vida do ser humano, por isso, é de suma

importância que ela seja estudada e entendida como parte do processo da vida

pois, como afirma Morin (1970), só é possível conhecer o homem estudando

sua morte.

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Philippe Ariès (2003), um dos pioneiros a tratar sobre o tema da morte, afirma

que a morte é hoje tratada com distanciamento, como se não viesse a nos

atingir em momento algum. O autor enfatiza que a morte tornou-se um tabu e a

partir do século XX substituiu o sexo como principal interdito. O interdito da

morte, segundo Ariès, ocorreu após um período de vários séculos, em que era

um espetáculo público do qual ninguém pensaria em esquivar-se. Este interdito

atual nasceu numa cultura urbanizada na qual dominam a busca da felicidade

ligada ao lucro, e um crescimento econômico rápido. O recalque da dor, a

interdição de sua manifestação pública e a obrigação de sofrer só e escondido

agravam o traumatismo devido à perda de um ente querido.

Uma dor demasiado visível não inspira pena, mas repugnância; é um sinal de perturbação mental ou de má educação, é mórbida. Dentro do círculo familiar ainda se hesita em desabafar, com medo de impressionar as crianças. Só se tem o direito de chorar quando ninguém vê nem escuta: o luto solitário e envergonhado é o único recurso (Ariès, 2003, p.87).

Por isso, o autor descreve que as manifestações aparentes de luto são

condenadas e desaparecem na nossa sociedade. Gorer (apud Ariès, 2003)

relata que o processo do luto é entendido hoje como uma fraqueza, uma auto-

indulgência, um mau hábito repreensível, e não como uma necessidade

psicológica. Segundo Ariès (2003): “O luto não é mais um tempo necessário e

cujo respeito a sociedade impõe; tornou-se um estado mórbido que deve ser

tratado, abreviado, apagado”. (p. 95).

No entanto, Bromberg (2000) afirma que ninguém absorve de uma só vez a

realidade de um evento tão importante como um luto e por isso ele não pode

ser abreviado, muito menos apagado como exige a sociedade. A autora

compara o luto a uma ferida que precisa de atenção e tempo para ser curada.

Sua elaboração exige o reconhecimento e aceitação da realidade, bem como a

capacidade para lidar com as emoções e problemas que advêm da perda.

Assim, de acordo com Parkes (1998) o trabalho de luto é o processo de

aprendizagem pelo qual cada mudança é progressivamente compreendida e é

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estabelecido um novo conjunto de concepções sobre o mundo. Segundo o

autor, a dor do luto é:

(...) tanto parte da vida quanto a alegria de viver; é talvez, o preço que pagamos pelo amor, o preço do compromisso. Ignorar este fato ou fingir que não é bem assim é cegar-se emocionalmente, de maneira a ficar despreparado para as perdas que irão inevitalvelmente ocorrer em nossas vidas. (Parkes,1998, p.22).

Em razão disto, existe uma grande dificuldade de se tratar o luto quando este

envolve a relação mãe-filho(a), uma vez que o amor materno “é o amor que

cuida, que nutre, que fertiliza. É o único amor que todos conhecemos. Se não o

conhecêssemos de alguma maneira, simplesmente nem vivos estaríamos”

(Galiás, 2004). O luto de um filho, segundo a autora é:

(...) como se fosse inconcebível, inaceitável, impossível de elaboração. Aliás, se perdemos pai ou mãe essa dor tem nome, nos tornamos ‘órfãos’, é a dor da orfandade. Se perdemos o cônjuge, temos a dor da viuvez. Se perdemos um filho, não tem nem nome, é indescritível, inominada, é a dor da mater dolorosa. (p.2).

Rubem Alves (2007) afirma que “há dores que fazem sentido, como as dores

do parto: uma vida nova está nascendo. Mas há dores que não fazem sentido

nenhum”, como a dor pela morte de um ente querido. Galiás (2004) concorda,

dizendo que:

Se quando o filho nasce, há o “trabalho de parto”, quando morre há o “trabalho do luto”. Talvez por isso pareça parto, no sentido de um apartamento entre mãe e filho, o maior de todos em nossa existência, com a introdução da barreira da morte entre ambos (...) Não há como se medir intensidade de dor, menos ainda da dor psíquica. Mas, se houvesse, penso que a dor da perda de um filho seria das mais (senão a mais) intensas. É devastadora. (p.4).

O presente trabalho trata desta questão: o luto da mãe. Especificamente, o luto

materno pela perda do filho que tirou a própria vida, que se suicidou. O suicídio

é um problema de saúde pública que preocupa diversos segmentos da

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sociedade. Os serviços de emergência vêm registrando aumento considerável

das taxas de mortalidade por suicídio, bem como uma maior incidência de

casos de pessoas com comportamento suicida (Organização Mundial da

Saúde, 2000).

A família que perdeu um membro por suicídio vive as conseqüências de um

evento drástico. Segundo Freitas (2000), o suicídio desencadeia o luto mais

difícil de ser enfrentado. Parkes (1998), por outro lado, comenta que grande

parte dos suicídios pôde ser antecipada pela família, de maneira que não

deveríamos esperar que todos fossem igualmente traumáticos.

Kovács (1992) comenta que o suicídio é antes de tudo um homicídio de si

mesmo, em que a mesma pessoa é o assassino e o assassinado. Galiás

(2004) concorda dizendo que:

Se alguém matasse nosso filho, seguramente se possível como mãe o mataríamos, não fora a ponderação egóica. No suicídio do filho, há um que matou seu filho e que se quer enforcar com as próprias mãos (...) e há outro que foi vítima, que não pode sozinho se defender do ataque (...). É extremamente difícil juntar ambos num só, no mesmo filho, amado e odiado, que se quer tanto proteger, pegar no colo, quanto bater, socar, pôr de castigo. (p.3).

De acordo com Parkes (1998), a morte por suicídio freqüentemente instiga a

desaprovação social ou não atrai a atenção das pessoas, por resultar de

causas obscuras ou fortemente estigmatizadas. Perdas desta natureza tendem

a ser socialmente não autorizadas, levando igualmente a lutos não autorizados,

ou seja, a situações em que o luto não pode ser publicamente reconhecido,

pranteado ou beneficiário de suporte social. Ainda em Galiás (2004):

É realmente um "tema tabu"(o suicídio). Podem falar, comentar, conversar sobre, porém nunca com a própria família, não fica bem. Por outro lado, a família mesmo também evita, é constrangedor, é como se introduzisse na conversação uma espécie de bomba que detona todo e qualquer outro assunto, o que gera culpa. Com isso o tema realmente é evitado, cuidadosamente engavetado, não pode circular, mesmo em momentos em que um familiar gostaria de ter espaço para se

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expressar quanto à perda, quanto ao suicídio, quanto a tantas e diversas emoções que afloram. (p.3).

Entretanto, no luto também há esperança de transformação, de recomeço. De

acordo com Freitas (2000), “A perda revela a dependência, mas também a

liberdade...O enlutado não deve ser visto apenas com compaixão, mas como

alguém que pode conseguir acesso a um significado mais duradouro da

existência” (p.10). Parkes (1998) corrobora com esta idéia:

Assim como os ossos quebrados podem se tornar mais fortes do que os não quebrados, a experiência de enlutamento pode fortalecer e trazer maturidade àqueles que até então estiveram protegidos de desgraças. (p.22).

Essa possibilidade de recomeço é muitas vezes criticada e mesmo censurada

pela sociedade que condena a mãe que consegue sair do luto. Galiás (2004)

relata que “(...) desta posição não é esperado que se saia nunca mais, é como

se perdêssemos o direito à plenitude. E com facilidade qualquer outro estado

que não o da tristeza profunda é visto com desconfiança, será mania, será fuga

ou será alguma defesa? Será qualquer coisa, menos natural”. (p.1).

Portanto, meu objetivo neste trabalho é compreender o processo de elaboração

do luto de mães diante do suicídio de um filho. Pretendo fazer uma análise de

como e com que recursos enfrentaram essa perda, bem como o sentido que

atribuíram a essa experiência. Parto do princípio que a morte de um filho por

suicídio não é experienciada como um luto comum.

Escolhi esse tema como (mais uma) forma de elaboração pessoal e pelo

profundo respeito pelo sofrimento materno durante o luto de um filho; além do

desejo de compreendê-lo melhor para levantar propostas que possam servir

para atenuar um luto tão doloroso quanto censurado. Proponho que o poder

pensar, poder falar sobre algo tão traumático seja uma forma de legitimar a dor,

de reconhecer a ambivalência de sentimentos suscitados e principalmente

autorizar a recuperação de uma mãe cujo filho tenha se suicidado. Por isso, a

relevância desse trabalho em analisar um tema difícil e ao mesmo tempo, tão

importante.

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Para a elaboração do trabalho serão utilizados autores como P. Áries, S.

Freud, D. Winnicott, Colin Parkes, Maria Helena Pereira Franco, Kübler-Ross,

Maria Júlia Kovács, Kalina e Kovadloff , entre outros, para que sejam

estudados temas como morte, suicídio, luto, amor materno e relação mãe-

filho(a).

No primeiro capítulo serão apresentadas as elaborações teóricas com um

breve histórico e as concepções sobre o suicídio em diferentes culturas e

religiões.

No segundo capítulo pretendo fazer uma reflexão sobre o luto normal, o luto

complicado, a sintomatologia e fases do luto.

O terceiro capítulo será reservado exclusivamente para discutir o luto materno,

a perda de um filho e relação de vinculação mãe-filho.

No quarto capítulo discorrerei sobre o processo de luto em caso de suicídio.

No quinto capítulo apresentarei a metodologia do trabalho; no sexto capítulo,

os resultados obtidos; no sétimo, a análise dos resultados; e o oitavo capítulo

será reservado para as considerações finais.

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CAP. I - SUICÍDIO

Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio. (Guimarães Rosa, A terceira margem do rio )

O suicídio é...

"... um ato de heroísmo...” (SÊNECA).

"... um ato próprio da natureza humana e, em cada época, precisa ser

repensado...” (GOETHE).

"... a destruição arbitrária e premeditada que o homem faz da sua

natureza animal” (KANT).

"... uma violação ao dever de ser útil ao próprio homem e aos outros”

(ROUSSEAU).

"... admitir a morte no tempo certo e com liberdade” (NIETZSCHE).

"... a positivação máxima da vontade humana” (SCHOPENHAUER).

"... todo o caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato

positivo ou negativo praticado pela própria vítima, ato que a vítima

sabia dever produzir este resultado” (DURKHEIM).

“... o único problema filosófico verdadeiramente sério” (CAMUS).

“... um homicídio onde o indivíduo que mata é a própria vítima”

(MENNINGER).

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A prática do suicídio sempre existiu, porém apresentou, e ainda apresenta,

diversas formas de ser encarado, dependendo da cultura e da época. As

definições teóricas se alternam, se complementam e se contradizem. Não há

uma única explicação, pois o caminho do suicídio é o da ambigüidade. Mesmo

afirmativas que parecem inquestionáveis, como a de que o suicídio é resultado

de angústia e sofrimento, não valem para todos os casos, e se tornam

impertinentes quando se analisa, por exemplo, os casos de suicídio em países

orientais.

O suicídio poderá representar a luta pela honra, a libertação para aqueles que

são escravos ou que estão presos e também o aprisionamento da alma

daqueles que não seguiram as leis Divinas. O que determinará estas

concepções será a forma como este ato será visto pela sociedade.

Quase todas (senão todas) as pessoas já tiveram ou terão idéias suicidas em

algum momento de suas vidas. Ou seja, ele é mais comum e mais freqüente do

que se possa imaginar (Botega, 2004).

As religiões e as diversas teorias nos trazem inúmeras tentativas de explicar o

fenômeno do ato suicida. No entanto, mesmo atualmente ele é coberto por

diversos mitos e tabus o que torna difícil a tarefa de estudá-lo.

SUICÍDIO: UMA VISÃO SÓCIO-HISTÓRICA-CULTURAL

De acordo com Kalina e Kovadloff (1983).

Suicidar-se corresponde em latim a se occidere. A expressão provém do verbo transitivo occido-cidi-cisum, que significa, primeiramente, cortar, esmigalhar, dividir em muitas partes, e, conseqüentemente, ferir mortalmente, matar. (p.34).

Segundo Silva (1992), é difícil precisar quando o primeiro suicídio ocorreu. A

Enciclopédia Delta de História Geral registra que, em um ritual no ano 2.500

a.C., na cidade de Ur, doze pessoas tomaram uma bebida envenenada e se

deitaram para esperar a morte.

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É possível observar, na história da humanidade, que o suicídio sempre

acompanhou o ser humano, estando presente em todas as civilizações, porém

o modo de encará-lo é que difere de cultura para cultura.

As culturas mais antigas tinham formas bem diversas de encarar o suicídio e

algumas possuíam rituais para aqueles membros que se suicidavam e para

lidar com o corpo dos que se matavam. Algumas culturas politeístas

apresentam registros da interpretação comunitária do suicídio de seus

membros. Pode-se citar como exemplo os vikings, que acreditavam no Valhalla

– “palácio daqueles que morreram com violência” – como sendo o paraíso.

Apenas os mortos violentamente poderiam entrar no Valhalla e participar do

banquete presidido pelo deus supremo Odin. Era uma honra muito grande

morrer em batalhas ou, em segundo lugar, cometer suicídio, o que dava a

certeza de se alcançar o paraíso (Silva, 1992).

Ainda de acordo com a autora, também os esquimós acreditavam na morte

violenta como pré-requisito para usufruir o paraíso e o suicídio se incluía neste

tipo de morte. A morte digna para um esquimó é aquela em que ele,

percebendo o seu fim, vai para longe do seu grupo para morrer, a fim de

possibilitar mais alimentos para os jovens e permitir a seu povo não precisar

cuidar de um ancião, sendo este ato normal e desejável para a cultura

esquimó.

Segundo Boismont (apud Kalina e Kovadloff, 1983), os godos acreditavam que

aqueles que morriam de morte natural estavam destinados a passar a

eternidade entre animais peçonhentos. Isso era um incentivo ao suicídio para

os idosos não terem que suportar a velhice.

Entre os astecas, oferecer-se como oferenda aos deuses em rituais de morte

era muito bem visto pela comunidade, assim como a morte em batalhas. Em

outras sociedades primitivas como em Uganda, uma mãe deveria se matar,

caso um de seus filhos tivesse morrido (Silva, 1992).

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De acordo com Cassorla (1984), o suicídio é um ato agressivo. “A percepção

da agressividade do suicida por parte da sociedade fez com que ela também

reagisse agressivamente, através dos tempos, castigando o suicida” (p. 34).

Segundo o autor, na Antigüidade, em Tebas e Chipre, o suicida era privado das

honras fúnebres.

Na Antiga Grécia, para Kalina e Kovadloff (1983) e Cassorla (1984), um

indivíduo não podia se matar sem prévio consenso da comunidade porque o

suicídio constituía um atentado contra a estrutura comunitária. O suicídio era

condenado politicamente ou juridicamente. Eram recusadas as honras de

sepultura regular ao suicidado clandestino e a mão do cadáver era amputada e

enterrada à parte para privar o morto de uma vingança posterior. Os

magistrados mantinham um estoque de veneno para quem desejasse morrer.

Para receber o veneno era necessário que o sujeito defendesse sua causa

perante o Senado para obter a permissão oficial. Neste sentido, o Estado tinha

poder para vetar ou autorizar um suicídio bem como induzi-lo. Por exemplo, em

399 a.C., Sócrates foi obrigado a se envenenar.

No Egito, se o dono dos escravos ou o faraó morria, era enterrado com seus

bens e seus servos, os quais deixavam-se morrer junto ao cadáver do seu

amo. Também no Egito, desde o tempo de Cleópatra, o suicídio gozava de tal

favor que se fundou a Academia de Sinapotumenos que, em grego, significa

"matar juntos" (Silva, 1992).

Em Roma, os enforcados eram privados de sepultura. As tentativas de suicídio,

principalmente as sangrentas, podiam ir para a justiça e se esta ocorresse no

exército era punida com a morte (Cassorla, 1984, Palhares, 2004).

No Japão Antigo, para evitar a desonra da captura ou a vergonha de sair vivo

de um duelo quando derrotado, o samurai praticava um ritual chamado

seppuku, que significa: suicídio ventral. No geral, segundo seu código de

conduta, quando um samurai perdia sua honra de alguma forma, ele se via na

obrigação de cometer o suicídio (S/A, 2004).

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Ainda no Japão, de acordo com Silva (1992), existem diferentes

representações sociais do suicídio. As diferenças ficaram tão objetivadas que

se criaram diferentes palavras para designar os suicídios como, por exemplo:

"funshi" = suicídio por intenção agressiva,

"jibaku" = suicídio por auto-explosão ao destruir o inimigo,

"junshi" = suicídio do escravo por ocasião da morte do seu senhor,

"seppuku e harakiri” = suicídio por incisão no abdome,

"shinju" = suicídio por paixão amorosa.

Nesta cultura se atribui muita dignidade ao gesto suicida, estando a

representação social da morte amparada na crença de que o espírito do morto

terá mais força para atuar na sociedade do que a pessoa permanecendo viva

em dada situação, cuja saída honrosa era o suicídio (Silva, 1992).

Cassorla (1984), diz que os índios Tinklit quando se sentiam ofendidos e não

tinham possibilidade de se vingar, se suicidavam e, assim, os parentes e

amigos deveriam vingá-lo. Entre os chuvaches, na Rússia, as pessoas

enforcavam-se na porta do inimigo, pois acreditavam que sua alma perseguiria

o ofensor.

A sociedade foi reprimindo o suicídio até a Revolução Francesa, a qual aboliu

as medidas repressivas contra a prática do suicídio o que, para Kalina e

Kovadloff (1983), significou que a conduta suicida deixou de comprometer a

estabilidade do Estado. O suicídio assumiu, assim, um caráter que oscila entre

o quase clandestino, ou francamente clandestino, e o patológico. É um gesto

solitário, dissimulado, uma transgressão. Eles escreveram:

Entre a pessoa e a comunidade começou a se abrir, em meados do século XVIII, uma distância que duzentos anos mais tarde terminará constituindo as múltiplas formas de incomunicação contemporânea. Por isso, mais que um ato de indulgência estatal frente ao indivíduo, deve-se ver nesta liberalização progressiva das normas punitivas com respeito ao suicídio uma expressão de irrelevância social que começa a pesar sobre a pessoa. Ou seja, não se contempla o suicídio

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com tolerância porque se o compreende, mas porque já não se lhe atribui maior transcendência coletiva. (p. 54).

Manhães (1990) faz referência às mulheres indianas que, em certas seitas,

num tipo de suicídio obrigatório, são obrigadas a se matar atirando-se nas

covas dos maridos mortos, num “suicídio obrigatório”. A autora cita ainda os

famosos Kamikazes (deuses do vento), pilotos japoneses que se atiravam

contra o alvo para eliminar o inimigo. Eles faziam parte de grupos de pilotos

organizados para realizar ataques suicidas contra navios americanos e

britânicos no oceano Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

O que movia esses homens para a morte certa era um fervor genuinamente

religioso, baseado em valores tradicionais do Japão. Culturalmente, o suicídio

em determinadas circunstâncias era visto por eles como demonstração de

honra. Uma atmosfera sagrada envolvia os aviadores: na véspera de suas

missões eles participavam de rituais religiosos e embarcavam para a morte

com espadas de samurai, símbolo máximo da bravura nipônica.

Segundo Botega (1996) uma elevação temporária no número de suicídios pode

ser eventualmente observada em determinados grupos, ou após o suicídio de

alguma personalidade importante. Isto dá ao comportamento suicida um poder

de “contágio” psicológico, revelando a força dos mecanismos de identificação

que modulam o comportamento humano.

No século XIX, Émile Durkheim publicou o clássico livro O Suicídio. De acordo

com Kovács (2002), Durkheim acreditava que na relação indivíduo/sociedade

aconteciam sérias dificuldades, onde o indivíduo se encontrava à mercê de

forças maiores que ele próprio. Desta forma, o suicídio não era considerado um

fato absolutamente pessoal, e somente poderia ser explicado no contexto

social a que pertencia. Para ele, cada sociedade tem uma inclinação coletiva

ao suicídio que tende a permanecer constante enquanto a estrutura da

sociedade não mudava.

Nenhum suicídio podia ser considerado realizado por livre arbítrio, pois o

fenômeno do suicídio estaria obedecendo a leis sociológicas. Através das

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pesquisas realizadas, Durkheim concluiu que a taxa de suicídio variava em

razão inversa à integração do grupo social de que o indivíduo fazia parte.

Para explicar as taxas de suicídio Durkheim (apud Kovács, 2002) apresentou a

sua tese de que o suicídio poderia ser compreendido em três categorias

sociais: o suicídio egoísta, o altruísta, o anômico (fatalista):

- O suicídio egoísta ocorreria entre aqueles indivíduos que perderam o sentido

de integração com seu grupo social, não se encontrando mais sob a influência

da sociedade, da família e da religião.

- O suicídio altruísta, no qual o indivíduo sacrifica sua vida pelo bem do grupo.

- O suicídio anômico decorre da noção de anomia criada por Durkheim. Trata-

se de um espaço intermediário onde o indivíduo permanece sem

regulamentação por parte da sociedade durante certo tempo. Na anomia, o

indivíduo encontra-se desprovido de proteção e as tendências suicidas da

sociedade encontram-se sem mecanismos de controle e preservação. O autor

desmistifica também a idéia de que o desemprego ou a miséria econômica

conduz ao suicídio. Qualquer ruptura de equilíbrio, ainda mesmo que dela

resulte um bem estar maior e uma vitalidade geral, incita à morte voluntária.

Todas as vezes que se produzem no corpo social graves modificações, sejam

elas devidas a um súbito movimento de crescimento ou a um cataclismo

inesperado, o homem mata-se mais facilmente.

Os diversos tipos de suicídio podem compor formas combinadas, onde se

teriam diferentes causas agindo simultaneamente.

Para Durkheim, segundo Kovács (2002), os aspectos individuais não são

significativos para explicar o fenômeno do suicídio. A idéia durkheimiana é que

é justamente a operação da sociedade como um todo (da cultura) que causa

diretamente a taxa de suicídio: esta só poderia se dar em termos do sistema

social amplo comparado a outros sistemas sociais.

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SUICÍDIO, MITOLOGIA E RELIGIÕES

Alguns suicídios famosos na mitologia e nas religiões são citados por Manhães

(1990), como é o caso do famoso suicídio na Mitologia tebana de Jocasta mãe

de Édipo. A autora lembra ainda de Crisipo que atentou contra a vida,

envergonhado de ter sido seduzido homossexualmente por Creonte. Da Bíblia,

Manhães (1990) menciona, no Antigo Testamento, o suicídio de Saul:

Ele era perseguido por vozes demoníacas que aplacavam quando Davi tocava sua harpa. Acossado pelos inimigos, pediu a seu escudeiro que o matasse. O jovem não teve coragem e Saul se atira contra sua própria espada, eliminando sua vida para não cair nas mãos dos incircuncisos. (p. 25).

Estudos realizados sobre religiosidade e suicídio sugerem que pessoas

religiosamente orientadas têm baixo índice de suicídio (Feijó, 1998). Neste

sentido, Durkheim afirma que o efeito preventivo da religião se deve à coesão

social que ela determina e não ao seu conteúdo ou prevenção ao suicídio

(Feijó,1998).

RELIGIÃO CATÓLICA

As religiões cristãs não perdoam os indivíduos que cometem o suicídio.

Segundo Manhães (1990) e Cassorla (1984), a estes são negados os últimos

sacramentos, a encomendação da alma e até a missa de sétimo dia. Já

aqueles que tentavam o suicídio eram excomungados.

O Novo Testamento qualifica o enforcamento de Judas Iscariotes como um ato

suicida, ocasionado pela culpa de ter traído Jesus (Manhães, 1990). Segundo

Cassorla (1984), antigamente a Igreja Católica, de alguma maneira, estimulava

o suicídio, já que o martírio facilitava a entrada no reino dos céus. No século IV,

Sto Agostinho sustenta que o auto-extermínio é uma perversão. Depois disso,

o suicida passou a ser considerado um discípulo de Judas, um traidor da

humanidade, até mesmo como um ato de “vitória do diabo”, uma vez que o

indivíduo duvida da misericórdia divina e perde a convicção de que será salvo.

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Santo Tomás de Aquino baseou a proibição do suicídio em três justificativas: o

suicídio é contrário à inclinação natural do indivíduo de amar a si mesmo; é um

atentado à comunidade à qual pertence; a vida é um bem dado ao homem por

Deus e quem a tira viola o direito divino de determinar a duração de nossa

existência na Terra.

De acordo com Silva (1992), na Idade Média cristã o suicídio é condenado

teologicamente. A Europa cristã acaba com as diferenças entre o suicídio legal

e ilegal: matar-se era atentar contra a propriedade do outro e o outro era Deus,

o único que criou o homem e quem, portanto, deveria matá-lo. A vida do

indivíduo deixa de ser um patrimônio da comunidade para ser um dom divino e

matar-se equivale a um sacrilégio. O suicidado não tem direito aos rituais

religiosos, seus herdeiros não recebem os bens materiais e seu cadáver é

castigado publicamente, podendo ser exposto nu ou queimado. Os suicidados

são igualados aos ladrões e assassinos e o Estado e a Igreja fazem tudo para

combater os suicídios.

A partir da Revolução Francesa, segundo Cassorla (1984), fica proibido

qualquer tipo de condenação e a Igreja torna-se mais tolerante. Atualmente o

cristianismo é contra o suicídio com base no quinto mandamento (“Não

matarás”), mas existe uma tendência maior em compreender o suicida, e não

condená-lo.

RELIGIÃO JUDAICA

De acordo com o Zweiman (2007), o suicídio é condenado pelo judaísmo e

comparado ao ato de renegar à fé. O dom da vida é uma dádiva divina, não

cabendo, pois, aos seres humanos a decisão de interrompê-la ou encurtá-la.

Quando se fere o corpo ou alma, comete-se uma ofensa contra a obra e a

propriedade divinas. Os atos de luto e sepultamento são feitos neste caso com

muitas restrições.

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Ainda segundo o autor, o Rabino deve ser ouvido antes de serem aplicadas as

restrições, como a que determina seu sepultamento a uma distância mínima de

cinco metros dos demais túmulos e a não observância de luto.

Segundo Cassorla (1984), apenas são perdoados os judeus que se suicidam

em caso de tortura, manutenção de honra, renúncia forçada da religião,

preservação da castidade, etc.

DOUTRINA ESPÍRITA

Kardec (apud Gregório, 2007), em O Livro dos Espíritos, discute o tema

apontando as causas e as conseqüências do suicídio, considerado um ato

sinistro. Diz que o desgosto pela vida é efeito da ociosidade, da falta de fé e

geralmente da sociedade. O autor diz ainda que os espíritos advertem que

quando se comete o suicídio o indivíduo responderá como um criminoso.

Acrescenta ainda que aquele que tira a própria vida para fugir à vergonha de

uma ação má, prova que tem mais em conta a estima dos homens que a de

Deus, porque vai entrar na vida espiritual carregado de suas iniqüidades,

tendo-se privado dos meios de repará-las durante a vida.

Kardec analisa o suicídio juntamente com a loucura, e diz que “a calma e a

resignação, hauridas na maneira de encarar a vida terrestre, e na fé no futuro,

dão ao Espírito uma serenidade que é o melhor preservativo contra a loucura e

o suicídio" (apud Gregório, 2007). O autor também afirma que os suicidas em

estado de embriaguez e loucura estariam inconscientes de seu ato, e por isso

não teriam as mesmas conseqüências dos suicidas conscientes.

ISLAMISMO

Para Montani (2007), no manual de moral elementar do islamismo, há uma lista

de pecados graves. Os dois mais graves, que Deus não perdoa, são: associar

outras divindades a Alá e o suicídio.

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Os islamitas condenam e proíbem o suicídio. Eles condenam os indivíduos

que praticam este ato “a uma vida de ‘suicídio eterno’, sempre ressuscitando e

compulsivamente se matando” (Manhães, 1990).

SUICÍDIO E FILOSOFIA

Segundo Pagenotto (2007), Platão descreveu que o suicídio é um erro por

liberarmos nossa alma do corpo em que Deus nos colocou. Platão afirmou em

seu trabalho (Leis) que o suicídio é uma desgraça e que quem o comete deve

ser enterrado em sepultura clandestina.

A autora relata que embora o Renascimento seja um contraponto da Idade

Média, a maioria dos intelectuais tinha a mesma posição da igreja de condenar

o suicídio. O filósofo Michel de Montaigne, no entanto, defendia o suicídio e

enumerou vários argumentos a favor da prática em seus Ensaios.

Pagenotto (2007) também comenta que John Locke, filósofo liberal do século

XVII adotou os argumentos de Santo Tomás de Aquino dizendo que “Deus nos

legou a liberdade pessoal, mas isto não inclui a liberdade de nos matarmos”.

David Hume (1711-1776) em seu ensaio Do Suicídio, ataca praticamente todas

as bases da crença cristã tradicional. Contra todas as doutrinas religiosas, que

sempre condenaram o suicídio, Hume alega que o suicídio não é imoral nem

irreligioso. Argumenta que toda pessoa deveria ter o direito de decidir se

deveria continuar a viver ou não.

Ainda em Pagenotto (2007), um ferrenho opositor ao suicídio nesse período foi

Immanuel Kant (1724-1804), para quem “nossa razão é fonte de nossa

obrigação moral e seria quase uma contradição supor que essa mesma

vontade possa destruir a si mesmo”.

O suicídio foi, segundo a autora, o tema mais abordado pelos existencialistas

na segunda metade do século XX. Albert Camus demonstrou em seu livro Mito

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de Sísifo que o suicídio nos tenta com a promessa de uma liberdade ilusória do

absurdo de nossa existência. Para Jean-Paul Sartre o ato é uma oportunidade

de afirmar a compreensão de essência individual em um mundo sem Deus.

Assim, para os existencialistas, o suicídio não era uma escolha moldada por

considerações morais, mas por preocupações pelo indivíduo como a única

fonte de significado num mundo sem sentido.

SUICÍDIO, PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA

A partir de estudos psicanalíticos, Alves (1991) conclui que o ato suicida tem

várias funções que vão depender de cada indivíduo e situação. De maneira

geral, o suicida estaria tentando fugir de uma situação de imenso sofrimento

somado a uma desesperança e uma tristeza incomensurável. E nesse caso, a

morte seria vista como uma solução, não porque a deseja, mas porque não

enxerga outra saída para a dor psíquica que enfrenta.

Alves (1991), diferencia a “morte vinda de fora” da “morte que cresce por

dentro” e que cada uma delas produz um sentimento diferente para quem as

acompanha. Na primeira, a morte seria vista como um acontecimento de dor,

pois a vida seria abruptamente interrompida. Na segunda não; o ato suicida

seria a vontade do indivíduo manifesta.

De acordo com o autor, esta atitude estaria ligada ao homem transfigurar o

terrível em beleza. Essa seria a única razão para se admirar histórias como a

de Édipo ou Romeu e Julieta, por exemplo.

Para Cassorla (1984), Romeu e Julieta da obra de Shakespeare, assim como

tantos Romeus e Julietas da vida real, se matam para vingar-se de seu

ambiente, “mas, talvez com mais intencionalidade, matam-se para continuarem

juntos, para poderem amar-se num mundo fantasiado, de paz, certamente

numa vida pós-morte” (p. 33).

Assim sendo, Cassorla (1984) coloca que:

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Muitos suicidas não desejam certamente a morte, mas sim uma nova vida, em que a pessoa se sinta querida, seja importante. O final fantasiado, se fosse possível, é que aquela pessoa de quem se imagina que veio o maltrato, se sinta culpada e com remorso; então, o suicida como que ressuscitaria, todos se desculpariam e a vida continuaria, num final feliz. (p. 33).

Para Cassorla (1984), isso não vai ocorrer; no entanto, poderia ser real nas

ameaças e tentativas de suicídio em que o indivíduo sobrevive. Porém, ele

afirma que as reações do ambiente são bem mais complexas e que raramente

a tentativa de suicídio modifica alguma coisa em relação ao ambiente. Pelo

contrário, o ambiente, não raramente, “reage também agressivamente ao ato

agressivo de seu membro” (p. 33-34).

Segundo Alves (1991), o suicida é um artista trágico que por lhe faltarem

recursos para contar a sua história, a única maneira que encontra é

manifestando-a em seu próprio corpo. E o silêncio que resta, seria o pedido

imposto a todos de escutar o final dessa história que é aquele mesmo: um

corpo sem vida.

Segundo Silva (1992), a principal contribuição de Freud para a suicidologia é

datada de 1920 - o texto "Além do princípio do prazer" - onde procura explicar o

conflito humano como sendo, essencialmente, o conflito de Eros x Thanatos.

Eros é a pulsão que conduz a vida e Thanatos é a pulsão que conduz a morte,

sendo necessário haver equilíbrio entre as duas pulsões para que o suicídio

não ocorra com o predomínio da pulsão de morte.

Para a Psicanálise, de acordo com Silva (1992), o indivíduo vivencia o instinto

de vida versus o instinto de morte e, se o ambiente lhe é desfavorável, a

agressão pode se voltar contra o ego. Assim, para Menninger (apud Silva,

1992), o que Durkheim classifica como suicídio egoísta ou suicídio altruísta, um

psicanalista pode analisar como sendo resultado do conflito instinto de morte

versus instinto de vida, ou verificar os desejos de matar, morrer e ser morto.

A polêmica com relação ao suicídio também é discutida por Feijó (1998), se

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este é motivado ou não por doença mental. A literatura psiquiátrica atual tende

a classificar o suicídio como patológico.

Para Shneidman (apud Feijó, 1998) os suicidas estão sofrendo de dor

psicológica e a visão psiquiátrica para tanto é limitante. O sofrimento é

opcional, dependo da personalidade. Para se livrar deste sofrimento um dos

caminhos pode ser o suicídio e então não seria considerado um ato doentio.

Durkheim (apud Feijó, 1998), admitia a vigência do suicídio nas doenças

mentais, mas “se tal fato fosse verdadeiro a doença mental deveria revelar sua

presença mediante manifestações características, mesmo quando as

condições sociais tendem a neutralizá-las. Inversamente, os fatores sociais

seriam impedidos de se manifestar, quando as condições individuais atuam no

sentido contrário” (Feijó, 1998).

Para Botega (1996), na maioria dos casos de suicídio podemos inferir a

influência de transtornos mentais como a depressão (50% dos casos), o

alcoolismo (10 a 25% dos casos), drogadição e esquizofrenia. No entanto, não

se pode afirmar que todo ato suicida carregue componente psicopatológico.

Para Friedrich (apud Feijó, 1998), o suicídio acontece quando a pessoa se

sente incapaz de dominar uma situação insuportável, acredita que não

conseguirá sair dela e desespera-se pela perda do controle sobre o ambiente e

da maneira de agir. Seria assim que o suicida percebe suas experiências

internas e externas.

SUICÍDIO NO BRASIL

No Brasil, na época da escravidão, o índice de suicídio entre negros era alto

em relação aos brancos. Goulart (1972) escrevendo sobre a escravidão no

Brasil relata:

O suicídio foi o mais trágico recurso de que se valeu o negro escravo para fugir aos rigores do regime que o oprimia – excesso de trabalho, maus tratos, humilhações, e, em muitos

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casos, para eliminar juntamente com a própria vida, o banzo, isto é, aquela irreprimível saudade da pátria distante, para sempre fisicamente perdida, à qual só tornaria a voltar graças ao processo de ressurreição, como acreditava. (p. 123).

Segundo o autor, o negro via no suicídio, além de uma forma de abreviar os

sofrimentos físicos e morais, certa modalidade de vingança contra o detestado

senhor. Para os proprietários de terras o suicídio representava ruína, uma vez

que se perdia a mão de obra escrava e com isso havia perda de capital.

Mesmo após a abolição da escravatura, o índice de suicídio entre negros era

maior, pois a industrialização não conseguiu absorver toda esta nova mão-de-

obra.

Como foi visto, o suicídio também pode ser considerado como questão de

honra. “Do ponto de vista ético, ao defrontar-se com situações morais tão

penosas e humilhantes, a pessoa prefere se evadir da vida” (Manhães, 1990, p.

26).

Manhães (1990), considera que o suicídio do presidente Getúlio Vargas tenha

sido por questões morais. “Em um momento crítico do país, (…) ele, ao invés

de usar o afastamento simples, optou pela grande renúncia – a morte” (p. 26).

Já para Cassorla (1984), o suicídio do presidente Getúlio Vargas teve o intuito

de vingança frente aos seus inimigos, que se sentiriam culpados e

responsáveis, como também, principalmente, o objetivo de “permanência de

Vargas influenciando os sobreviventes, como em uma vida pós-morte: ‘saio da

vida para entrar na História’, escreve em sua carta-testamento. Em sua

fantasia, continua vivo, talvez ainda mais vivo que antes de seu suicídio“ (p.

33).

Neste sentido, o suicídio de Vargas parece se encaixar na afirmação de

Stengel (apud Feijó, 1998) que diz que o suicídio deriva do instinto de

autopreservação no sentido da imortalidade. (...) de renascimento espiritual, de

se manter vivo ou recomeçar, mais do que terminar.

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De acordo com Cassorla (1991) “não existe uma causa para o suicídio. Trata-

se de um evento que ocorre como culminância de uma série de fatores que vão

se acumulando na biografia do indivíduo, em que entram em jogo desde fatores

constitucionais até fatores ambientais, culturais, biológicos, psicológicos etc”

(p.20).

REPRESENTAÇÃO SOCIAL DAS MENSAGENS SUICIDAS

Uma coisa é certa. O grande suicida, o que realmente quer pôr fim à sua vida, sempre o faz, no silêncio ou no alarde, como o grande humorista Péricles que se matou no último dia do ano, (...) Péricles, como muitos, precisou morrer para comunicar sua solidão. (...) É nítido, nas mensagens de Adeus, como, com a morte do indivíduo sua intimidade se revela aparente, nua, em comunicação (Manhães, 1991 e Dias, 1991).

De acordo com Silva (1992), as representações sociais não excluem as

emoções sempre presentes em todo ato humano e que se apresentam

intensamente tanto na hora em que se escreve um bilhete quanto na hora do

gesto suicida. O suicidado é, segundo a autora, ao mesmo tempo, a fonte que

emite um sinal em código e o emissor da comunicação. A sociedade é

receptora da comunicação e a fonte que realimenta o processo. O significado é

polêmico porque pode haver divergência entre o significado que o suicidado

quis dar ao seu ato e o significado atribuído pelos outros.

Ainda para Silva (1992), o suicídio é uma representação ancorada em

diferentes representações de morte e, também, representações de vida:

descanso, transformação, ausência de sofrimentos, vida paralela, etc,

demonstrando que é um fenômeno psicossocial - intra e interpsíquico. É

intrapsíquico uma vez que o sujeito vive um conflito emocional consigo mesmo.

É interpsíquico porque neste conflito as emoções e os pensamentos são

elaborados nas relações sociais. A representação social, segundo Jodelet

(apud Silva, 1992), ponto de intersecção do psicológico e do social, explica a

atividade do suicidado em criar simbolicamente sua própria destruição a partir

das suas ancoragens e do processo de objetivação que vive.

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Portanto, falar de suicídio é falar de comunicação, cognição e atividade, onde

os sentimentos desempenham papel decisivo. "... o indivíduo ao morrer, passa

a viver. Ele aí, então, expressa muito de seu estado emocional e de sua

interioridade que não foi possível comunicar em vida" (Silva, 1992). Segundo a

autora, o processo de comunicação do suicídio é um questionamento de todas

as representações sociais existenciais que se tem.

A VISÃO DO SUICÍDIO NA ATUALIDADE

Para Kalina e Kovadloff (1983) o homem do nosso tempo, na busca de seus

próprios interesses econômicos e em nome da civilização e do progresso,

acaba por contribuir para uma prática diária de auto-destruição. Citam como

exemplo, o perigo de uma guerra atômica juntamente com uma contaminação

ambiental como sendo fatores que comprometeriam toda a humanidade em

geral.

Os autores aplicam o termo “existência tóxica” para designar a maneira de

viver atual. “A existência, quando é tóxica, implica um projeto de morte, ou seja,

viver suicidando-se” (p. 30).

Uma existência tóxica é uma vida contaminada. Uma forma de viver que, para sustentar-se, necessita nutrir-se daquilo mesmo que a destrói. E precisamente por isso, porque não pode renunciar ao que a danifica, a existência – ao ser tóxica – é suicida (p. 41).

O suicídio seria a expressão radical de uma crise de despersonificação, de um

“debilitamento profundo da auto-estima”. E, a “despersonificação urbana

contemporânea” seria o fator principal que contribuiria para uma proliferação de

patologias suicidas. (Kalina e Kovadloff, 1983)

Os autores vêem o suicídio como um comportamento coletivo. Acreditam que o

modo de viver contemporâneo poderia ser interpretado como um “auto-

extermínio progressivo da humanidade” (p. 17).

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Portanto, de acordo com Kalina e Kovadloff (1983), a reação suicida

propriamente dita, seria resultado de uma indução e não somente de uma

determinação individual; há a “macrossociedade” e as microexpressões desta,

ou seja, a família. O indivíduo suicida já é possuidor de um potencial, mas as

“microexpressões” da sociedade ensinariam de forma manifesta ou subliminar

os modelos que cada pessoa adota. Ou seja, a conduta suicida, considerada

como um gesto autônomo, seria decorrente de uma colaboração de muitos

outros fatores pertencentes ao meio social em que se vive, até mesmo da

família.

Em relação à família, as teorias de aprendizado social acreditam que os

suicidas imitam comportamentos de familiares e amigos. Também a teoria

sistêmica postula o suicídio como um sintoma de uma disfunção familiar (Feijó,

1998).

Segundo Botega (2004), os familiares de uma vítima de suicídio também se

encontram em um grupo de maior risco para o suicídio, por causa de

mecanismos psicológicos de identificação e predisposições genéticas para

determinadas doenças mentais, como por exemplo, transtornos de humor.

Sobre a visão atual do suicídio, Galiás (2004) ainda comenta:

Tendemos a olhar para o suicídio como algo uno, ou seja, como se todos fossem mais ou menos iguais. É como se colocássemos os diferentes tipos de suicídio todos no mesmo saco, com um só rótulo. E dessa forma o suicida é de imediato associado a características como fraqueza, loucura, covardia, depressão, estupidez, coitadice ou agressividade, etc. Evidentemente todas essas podem estar presentes e mais outras tantas condições. Porém não temos discriminação entre diferentes tipos de suicídio, quanto entra a impulsividade, quanto entra até mesmo a reflexão, a decisão. Verdadeiramente, estamos longe de ter algo que se aproxime de uma "classificação" de diferentes suicídios. Não temos uma discriminação dos suicídios e sim uma discriminação do suicida (p.2).

Para Kurtz (2007), mesmo um cego em termos de teoria social deve atentar

para os paralelos com os terroristas do 11 de setembro de 2001 e com os

terroristas suicidas da Intifada palestina. Segundo o autor, muitos ideólogos

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ocidentais pretenderam atribuir esses atos incondicionalmente, com visível

apologia, ao "âmbito cultural alheio" do Islã. Ambos os fenômenos pertencem

ao contexto da globalização capitalista; são o resultado "pós-moderno" último

do próprio iluminismo burguês. A diferença das condições para o autor tem a

ver mais com a distinta força do capital do que com a diversidade das culturas.

EPIDEMIOLOGIA DO SUICÍDIO NA ATUALIDADE

O suicídio, segundo Botega (1996) encontra-se entre as 10 principais causas

de morte no mundo, e entre as três primeiras quando se considera a faixa entre

15 e 34 anos de idade. O autor ainda alerta para o fato de que é estimado que

os coeficientes reais de mortalidade por suicídio no país sejam até quatro

vezes maiores que os registros oficiais. As causas desse panorama seriam: a

subnotificação do suicídio decorrente da dificuldade de estabelecer se a morte

foi intencional ou acidental, do estigma sobre o suicídio e dos diferentes

critérios para defini-lo, além da falta de qualidade das estatísticas.

Tais índices nos alertam para a necessidade de intervenções psicossociais

mais efetivas no intuito de prevenir o suicídio e ajudar familiares a enfrentar a

dor da perda de um membro que tenha se suicidado.

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CAPÍTULO II - LUTO

Freud (1974) definiu o luto como uma reação à perda de um ente querido ou de

algo significativo, investido de libido. A tarefa que o luto tenta resolver, segundo

o autor, se dá da seguinte maneira: o exame da realidade mostrou que o objeto

amado já não existe e exige que a libido abandone suas ligações com ele. A

inibição e a falta de interesse são explicadas pelo trabalho que o luto exige,

mas que quando “normal” supera a perda do objeto perdido e reinveste a libido

em outro objeto.

Contra esta demanda surge uma oposição natural, mas que pode se tornar tão

intensa a ponto do afastamento da realidade e conservação do objeto perdido

acarretar em luto patológico. Freud aponta como características do luto

patológico a auto-recriminação, a culpa pela perda, a depressão obsessiva e o

conflito devido à ambivalência da relação com o morto.

Tanto o luto como a melancolia são, segundo Freud (1974) reações à perda do

objeto amado. No entanto, na melancolia, o objeto perdido é mais emocional e

inconsciente que real, porque o indivíduo se identifica com o objeto perdido. O

ego, no melancólico, é descrito como indigno de estima, incapaz de produzir e

moralmente condenável pelo doente, que possui sentimentos de culpa e

espera o castigo e a repulsa. A perda do objeto amado constitui uma condição

favorável para surgir a ambivalência nas relações afetivas, que são

exteriorizadas por meio da culpa, por ter desejado ou ser culpado pela perda

do objeto amado.

O luto é um processo natural e esperado após a vivência de uma perda, seja

ela simbólica ou relativa a uma morte (Bromberg, 1996). É a expressão dos

vínculos que as pessoas estabelecem umas com as outras e que, em última

análise, tem suas raízes na infância (Parkes,1998). Por isso, para se

compreender a origem da dor e sofrimento pela perda de alguém, é importante

entender como as pessoas se vinculam umas às outras.

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Segundo Bowlby (2001) os vínculos são construídos a partir da familiaridade e

proximidade com as figuras parentais no início da vida. Eles surgem da

necessidade que se tem de se sentir seguro e protegido e acaba por ser um

movimento inato que permite manter os progenitores e descendentes unidos.

Para o autor, este sistema de vinculação contribui para a formação de atitudes

do sujeito nas relações amorosas. Quanto mais forte for o laço estabelecido

entre duas pessoas, maior será o impacto proveniente da ameaça ou ruptura

real desse laço.

Bromberg (2000) explica que existe uma diferença entre luto, enlutamento e

pesar: o luto é o conjunto de reações a uma perda significativa; enlutamento é

o processo de adaptação a essa perda e pesar é o significado interno dado à

experiência do luto.

O enlutamento é definido por Parkes (1998) como um processo que envolve

uma sucessão de quadros clínicos que se mesclam e se substituem, como o

entorpecimento, a saudade ou procura, a desorganização ou desespero e a

recuperação. De acordo com o autor, apesar de cada uma dessas fases ter

suas características, há diferenças consideráveis referentes à forma e à

duração de cada fase, de uma pessoa para outra. A perda de uma pessoa

significativa com a qual possuía-se um vínculo e as fases do enlutamento

também foram descritas por vários outros autores (Bowlby, 1985b; Kübler-

Ross, 1994; Bromberg, 2000, Kovács, 2002):

FASES DO LUTO

Entorpecimento

O entorpecimento é uma experiência tão freqüente depois de uma perda por

morte que pode ser considerada, segundo Parkes (1998) a primeira fase do

luto. Ocorre choque, anestesia, descrença. A pessoa enlutada se sente

desamparada, imobilizada, perdida, como se não soubesse bem o que

aconteceu, nem o que fazer. Pode durar de poucas horas a alguns dias e

episódios de extremo sofrimento e desespero são freqüentes nesse período.

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Os sintomas somáticos mais freqüentes são, de acordo com o autor: respiração

suspirante, rigidez no pescoço e sensação de vazio no estômago.

Anseio, protesto, procura

O traço mais característico do luto não é a depressão profunda, mas episódios

agudos de dor e ansiedade que começam algumas horas ou dias após a perda

e atingem um ápice de intensidade no intervalo de 5 a 14 dias (Parkes, 1998).

Esta dor advém da necessidade de procurar o objeto perdido. O autor define a

procura como uma atividade na qual a pessoa se movimenta em direção aos

possíveis locais onde a pessoa que morreu costumava estar e comenta que

adultos enlutados têm consciência de que não há sentido em procurar por uma

pessoa que morreu, mas que isso não os impede de ter um forte impulso em

direção à busca.

Além disso, nesta fase o enlutado costuma ficar inquieto, tenso e em estado de

vigília constante. No entanto, sua procura de “alguma coisa para fazer” é, para

Parkes (1998), “fadada ao fracasso porque as coisas que pode fazer não são,

na verdade, aquelas que gostaria (...) o que ela (pessoa enlutada) quer fazer é

encontrar a pessoa perdida” (p.70). Também é comum que nesta fase:

(...) o enlutado sinta muita raiva, às vezes dirigida contra si mesmo, na forma de acusações com sentimentos de culpa por pequenas omissões de cuidado que possam ter acontecido com o morto; às vezes é dirigida contra outras pessoas, principalmente àquelas que oferecem consolo e ajuda; a raiva também pode ser dirigida contra o morto, pelo abandono que provocou. (Bromberg, 2000, p.38).

Desespero

Ainda em Bromberg (2000), com a passagem do primeiro ano de luto, costuma-

se instalar a fase de desespero, na qual o enlutado deixa de procurar pela

pessoa perdida e reconhece que a perda é irreversível. O processo de

superação dessa fase é lento e doloroso e essa fase costuma ser considerada

mais difícil que as anteriores. O enlutado sente desmotivação pela vida, apatia,

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depressão, afasta-se de pessoas e de atividades que costumava praticar e tem

dificuldade de se concentrar em tarefas rotineiras.

Recuperação e restituição

Embora as dores do luto e a busca para encontrar o morto sejam poderosas,

conforme o tempo passa, a dor da saudade e a ansiedade diminuem e o

enlutado começa a voltar seus pensamentos a outras demandas da vida, como

se alimentar, dormir, cuidar da casa, dos filhos, etc. Parkes (1998) descreve

esta fase da seguinte maneira:

À medida que o tempo passa, se tudo correr bem, a intensidade da saudade diminui e a dor e o prazer da lembrança são sentidos como uma mistura ‘agridoce’ de emoções, uma forma de nostalgia. Nesse momento, os dois componentes parecem ser experimentados simultaneamente. (p. 84).

A recuperação acontece conforme a pessoa enlutada consegue aceitar a

realidade da perda, trabalhar a dor da perda e ajustar a um ambiente em que

o falecido está ausente. O enlutado recupera gradativamente a iniciativa, a

independência, as atividades que gostava de praticar. De acordo com

Freitas (2000):

A perda revela a dependência, mas também a liberdade. Revela, principalmente, que não se pode ter uma, sem ter a outra. O enlutado não deve ser visto apenas com compaixão, mas como alguém que pode conseguir acesso a um significado mais duradouro da existência. (p.10).

A transformação do investimento afetivo que se destinava ao morto requer

criatividade em sua elaboração, já que a relação com a pessoa que morreu não

vai ser esquecida, e sim ressignificada (Bromberg, 2000). A autora ainda

descreve que mesmo com o processo de recuperação em andamento, é

comum a recorrência de sintomas das fases anteriores, principalmente em

datas como as de aniversário de nascimento, morte, casamento.

Ajustar-se a um novo ambiente tem diferentes significados para diferentes

pessoas, dependendo da relação que se tinha com a pessoa falecida e os

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vários papéis que ela desempenhava. Kovács (2002) traz que quanto maior o

investimento afetivo no vínculo, maior a energia necessária para o

desligamento quando a perda acontece. A reorganização da vida torna-se

ainda mais difícil quando existia antes uma dependência física ou psíquica com

o morto.

O processo de elaboração do luto é normalmente longo e trabalhoso, de

transição psicossocial, no qual um conjunto de concepções sobre o mundo não

faz mais sentido e, portanto, deve ser atualizado para se adequar à nova

realidade (Parkes, 1998). De acordo com o autor, não é possível definir um

tempo preciso de duração do processo. Devemos respeitar o ritmo de cada

enlutado e os recursos de cada um para refazer o contexto pessoal, familiar e

social sem a pessoa morta.

É possível, no entanto, estabelecer alguns fatores que contribuem para a

compreensão do luto e de seu tempo de elaboração. O processo de

enfrentamento da morte está relacionado a fatores pessoais, familiares, além

da influência histórica e sócio-cultural. Bowlby (1985a) indica cinco variáveis

como determinantes da elaboração do luto:

1. A identidade e o papel da pessoa perdida;

2. A idade e o sexo da pessoa enlutada;

3. As causas e circunstâncias da perda (repentina ou morte por doença

prolongada, morte violenta, suicídio);

4. As circunstâncias sociais e psicológicas que afetam a pessoa enlutada

na época da perda e depois dela;

5. A personalidade do enlutado, com especial referência a sua

capacidade de estabelecer relações amorosas e de reagir a situações

estressantes. (p.195)

Tinoco (2007) acrescenta outras variáveis determinantes no modo de

enfrentamento do luto:

- O contexto religioso e espiritual do enlutado;

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- A educação para a morte recebida;

- Os acesso às informações sobre o ocorrido;

- O apoio recebido e a possibilidade de expressão dos sentimentos.

SINTOMATOLOGIA

O processo de luto pode acarretar prejuízos para a saúde física e mental do

enlutado. Entre os sintomas decorrentes de um processo de enlutamento

apontados por Parkes (1998) estão:

-Ordem afetiva: depressão, ansiedade, culpa, raiva, hostilidade, falta de prazer,

solidão;

- Manifestações comportamentais: agitação, fadiga, choro;

-Atitudes em relação a si, ao falecido e ao ambiente: baixa auto-estima,

desamparo, auto-reprovação, desconfiança, isolamento;

- Atitudes em relação ao falecido: anseio, idealização, ambivalência;

-Deterioração cognitiva: lentidão do pensamento e dificuldade de concentração;

-Mudanças fisiológicas e queixas somáticas: perda de apetite (às vezes comer

em excesso; mudança de peso), distúrbio de sono (insônia, dormir em excesso,

distúrbio no ritmo), perda de energia (fadiga);

-Queixas somáticas: dores de cabeça, na nuca, nas costas, câimbras, náuseas,

vomito, nó na garganta, boca seca ou com gosto amargo, prisão de ventre,

azia, indigestão, flatulência, visão embaçada, dor ao urinar, respiração curta,

necessidade de suspirar, sensação de estomago vazio, falta de força muscular,

palpitações, tremores, queda de cabelo;

- Mudanças na ingestão: aumento do uso de psicotrópicos, bebidas alcoólicas,

fumo;

-Suscetibilidade a doenças: infecções, relacionadas a estresse, falta de

cuidados com a saúde;

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LUTO NORMAL E LUTO COMPLICADO

Depois de Freud (1974), inúmeros autores descreveram o luto “normal” e o luto

denominado “patológico”. Existe uma linha tênue e imprecisa que os separa.

De acordo com Freitas (2000), o luto chamado normal pode ser observado

quando o impacto da perda pode ser diminuído em um breve espaço de tempo,

por meio da formação de novos vínculos substitutivos, de investimentos

produtivos em novas atividades e da aceitação do suporte social. O luto

denominado complicado é, segundo a autora, observado quando o vínculo

permanece intenso com uma pessoa que, não estando mais viva, não permitirá

à pessoa enlutada a vitalização necessária para a sua manutenção saudável,

abrindo campo para reações, como: a negação, a ambivalência, a distorção, a

permanência no passado, que levam ao desequilíbrio pessoal e à doença.

Para Bowlby (apud Kovács, 2002) a exacerbação dos processos presentes no

luto normal, com duração prolongada e características de obsessividade,

configura um processo patológico. No luto normal há a aceitação do mundo

externo, ligada à perda definitiva do outro, e a conseqüente modificação do

mundo interno e representacional, com a reorganização dos vínculos que

permaneceram.

Bromberg (2000) também traz que o luto normal tem curso e superação

previsíveis, enquanto o luto patológico foge do já descrito no que se refere à

sintomatologia e ao processo. Segundo a autora, o luto patológico implica uma

experiência de crise, “para o qual os recursos disponíveis são inadequados e

insuficientes” (p.19).

Parkes (1998) classificou três tipos de luto patológico:

- Luto crônico: prolongamento indefinido do luto e depressão como principal

sintoma. Predomínio de ansiedade, tensão, inquietação e insônia. Respostas

emocionais à perda são prolongadas e intensas, em alguns casos com a

predominância da raiva, auto-acusação e ausência de pesar. O enlutado não

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consegue planejar sua vida, que permanece desorganizada. Versão distorcida

e extensa das fases de procura e desespero.

- Luto inibido: sintomas do luto normal estão ausentes (semelhante ao luto

adiado, variando apenas o grau de defesa psíquica).

- Luto adiado: reações imediatas à morte podem não ser apresentadas

podendo ser provocadas mais tarde por eventos que não teriam força para

tanto. No processo de adiamento a pessoa pode apresentar comportamento

normal ou sintomas de luto distorcido, como superatividade, sintomas de

doença do morto, isolamento.

Wash (1998) aponta os seguintes fatores como contribuintes de um luto

complicado:

1. Morte repentina ou prolongada;

2. Perda ambígua;

3. Morte violenta, especialmente suicídio;

4. Padrões familiares indiferenciados ou desunidos, falta de tolerância a

diferentes respostas ou de coesão para o apoio mútuo;

5. Falta de flexibilidade do sistema;

6. Comunicação bloqueada e segredos, mitos e tabus em torno da morte;

7. Falta de recursos familiares, sociais e econômicos;

8. Importância do papel do membro perdido para o funcionamento com

substituições precipitadas ou incapacidade de reinvestimento;

9. Relações conflituosas ou rompidas na época da morte;

10. Perda prematura;

11. Perdas múltiplas ou outros estressores familiares coincidentes com a

perda;

12. Legado familiar multigeracional de perdas não resolvidas,

particularmente replicações de aniversários transgeracionais;

13. Sistema de crenças da família evocando culpa ou vergonha em torno

da morte;

14. Contexto sócio-político e histórico da morte, estimulando a negação,

o estigma ou temores catastróficos (p.51).

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O autor ressalta que o risco está intimamente ligado ao momento no ciclo de

vida multigeracional da família em que essa perda ocorre. E ainda nos chama

atenção para o fato de que a coincidência de uma perda com outros

acontecimentos que tragam uma renovação, alegria (um novo casamento,

nascimento de filho) podem criar tarefas e exigências incompatíveis, muitas

vezes um sentimento de ambivalência.

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CAP. III – LUTO MATERNO

Qual vai dizendo: Ó filho, a quem eu tinha Só para refrigério e doce amparo Desta cansada já velhice minha, Que em choro acabará penoso e amaro Porque me deixas, mísera e mesquinha? Porque de mi te vás, ó filho caro, A fazer o funéreo enterramento...? (Camões, Os Lusíadas – Canto IV, estrofe 90)

Gostaria de propor uma reflexão, a partir da literatura pesquisada, sobre as

especificidades do luto materno antes de discutir a elaboração desse luto no

caso de um filho suicida, tema central deste trabalho. Também gostaria de

refletir sobre o processo de vinculação mãe-filho, pois penso que entender

como uma mãe se vincula ao filho é fundamental para entender como se dá o

processo de elaboração desse luto. Pretendo assim, criar as condições que

poderão embasar minha discussão e responder ao objetivo deste trabalho.

Vinculação mãe-filho

Segundo Gallo (2003), o desejo de ser mãe e, conseqüentemente, ter um filho,

apontaria para aquilo que a Psicanálise chamou de satisfação narcísica. Ou

seja, a criança ocuparia um lugar para o desejo materno como um ser investido

libidinalmente de expectativas futuras. Freud (1976) afirma:

No ponto mais sensível do sistema narcisista, a imortalidade do ego, tão oprimida pela realidade, a segurança é alcançada por meio do refúgio na criança. O amor dos pais, (...), nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual transformado em amor objetal, inequivocadamente revela sua natureza anterior (p.108).

Brazelton (apud Gallo, 2003) levantou motivações que mobilizam as mulheres

a desejarem um filho. Essas motivações estão relacionadas direta ou

indiretamente com a satisfação narcísica da mãe, que são: identificação com a

própria mãe; desejo de ser completa e onipotente, no qual a mãe vê a criança

como extensão de si mesma; desejo de fundir-se e ser um com outro indivíduo;

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desejo de imortalidade; realização de ideais e de oportunidades perdidas;

desejo de renovar antigos relacionamentos; oportunidade de substituir e

separar-se da própria mãe.

Com o nascimento, a mãe, segundo Winnicott (2001, p.28), “por meio de certo

tipo de identificação, vai ao encontro do estado original de não diferenciação da

criança”. A identificação da mãe com seu bebê é importante para que se

envolva com ele, fornecendo-lhe apoio, cuidado, amor, significando e

satisfazendo assim as necessidades do filho. Segundo o autor, neste momento

inicial, não podemos pensar em um bebê como um ser separado. Tem-se uma

unidade mãe-bebê.

Normalmente a possibilidade de identificação e de investimento amoroso é

antecedida pela gravidez, pela idealização de um filho, pela escolha de um

nome, pela construção de uma história para o filho junto à história de vida da

mãe (Gallo, 2003).

Winnicott chama de mãe suficientemente boa àquela que consegue suprir

essas necessidades de seu filho. Nas palavras do autor:

Só na presença dessa mãe suficientemente boa pode a criança iniciar um processo de desenvolvimento pessoal e real. Se a maternagem não for boa o suficiente, a criança torna-se um acumulado de reações à violação; o self verdadeiro da criança não consegue formar-se, ou permanece oculto por trás de um falso self que a um só tempo quer evitar e compactuar com as bofetadas do mundo (Winnicott, 2001, p.24).

Segundo Winnicott (2001), o cuidado materno (função materna) é composto

pelo holding (segurar), relacionado à capacidade da mãe de identificar-se com

seu bebê; handling (manipular), que facilita a formação de uma parceria

psicossomática na criança; e a apresentação de objetos, que torna real o

impulso criativo da criança. Neste início há um alto grau de adaptação às

necessidades do bebê, e a mãe está quase que exclusivamente voltada a ele.

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O bebê, partindo de uma não organização, vai-se organizando sob condições

altamente especializadas e, aos poucos, separando-se da matriz que propicia

tais condições (mãe). Simultaneamente a mãe vai se voltando a seus

interesses anteriores, não atendendo prontamente às necessidades do bebê, à

medida que vai podendo criar recursos para lidar com frustrações.

Winnicott ressaltou que quando ocorre tudo bem, o relacionamento se

estabelece rapidamente, porém quando existem dificuldades é provável que

ambos venham a sofrê-las por muito tempo ou até mesmo para sempre.

A perda de um filho

Na sociedade atual, a perda de um filho é algo tido como “chocante”.

Certamente não foi sempre assim; ao longo do tempo, a percepção e o

entendimento do sentido da infância e da morte de um filho sofreram mudanças

importantes. Ao longo da história muitas foram as mudanças na forma de ver e

tratar a morte de um filho. Para Rangel (2004), todas essas modificações foram

cercadas de interesses sócio-econômicos:

Numa época em que as guerras e as doenças dizimaram parte considerável dos homens jovens, e que a agricultura e a indústria florescente necessitavam de mão-de-obra, as crianças, na qualidade de futuros operários ou agricultores, transformaram-se em um investimento lucrativo para seus pais, para a sociedade como um todo e para o Estado (p. 32).

De acordo com Ariès (1981), no século XVII e XVIII a indiferença materna era

explicada pelo alto índice de mortalidade infantil. É possível perceber através

deste trecho que a idéia da infância era ligada à submissão e servidão, ou até

mesmo, a certa “insignificância” pois:

A infância era um período de transição, logo ultrapassado, e cuja lembrança também era logo perdida”. (...) Era apenas uma fase sem importância, que não fazia sentido fixar na lembrança; não se considerava que essa coisinha desaparecida tão cedo fosse digna de lembrança: havia tantas crianças (..) se faziam tantas crianças para conservar algumas (Ariès, 1981, p. 18-21).

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Foi somente a partir do século XVIII que se começou a enfatizar a importância

da presença da mãe para a educação da criança. O conceito de infância e o

respeito por ela foram sendo construídos com o declínio da mortalidade infantil.

A realidade atual de nossa sociedade é bem diferente: a morte de um filho é

um dos acontecimentos mais difíceis de se aceitar. O investimento feito pelos

pais nos filhos também é de outra ordem e, sem dúvida, morrem menos

crianças.

De acordo com Casellato (2004), a perda de um filho implica num tipo especial

de luto, pois solicita adaptações tanto de aspectos individuais dos pais no

enfrentamento desta situação, como em adaptações na relação com o cônjuge,

no sistema familiar e na sociedade.

Segundo Bromberg (1994), na vida adulta a morte de um filho é um confronto

com a própria morte, pois vai embora o produto de uma vida. Mize apud Freitas

(2000) descreve o triste pensamento de uma mãe enlutada:

Uma das coisas mais difíceis é aceitar a morte de um filho. Você cogita: Por que não eu? Por que ele? É um rude lembrete: a morte não segue horário previsível, ela escolhe seu próprio tempo e lugar (p.56).

Quando perdemos um filho, perdemos também todas as suas funções

explícitas e implícitas dentro do funcionamento familiar, por exemplo:

companheiro da mãe, o "bode expiatório", o apaziguador, etc. (Casellato,

2004).

De acordo com a autora, após a perda de um filho não é incomum ocorrer

separação dos pais. A raiva recíproca e as insinuações culposas podem minar

relações que não estejam bem fundamentadas e trabalhadas. A comunicação

pode complicar-se na tentativa de evitar o sofrimento do outro. Há casos em

que um dos cônjuges culpa o outro por acreditar que ele não está sofrendo

tanto pela morte do filho.

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Ainda em Casellato (2004), é comum os pais atribuírem qualidades

santificadas ao filho morto, como "favorito", "melhor" ou "especial", o que pode

intensificar as experiências de luto familiar. Podem acontecer as comparações

entre os filhos vivos e o filho idealizado que morreu. Os pais também

costumam viver sentimentos ambivalentes em relação aos filhos que

"sobreviveram" pois sentem medo de investir afetivamente nestes, ou por outro

lado, passam a superproteger, com medo de perdê-los.

O luto por um filho é marcado por muita raiva, culpa e revolta, bem como pela

sensação de injustiça ou de auto-reprovação pela inabilidade de impedir sua

morte (Bromberg, 2000). As reações ligadas à perda de um filho dependem de

alguns fatores como: a relação prévia entre pais e filho, a idade do filho, as

circunstâncias da perda, entre outros. Segundo a autora, a perda de um(a)

filho(a) jovem provoca grande dificuldade entre os sobreviventes em aceitar a

morte prematura.

De acordo com Galiás (2004), no luto materno a mãe pensa e sente o filho

vinte e quatro horas ao dia, obsessivamente. A mãe é tomada pelo filho,

“exatamente como uma puérpera, quando o filho acabou de nascer.

Exatamente como os apaixonados, sem tirar nem pôr” (p.6).

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CAP. IV - LUTO POR SUICÍDIO

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede: Na bruta ardência orgânica da sede, Morde-me a goela ígneo e escaldante molho. (Augusto do Anjos, O Morcego)

A morte por suicídio instiga a desaprovação social. Perdas desta natureza

tendem a ser socialmente não autorizadas, levando igualmente a lutos não

autorizados (Parkes, 1998).

A família do suicida é vítima de muitos preconceitos, seja por tê-los ela mesma,

seja por sofrer as conseqüências da discriminação social. Para a compreensão

do aspecto familiar, foram extraídos trechos da palestra “Suicídio – o Tema

Temido”, de Iraci Galiás (2004), psiquiatra, mãe de um suicida. Neste texto

foram encontrados pontos importantes, referentes à culpa, preconceito, raiva,

impotência, etc :

A família que perdeu alguém por suicídio é especial. Ela passa a ter "antecedentes psiquiátricos". O filho de um suicida também é visto como um órfão especial, diferente de todos os outros órfãos. Se criança, é cercada pelo medo dos adultos de que, ao crescer, tudo com ele será extremamente mais complicado do que se fosse outro tipo de orfandade. Correrá o risco de identificar-se com o suicida e repetir o ato trágico? Qualquer sintoma emocional que a criança órfã por suicídio de um dos pais tenha é imediatamente associado a essa causa. E nenhuma outra costuma ser investigada, ainda que possa ser apriorística. Se, por exemplo, a criança tem algum problema na escola com a aprendizagem ou qualquer outro, é "obviamente" debitada na conta do suicídio parental (p.4).

Galiás (2004) também comenta o sentimento de culpa e os infinitos "se" que

passam na cabeça de uma mãe:

Vão desde “se eu tivesse escolhido outro pai para ele" até "se eu estivesse lá naquele exato momento". No fim das contas "se eu não o tivesse concebido" ele não existiria e, portanto não se mataria (...) Se a mãe deu seu filho "à luz" como pode ela aceitar que não tenha poder sobre sua volta "às trevas?"(...)

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São tão intensos e insuportáveis os sentimentos de culpa de uma mãe que, com facilidade, tendemos a encontrar bodes expiatórios. A questão de que e/ou quem levou o suicida a cometer o ato trágico é uma constante em seus pensamentos. Além de nos culparmos, sobra para todo lado (...) Ou seja, para tentar separar no filho vítima e homicida e transferir ou deslocar este para qualquer outro objeto, até para nós mesmos, desde que não seja o filho morto ao mesmo tempo vítima e culpado (...) Há essa particularidade no bode expiatório, ele não se presta propriamente ou somente a levar embora ou expiar a nossa culpa. Sua maior função é levar embora a culpa do suicida, é expiar levando embora o homicida nele contido (p.8).

Calligaris (2007) também descreveu a culpa e a vergonha suscitadas pelo

suicídio:

Mas, em regra, quando se suicida um próximo de quem gostamos e que gostava de nós, não atribuímos vergonha e culpa a terceiros: esses sentimentos surgem em nós, ao descobrir que nossa presença e nosso amor não bastaram para que o outro quisesse viver. Em alguns casos, essa ferida nunca cicatriza. Quando o suicida é nosso pai ou nossa mãe, o sentimento de não termos sido a razão suficiente para ele ou ela viverem fica conosco para sempre, como um fundo melancólico, como a sensação de uma insuficiência essencial ou de uma impossibilidade de sermos amados. Quando o suicida é um filho ou uma filha, a perda (irreparável, pois o luto pelos nossos descendentes é contra a ordem das gerações) é acompanhada pelo sentimento de um fracasso, como se não tivéssemos conseguido transmitir o básico: a vontade de viver. Deve ser por isso que os monoteísmos consideram o suicídio como um pecado contra o criador: o suicida demonstraria o malogro de Deus.

Outra parcela de culpa, dificílima de ser tolerada deve-se ao alívio sentido e

negado. Segundo Galiás (2004), se o filho já vinha dando sinais de

dificuldades; o trabalho intenso, as preocupações constantes, o estresse

contínuo, o permanente alerta em que vive uma mãe cessam com a morte do

filho. O temido tem o desfecho e isso traz alívio. E por isso o alívio tem que ser

negado e não pode ser elaborado, deixando em seu lugar a culpa. Ainda em

Galiás (2004):

Quando ocorre uma morte por câncer após anos de sofrimento para todos, existe a dor inevitável diante da perda, mas é

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possível entrar em contato com o alívio. É inclusive possível se perceber que para o próprio paciente pode ter sido "melhor", fala-se que finalmente ele "descansou", como que se percebe que a morte ali era a única forma de um grande sofrimento para o doente e para toda a família chegar a um fim. Não temos esse tipo de compreensão no caso do suicídio. Vemos às vezes pessoas que passam vários anos de sua vida tentando se matar, como se fosse assim um "suicida crônico". O alívio advindo natural é vivenciado como culposo, precisando às vezes ser até negado (p.10).

Como já foi exposto, há uma forte relação entre os processos de luto e o

suicídio. De acordo com Bromberg (2000), o luto por suicídio provoca

sentimentos conflitantes em pais e irmãos, na tentativa de identificar um

sentido para essa perda.

No suicídio há uma grande dificuldade na elaboração da perda que pode gerar

sentimentos agressivos em relação à pessoa perdida (Cassorla, 1984). Estes

sentimentos geram culpa e são em parte reprimidos, o que pode levar a atos

inconscientes de autodestruição. O autor também explica que o enlutado pode

sentir raiva do suicida por seu abandono, gerando sentimentos ambivalentes

de amor e ódio.

Segundo Freitas (2000) a raiva no processo de luto provém de duas fontes: da

frustração por não ter conseguido evitar a morte e das experiências regressivas

que ocorreram após a perda. A autora cita Bowlby para explicar que as

experiências regressivas estão relacionadas ao vínculo da mãe com seu bebê,

quando este experimenta pânico, ansiedade e raiva na ausência daquela.

Estas condutas fazem parte da herança genética, simbolizando a mensagem:

“Não me abandone”.

O suicídio de um filho é uma situação que está longe de satisfazer o narcisismo

dos pais. É fonte de desilusão. O suicídio, segundo a percepção dos pais, vem

revelar defeitos ocultos deles mesmos. Segundo Kovács (2002), o suicídio é

uma das mortes mais difíceis de elaborar, pela forte culpa que desperta. Ativa a

sensação de abandono e impotência em quem fica. O enlutado, além de lidar

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com sua própria culpa, é freqüentemente alvo de suspeita da sociedade como

sendo o responsável pela morte do outro.

A ferida narcísica no caso do suicídio de um filho é a ferida na idéia narcísica

de imortalidade que temos, que vem em conseqüência da ativação da angústia

de castração, da impossibilidade de continuidade da existência projetada no

filho.

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CAP. V - METODOLOGIA

O objetivo desse trabalho foi identificar e analisar as manifestações de luto em

mães que perderam um filho por suicídio, com foco nos recursos com que

enfrentaram essa perda, bem como o sentido que atribuíram a essa

experiência.

Encontrei nos procedimentos da pesquisa qualitativa uma forma de trabalho

que responde ao desejo de abrir um espaço para a expressão dos diversos

significados que poderão emergir através dos dados de entrevistas não

dirigidas com mães enlutadas. O estudo descritivo qualitativo tem como foco de

atenção a construção de significados por parte dos sujeitos, suas vidas e como

as percebem (Ludke e André, 1986). Segundo Gallo (2003), o importante nesse

tipo de pesquisa é analisar a qualidade e profundidade dos significados dos

relatos de cada participante.

O referencial teórico que embasou minha pesquisa foi o psicanalítico, em cujo

método, de acordo com Minerbo (2003), é essencial que haja uma escuta

peculiar, ou seja, o pesquisador deve ater-se aos elementos marginais e

secundários do discurso do sujeito. Essa escuta, para Mezan (1993), não pode

ser ingênua, mas sim informada pela teoria. O autor a descreve da seguinte

forma:

Na situação analítica, a teoria funciona como a estrela polar para o navegante: fornece coordenadas para o percurso, permite alguma idéia do rumo a tomar, mas não é o alvo que se quer atingir (p.58).

Baseando-se na Teoria dos Campos de Fabio Herrmann, Minerbo (2003)

afirma que qualquer conversa se dá num determinado campo, ou seja, num

conjunto de pressupostos inconscientes que sustenta e determina uma relação

consciente entre dois interlocutores. O método psicanalítico consistiria em

desconfiar desses sentidos pré-determinados e apostar na existência de outro

campo em que tais queixas também teriam sentido (um sentido diferente

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daquilo que é explícito). Desta forma, a interpretação psicanalítica promoveria

uma ruptura do campo, ou seja, um abalo nessas significações pré-existentes.

Para Lowenkron (2000) a pesquisa em psicanálise pode acontecer se a

experiência estiver alicerçada nos conceitos fundamentais desta: o

inconsciente dinâmico, a resistência e a transferência. O autor afirma que “se

trata antes de qualidade e não de quantidade: desde que se cuide para que

tenha verdadeiramente o sabor freudiano da psicanálise” (p.5).

As situações, ações e interações complexas foram analisadas em seus

contextos, a partir do ponto de vista do sujeito, para se obter uma compreensão

do fenômeno e dos processos envolvidos (Moon, 1990). Dessa maneira, foi

possível uma melhor reflexão sobre os comportamentos humanos,

considerando seus significados e intenções (Guba e Lincoln, 1994).

Nessa perspectiva é importante considerar o pesquisador como parte do

processo de coleta e análise dos dados: deve estar envolvido e ao mesmo

tempo manter certo distanciamento, que lhe permita posteriormente pensar

sobre o que ouviu. É co-participante da realidade observada, tendo

responsabilidade pelo material produzido.

Desta forma, analisei o discurso das mães enlutadas da forma mais complexa

e profunda possível, a fim de alcançar os elementos secundários, os

significados que estão além da observação, em nível inconsciente.

Portanto, apesar de não se tratar de uma população clínica, este trabalho se

caracteriza como uma pesquisa clínica por consistir num processo de

conhecimento dos significados que o indivíduo atribui a suas crenças e valores,

visando construir os fatos psicológicos dos quais ele é fonte em uma estrutura

inteligível.

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A) PARTICIPANTES

O estudo foi conduzido a partir da avaliação do discurso de três mães com

idade e estado civil variáveis, nível socioeconômico médio (baixo e alto),

enlutadas pelo suicídio de um filho. Foram selecionadas apenas mães que

perderam o filho há pelo menos dois anos, pois a duração e a intensidade da

elaboração do luto nas mortes traumáticas, como o suicídio, podem ser mais

dolorosas e prolongadas que um ano (Bromberg, 2000).

B) INSTRUMENTOS

Entrevistas

Foi realizada uma entrevista semi-dirigida com cada participante. Alguns temas

para serem abordados na entrevista foram desenvolvidos a partir da literatura

pesquisada, mas serviram apenas como guia e não como roteiro diretivo.

-Nome

-Idade

-Estado civil

-Profissão

-Número de filhos

-Apresentação do filho que se suicidou: Nome, idade, há quanto tempo morreu,

posição entre os outros filhos.

-Como era a relação com o filho nos vários momentos de sua vida?

-Como estava a relação familiar na época em que ele morreu?

-Ele deu indícios de que estava pensando no suicídio?

-Como morreu? Como foi imediatamente quando aconteceu?

-Como se sentiu a respeito disso?

-Reações físicas, alterações emocionais?

-Como foram os rituais (enterro, velório, missa)?

-Possui alguma religião?

-Recebeu apoio familiar e de amigos?

-Com quem pôde contar nos diversos momentos?

-Como foi o primeiro ano após a perda?

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-Procurou ajuda psicoterápica?

-Como é a vida hoje? Existem momentos em que lembra mais do filho?

-Como é a relação hoje com o filho que morreu?

-Como é a relação familiar e social?

-Como está se sentindo hoje? Tem alguma atividade de lazer?

C) PROCEDIMENTO

Contato com as participantes

As participantes foram indicadas por pessoas conhecidas, que confirmaram,

com antecedência, o interesse dessas mães em participar da pesquisa.

Telefonei a elas, me apresentei e expliquei detalhadamente os objetivos e

etapas do trabalho. Marcamos uma data para a execução do projeto.

Local, número e duração das entrevistas

As entrevistas foram realizadas em diferentes lugares (casa da participante,

ambulatório de hospital e consultório onde uma das participantes trabalha) e

tiveram duração variável, de trinta minutos a duas horas.

As entrevistas foram gravadas com a permissão das participantes e transcritas

na íntegra (ANEXO 2). Antes de encerrar as entrevistas, procurei dar

continência aos sentimentos e idéias presentes, pois a atividade poderia

mobilizar conteúdos afetivos. O cuidado com a exposição das participantes foi

constante. Houve atenção e cuidado com a carga emocional mobilizada nos

encontros. Coloquei-me à disposição para outros contatos que poderiam ser

necessários para a elaboração das vivências relatadas, de forma a garantir a

beneficiência.

Seqüência

Foi apresentado às mães o tema da pesquisa, o motivo pelo qual foi

encaminhada, com o objetivo de delimitar o “setting”. Apresentei-lhes, em

seguida, o termo de consentimento informado e esclarecido (ANEXO 1) para

ser lido e assinado caso concordassem em participar da pesquisa.

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D) PROCEDIMENTO PARA ANÁLISE DOS RESULTADOS

Entrevistas semidirigidas

As entrevistas foram analisadas qualitativamente, utilizando-se o referencial da

Psicanálise para interpretação dos dados. Analisei o processo de elaboração

de luto de cada mãe a partir da interpretação do conjunto do material coletado

e da revisão da literatura realizada. Num primeiro momento tive a intenção de

ler e tomar contato com todo o material coletado de cada participante da

pesquisa a fim de delimitar categorias de análise, que nortearam a

investigação, direcionando meu olhar para aspectos que mais chamaram

minha atenção. Estas categorias ou temas foram qualitativamente analisados,

no sentido de compreender conteúdos latentes e processos inconscientes do

processo de luto pelo suicídio de um filho. Como afirma Bardin (1979, p.105) "o

tema é uma unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto"

ou "um feixe de reações (que) pode ser graficamente apresentado através de

uma palavra, uma frase, um resumo" (Minayo, 1998, p.208).

Nesta pesquisa destacam-se também as questões éticas, pois as informações

obtidas envolvem um elevado grau de intimidade. Consideramos as normas

previstas pelo Conselho Nacional de Saúde (Resolução 196/96):

- Garantiremos sigilo profissional pelo comprometimento de não revelar a

identidade dos participantes, bem como a utilização dos registros obtidos

apenas no âmbito acadêmico.

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CAP. VI - RESULTADOS

Para discutir os resultados encontrados nas entrevistas e responder ao objetivo

desta pesquisa, inicialmente farei um resumo de cada relato com alguns

trechos das entrevistas e posteriormente partirei para uma discussão geral

traçando semelhanças e diferenças entre eles. Todos os nomes são fictícios

para preservar a identidade das participantes. A entrevistas podem ser lidas na

íntegra nos ANEXOS.

RESUMO DAS ENTREVISTAS

MARIA

Maria tem 51 anos e é casada há 15 anos com seu segundo marido. Ela é

enfermeira obstetra, mas atualmente está afastada do trabalho por orientação

médica.

Maria escolheu iniciar sua história de vida a partir de seu primeiro casamento,

aos 15 anos. Ela contou que teve quatro filhos (Sofia, Simone, Rodrigo e

Eduardo) e um aborto provocado por falta de condições financeiras. Separou-

se do marido e lutou para trabalhar, cuidar dos filhos, estudar e ingressar na

faculdade de enfermagem.

Conheceu seu segundo marido, com quem teve uma filha chamada Miriam.

Rodrigo e Eduardo, filhos do primeiro casamento, começaram a se envolver

com drogas aos 13 anos. Maria contou que tentou “tirar os filhos das drogas”,

mas não conseguiu (“O Rodrigo e o Eduardo logo na criancice deles foram

para as drogas ... Eu tentei tirar ele (Rodrigo) das drogas de todos as maneiras

... tentei, tentei, levei até para internar, mas ele não quis e ficou assim essa

luta, né? E aí ele foi para as drogas, ele se afundou nas drogas ... e o Eduardo

foi junto”).

Seu filho Rodrigo acabou sendo assassinado por traficantes há 10 anos,

quando tinha 20 anos, sem saber que sua namorada estava grávida. Segundo

Maria, Eduardo entrou em choque por não se conformar com a morte do irmão

e acabou se tornando morador de rua.

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Depois que Rafaela nasceu (filha de Rodrigo), a mãe da criança, que também

estava envolvida com drogas, acabou sendo assassinada.

Maria recebeu do juiz a tutela da neta, que hoje está com 9 anos (“A Rafaela tá

grande, tá bonita... e assim, a história de vida dela... eu conto tudo para ela,

não escondo nada. Ela me chama de mãe, meu esposo de pai...Ela é muito

apegada com a gente”).

Em 2005, Miriam, sua filha mais nova, se suicidou com veneno de rato,

grávida, aos 21 anos. Maria não sabe o motivo que fez a filha querer se matar.

Ela busca respostas, mas a ausência delas lhe proporciona tristeza e

desamparo (“E não sei o que perturbou muito ela...não sei se pode ter sido

esse namorado...E depois, no atestado de óbito dela estava escrito que ela

estava com abdome gravídico, tava grávida, né? E aí a causa-morte dela não

sei se foi dela ter decidido a vida dela ... agora eu me pergunto ... não sei se foi

a gravidez, não sei se foi a questão amorosa, não sei se foi a vida dela que

tava toda embaralhada, bagunçada, não sei se ela tinha depressão, né. Não

sei...”).

O discurso de Maria demonstra que apesar de ter aceitado a realidade de

tantas perdas, ainda não se ajustou completamente à vida sem os filhos.

Sente-se exposta aos olhares sociais, que revelam sua própria tristeza,

frustração e decepção diante dessas perdas.

Após receber a notícia da morte da filha, Maria continuou trabalhando como

enfermeira no hospital, mas depois de um ano procurou uma psiquiatra que

diagnosticou que Maria estava com depressão e achou melhor afastá-la

temporariamente de seu trabalho (“Eu trabalhei por quase um ano depois, né.

Mas, daí eu não agüentei porque eu me emocionava muito, trabalhava com

gente, via morte, via as pessoas morrer, e aquilo me machucava muito ... e eu

estou afastada até hoje. Mas agora que eu estou querendo pedir pra ela -

psiquiatra - pra mim voltar, né?”).

Gradativamente Maria está se organizando e encontrando forças para retomar

sua vida.

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ELISA

Elisa tem 72 anos e começou a contar sua história de vida a partir do presente

e foi fazendo uma emocionante retrospectiva comparando sua juventude com a

juventude de hoje (“Hoje vocês já estudam cedo, já começam a vida com as

suas ocupações...no meu tempo não. No meu tempo realmente a moça era

educada pra casar. Veja, eu me casei com 17 anos, então eu não acabei nem o

colegial”).

Elisa contou que está “na idade das coisas mais agradáveis” (“Então, talvez um

pouco egoisticamente, mas eu acho que eu tenho direito, afinal, eu já estou

com os filhos casados, já estou com os netos moços”) Também contou que faz

exercícios físicos e aulas de pintura com um grupo que considera muito

agradável.

Casou-se duas vezes, com seu primeiro marido aos 17 anos, com quem teve

três filhos: Carlos, Marina e Rebeca. Ficou viúva e casou-se novamente.

Contou que com seu segundo marido ficou casada durante 14 anos e hoje,

após uma separação que durou 3 anos, estão juntos novamente.

Elisa diz que sua “história no tempo foi um pouco invertida”. Primeiro ela teve

que fazer o que era esperado na época: casar, ter filhos e esperar que eles

crescessem e não precisassem tanto dela, para então estudar, entrar na

faculdade (“Porque realmente eu fiquei fascinada, com os estudos, porque

estudar mais velha é muito gostoso, pega com um outro jeito. E tive contato

com juventude, que é da minha natureza, eu gosto, gostava de ver como a vida

da mulher estava muito diferente da que eu tive”).

Elisa contou sobre sua luta para conseguir estudar e trabalhar. Apesar de

gostar muito de atividades intelectuais, isso nunca foi muito incentivado pelos

pais nem pelo marido (“Eu sempre li muito, desde menina. E era tão engraçado

aquele tempo, porque, por exemplo, se eu estivesse lendo, tinha que ser meio

escondido, porque mamãe falava: Elisa, venha bordar! Vai andar de bicicleta,

fazer exercício!”).

O estudo tardio de Elisa possibilitou um contato com outras gerações, já que

suas colegas de faculdade tinham a idade de suas filhas. Afirma que esse

contato era fascinante: além do estudo fazer parte de sua vida, o que tanto

sonhara, Elisa podia acompanhar as mudanças, entre as gerações, que

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aconteciam na vida da mulher. O estudo passou a ser tão importante em sua

vida que era recomendação médica continuar os estudos (“Eu consegui

sublimar minha vida através de estudo, através de faculdade, tanto que meu

médico dizia para eu não parar de estudar”).

Mesmo com muito preconceito e resistência de seus pais e seu marido, ela

seguiu seu sonho. Seus filhos, no entanto, sempre a apoiaram.

Elisa contou que tinha que vencer uma estrutura férrea que havia naquela

época porque era uma estrutura que veio de sua mãe, continuou com seu

marido (“porque mamãe era uma mulher maravilhosa, rica, uma personalidade,

mas carregava todas aquelas coisas... Então eu fui criada com uma coisa que

hoje a gente não faz com os filhos... Eu tinha um dever a cumprir. Havia esse

dever que se resumia ao casamento e aos filhos. Isso era tão forte que a gente

se esquecia mesmo da gente, do que a gente gostava, do que a gente queria”).

Quando entrou na faculdade: “Eu fui contar pra mamãe ‘mamãe olha que

bárbaro!’... Mamãe ficou assim: ‘mas minha filha, você pensou bem? Você está

descuidando da educação de seus filhos!’. Essa foi a frase dela! No íntimo ela

achava bárbaro, mas ela tinha medo da liberdade da mulher, como ela era

muito forte... quer dizer, ela mandava na casa, no papai, na gente, nos netos,

em tudo, mas ela tinha medo da mulher fora de casa, era uma coisa da

geração dela”.

Elisa também salientou que “o lado da mulher na vida é mais rico do que do

homem, mas também é mais difícil (...) Os homens têm razão em ter medo que

a gente estude, porque é como abrir a cortina de um teatro, e você vê o

mundo…”.

Elisa passou por muitos momentos marcantes durante sua vida. É uma mulher

que sempre lutou para conseguir o que queria, e foi feliz nas suas conquistas.

Por isso, sua vida é marcada por acontecimentos importantes, como sua luta

para estudar, trabalhar e ter autonomia. Mas o que mais marcou sua vida foi a

morte do filho Carlos, que se suicidou há cinco anos. Ela contou sobre a dor

dessa perda e como fez para superá-la (“Isso cortou a minha vida. E corta pra

sempre”).

Seu primeiro casamento foi marcado por muita dificuldade, segundo Elisa “ele

era um homem extremamente gentil e extremamente violento”. Por isso ela

tentava manter a harmonia familiar a todo custo, mesmo violentando a si

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própria. Elisa contou que sofreu um desgaste emocional tão grande, que fez

com que ela passasse algum tempo em cadeiras de rodas. Dessa sua

experiência, Elisa dá um conselho: “sempre que você tiver que tomar uma

posição na sua vida deve impor os seus limites com calma. Quando você for

levada a ceder no que você é, no que você deseja, no que você acha certo,

nunca admita ser violentada na sua índole, nos seus sentimentos. Saiba impor

os seus limites!”

Elisa é uma senhora inteligente, culta e de muita vitalidade. Possui muitos

recursos e busca respostas diante dos obstáculos que lhe são apresentados.

Vivenciou o momento mais difícil de sua vida (o suicídio do filho) com

serenidade e embora a tristeza profunda, sente-se fortalecida por ter

conseguido um sentido mais amplo e duradouro de existência.

INÊS

A terceira entrevista foi mais curta que as anteriores e durou cerca de quarenta

minutos, pois a entrevistada (Inês, 64 anos, psiquiatra) tinha um compromisso.

Inês contou que a primeira perda que sofreu na vida foi aos 10 meses de idade

quando seu pai morreu (“Não é fácil para ninguém. Eu também perdi meu pai

muito cedo, com 10 meses...Embora perder os pais seja mais natural que

perder os filhos, não do jeito que foi para mim...”). Também contou que sua

mãe, que ainda estava na fase de “apaixonamento”, desenvolveu um luto

patológico, que segundo Inês, não foi nunca completamente elaborado.

Inês teve cinco filhos: dois do primeiro casamento (uma menina e um menino)

e três filhos do segundo casamento. Contou que seu segundo filho do primeiro

casamento se suicidou com um tiro há nove anos. Ele se chamava Fernando,

tinha 34 anos e morava em Florianópolis com a mulher e o filho de 3 anos.

Sobre a elaboração desse luto Inês comenta: “É como uma ferida na pele que

para cicatrizar não se pode ficar cutucando toda hora, mas também não se

pode deixar de mexer, olhar, cuidar. As pessoas têm diferentes forças para

reagir aos traumas...”.

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ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

Para fazer a análise das entrevistas e organizar minha discussão resumi as

principais reações e sentimentos das mães entrevistadas diante do suicídio do

filho. Posteriormente delimitei categorias de análise, que nortearam a

investigação, direcionando meu olhar para aspectos que mais chamaram

minha atenção. Essas categorias foram divididas em dois grupos maiores:

complicadores e facilitadores do processo de luto.

Como já foi exposto, nem todas as pessoas enlutadas apresentam as

manifestações da sucessão dos quadros clínicos “entorpecimento-procura-

desespero-recuperação” descrita por Parkes (1998). Além disso, essas fases

variam quanto à forma, duração e intensidade, de uma pessoa para outra. No

entanto, foi possível identificar nas entrevistas alguns trechos referentes ao

período subseqüente à morte do filho que remetiam às fases do processo de

enlutamento descritas pelo autor.

REAÇÕES E SENTIMENTOS DIANTE DO SUICÍDIO DO FILHO

Negação e Choque

A princípio Elisa negou a morte do filho e não quis acreditar nas evidências dos

exames e na palavra do médico. Esta negação da morte pode ser entendida,

segundo Bromberg (2000), como uma forma de defesa contra um evento de

difícil aceitação. Ela descreveu o que sentiu quando o médico veio dar a ela a

notícia da morte cerebral do filho:

“Quando nós chegamos lá no hospital, ele estava na emergência. Aquilo é um

horror! É uma época de atordoamento... Veio um médico e explicou o que tinha

acontecido... tem um nível de batimento, eu não sei exatamente o que é, nem

estava em condições de entender, só sei eu nosso nível normal de vida é 14.

Ele estava com 3, o que significa morte cerebral (...) E eu falei para o médico :

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‘mas eu quero que o senhor saiba que eu não confio no senhor, eu não

acredito em nenhum desses exames!’ Porque era inacreditável, de um dia pro

outro, em horas, acreditar numa coisa dessas (...) E quando os médicos me

deixaram entrar e eu vi que ele estava corado, respirando forte, o corpo ali,

quente...Não dava para acreditar! É tão forte a ligação...foi uma experiência

muito triste (...) E eu falava: Carlos, luta, abra os alhos!” (Elisa).

Maria e Elisa descreveram o estado de anestesia inicial que, segundo Parkes

(1998), possibilita que o enlutado tome as primeiras providências depois da

morte. Ambas descreveram a força que precisaram ter para suportar os

primeiros dias depois do suicídio do(a) filho(a):

“E aí que eu agüentei... É do meu feitio agüentar. Eu fico firme e depois eu

desabo. Fiquei firme, teve a missa e no dia seguinte da missa eu fui pra São

Roque” (Elisa).

“Eu não sei da onde que eu tirei tanta força pra ajudar os dois (filhos) no IML.

Eu cheguei a ver eles nus, mortos, inertes e eu consegui vesti-los, né? (...) Aí

quando foi enterrar ela, eu tive que dar uma força para ele (marido) agüentar.

Eu falava ‘calma, já foi mesmo, fazer o quê’. Eu tive que dar uma força de tão

mal que ele tava... ele gritava... Precisou a gente dar um socorro para ele, pela

reação que ele teve” (Maria).

Inês não contou na entrevista como foi essa primeira fase posterior ao suicídio

do filho.

Procura

Maria e Elisa descreveram comportamentos de procura pelo(a) filho(a) morto(a)

à medida que foram se dando conta da irreversibilidade da perda.

Elisa descreveu um sonho relacionado ao seu processo de elaboração do luto

e à procura do filho morto:

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“Eu sonhei, sabe pontão de praia? Porque eu vivi na praia, com meu pai, minha

mãe e com Carlos, ele fazia surf. E eu sonhei que tinha uma competição de

surf e que o Carlos tinha ido. É uma espécie de barquinho que levava as

pranchas. E todos foram. E aí todo mundo começou a ficar preocupado porque

o Carlos não voltava. E o sonho era lindo, colorido, azul, praia, mar, geralmente

eu sonho colorido o mar. E eu comecei a ficar preocupada, porque realmente

ele estava demorando um pouco. Daí eu desci uma escadinha e tinha uma

prancha meio quebrada, parecia um barquinho, mas tava quebrada. E peguei o

barco e fui atrás, procurar. Quando eu já estava bem longe, no alto mar, eu vi

que ele já estava voltando, daí eu voltei rápido, subi e fiquei lá esperando...já

tava tranqüila, porque ele tava voltando. E quando ele chegou, subiu correndo

a escada e ria, e falava: ‘Mãe, você é louca mesmo! Como você se mete nesse

barco quebrado no fundo do mar!’. Sabe, eu sonho muito alegre com ele

porque foi tão brutal a perda que eu tive” (Elisa).

Maria também descreveu uma necessidade de procurar pela filha e pela causa

de sua morte nos depoimentos de amigas da faculdade e coordenador do

curso que Miriam fazia:

“E aí eu fui fazer um levantamento nas notas dela na faculdade, que tava fraco

(...) As meninas falaram que não era o perfil dela ter feito o suicídio, e que ela

era uma menina muito alegre(...) aí eu fui lá falar com o coordenador do curso

dela, porque eu não me conformava...não me conformava” (Maria).

Desespero

A fase do desespero em que o enlutado já reconhece a imutabilidade da perda

e se sente desinteressado por pessoas e por atividades também foi descrita

por Elisa e Maria:

“Eu fui pra São Roque, eu tenho uma casa lá, no mato, e eu fiquei uns 6 meses

lá, sozinha. Eu não tinha condição de falar com as pessoas. Eu literalmente

acabei. Nem atendia telefone, só minhas filhas e meus netos... porque você

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tem uma caída física e emocional. Fiquei muito frágil, tão fraca que eu não

conseguia andar no jardim. Cai tudo!” (Elisa).

Maria contou que seu desespero foi tão grande depois do assassinato do filho

e do suicídio da filha que ela chegou a pensar em se matar, mas sua fé em

Deus e sua religião a impediram:

“Aí pronto, parece que o mundo caiu na minha cabeça, eu fiquei desesperada...

(...) eu passei muito, muito tempo...que assim, eu quase tirei minha vida

também...” (Maria).

De acordo com Parkes (1998) o suicídio pode ser considerado pelo enlutado

como um meio de reunir-se com o morto ou como uma maneira de pôr fim à

infelicidade no presente. Freitas (2000) descreve o comportamento suicida do

enlutado como uma forma de identificação com a pessoa que se matou.

Recuperação

Apesar da tristeza profunda, mediante os recursos individuais e o apoio que

cada uma delas possui em seu ambiente, gradativamente Maria, Elisa e Inês

se recuperam da perda do filho. Maria descreveu muito bem como esse

processo de recuperação é lento e não é linear:

“Às vezes vem o ânimo, mas depois eu desanimo... como se fosse uma onda

no mar: vem... volta... vem... e volta...” (Maria).

Elisa também contou que ficou completamente sem força, mas depois que

passou pelo trauma:

“Eu tive uma ajuda fantástica, tanto que consegui ser forte novamente e fui

devagarzinho me recuperando. Agora eu mudei, eu sei que mudei” (Elisa).

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Sobre a recuperação e elaboração do luto, Inês comentou:

“Não tem como ficar do jeito que você estava, andando no ritmo que você

andava, não é? Até para não cair você precisa dar uma corridinha, porque

mexe com a dinâmica... Com uma porrada o ego mergulha no self e ele pode

ficar preso, que é o luto patológico, que é o TEPT (transtorno de estresse pós-

traumático), como ele pode sair de lá, depois de ter sofrido muito, mas

fortificado. Igual ele não fica...” (Inês).

Reações físicas

Elisa contou que sofreu um enfarte, mudanças fisiológicas e queixas somáticas

depois da morte de seu filho:

“Eu tive um enfarte justamente por causa de todos estes desgastes, minha

pressão começou a subir... Mas a gente se recupera, até o meu coração eu

recuperei, não tem nem marcas!” (Elisa).

“Eu emagreci uma barbaridade... fiquei completamente sem força” (Elisa).

“Eu tenho uma manifestação nervosa, você sabe o que é psoríase? É uma

manifestação emocional que a pele fica... dá pra você ver aqui? Isso aqui fica

cheio de casquinha, eu comecei a coçar, e começou a subir, começou a

aparecer nas pernas, nas costas...” (Elisa).

O sonho

Tanto Maria como Elisa relataram sonhos de enlutamento com o(a) filho(a)

morto(a). Segundo Parkes (1998), é comum sonhar com o falecido. Eles são

importantes no diagnóstico do enlutado ao longo do processo do luto, pois

podem indicar sentimentos de culpa, ansiedade, auto-acusação, etc. O autor

comenta que o sonho pode ser feliz ou triste, mas haverá sempre um triste

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despertar. “Infelizmente, o luto e o resgate da pessoa amada não pode ser

resolvido, nem mesmo em sonhos” (p.86).

O sonho de Elisa (descrito acima em “Procura”) e o sonho de Maria expressam

o momento do processo de elaboração do luto que estão vivenciando, bem

como os sentimentos relacionados à perda:

“Ele falou que tinha comprado o caixãozinho branco para ela que eu queria...

porque eu tinha sonhado com uma criança e no sonho eu vi um caixãozinho

branco...” (Maria).

Este sonho parece remeter a seu desejo de recuperar a pureza, a inocência da

infância da filha, que como ela mesma diz, acabou se desvirtuando e tomando

o rumo errado, pois Maria desconfia que a filha havia se tornado uma garota de

programa antes de se matar.

Rituais de luto

Os rituais de luto são oportunidades para expressar emoções ligadas a perda e

são importantes eventos sociais que ajudam o enlutado a aceitar a perda e

elaborar o luto. Nos discursos de Maria e Elisa apareceram referências aos

rituais que sucederam a morte do(a) filho(a):

“Mas assim... que nem eu te falei, quando eu me lembro que ela está lá

debaixo do chão se desfazendo, me dá uma angústia, me angustia muito. Eu tô

pensando como é que vai fazer para a exumação, como é que vai ser minha

reação... Do Rodrigo eu guardei uma vértebra, guardei um dente e guardei uma

mecha de cabelo. Dela também eu vou ver se eu guardo algum ossinho dela lá

em casa”. (Maria)

“Fiquei firme no velório, teve a missa e no dia seguinte eu fui para São Roque”

(Elisa).

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Reação de aniversário

No relato de Elisa apareceu o que Parkes (1998) chama de reação de

aniversário, ou seja, a recorrência dos sintomas das primeiras fases do luto em

datas importantes como o aniversário da pessoa que morreu ou aniversário de

sua morte, festas, etc:

“Sempre lembro... aniversário é difícil... Natal também é uma coisa difícil! Não

tem mais festa, com troca de presente. É forçar demais! É o tal limite. Eu agora

faço uma reunião simples de família. Pra que me violentar tanto?” (Elisa).

COMPLICADORES DO PROCESSO DE LUTO

Neste grupo foram reunidos os fatores que dificultaram a elaboração do luto

das mães entrevistadas.

Contra-Natura

Um dos fatores complicadores do processo de luto materno é que ele contraria

a natureza, a ordem natural de que os pais “devem” morrer antes que os filhos.

E, como afirma Parkes (1998), há muita diferença entre a morte da pessoa

idosa, como um se apagar, e o corte trágico e repentino do jovem, em seu

desabrochar. Inês e Maria descrevem da seguinte maneira o luto materno:

“Está suposto que os filhos enterrem os pais e não que os pais enterrem os

filhos. Então, aí eu acho que vai um movimento contra a natura, que já... além

do luto pela perda, tem um elemento altamente estressante que é o contra-

natura... algo trágico... não é natural... Acontece, mas não é esperado” (Inês).

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“Aí eu falei assim: Ai Meu Deus, não foi isso que o senhor me prometeu (...) O

médico me deu a notícia que tinham perdido ela mesmo, né? Ele chorou

também...ficou muito chateado... perder uma jovem, né? (...) Foi uma carga

muito pesada perder dois filhos ” (Maria).

Circunstância da perda

As circunstâncias em que a perda ocorre são importantes para a determinação

da reação do pesar (Kovács, 1996). Se a perda de um filho já é um

acontecimento extremamente difícil de ser elaborado, perdê-lo por

suicídio,como aconteceu com Maria, Elisa e Inês, aumenta ainda mais a

probabilidade do luto materno se complicar:

“Agora mais especificamente o luto materno por suicídio, você junta o luto, o

não natural, mais um tema tabu, que é o suicídio em si. Então, você me

pergunta sobre essa elaboração... é um processo muito trabalhoso, ainda mais

por suicídio do filho. Eu não estou querendo classificar intensidades ou graus

de trabalho que dão lutos maternos...” (Inês).

O estigma

Maria apresentou em seu discurso sentimentos de invasão e desqualificação

provenientes de olhares externos por conta do suicídio de seu filho:

“Eu havia atendido um paciente de 60 e poucos anos que havia se suicidado

com veneno de rato, com chumbinho. E aí eu ia no domingo para o plantão

pensando comigo ‘Meu Deus, o que que leva uma pessoa a se suicidar, né?

Como que pode?’ Me questionando, pensando... Porque a gente nem pode

estar julgando... Porque a primeira coisa que vem é ficar julgando, por falta de

conhecimento, né? ‘Ah, mas fulano não teve caráter, fulano é isso...’ Só

julgamento, né? (...) Porque tem muita gente que fala ‘Morreu de suicídio,

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nossa não tem salvação’. Aquilo para uma mãe é a pior coisa, porque a mãe já

está sofrendo pela separação e ainda vêm falar que o espírito não tem

salvação (...) Então, eu faço o possível para não estar chorando para não sair

com o rosto vermelho por aí. Parece que as pessoas ficam comentando:

Nossa; tava chorando! O que que será que aconteceu com ela?” (Maria).

A culpa

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. (Guimarães Rosa, A terceira margem do rio).

A culpa apareceu no discurso de Maria, Elisa e Inês relacionada a causas

diversas:

“E não sei, às vezes a gente fica pensando que pode ter sido uma imprudência

minha, uma falha, da minha parte, talvez se eu tivesse ficado mais em cima,

poderia ter evitado...mas...não sei...” (Maria).

“Foi muito difícil... sentia culpa por não ter percebido que não estava tudo tão

bem como parecia... quase desisti de tudo... mas, agora não...sinto muita

saudades...” (Elisa).

“Eu lembrei de um casal amigos de meus pais que tinha um filho único que foi

fazer faculdade na Inglaterra. Então eu e meu marido nos tornamos muito

amigos desse casal e eles acabaram adotando minha família e a gente adotou

eles. Era um senhor e uma senhora muito idosos...Eu aprendi muito com essa

senhora, e ela me mimava muito, talvez como forma de compensar o filho que

não estava perto para ela mimar...Ela era um encanto, muito delicada,

generosa. E ela sabia que eu gostava muito de fruta-do-conde e ela comprava

na feira na estação certa, porque naquela época não é como agora que tem

fruta o ano inteiro, e me dava só porque sabia que eu gostava...eu estava

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grávida, tinha criança pequena...e íamos bastante na casa dela...Ela sempre

guardava a fruta do conde para mim. Eu sabia que ela também gostava muito

de fruta do conde, e o filho que dela que estava na Inglaterra amava. Só que eu

vinha e ela dava para mim e eu via que ela não comia. Ela falava “leva para

você”, e eu dizia “mas a senhora gosta” e ela sempre insistia para eu levar. Até

que um dia eu falei “Não! A senhora vai me explicar por que não come; a

senhora gosta!” E ela me explicou que ao saber que na Inglaterra não tinha

fruta-do-conde e por isso seu filho não podia comer a fruta que tanto gostava,

“então eu não como” (risos). Então tem isso, né? Se ela comesse a fruta se

sentiria culpada, porque como é que ela se permitiria comer algo que gostava

muito, e que só dava uma vez por ano, se o filho estava privado? No luto

materno o filho também está privado de tanta coisa, no imaginário, e você vai

comer alguma coisa que seu filho gostava? É impossível não lembrar, não se

sentir culpada. Se você lembra de algo que um filho vivo gosta de comer, é só

mandar para casa dele. O meu neto uma vez me perguntou:”Vovó, será que

no céu tem purê de batata para o papai? Porque se não tiver e ele ver a gente

comendo, ele não vai ficar com vontade?” (Inês).

“Se a culpa no suicídio do filho é inevitável, a falsa culpa também é, porque até

de ficar bem você se sente culpada” (Inês).

Parkes (1998) comenta que a tentativa de encontrar alguém para culpar assim

como a tentativa de encontrar uma causa que pudesse evitar a morte de um

ente querido faz com que o enlutado retome o controle da situação. O

pensamento de que a morte da pessoa amada foi acidental é inaceitável, pois

revela a impotência diante da perda. Assim, segundo o autor, é mais fácil

creditar a culpa a alguém (mesmo que seja a si próprio) que acreditar na

impotência diante dos fatos.

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Experiência com luto anterior

Antecedentes históricos da mãe enlutada representam um importante papel na

evolução do seu luto, no momento em que esta perde um filho. Segundo

Freitas (2000), pessoas que tiveram reações complicadas de pesar no passado

têm alta probabilidade de ter uma reação complicada no presente. Perdas do

passado e separações têm um impacto nas perdas do presente, nas

separações das figuras de apêgo e na capacidade para enfrentar perdas

futuras. De acordo com a autora, pessoas com história de problemas

depressivos têm alto risco para desenvolver reações de luto patológico.

O suicídio da filha é vivenciado intensamente por Maria, e é o cerne de suas

emoções, visto que além de ter sido uma perda inesperada e brutal, somou-se

ao luto por tantas outras perdas (aborto, separação do primeiro marido, o

assassinato do filho e da nora, a perda de Eduardo para as drogas).

“Foi uma carga muito pesada perder dois filhos... eu me lembro que quando o

Rodrigo morreu eu fui deixar de me emocionar, chorar, depois de uns 3

anos...e depois veio o suicídio...” (Maria).

Durante a entrevista Maria abriu uma carta escrita por ela na época em que

Rodrigo foi assassinado. O conteúdo da carta revela sua tristeza e luto pela

morte do filho:

“Domingo de Páscoa. Dia 30/03/97, numa madrugada de um domingo, mais ou

menos 2:40 horas da manhã, meu Rodrigo acabava de morrer, com 3 tiros, um

dos tiros no peito, num beco frio. Me deparei com meu filho morto. Foi grande

ali a minha aflição. Parece que o mundo desabou sobre minha cabeça. Que

hora dura! Após 8 meses nasceu uma linda menina, que pesou mais ou menos

3,5 kg, que é a Rafaela. Ele nem chegou a conhecer a Rafaela...” (Carta escrita

por Maria).

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Elisa também descreveu perdas anteriores importantes, como a de sua mãe e

de seu primeiro marido, que podem ter dificultado ainda mais a elaboração do

luto pelo suicídio do filho:

“Quando a mamãe morreu (...) eu tive um estresse emocional que foi tratado

com análise, não tomava remédio nenhum! Tá vendo aqui uma deformação

óssea aqui na minha mão? Isso eu tive aos 40 anos, nos pés, na coluna, até no

maxilar!” (Elisa).

“Conspiração do silêncio”

Segundo Freitas (2000), quando uma mãe perde um filho por suicídio, há uma

tendência tanto da mãe quanto dos demais familiares em se manterem calados

sobre as circunstâncias da morte. A “conspiração do silêncio” dificulta a

elaboração do luto, porque a comunicação e expressão dos sentimentos são

“engavetadas”.

Inês e Maria relataram que em muitos momentos não encontram interlocutores

com quem possam compartilhar sua dor:

“Não é educado abrir espaço para o tema do suicídio...e isso de fato atrapalha

muito, porque há momentos em que a pessoa enlutada com um tema tão difícil

quer um interlocutor...e se já é difícil falar, para o interlocutor ouvir sem dar um

jeito de engavetar...Isso dificulta a elaboração...É como uma ferida na pele que

para cicatrizar não se pode ficar cutucando toda hora, mas também não se

pode deixar de mexer, olhar, cuidar” (Inês).

“Eu queria no início falar muito sobre ela, mas ele (marido) não queria tocar no

assunto; eu queria e ele não. Desde então pouco se toca, pouco se fala, mas

tem dias que eu percebo que ele está amargurado. Não sei porque, mas ele

não gosta... Eu penso que como era uma filha única que ele tinha, ele ficou

bastante magoado... Mas minha relação com ele é essa. Ele não gosta de tocar

no assunto e eu também respeito...pouco se fala...” (Maria).

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Segundo Freitas (2000), evitar lembranças sobre a pessoa falecida pode

representar uma solução a curto prazo se, ao longo desse processo de luto, o

enlutado consegue relembrar aos poucos da pessoa que morreu. A autora

ainda explica que a persistência em evitar esta lembrança pode indicar um

complicador do luto.

FACILITADORES DO PROCESSO DE LUTO

Aceitação da perda

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. (Guimarães Rosa, A terceira margem do rio).

A aceitação da realidade da perda foi descrita pelas entrevistadas como parte

de um processo de gradativa recuperação:

“E eu aceito a separação do meu filho, mas não o fato de ter perdido ele. E de

tal maneira eu trabalhei isso, li muito... Eu cheguei a um ponto em que eu não

tenho a presença, mas eu tenho ele vivo. E é tão forte que nesse sonho que eu

contei, às vezes eu até dou risada, eu precisava conservar alguma coisa, nem

que fosse essa ligação. No dia que eu passei o primeiro e-mail, eu imaginei o

Carlos rindo de mim!” (Elisa).

“Quando nascemos num tempo novo, precisamos morrer para certas

realidades... Esses ritos de passagem é que são maravilhosos. Através deles

está a aceitação de uma morte para entrar numa nova vida. Mas é a minha

morte. É uma coisa que eu pensei sempre que fosse assim, e aí vai a maneira

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de ser de cada um. Eu acredito que muitas pessoas renasçam por uma lógica,

por uma aceitação” (Elisa).

Durante a entrevista Maria descreveu com detalhes o dia do suicídio da filha e

disse que sentia necessidade de ligar para as pessoas para contar o que havia

acontecido. Segundo Parkes (1998), essa é uma reação comum do processo

de elaboração do luto em pessoas que passam por situações traumáticas, para

que assim, possa dar sentido ao que aconteceu.

“Assim, logo no início muitas pessoas me ligavam e eu também queria ligar

para todo mundo para falar para todo mundo... Era uma maneira de eu me ... e

no trabalho, meus colegas me ajudavam” (Maria).

“Escrevi tudo: a hora que eu recebi a notícia, a hora que eu cheguei no

hospital... eu escrevi e guardei, e é difícil eu pegar, só agora que eu tô

conseguindo pegar, porque eu estou mais calma (...) Era assim para ter

registrado os fatos...” (Maria).

Aparentemente o registro dos fatos, seja pela escrita ou pela fala legitimam seu

sofrimento e são maneiras que Maria encontrou de processar o que lhe havia

acontecido.

Religião

Embora a religião apareça na literatura como um possível complicador do luto

pelo suicídio, os relatos de Elisa e Maria mostraram que a religião foi de

extrema importância para que elas conseguissem se recuperar pela morte do

filho:

“(...) porque eu sou religiosa, então tinha horas de desespero que eu me

agarrava em Nossa Senhora e ela realmente me acolhia” (Elisa).

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“Eu me apoio muito na força de Deus e tenho tido muito conforto, muito apoio...

Aconteceu porque foi chegada a hora, porque Deus quis. Para tudo tem um

tempo na nossa vida. E isso traz um grande conforto e...essa foi a vontade de

Deus. Então se é a vontade de Deus, a vontade de Deus é boa. Então isso traz

um conforto” (Maria).

Atividades

Elisa contou que procura fazer apenas atividades prazerosas já que agora com

os filhos casados e os netos crescidos se dá o direito de fazer apenas o que

lhe agrada. Ela realiza atividades físicas diariamente:

“ (...) porque ocupar me faz bem! Se eu não me ocupo, o Sol escurece” (Elisa).

“Então o meu dia: de manhã eu procuro mais atividades físicas, porque depois

de uma certa idade a gente guarda todas as heranças de família, aquelas que

não são muito boas: diabetes, sabe? E andando, saindo, a sua cabeça fica

aberta...” (Elisa).

Além disso, faz aulas de pintura e informática:

“...E uma coisa que eu me ocupo muito, que me distrai muito é a pintura. Hoje à

tarde eu tenho aula...eu estou sempre ocupada com isso. Primeiro porque você

tem um contato com pessoas, o que é muito bom. É um grupo de senhoras,

algumas mais moças, outras com mais idade, mas por sorte é um grupo muito

agradável, então a prosa é muito gostosa ... De manhã eu sempre falo ‘hoje eu

vou fazer isso’ e faço. ...Sabe, agora eu estou aprendendo a usar a internet,

estou lutando, tem horas que dá vontade de jogar o computador no chão. Mas

estou fazendo aulas de computação, e sou aquelas alunas chatas, pois tudo eu

quero saber! Hoje eu tenho aula e vou saber o que é o tal do msn. Um dia eu

mandei um e-mail com um texto bonito para minha filha, e ela me respondeu

falando que gostou muito e que estava feliz das minhas novas aprendizagens!

Aí eu mandei um e-mail para ela falando que eu tinha gostado bastante e que

qualquer dúvida que ela tivesse, era só me perguntar (risos)!” (Elisa).

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Maria também falou sobre as atividades que gosta de praticar no dia-a-dia:

“Eu vou para a igreja, venho; às vezes eu vou na chácara ou viajo para o

interior. Hoje mesmo eu vou num salão de costura, e vão várias mulheres. Uma

faz crochê, uma faz tricô, a gente faz um serviço voluntário...eu gosto de ir”

(Maria).

Família e rede social

Como foi exposto, o luto é um processo social e é com o suporte da sociedade

que as pessoas podem elaborá-lo melhor.

Elisa relatou que se sente amparada por sua família e ressalta o quanto esse

apoio é fundamental. Após a morte do filho, passou a dar mais valor à relação

com a família e adora a companhia dos netos. Ela diz que sua família é o que a

impulsiona e alegra. A ligação com todos os seus familiares é muito forte e ela

tem a preocupação de manter essa união, reunindo as filhas e os netos sempre

que pode.

Maria sofreu uma ferida narcísica gerada pela perda dos filhos. Ainda assim,

sua função materna e seu senso de continuidade na vida parecem ter sido

resgatados, em parte, com o cuidado da neta.

Tratamento

Os espaços profissionais de psicoterapia e psiquiatria foram muito importantes

para que Elisa, Maria e Inês expressassem e compreendessem suas ambíguas

e intensas emoções, refletissem sobre suas necessidades, dores e tristezas:

“Eu comecei um tratamento com uma grande psiquiatra, e ela é uma cabeça

fantástica. Tanto que estou lendo um trabalho dela, ela esta escrevendo um

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trabalho, uma beleza! Tinha que ser uma pessoa assim pra me ajudar. Ela é

altamente qualificada e é uma pessoa maravilhosa... Esse texto dela é uma

beleza, posso até passar uma cópia pra você depois (...) Eu procurei minha

saída dentro de mim” (Elisa).

“As psicólogas que me ajudaram bastante, a terapia em grupo, a médica

psiquiátrica e os medicamentos, né? Assim, eu tive vários apoios... e me

ajudou bastante” (Maria).

“Tem um trabalho sobre estresse pós-traumático que descreve um quadro que

chamam de crescimento pós-traumático, o CEPT. Tem o TEPT, que é o

transtorno do estresse-pós-traumático e o CEPT, que é quando as pessoas

crescem depois do trauma. Então a finalidade da ajuda psicoterápica ou

qualquer outra forma de ajuda é transformar um TEPT num CEPT, porque o

trauma gera um desequilíbrio” (Inês).

Casamento

A literatura descreve que muitas separações de casais acontecem depois da

morte de um filho devido a dificuldades na comunicação, acusações mútuas ou

tentativas de evitar o sofrimento do cônjuge. No caso de Elisa, no entanto,

aconteceu justamente o oposto: após uma separação de três anos, está junto

com seu marido novamente. Elisa contou que se sentiu muito amparada pelo

marido depois da morte de seu filho, o que a fez querer reatar o casamento:

“Mas, depois do suicídio, meu ex-marido, que nesses três anos não se

conformava com a separação, foi muito, muito dedicado e ele sofreu tanto com

a perda do Carlos que isso também me pegou muito; então nós voltamos e foi

bom... ele é uma pessoa inteligentíssima, muito companheiro, nós

conversamos muito, viajamos no fim de semana...” (Elisa).

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Também no caso de Maria, as diferenças existentes na forma com que ela e

seu marido lidaram com o suicídio da filha não prejudicaram, segundo ela, o

relacionamento. Maria relata que logo após a perda da filha ela tentou

conversar algumas vezes com o marido, que não quis tocar no assunto. Ela

conta que respeita a forma com que o marido reagiu à perda:

“Com meu marido graça a Deus sempre esteve tudo bem. Eu queria no início

falar muito sobre ela, mas ele não queria tocar no assunto (...) Ele não gosta de

tocar no assunto e eu também respeito... pouco se fala...” (Maria).

Experiência com luto anterior

Inês foi a única das três mães entrevistadas que relatou uma experiência

anterior que a ajudou a elaborar o luto pela perda do filho que se suicidou:

“Minha mãe passou por um luto patológico, porque ela perdeu o marido na fase

de apaixonamento e não conseguiu se recuperar direito nunca. Eu tinha só 10

meses, mas cresci com esse pavor de ficar presa num luto de alguma

situação...Como tudo pode ter a sua serventia, para mim isso teve também,

sabe? Eu sou “luto-patológico-fóbica” (risos). Então eu já pensava muito sobre

esse tema da morte não natural, da morte precoce acontecer perto de

mim...rolou dessa forma na minha vida...”(Inês).

Tempo

O tempo foi descrito de maneira muito bonita nas entrevistas como sendo um

fator fundamental para a recuperação depois da morte de um filho:

“O tempo é como se fosse uma pintura que vai desbotando. Aquela mágoa,

aquela tristeza, aquela angústia vão diminuindo, como se fosse uma pintura

desbotando....assim acontece com a gente...” (Maria).

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“Eu acho que o lado psicológico, só com o tempo...o tempo cura muita coisa. É

claro que você vai lembrar, ter saudades, mas não com tanta dor...” (Maria).

“Por isso que o tempo pra mim é um eterno presente agora, o tempo mudou

pra mim” (Elisa).

“É natural, acontece. Como a chuva, como o trovão, como as marés ou a

tempestade. Há que perceber, há que se viver, sentir, se recolher, se molhar,

nadar, boiar, mergulhar, cavar, contemplar, é complexo, trabalhoso, por um

lado tão "antinatura" e por outro tão natural” (Inês).

Novos tempos, novos significados

Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. (…) A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. (Ecléa Bosi, Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos).

Foram selecionados alguns trechos das entrevistas com Maria, Elisa e Inês que

mostram como novos significados foram dados à experiência vivida pela morte

do(a) filho(a):

“Não que você é forte, mas parece que você pega uma solidez, uma firmeza. O

que tiver que acontecer, vai acontecer...eu nunca achava que ia perder um filho

e perdi dois...E eu acho que a morte é sofrida porque é um segredo de Deus.

Do outro lado prá lá é segredo de Deus, não pertence mais a nós...a morte é

um desconhecido do homem...tem coisas para nós que não interessa a

resposta...” (Maria).

“Outro dia convidaram ela para dançar em um teatro e ela dançou uma música

lindíssima, clássica moderna, ela estava sofisticada com o cabelo comprido,

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maquiada, e vendo ela dançando no palco, eu passei por uma experiência

incrível. Eu via a minha neta dançar, eu via a minha filha e me via! Foi tão forte

isto que eu falei para minha filha ‘só isto já justifica toda a minha vida!’ E eu

disse, vendo minha neta dançar foi uma coisa tão forte porque ela virava e eu

me via, ela parece comigo, e via minha filha. E eu falei: Isso é o que é a vida!”

(Elisa).

“A saudade é a dor da ausência da presença...porque ele não está ausente,

pelo contrário, acho que ele está mais presente (...) eu acho que o segredo da

vida é procurar ter uma paz interior para poder ver melhor o que está na sua

frente...” (Elisa).

“A vida é a gente se satisfazer também, com a leitura de um livro, com um

filme, com um sorvete, com um pôr-do-sol, um banho de mar, e estar em

condições de saborear tudo isso” (Elisa).

“A vida tem várias primaveras, vários verões, vários outonos e vários invernos!”

(Elisa).

“Você já pensou que existe ex-marido, ex-namorado, mas não tem ex-filho, ex-

mãe. Eu não deixei de ter um filho porque ele morreu. Eu tive 5 filhos, e não é

que antes eu tinha 5 e agora eu tenho 4; eu tenho quatro vivos e um morto. Ele

continua ocupando um espaço na sua vida, falam dele...carne moída, purê de

batata, arroz, feijão e salada de tomate, todos em casa lembram dele...não só

eu. A empregada quando faz essa comida comenta: hoje é a comida do

Fernando” (Inês).

“Tem um filho que morre, mas tem uma outra forma de vida, a imagem dele

fica...” (Inês).

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Próximos tempos…

Após a morte de seu filho, Elisa comentou que quase desistiu da vida e passou

um tempo completamente sem força; mas que agora a sua expectativa de vida

foi toda transferida para a família, em particular aos netos. Embora ela se

interesse em manter a vida ocupada, a família é realmente o que a preenche:

“Houve um tempo em que eu fiquei sem expectativas, completamente! Mas

agora eu gosto muito de viajar (...) A gente muda, muda muito. Eu diria que eu

coloco hoje muito, as minhas expectativas em meus netos, no progresso deles

e tudo. A vida que eu levo, as coisas que eu faço, estou sempre procurando ver

filmes bons, estou sempre procurando sair e me ocupar com coisas que

ocupem a minha cabeça porque eu tenho uma cabeça que pensa muito e não

pode ficar desocupada. A minha expectativa de vida foi transferida para minha

família... é a minha vida hoje, porque eu preciso encher a minha vida. Hoje eu

estou bem, estou bem vestida e bem cuidada. Minha família é o que me

impulsiona, é o que me alegra, eu sinto que eu substitui aquilo que você espera

para si mesmo; eu espero para a minha família” (Elisa).

Quanto ao futura, Elisa comenta:

“Eu preciso pensar que tenho que continuar, que ainda tem muita coisa para

fazer! Nunca acaba... e eu acho que envelhecer é uma coisa tão natural da

vida, não pesa o envelhecer” (Elisa).

Maria também já consegue pensar em alguns projetos de vida para o futuro:

“Sou enfermeira obstetra, mas atualmente eu estou afastada, mas pretendo

voltar logo. Eu vou conversar com a médica hoje e pedir para ela diminuir um

pouquinho a medicação para eu poder começar a tocar minha vida...tentar,

né?” (Maria).

“Eu tinha vontade de fazer mestrado, eu gosto muito de dar aula de

enfermagem, eu gosto muito de estudo...mas depois disso tudo, às vezes eu

tenho vontade de me isolar, ficar sozinha, né. Mas, eu não deixo isso

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acontecer...porque depois eu penso: caramba, a gente não é uma ilha para

viver isolada, né? E também depois eu penso: Será que vale a pena fazer um

mestrado, ficar queimando meus neurônios depois de tudo isso?” (Maria).

A busca de um sentido

Elisa contou que leu um livro que a ajudou a elaborar a morte de seu filho:

“Eu acredito que muitas pessoas renasçam por uma lógica, por uma aceitação,

e tem um livro que você deveria ler que chama Em busca de Sentido (...) Esse

livro me ajudou muito, porque ele lida com a essência do amor”. (Pega o livro e

lê alguns trechos):

Enquanto avançamos aos tropeços, quilômetros a fio - Você sabe, ele esteve

num campo de concentração - vadeando pela neve (...) nenhum de nós

pronuncia uma palavra mais, mas sabemos neste momento que cada um só

pensa em sua mulher. Vez por outra olho para o céu onde vão empalidecendo

as estrelas (...) converso com minha esposa. Ouço-a responder, vejo-a

sorrindo, vejo seu olhar como que a exigir e a animar ao mesmo tempo e, tanto

faz se é real ou não a sua presença, seu olhar agora brilha com mais

intensidade que o sol que está nascendo (...) Continuo falando com ela, e ela

continua falando comigo. De repente me dou conta: nem sei se minha esposa

ainda vive! Naquele momento fico sabendo que o amor pouco tem a ver com a

existência física de uma pessoa. Ele está ligado a tal ponto à essência

espiritual da pessoa amada, a seu “ser assim” que a sua “presença” e seu

“estar-aqui-comigo” podem ser reais sem sua existência física em si e

independentemente de seu estar com vida (...) As circunstâncias externas não

conseguiam mais interferir no meu amor, nas minhas lembranças e na

contemplação amorosa da imagem espiritual da pessoa amada. Se naquela

ocasião tivesse sabido: minha esposa está morta - acho que este

conhecimento não teria perturbado meu enlevo interior naquela contemplação

amorosa - Não é maravilhoso isso?”

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CAP. VII – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Severino retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga; é difícil defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, severina; mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu com sua presença viva. E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida; mesmo quando é uma explosão como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida severina. (João Cabral de Melo Neto: Morte e Vida Severina. Diálogo de carpina e retirante)

O campo do suicídio é extremamente vasto e a natureza do pesar por alguém

que se suicidou é tão complexa e seus efeitos nas suas diferentes

manifestações, tão variados, que é raro, senão impossível, que algum autor

possa compreendê-los a todos (Freitas, 2000).

Desta forma, não tive neste trabalho a pretensão de esgotar o tema, muito

menos fazer generalizações sobre um assunto tão delicado e tão importante.

Entretanto, o sofrimento trazido pelo suicídio de um filho é de tal ordem que

acredito na validade de pensarmos nos preconceitos e na ambivalência de

sentimentos que o cercam a fim de compreendê-lo melhor e tentar levantar

propostas que possam atenuá-lo.

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O objetivo deste estudo foi identificar e analisar as manifestações de luto nas

mães entrevistadas, que perderam o filho por suicídio, com foco nos recursos

com que enfrentaram essa perda e no sentido que atribuíram a essa

experiência.

Foi possível perceber pelo discurso de Elisa, Maria e Inês, participantes da

pesquisa, que alguns fatores complicaram e outros facilitaram a elaboração de

seus processos de luto. Selecionei alguns desses fatores, discutidos no

capítulo anterior, que mais me chamaram a atenção por se diferenciarem ou

serem mais intensos que em outros tipos de luto.

O primeiro deles refere-se ao preconceito e estigmatização que sofre uma mãe

cujo filho tenha se suicidado. Os relatos confirmaram a "mancha no curriculum

vitae" (Galiás, 2004) que marca a mãe de um suicida e dificulta qualquer

comunicação. A mãe enlutada não recebe o suporte social adequado devido,

principalmente, à dificuldade de encontrar interlocutores para compartilhar sua

dor, pois os outros costumam ficar pouco à vontade ou evitam a questão do

suicídio.

O silêncio das pessoas reforça ainda mais o isolamento intenso e os

sentimentos de vergonha e culpa. As oportunidades para falar e recordar dos

aspectos da personalidade e da vida do filho podem ser negadas, como no

caso de Maria, que não pode conversar com o marido sobre a filha que se

suicidou.

Segundo Parkes (1998), o choque e a incredulidade seguintes a uma morte

deste tipo são muito intensos e um aspecto comum são as imagens recorrentes

da morte, mesmo que esta não tenha sido testemunhada. Há, portanto, uma

necessidade natural de se rever e falar sobre as imagens traumáticas e

dolorosas da morte e sobre os sentimentos gerados por ela. Partilhar a

experiência da perda é crucial para a adaptação bem sucedida e a

comunicação é vital durante o percurso de recuperação.

Page 85: TCC LUTO MATERNO PELO FILHO SUICIDA · Luciana Fernandes Rocha: LUTO MATERNO PELO FILHO SUICIDA, 2007 Orientadora: Profª Drª Flávia Arantes Hime ... VINCULAÇÃO MÃE – FILHO

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Outro fator relevante foi o de não ter aparecido nos discursos das participantes

nenhuma referência à raiva ligada ao filho que se suicidou. Como foi exposto,

no luto por suicídio há uma grande dificuldade na elaboração da perda que

pode gerar sentimentos agressivos em relação ao morto. Além disso,

Se alguém matasse nosso filho, seguramente se possível como mãe o mataríamos, não fora a ponderação egóica. A vingança seria quase natural. Há muita raiva do assassino. No suicídio do filho, há um que matou seu filho e que se quer enforcar com as próprias mãos, que se quer trucidar (...) com as garras, com a força dos próprios músculos, com os dentes, com seu próprio corpo, com sua própria agressividade, é visceral. No suicídio do filho, há outro que foi vítima, que não pôde sozinho se defender do ataque, que sucumbiu, que você não pôde proteger, que estava sozinho, indefeso, desamparado, provavelmente apavorado, sem conseguir pedir ajuda de forma a ser ouvido, atendido, protegido, acolhido, enlaçado, contido, pego no colo e embalado até que passasse o susto e o medo. Esse se quer amparar (...) Se o filho se assusta, se fere, o tomar ao colo é o natural, o acalantar, o embalar, o ninar até que o susto e a dor passem. Mesmo depois de crescidos a mãe assim age se ela consegue. Mesmo se ela não consegue, não desiste de tentar (...) É extremamente difícil juntar ambos, assassino e assassinado, algoz e vitima num só, no mesmo filho, amado e odiado, que se quer tanto proteger, pegar no colo, quanto bater, socar, pôr de castigo (Galiás, 2004, p.3).

Acredito que esses sentimentos não foram descritos pelas mães entrevistadas

devido a necessidade de reprimi-los, devido a grande culpa que a raiva por um

filho que se matou desperta. Como descreve Galiás (2004) é muito difícil para a

mãe de um suicida juntar sentimentos tão ambíguos como o amor e o ódio pelo

filho que se suicidou.

Se o sentimento de raiva não apareceu nas entrevistas, a culpa, por outro lado,

teve grande destaque. A vivência de culpa, tal como citada pela literatura, pode

ser pensada, a partir dos sentimentos experienciados por Maria, Elisa e Inês,

como uma tentativa de encontrar uma causa que pudesse evitar a morte do

filho e se sentir menos impotente diante da situação traumática.

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Se em alguns casos a culpa pode dificultar o processo de elaboração do luto,

em outros, ela pode ajudar a mãe enlutada a se defender de uma

desestruturação maior logo após a morte do filho. Mas pode também complicar

o processo de luto quando é muito intensa e se estende por muito tempo, não

dando lugar a outros sentimentos mais adaptativos, como os descritos por Elisa

(“Sentia culpa por não ter percebido que não estava tudo tão bem como

parecia... Mas, agora não...sinto muita saudades...”).

Alguns fatores foram de extrema importância para que as mães entrevistadas

pudessem elaborar o luto do filho morto, como a religião que pôde constituir

uma fonte de força e apoio para que Maria e Elisa conseguissem se recuperar

do suicídio do filho.

Os espaços profissionais de psicoterapia e psiquiatria foram muito importantes

para que as participantes expressassem e compreendessem seus sentimentos,

assim como o amparo familiar (descrito por Elisa) e as atividades físicas,

artísticas, manuais também contribuíram para a recuperação.

A partir das entrevistas percebi que Maria, Inês e Elisa não trouxeram apenas

sua dor, seu luto, sua angústia. Elas trouxeram a sua vida, a sua existência.

Falamos sobre culpa, mas também sobre casamento; falamos sobre o estigma

e também sobre o papel da mulher na sociedade, falamos sobre morte, e

principalmente sobre vida.

Maria falou sobre o tempo em uma linda metáfora (“O tempo é como se fosse

uma pintura que vai desbotando. Aquela mágoa, aquela tristeza, aquela

angústia vão diminuindo, como se fosse uma pintura desbotando... assim

acontece com a gente...”) o que me fez pensar que as experiências vividas não

podem ser concretamente modificadas, mas talvez seja possível criar uma

nova moldura, re-enquadrando e transformando a percepção do viver e

conseqüentemente adquirir outros comportamentos e atitudes perante a vida.

Trata-se, sem dúvida, de um processo longo e trabalhoso, em que a mais difícil

tarefa é a do perdão: o perdão ao filho, o perdão de si mesma (Freitas, 2000).

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Conhecer a história e experiência de Maria, Inês e Elisa, e elaborar uma

discussão sobre seus relatos mais íntimos foi enriquecedor, um enorme

exercício de ética e de escuta. Por isso, gostaria de agradecer a contribuição

das participantes, destacando que pretendi realizar nesse trabalho uma

compreensão que primasse pela singularidade da vivência de cada uma.

Espero que a participação nesse trabalho tenha as aproximado, de alguma

maneira, de suas experiências subjetivas e que o poder pensar e falar tenha

ajudado a ressignificar alguns momentos de suas difíceis histórias de vida.

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ANEXO 1 – TERMO DE CONSENTIMENTO ESCLARECIDO E INFO RMADO

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE PSICOLOGIA

Eu, ___________________________________________________________,

RG nº:____________________, estou ciente de que minha participação na pesquisa

Luto Materno pelo filho suicida, desenvolvida pela aluna Luciana Fernandes Rocha do

5º ano da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como atividade acadêmica do Trabalho de Conclusão de Curso, não incorrerá em

violação de direitos humanos, e que minha participação, seja através de entrevista,

respondendo questionário ou participando de observação direta, pode ser usada em

meios acadêmicos e científicos . Autorizo a gravação em áudio de entrevista que

venha a dar e sua posterior transcrição pela pesquisadora responsável, para fins de

ensino e pesquisa. Autorizo a publicação deste material em meios acadêmicos -

científicos e estou ciente de que serão removidos ou modificados dados de

identificação pessoal, de modo a garantir minha privacidade.

São Paulo, _____de_____________ de 2007.

__________________________________________

Assinatura do participante da pesquisa

__________________________________________

Aluna-pesquisadora: Luciana Fernandes Rocha

__________________________________________

Orientadora: Flavia Arantes Hime

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ANEXO 2 - ENTREVISTAS

ENTREVISTA COM MARIA

Casada, 51 anos

Qual é a profissão da senhora?

Sou enfermeira obstetra, mas atualmente eu estou afastada, mas pretendo

voltar logo. Eu vou conversar com a médica hoje e pedir para ela diminuir um

pouquinho a medicação para eu poder começar a tocar minha vida...tentar, né?

Eu estou tomando ....um é antidepressivo e o outro é ....

Gostaria que a senhora me contasse um pouco de sua história de vida,

sua trajetória...

Desde a infância?

O que a senhora quiser me contar...

Bom...eu vou começar pelo meu segundo casamento, tá? Não, do meu

primeiro casamento. Eu casei muito jovem tinha 15 anos e com 16 anos eu tive

minha primeira filha. No meu primeiro casamento eu tive 4 filhos e um aborto.

Um aborto que eu mesma provoquei porque eu tava desesperada, já tinha 4

filhos e o casamento não ia bem. Aí, quando foi... os tempos se passaram, aí

eu me separei do meu marido, fiquei um tempo com as crianças, aí nesse

meio de tempo eu consegui trabalhar aqui na Unifesp como atendente de

enfermagem. Daí eu fui lutando, estudei, nessa época eu não tinha o ginásio

completo, aí terminei o colegial, primeiro eu fui fazer faculdade de enfermagem,

depois fiz pós-graduação e criando as crianças...e nesse meio de tempo eu

conheci esse meu segundo esposo, né? Eu falei para ele que eu tinha quatro

crianças e ele assumiu e nós vínhamos assim... tendo uma vida normal ...daí

nasceu essa minha filha, a Miriam, que foi a única filha que meu segundo

esposo teve comigo. Aí as crianças foram crescendo, e a gente trabalhando,

estudando...Do primeiro casamento eu tive a Sofia, a Simone, o Rodrigo e o

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Eduardo. O Rodrigo e o Eduardo logo na criancice deles ...tipo com 13 anos

foram para as drogas. Aí o Rodrigo ficou...eu tentei tirar ele das drogas de

todos as maneiras..tentei, tentei, levei até para internar, não quis e ficou assim

essa luta, né? E aí ele foi para as drogas, ele se afundou nas drogas, não quis

sair das drogas, e o Eduardo foi junto. E aí lá nas drogas ele arranjou uma

moça que era muito drogada, pior que ele. E lá, essa moça teve uma gravidez

dele e ele nem sabia, passaram-se uns tempos e num domingo de páscoa, eu

tava na minha casa e vieram falar que o Eduardo estava em estado de choque

porque haviam matado o Rodrigo ... e ele nem sabia que a moça que ele vivia

junto tava grávida ... e aí passaram-se uns tempos, eu sofri muito...Passei uns

três anos sofrendo, mas não procurei profissional nenhum para me ajudar. O

Eduardo ficou um tempo afastado das drogas, mas depois ele voltou, voltou até

hoje...hoje ele é morador de rua, mora debaixo do pontilhão...tá com quase 30

anos de idade e depois mataram a companheira do Rodrigo, que também era

drogada, mas antes de matar ela, ela teve uma filha, né? Porque antes

mataram ele e ela ficou...e essa gravidez, eu tava sempre acompanhando,

levando lá alguma coisa, porque eu queria ver a filha do meu filho nascer. Aí a

menina nasceu, passaram-se 6 meses e eu fiquei naquele luta, trazia a menina

para casa, ela buscava, eu trazia, ela buscava...meu marido dizia que era filha

dela, deixa...mas eu ficava preocupada porque ela não tinha condições

psicológicas nem físicas para cuidar da criança...dar mama também, né? Aí fui

assumindo a menina da maneira que eu podia, até que um dia mataram ela

também. Eu soube da notícia que haviam matado ela, e aí eu fui com a mãe

dela no juiz e ela me deu a tutela da Rafaela. A Rafaela hoje tá com 9 anos...tá

grande, tá bonita... e assim, a história de vida dela... eu conto tudo para ela,

não escondo nada. Ela me chama de mãe, meu esposo de pai...Ela é muito

apegada com a gente. Meu esposo não é avô paterno dela

assim...geneticamente, era avô de consideração, e ficou pai adotivo. E ela nos

ama muito...E então voltando na Miriam, a Miriam cresceu, ficou mocinha e aí

eu fui trabalhar em 2 empregos para pagar uma faculdade para ela porque ela

queria...eu gostaria que ela seguisse o meu ramo porque hoje em dia é um

ramo para você escolher várias especialidades, vários caminhos, né? Não é só

ficar enfiado dentro do hospital. Tem gente que pensa que enfermeira só mexe

com sangue, não é isso, tem várias opções. Mas, ela falou “Mãe, meu perfil

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não é ser enfermeira, meu perfil é ser veterinária. Mas é caro, né? É particular.

E eu falei “tá bom, eu trabalho em dois empregos. E aí eu saí, deixei meu

apartamento para as duas, porque as duas estavam estudando. Bioquímica

essas coisas...

Quem que morava com a Miriam?

A Miriam e a Simone. A Simone casada com dois filhos e a Miriam solteira. E aí

tudo bem, ficaram no apartamento, ela não quis vir comigo para a casa da

minha sogra...porque eu mudei para lá, e também era muito pequeno né? Era

só quarto, cozinha e banheiro..era eu, para minha sogra,e meu esposo. Agora

não, agora eu fiz uma casa...Mas e aí tudo bem, ela ficou estudando seis

meses...depois de 6 meses...e assim, a Miriam tinha...a vida particular muito

oculta. Eu tenho minhas dúvidas do que ela fazia particularmente. Eu tenho

muita dúvida...eu acho que ela poderia ter sido uma garota de programa. Mas

nada concreto, nada assim que eu vi, né? Eu acho que aquilo tudo veio

perturbando ela...porque assim...eu criei a Miriam dentro da igreja. Ela foi uma

menina que teve os princípios cristãos, né? Inclusive ela começou a estudar

órgão, ela ia muito bem, já estava tocando alguns...Eu acho que ela tinha nos

princípios dela alguma coisa e depois ela desvirtuou, não sei... eu sempre falei

para o meu esposo: “coloca um detetive para a gente tá vendo por onde que

ela anda”, porque ela era muito de andar à noite, chegava de madrugada e

nunca falava onde que trabalhava. Aí ela fez aniversário no dia 8 de junho que

antecipava a morte dela. Ela foi na minha casa, eu comprei um presente e eu

percebi que ela estava triste, muito triste... Eu falei: “Você não gostou do

presente que eu te dei?” E ela falou: “ah, gostei, gostei”, mas sabe aquela coisa

que você percebe na pessoa? Aí tudo bem, foram embora as duas, voltaram

...e quando foi um belo de um domingo...anteriormente, no domingo anterior,

eu havia atendido um paciente de 60 e poucos anos que havia se suicidado

com veneno de rato, com chumbinho. E aí eu ia no domingo para o plantão

pensando comigo “Meu Deus, o que que leva uma pessoa a se suicidar, né?

Como que pode?” Me questionando, pensando...porque a gente nem pode

estar julgando...porque a primeira coisa que vem é ficar julgando, por falta de

conhecimento, né? “Ah, mas fulano não teve caráter, fulano é isso...” Só

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julgamento, né? Eu vinha pensando o que que leva ... e aí quando foi mais

tarde, eu fui almoçar tarde, eu tava com bastante tarefa, bastante coisa para

resolver, problemas. Aí eu fui almoçar...fui eu a doutora D. e a doutora I. e aí a

gente tava até conversando de política, falando de governo, de hospital ...e aí

desceu o menino e falou “Olha tem um telefonema para você” e passaram a

linha lá para mim. Aí eu tive que dar uma força para ele agüentar. Eu falava

“calma, já foi mesmo, fazer o que” eu tive que dar uma força de tão mal que ele

tava...ele gritava...precisou a gente dar um socorro para ele, pela reação que

ele teve, mas não era assim, ela já estava morrendo. Antes a pequena falou

que ela já havia passado em algum lugar, só que a pequena não me falou, a

Rafaela, ela passou num petshop e perguntou para o moço se eles vendiam

venenos de rato, que é aquele chumbinho e aí o rapaz falou que não, que era

proibido por lei...eu não sei onde que ela conseguiu. E minha filha Simone

havia dito que ela assistiu uma despedida de solteiro de uns colegas dela

porque uns iam viajar para fora do Brasil, iam deixar o curso e estudar fora do

Brasil e ela voltou muito perturbada desse encontro, porque lá ela viu um ex-

namorado dela, chorou...tudo isso eu não sabia ... tudo isso eu não estava nem

sabendo que estava acontecendo...que nem eu te falei...ela ficou muito

perturbada. Aí, continuando...eu tava de plantão... se meu esposo tivesse

falado eu deixava tudo o que eu estava fazendo, porque era um pouco

longe...aí ele veio me buscar de carro com meu genro, o marido da Simone e

ao invés dele me avisar parar ir embora logo, ficaram lá esperando. E quando

eu cheguei no hospital, ela já estava entubada...já estava assim...o abdome

dela...eu pedi para a enfermeira chefe para entrar...o abdome dela já estava

muito rígido, a urina dela só tinha um pouquinho, tava muito oligúrica, aí eu

falei “Ai, meu Deus”, aí pronto, parece que o mundo caiu na minha cabeça, eu

fiquei desesperada...e assim, o que eu achei muito incrível foi dela ter tomado

esse chumbinho ao meio dia, quando meu marido chegou no apartamento, ela

estava preta, preta; ela era branquinha, tava preta, preta, e aí meu marido

disse que caiu de joelhos do lado dela e foi escorregando e pôs a mão no

coração dela e falou assim : “Ai Meu deus, não foi isso que o senhor me

prometeu”, e aí ele disse que o coração dela respondeu, deu uma batida forte -

puf - na mão dele, aí pegaram ela, levaram para o hospital...meu genro que

nunca saia do apartamento, desceu com as crianças e nesse meio de tempo

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que deu para ela fazer tudo isso. Aí quando minha filha entrou no quarto disse

que tava terminando de tocar um CD da Shakira, que é um cd muito triste. E

ela já tinha vomitado muito...ela colocou um balde, deixou o quarto dela todo

arrumadinho, que sempre era uma bagunça o quarto dela, deixou tudo

arrumadinho, tudo dobradinho, os cds...tá lá até hoje, um monte de cds...ela

deixou tudo arrumadinho no quarto dela...e não sei...ela planejou tudo isso, né?

Ela queria morrer...e aí... levaram ela para o hospital, chegou lá tentaram

socorrer de todas as maneiras, mas já era tarde. Entubaram, tudo...ela passou

a madrugada e quando foi a madrugada ela começou a ter arritmia e aí foi a

hora...o médico me deu a notícia que tinham perdido ela mesmo, né? Ele

chorou também...ficou muito chateado..perder uma jovem, né?

Quantos anos ela tinha?

Vinte e um anos. E aí eu fui fazer um levantamento nas notas dela na

faculdade, que tava fraco, né? Mas era uma coisa que podia ter

recuperado...ela chegou ao primeiro semestre, mas não chegou a concluir...era

o que ela queria fazer...comprou livro, ela foi para Sorocaba e fez um curso de

primeiros socorros de animais de grande porte, ela tava assim, investindo, né?

E não sei o que perturbou muito, muito ela...não sei se pode ter sido esse

namorado...E depois no atestado de óbito dela estava escrito que ela estava

com abdome gravídico, tava grávida, né, e aí a causa-morte dela não sei se foi

dela ter decidido a vida dela...agora eu me pergunto...não sei se foi a gravidez,

não sei se foi a questão amorosa, não sei se foi a vida dela que tava toda

embaralhada, bagunçada, não sei se ela tinha depressão, né, não sei...e aí eu

passei muito tempo, nossa! Agora é que eu estou conseguindo conversar, né?

Mas eu passei muito, muito tempo sem conseguir...que assim, eu quase tirei

minha vida também... só não tirei porque graças a Deus eu sou uma pessoa

religiosa eu me apoio muito na força de Deus.

Qual é a religião da senhora?

Congregação cristã do Brasil. E eu me apoio muito na força de Deus e tenho

tido muito conforto, muito apoio... e depois eu comecei a tratar com a doutora

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D. e aí eu fui numa terapia em grupo também, que ajudou bastante também, a

gente vê os problemas das pessoas...e a gente vai tentando, mas é uma coisa

que nunca mais apaga...até hoje eu me lembro dela como se fosse eu falando

com ela...a fisionomia, a roupa que ela gostava de usar, e ela morreu com uma

roupinha que eu dei para ela. Quando eu tava já recuperando do

Rodrigo...porque o Rodrigo foi assassinado, a Miriam foi suicídio.

Faz quanto tempo que o Rodrigo morreu?

Foi em 97. Vai fazer 10 anos...

Quantos anos ele tinha?

Ele tava com 20 anos e a Miriam foi em 2005, ela tinha 21 anos. Foi uma carga

muito pesada perder dois filhos...eu me lembro que quando o Rodrigo morreu

eu fui deixar de me emocionar, chorar, depois de uns 3 anos...e depois veio o

suicídio...

A Miriam já tinha tentado alguma vez o suicídio?

Não, só se foi assim que eu não vi, mas não me lembro...

Como era a Miriam? Quais eram as coisas que ela gos tava de fazer? A

senhora poderia me contar um pouco sobre ela?

Ela gostava muito de viajar, de aventuras, acampar... ela gostava muito de

desafio. Inclusive ela mergulhava em alto mar...Ela gostava muito de

desafios...Ela deixou umas coisas escritas muito bonitas, mas eu deixei o diário

dela com o rapaz e ele acabou sumindo com esse diário. E eu preciso ver se

eu consigo recuperar...

Que rapaz?

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O rapaz policial, escrivão. Eles pediram porque como não foi uma morte

natural, eles pedem para a gente abrir...tem que abrir um inquérito, né? E no

meio do inquérito eu pedi uma investigação porque eles falaram que talvez

possa ser um suicídio induzido por outra pessoa, né? Eles querem

saber...então eles fizeram um monte de perguntas...

A Miriam namorava?

Então, ela namorava e gostava muito desse rapaz e depois ela se separou dele

e tava namorando outro... e nessa festa ela viu o ex-namorado dela, segundo a

minha filha. Então, e ela conseguiu deixar um bilhete que falava assim: ‘me

perdoa por ser fraca, me perdoa por não ter conseguido, me perdoa por ser

assim. Eu amo todos vocês’. Ela falou 3 vezes pedindo perdão, né? E eu acho

que...tenho certeza de que ela estava decidida a morrer, mesmo.

E como vocês se relacionavam? Como era a relação da Miriam com a

senhora, com seu marido e com os irmãos dela?

Então, a relação dela com a Simone era muito boa, tanto é que a Simone falou:

“Olha, mãe, eu não perdi uma irmã, perdi uma filha”. A Miriam admirava muito a

Simone, ela falava que a Simone era uma heroína. Não sei se ela achava que

as atitudes dela eram fracas em relação à Simone. Eu percebi assim...ela tinha

uma personalidade forte, um gênio forte...teve uma vez que não sei o que que

foi que ela fez, que eu peguei ela assim, bati com a cabeça dela na parede do

banheiro, tava nervosa, aí ela pegou e me enfrentou...ela queria me socar...aí

ela saiu de casa, foi para casa de uma amiga, aí eu falei assim: “deixa ela,

quando ela quiser ela volta” e aí meu marido ficou desesperado, pediu para ela

voltar e ela voltou. Mas quando ela queria fazer alguma coisa, ela fazia,

ninguém segurava. Eu percebia que ela tinha um gênio muito forte, tanto é que

eu nem me impunha tanto nas coisas dela depois que eu fiquei muito nervosa,

quis socar, aí eu falei “Deixa ela, né, ela resolve do jeito que ela quer. E não

sei, às vezes a gente fica pensando que pode ter sido uma imprudência minha,

uma falha da minha parte, talvez se eu tivesse ficado mais em cima, poderia ter

evitado...mas...não sei...

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E com seu marido, como ela se relacionava?

Ele pegava muito no pé dela também, assim..como pai, né. Uma vez ele não

queria que ela saísse de carro porque ela não tinha habilitação ainda, depois

que ela tirou habilitação. Daí ela pegou a chave escondido do meu marido,

desceu pegou o carro, deu umas voltas e deu umas batidinhas no carro.

Depois ela chegou, escondeu a chave e foi deitar...meu marido procurou essa

chave, procurou, procurou...perguntou quem tinha pegado a chave do carro e

ela não falou. Depois que ela falou, ele ficou muito bravo com ela. Uma vez

também, ela passou um monte de tinta no cabelo, tinham várias tintas no

cabelo, depois ela achou que não estava bom, descoloriu, porque ela era muito

vaidosa. Aí o cabelo dela começou a cair e ela foi na cabeleireira e passou a

máquina zero. Ai, mas quando meu marido viu aquilo, eu achei que ele ia

enfartar. Eu falei: “Mas calma, cabelo nasce outro” mas assim, não sei se era

porque era filha única dele e quando teve que enterrar ela...ele enfrentou o

velório, tudo...ele falou que tinha comprado o caixãozinho branco para ela que

eu queria...porque eu tinha sonhado com uma criança e no sonho eu vi um

caixãozinho branco...ele teve assim, uma reação normal, tudo, aí quando foi

enterrar ela, eu tive que dar uma força para ele agüentar. Eu falava “calma, já

foi mesmo, fazer o que” eu tive que dar uma força de tão mal que ele tava...ele

gritava...precisou a gente dar um socorro para ele, pela reação que ele teve. E

assim, às vezes ela tinha uns pensamentos meios bizarros...ela falava assim:

‘Ó, quando eu casar eu quero me casar vestida de vermelho’ (risos). Eu nunca

vi noiva vestida de vermelho...noiva veste branco, né? Para mim, aquilo era

normal, né? O quarto dela está lá até hoje...As coisas do jeito que ela deixou

ainda estão lá.

Maria, com quem a senhora pôde contar depois da mor te da sua filha?

Assim, logo no início muitas pessoas me ligavam e eu também queria ligar para

todo mundo para falar para todo mundo...era uma maneira de eu me...e no

trabalho, meus colegas me ajudavam. Eu trabalhei por quase um ano depois,

né. Mas, daí eu não agüentei porque eu me emocionava muito, trabalhava com

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gente, via morte, via as pessoas morrer, e aquilo me machucava muito. Daí eu

tinha uma amiga que me indicou a Dra. D. e ela me perguntou se eu não queria

passar com ela. Eu vim e a Dra. D. me afastou porque ela achou que eu estava

com depressão... “trauma pós transtorno de depressão grave” e eu estou

afastada até hoje. Mas agora que eu estou querendo pedir pra ela pra mim

voltar, né? Mas assim...que nem eu te falei, quando eu me lembro que ela está

lá debaixo do chão se desfazendo, me dá uma angústia, me angustia muito. Eu

tô pensando como é que vai fazer para a exumação, como é que vai ser minha

reação... Do Rodrigo eu guardei uma vértebra, guardei um dente e guardei uma

mecha de cabelo. Dela também eu vou ver se eu guardo algum ossinho dela lá

em casa.

(Mostrou algumas fotos de Miriam)

Essa aqui era quando ela era criança...essa aqui depois que ela ficou

moça...ela ficou muito bonita depois de moça...ela era criança de tudo, não se

cuidava direito...mas ela era uma moça muito amável. As meninas da medicina

veterinária foram no velório dela e falaram que não era o perfil dela ter feito o

suicídio, e que ela era uma menina muito alegre. Mas acho que no fundo, no

fundo ela não estava alegre, né? Aí eu fui lá falar com o coordenador do curso

dela, porque eu não me conformava...não me conformava. Eu tinha que buscar

alguma resposta, o porquê. Aí, eu fui lá e ele falou assim: ‘Olha, a sua filha...’

não sei se ela conversou com ele, eu não sei...ele falou ‘A sua filha estava

muito embananada, muito, muito...’. Assim, embaralhada, né.

E por que ele achava isso? Ele explicou?

Não, ele falou que não ia falar. Então aquilo que eu te falei no início: a vida dela

particular tava muito oculta. Tava assim uma coisa que nem eu sabia, nem a

irmã dela sabia e a gente tinha alguma suspeita de um caminho

assim...tortuoso que ela tomou na vida dela, como profissão, e isso daí eu

imagino que deve ter levado ela muito perturbada. Ela saia e voltava tarde da

noite. Nunca falava onde era o emprego dela. Não dava o endereço, não dava

o telefone, não falava nada. Eu até falava para meu marido: ‘Põe um detetive

atrás dela’...só que ele vacilou...

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Quer ver, a carta que eu escrevi quando Rodrigo morreu, eu tenho até hoje

(pega uma carta na bolsa e começa a ler):

Domingo de Páscoa. Dia 30/03/97, numa madrugada de um domingo, mais ou

menos 2:40 horas da manhã, meu Rodrigo acabava de morrer, com 3 tiros, um

dos tiros no peito, num beco frio. Me deparei com meu filho morto. Foi grande

ali a minha aflição. Parece que o mundo desabou sobre minha cabeça. Que

hora dura! Após 8 meses nasceu uma linda menina, que pesou mais ou menos

3,5 kg, que é a Rafaela. Ele nem chegou a conhecer a Rafaela...

A senhora também escreveu alguma coisa quando a Mir iam morreu?

Escrevi num papel bem comprido, está em casa, mas agora eu não sei onde é

que eu coloquei. Escrevi tudo: a hora que eu recebi a notícia, a hora que eu

cheguei no hospital...eu escrevi e guardei, e é difícil eu pegar, só agora que eu

tô conseguindo pegar, porque eu estou mais calma...

A senhora achava que acalmava escrever?

Não...era assim para ter registrado os fatos...o que me ajudou mais foi a parte

espiritual, né? Foi uma base, um apoio...porque tem muita gente que fala

‘Morreu de suicídio, nossa não tem salvação’. Aquilo para uma mãe é a pior

coisa, porque a mãe já está sofrendo pela separação e ainda vêm falar que o

espírito não tem salvação...E na doutrina não, é diferente. Deus sabe o que faz.

Aconteceu porque foi chegada a hora, porque Deus quis. Para tudo tem um

tempo na nossa vida. E isso traz um grande conforto e...essa foi a vontade de

Deus. Então se é a vontade de Deus, a vontade de Deus é boa. Então isso traz

um conforto...e também o outro lado material foram as psicólogas que me

ajudaram bastante, a terapia em grupo, a médica psiquiátrica e os

medicamentos, né? Assim, eu tive vários apoios...e me ajudou bastante.

E como ficou o relacionamento com seu marido depois da morte da

Miriam?

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Com meu marido graça a Deus sempre esteve tudo bem. Eu queria no início

falar muito sobre ela, mas ele não queria tocar no assunto; eu queria e ele não.

Desde então pouco se toca, pouco se fala, mas tem dias que eu percebo que

ele está amargurado. Não sei porque, mas ele não gosta. Mas de vez em

quando a gente vai até o cemitério. Eu penso que como era uma filha única

que ele tinha, ele ficou bastante magoado. Assim...meus filhos ele sempre criou

tudo junto, ele sempre me ajudou, tudo, mas a gente tem que reconhecer que

tem uma coisa biológica, né? Filho biológico é uma coisa, filho adotivo...não

sei....eu acho que não é a mesma coisa, né? Tem gente que pega um amor e

cria como se fosse um filho biológico, né? Mas minha relação com ele é essa.

Ele não gosta de tocar no assunto e eu também respeito...pouco se fala...

E Maria, que sentido a senhora dá hoje a tudo o que aconteceu? Como a

senhora vivencia hoje a morte de Miriam?

Hoje para mim é um vazio, porque ninguém substitui o outro, né? As pessoas

falam: “Veio a Rafaela, Deus sabe porque, né?’ Mas é uma utopia, porque

ninguém substitui o outro. Nossa vida de cada um é exclusiva, é única. Você

tem dez filhos, cada filho é de um jeito, nunca é igual...

Como foi a relação de Miriam com a senhora nos dive rsos momentos da

vida dela: quando ela era bebê, criança, adolescent e...?

Sempre foi bem, né? Foi bem vinda, bem recebida na família. Ela era a única

de pai diferente, mas foi bem. Eu sempre trabalhei muito, sempre trabalhei fora,

mas meus outros filhos cuidavam dela, as maiorzinhas e meu marido também,

porque ele sempre teve problema de saúde e logo foi afastado. Assim, foi

normal....depois que eu tive a Rafaela... eu percebia que ela tinha um pouco de

ciúme da Rafaela, mas também não era nada exagerado não, era coisa pouca.

Ela levava a Rafaela para passear, no Mcdonald’s tomar lanche, porque teve

uma época que a Miriam trabalhava lá. Ela não era de arrumas as coisas, mas

às vezes dava a louca nela e ela arrumava toda a casa pra mim...que nem eu

te falei, né? Eu sempre tentei deixar ela à vontade, não ficar pegando muito no

pé, né? Porque na minha juventude a minha tia era muito...ela me sufocava,

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né? No sentido de roupa, no sentido de usar o que eu queria. Na minha época

de juventude usava muito mini-saia; mini-saia é coisa antiga, né? E ela não

deixava nem calça comprida....hoje em dia eu não uso pela minha doutrina,

porque nós não usamos, né? Só saias longas...Então, eu falava: ‘deixa ela

como jovem, usar o que ela tem vontade’, às vezes só que ela exagerava,

usava uma saia muito curta e eu falava para ela: ‘Nossa Miriam, se as pessoas

te verem assim na rua vão falar ‘ó lá filha de crente’! Mas, era dela. Antes de

morrer que ela pintou o cabelo de preto, porque antes ela era morena do

cabelo loirinho. Eu via meu relacionamento com ela como normal, né?

E hoje quais são as atividades que a senhora gosta de fazer?

Eu vou te falar: lazer, lazer eu não tenho. Mas minha rotina: eu vou para a

igreja, venho, às vezes eu vou na chácara ou viajo para o interior. Hoje mesmo

eu vou num salão de costura, e vão várias mulheres. Uma faz crochê, uma faz

tricô, a gente faz um serviço voluntário...eu gosto de ir. Sábado passado eu fui

na chácara da Simone. Minha vida é normal...eu tinha vontade de fazer

mestrado, eu gosto muito de dar aula de enfermagem, eu gosto muito de

estudo...mas depois disso tudo, às vezes eu tenho vontade de me isolar, ficar

sozinha, né. Mas, eu não deixo isso acontecer...porque depois eu penso

‘Caramba, a gente não é uma ilha para viver isolada, né? E também depois eu

penso: ‘Será que vale a pena fazer um mestrado, ficar queimando meus

neurônios depois de tudo isso?’ Às vezes vem o ânimo, mas depois eu

desânimo...como se fosse uma onda no mar...vem...volta...vem...e volta...eu

acho que o lado psicológico, só com o tempo...o tempo cura muita coisa. É

claro que você vai lembrar, ter saudades, mas não com tanta dor...Hoje em dia

eu uso uma saia que eu usei no velório do Rodrigo. Eu não sei da onde que eu

tirei tanta força pra ajudar os dois para o IML. Eu cheguei a ver eles nus,

mortos, inertes e eu consegui vesti-los, né? Hoje em dia eu consigo usar a

saia, mas antes eu não podia nem ver. Hoje em dia eu uso a saia, lembro de

um momento tão duro na minha vida, mas...o tempo, né? O tempo é como se

fosse uma pintura que vai desbotando. Aquela mágoa, aquela tristeza, aquela

angústia vão diminuindo, como se fosse uma pintura desbotando....assim

acontece com a gente...

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Eu levei um cd dela de relaxamento que tem uns barulhos de golfinhos...e eu

não gosto muito de ouvir...porque mexe, né? É como se fosse uma ferida, ela

cicatriza por fora, mas por dentro ela tá aberta, então se você toca na pele vai

doer. E assim é nosso sentimento...ele tá lá calminho, mas se você toca dói.

Então, eu faço o possível para não estar chorando para não sair com o rosto

vermelho por aí. Parece que as pessoas ficam comentando: ‘Nossa, tava

chorando. O que que será que aconteceu com ela?’

Então, Luciana, a gente acha que não está preparada para as coisas, mas tá.

O que tiver que acontecer, vai acontecer...claro que a gente não quer...Mas, a

gente tem que falar: ‘Seja o que Deus quiser’, porque quando a gente fala:

‘nossa, eu não ia agüentar perder um filho’, aí que acontece...

Então eu já perdi aquele medo...eu sei que a qualquer hora eu posso receber a

notícia que mataram o Eduardo, porque os policiais matam os mendigos...mas

eu não posso ficar com medo, porque senão eu vou enlouquecer...Chega um

momento da sua vida que parece que você fica sólida, entendeu? Não que

você é forte, mas parece que você pega uma solidez, uma firmeza. O que tiver

que acontecer, vai acontecer...eu nunca achava que ia perder um filho e perdi

dois...E eu acho que a morte é sofrida porque é um segredo de Deus. Do outro

lado prá lá é segredo de Deus, não pertence mais a nós...a morte é um

desconhecido do homem...tem coisas para nós que não interessa a resposta...

A senhora gostaria de deixar alguma mensagem para a lguém que possa

passar pelo que senhora passou?

O que eu poderia dizer é que na nossa vida tudo passa, é como uma onda:

passa. Parece impossível, mas o tempo vai fazer que essa dor passe...e muita

fé em Deus e confiança nos profissionais da área de saúde, os psicólogos,

psiquiatras também. Tem muita gente que acha que psiquiatra só trata de

louco, não é, eles também tratam de gente que precisa de um suporte

medicamentoso. Então eu diria que tudo passa, nada é por acaso, muita fé em

Deus que é um fundamento principal. E nunca blasfemar contra o que Deus

fez...é isso o que eu gostaria de falar para as mães...

Muito obrigada, Maria!

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Posso falar mais uma coisa?

Claro que pode!

E como mãe, sempre pensar que os nossos filhos, antes de ser nosso, já era

de Deus e que chegou o tempo Dele levar...

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ENTREVISTA COM ELISA

Casada, 72 anos.

Pra começar, gostaria de perdir para a senhora me c ontar um pouco de

sua história de vida e de seu dia-a-dia...

“Luciana, eu tenho 72 anos. Então, eu estou numa idade que é bastante idade,

mas graças a Deus estou firme ainda, e se tem uma coisa que eu procuro

é...nessa idade em que a gente já carrega uma série de coisas do passado,

que vêm com a gente...eu acho que estou na idade das coisas mais

agradáveis. Eu acho que alegra a vida, traz saúde, traz uma série de coisas

que fazem com que eu tenha uma qualidade de vida melhor. Então, talvez um

pouco egoisticamente, mas eu acho que eu tenho direito, afinal, eu já estou

com os filhos casados, já estou com os netos moços, e eu curto isso! Então o

meu dia...de manhã eu procuro mais atividades físicas, porque depois de uma

certa idade a gente guarda todas as heranças de família, aquelas que não são

muito boas: diabetes, sabe? E andando, saindo, a sua cabeça fica aberta...e

uma coisa que eu me ocupo muito, que me distrai muito é a pintura. Hoje à

tarde eu tenho aula...(mostrou vários objetos de louças pintados por ela). São

peças variadas...eu estou sempre ocupada com isso. Primeiro porque você tem

um contato com pessoas, o que é muito bom. É um grupo de senhoras,

algumas mais moças, outras com mais idade, mas por sorte é um grupo muito

agradável, então a prosa é muito gostosa... Eu acho que as responsabilidades

mudaram...Hoje vocês já estudam cedo, já começam a vida com as suas

ocupações...no meu tempo não. No meu tempo realmente a moça era educada

pra casar. Veja, eu me casei com 17 anos, então eu não acabei nem o colegial.

E nove meses depois nasceu Carlos, meu primeiro filho e logo depois nasceu a

Marina e depois a Rebeca. Então, você ficava muito ocupada e achava que

tudo bem. Ficava satisfeita com aquilo porque era o que a gente tinha naquele

momento. Acho que nenhuma das minhas colegas de classe fez faculdade;

elas chegavam no máximo no magistério. Eu morei em Santos, e no meu

colégio tinha uma moça que fez Direito. Eu achei o máximo aquilo! Era

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completamente incomum...Agora, eu sempre tive uma inclinação, porque eu

sempre li muito, desde menina. E era tão engraçado aquele tempo, porque, por

exemplo, se eu estivesse lendo, tinha que ser meio escondido, porque minha

mãe falava: ‘Elisa, venha bordar! Vai andar de bicicleta, fazer exercício!’ A

ocupação intelectual não era muito alimentada pelos pais. Já a minha irmã que

era 5 anos mais moça que eu – nós somos só duas irmãs – ela já pegou uma

nova época, porque foi muito acelerada a diferença. Então, ela é formada em

Direito. Mas trabalhar foi difícil também, porque meus pais ficavam

preocupados. Era outro mundo!”

Era como se você aprendesse a ter uma família, a cu idar do seu marido,

dos filhos, da casa...

“Isso...e foi o que eu fiz durante muito tempo. No princípio, você fica muito

ocupada com criança e com filhos... E aquele tempo também não tinha outra

ocupação pra você...você podia aprender pintura, coisas assim, absolutamente

florais. Mas eu mudei pra Brasília, quando estava com 25 anos, e aí eu já tinha

os 3 filhos: meu filho já estava com 7 anos...e em Brasília eu acho que foi uma

verdadeira faculdade de vida, porque em Brasília você vivia em grupos mais ou

menos formados por pessoas da sua região, o grupo dos paulistas, o grupo

dos... era uma coisa natural, as pessoas se procuravam porque se conheciam.

Quando eu cheguei em Brasilia, não conhecia ninguém, mas logo tinha um

amigo do meu sogro...Então, lá eu tive uma convivência maravilhosa,

principalmente na idade que eu tava, que os filhos já estão começando a ir pro

colégio, já tinha um tempo livre; então o que eu fiz naquela época: fui estudar

francês, inglês, esse tipo de coisa. Mas, o convívio que eu tive em Brasília

mexeu muito com a minha cabeça, porque as minhas amigas tinham 70 anos,

ou era um casal de ministros do Supremo, um Deputado. Havia uma

diversificação muito grande de costumes. Em São Paulo geralmente você

freqüenta um grupo da sua idade, não é? E lá não...eu passei a verificar os

costumes, os hábitos de pessoas de todos os estados do Brasil, de pessoas de

vivências diferentes...Dois grandes amigos meus eram o Dr. Paulo e Dr. Mauro.

Os dois deviam beirar os 70 anos, e as senhoras também; mas eles eram de

São Paulo conheciam meus pais...Então havia de tudo! Eu acho que Brasília

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mostrou como a gente vivia fechada em São Paulo, naquele núcleo. Quando

eu voltei de Brasília eu tinha 30 anos, e os meus filhos estavam

maiorzinhos....Eu estou dentro do assunto que você quer?”

-Claro, não se preocupe .

“Eu voltei com 30 anos, e foi quando eu fiz minha primeira viagem para a

Europa. E coincidiu com a idade que meus filhos já não dependiam tanto de

mim como mãe, fisicamente. Então, comecei a ter um tempo pra mim. E

quando eu cheguei lá, baixou um ‘Meu Deus, eu não sei nada! Eu tenho uma

formação minha porque eu sempre procurei ler, me interessei, mas eu não...

Foi então que eu entrei no Indac, que era um cursinho... eu tive uma amiga de

Brasília que veio comigo, e ela foi casada com o P., que foi um dos exilados da

revolução da Redentora, e ela falou pra gente entrar no Indac. E além de tudo,

eu tinha que vencer uma estrutura férrea que havia naquela época, porque era

uma estrutura que veio da minha mãe, continuou com meu marido, porque

mamãe era uma mulher maravilhosa, rica, uma personalidade, mas carregava

todas aquelas coisas...então eu fui criada com uma coisa que hoje a gente não

faz com os filhos...eu tinha um dever a cumprir. Havia esse dever que se

resumia ao casamento e aos filhos. Isso era tão forte que a gente se esquecia

mesmo da gente, do que a gente gostava, do que a gente queria. E eu tinha 32

anos...é uma coisa que te deixa...dá uma insatisfação, principalmente

coincidindo com uma viagem linda que nós fizemos pra Europa, abriu meu

mundo e eu comecei a estudar. Fui pro Indac, fiz o Madureza, que a gente

chamava, porque em 1 ano você fazia os três colegiais. E quando eu saí do

Indac eu meio em surdina fiz vestibular pra faculdade e entrei. Além de tudo,

havia uma tremenda resistência do meu marido, porque naquele tempo mulher

que estudava era um perigo! Mulher que estudasse eles achavam que perdia a

autoridade, ia ficar fora de casa. E eu lembro que um amigo nosso chegou, eu

tive vontade de torcer o pescoço dele porque ele falou: ‘Geraldo, cuidado,

porque mulher que estuda desquita!’. Eu já estava lutando, com os três filhos

ajudando, mas era assim uma campanha absurda deles, porque eles sabiam

que eu gostava. E a minha filha, Marina fez vestibular junto comigo... ela

gostou do tipo de curso...era Letras, tradutor e intérprete. Nós entramos juntas!

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Então nós combinamos um dia, na hora do jantar, que a gente ia falar com

ele...Imagina! Olha que dependência que a gente vivia...A gente conseguia as

coisas de outro jeito, mas era suado. E aí meu marido falou: ‘Quanto tempo

vocês ficaram combinando pra falar isso?’ E eu fiz a faculdade junto com ela...a

gente fazia algumas classes juntas, e como eu estudava inglês e francês e ela

alemão e francês, algumas aulas separadas. Mas eu era muito moça nesse

tempo...e me achava uma senhora, mas eu tinha 38 anos...Meu filho mais

velho me ajudou terrivelmente, me levou até para Goiás no lugar que a gente

fazia provas do vestibular, porque eu não tinha feito física e entrei na faculdade

sem acabar...Bom, acabei fazendo. Então eu diria que a minha história no

tempo é um pouco invertida, porque eu casei cedo, vim estudar depois, os

filhos vieram muito cedo, depois eu fui fazer faculdade. A luta era em casa,

porque eu estava quebrando um tabu. Pra você imaginar eu me lembro que

meu filho já tava na FEI, fazendo engenharia, Marina, que era a do meio,

entrou comigo na faculdade, e a Rebeca tava no ginásio. E eu fui contar pra

mamãe ‘mamãe olha que bárbaro’...Mamãe ficou assim: ‘mas minha filha, você

pensou bem? Você está descuidando da educação dos seus filhos!’. Essa foi a

frase dela; no íntimo ela achava bárbaro, mas ela tinha medo da liberdade da

mulher. Ela era muito forte...quer dizer, ela mandava na casa, no papai, na

gente, nos netos, em tudo, mas ela tinha medo da mulher fora de casa, era

uma coisa da geração dela. E em casa era a mesma coisa, eu nem tocava no

assunto faculdade...Domingo eu acordava cedinho pra fazer os trabalhos mais

complicados, mas aí eu não parei mais. Fiz faculdade, depois eu tava fazendo

Aliança Francesa e fiz a faculdade de francês, e os meus filhos casaram

cedo...Quer dizer, eles não casaram cedo, casaram na hora certa... eu é que

casei cedo. Imagina que com 40 e poucos anos eu já tinha neto! Porque a

Marina casou e já tinha se formado na faculdade, que era o que eu

queria...Sabe, quando minha neta começou a namorar ela tinha 17 anos, eu

entrei em parafuso, com medo que ela casasse cedo! Eu falava: ‘Carolina, você

não sabe o que é ir pra casa de uma amiga e rir, rir de bobagem! Eu não tive

isso, Carolina! Eu passei de menina pra mãe!’. E os meus filhos se formaram,

todos se casaram numa idade que eu não sei se vocês acham cedo hoje, que

era 24, 25 anos. Já formados...se dá certo ou não é uma coisa, ainda mais hoje

em dia que está tudo diferente. Mas, eles tiveram a mocidade, tiveram os 18

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anos...com 18 anos eu estava com um bebê no colo. E aí eu estudei, me formei

nas duas faculdades, e aí veio uma coisa que...(risos)...os homens têm razão

de ter medo que a gente estude, porque é como abrir a cortina de um teatro, e

você vê um mundo...continuo nessa linha ou você quer perguntar alguma

coisa?”

Não, pode continuar assim.

“É, estou contando de 10 em 10 anos... aí eu era muito amiga da mulher do

governador M., nós éramos muito amigas em Brasília, depois em São Roque

nós éramos vizinhas. Por isso que eu digo que a minha vida é um pouco

diferente...eu, que nunca tinha trabalhado, sempre tinha ficado em casa, fiz

faculdade, estudei...o M. foi eleito, eu tinha trabalhado na Campanha, e a L. me

convidou para ser chefe de gabinete dela, que é um cargo da mais alta

responsabilidade; se eu não tivesse estudado não teria podido aceitar, né? Mas

havia um tal empenho da gente no trabalho que foram 4 anos muito lindos que

eu trabalhei. E era um cargo de confiança, então eu teria que entrar e sair com

eles. Foi uma coisa maravilhosa o trabalho social deles, as pessoas humanas

que eles são, respeitam a sociedade pública. Então, foi uma outra faculdade

que eu tive na vida, porque ali eu tava com 48 anos, foi quando a Rebeca,

minha filha caçula, casou. Ela casou e a L. já tinha me convidado pra ser chefe

de gabinete. Depois disso vieram aqueles anos de muito trabalho e de muita

dificuldade com meu marido, porque ele também não queria que eu

trabalhasse. Mas a faculdade me fez muito bem, porque eu gosto de gente

jovem, eu sou aberta... eu sei que hoje há muitos excessos, mas sei que há um

outro lado maravilhoso...toda vez que há uma mudança de costumes muito

forte, porque foi muito acelerado nesses últimos anos... Você veja, eu contei da

minha vida, e a minha irmã, que é 5 anos mais moça do que eu já teve um

outro tipo de vida, estudou, se formou, e foi tão acelerada a diferença , a

mudança nos hábitos de vocês que a minha filha Marina, que é três anos mais

velha que a Rebeca já havia uma diferença entre elas. Foi absolutamente

acelerado! Como eu entrei na faculdade, eu conheci umas meninas bárbaras,

que ficaram muito amigas minhas, então freqüentavam a minha casa e ficaram

amigas das minhas filhas, porque a idade delas era parecida. Eu acompanhei

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muito dessa mudança, no tempo, da mulher. Sabe, aquelas coisas que eu tinha

de pedir para meus filhos deixarem os armários bem arrumados... ‘Rebeca,

você já arrumou não sei o quê?’... mas como que elas iam ficar arrumando

armário com coisas tão maravilhosas pra aprender na faculdade? E a Rebeca

falava ‘Ah, antes tinha bolo de chocolate todo dia na minha casa, agora, bem

de vez em quando...’. Mudou! Porque realmente eu fiquei fascinada, com os

estudos, porque estudar mais velha é muito gostoso, pega com um outro jeito.

E tive contato com juventude, que é da minha natureza, eu gosto, gostava de

ver como a vida da mulher estava muito diferente da que eu tive”.

Até porque a senhora quebrou uma coisa que a geraçã o impunha: a

mulher tinha que ficar em casa...

“Você sabe que de uma certa maneira eu conservei tudo porque veja, quando

eu me casei eu nem tinha carta pra guiar, porque se tem uma coisa que eu

gosto é carro! O meu pai não tinha filho homem, então eu era companheira do

papai, andava de bicicleta, ia pra praia, jogava, tinha uma vida solta em Santos.

De repente eu caio em São Paulo, numa família clã, fechada, onde se eu

queria ir na Rua Augusta meu sogro mandava eu ir de chofer, pra mim aquilo

foi terrível. Então eu, com 18 anos, queria tirar carta. E aí? Nenhuma das

minhas cunhadas guiavam. Eram sete. Nem meu sogro guiava! Eu sou

daquelas que consegue o que quer! Às vezes não tão abertamente...uma vez

eu apostei uma coisa idiota com meu marido, eu já tava casada e já tinha dois

filhos. Eu falei ‘Olha, Geraldo, está passando tal filme’, uma bobagem qualquer,

e ele falou que não. Eu falei ‘Quer apostar?’E ele ‘Quero’. Então, eu falei que

se eu ganhasse eu ia começar a aprender a guiar. E ele concordou. No dia

seguinte a auto-escola já tava parada lá em casa. Mas pra você ter idéia, eu ia

com a pajem da minha filha na aula na auto-escola, porque como é que ia

sozinha com um homem? Que perigo! (risos) Eu ia, e fiz meu curso inteiro com

ela e tirei minha carta. E tudo o que eu consegui foi assim, difícil. Aí meus filhos

casaram, eu nem tinha 50 anos, já estavam todos casados, já tinha netos, aí eu

fui trabalhar com a L. e eu fiquei viúva. Eu continuei minha vida, trabalhei ainda

um pouco, mas me casei novamente. Eu fiquei 14 anos casada no meu

segundo casamento, e nessa época os netos eram menores, pra falar a

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verdade eu curto mesmo neto e neta nessa idade que você está. Porque eu

sempre gostei muito de ler, você vê que aqui tem coisas que a Aline (neta)

estudava. Se as meninas têm qualquer dúvida sobre francês, umas coisas

assim, ou história, elas vêm aqui, a gente conversa, às vezes tem alguma

prova. Não tem nada melhor do que pegar minhas netas e ir pro shopping,

entende? Não tem nada melhor...tanto que eu viajei com elas há uns três anos,

nós fomos pro norte, e no ano seguinte nós fomos pra Argentina, esse ano que

passou eu fui com a minha filha que é a mais engraçada de todas, que é a

Rebeca, e minhas três netas adolescentes, nós fomos para a Europa! Pode

imaginar? E eu levantava uma hora antes delas, porque os banheiros eram

invadidos, e eu ficava zonza!! E eu dizia ‘agora vovó vai tomar banhinho, seu

cafezinho, se arrumar’ porque quando elas levantavam era um tufão! E foi uma

delícia. Adoro a companhia delas, adoro conversar com elas, só que como

você sabe, eu perdi um filho de 42 anos... E isso é uma coisa...você é adulta, e

eu vou falar de alma aberta pra você, porque não adianta eu....isso faz 5 anos.

Isso cortou a minha vida. E corta pra sempre. Foi uma brutalidade, pra

começar. Meu filho nunca tinha ido para o hospital. E você não sabe, você está

tão entregue aos filhos, que não sabe o quanto você ama eles. Olha, domingo

eu tava em Santos, eu fui criada em Santos, e eu tive um sonho que eu vou

contar pra você porque eu acho que ilustra bem. Eu sonhei, sabe pontão de

praia? Porque eu vivi na praia, com meu pai, minha mãe e com Carlos, ele

fazia surf. E eu sonhei que tinha uma competição de surf e que o Carlos tinha

ido. É uma espécie de barquinho que levava as pranchas. E todos foram. E aí

todo mundo começou a ficar preocupado porque o Carlos não voltava. E o

sonho era lindo, colorido, azul, praia, mar, geralmente eu sonho colorido o mar.

E eu comecei a ficar preocupada, porque realmente ele estava demorando um

pouco. Daí eu desci e tinha uma prancha meio quebrada, parecia um

barquinho, mas tava quebrada uma escadinha. E peguei o barco e fui atrás,

procurar. Quando eu já estava bem longe, no alto mar, eu vi que ele já estava

voltando, daí eu voltei rápido, subi e fiquei lá esperando...já tava tranqüila,

porque ele tava voltando. E quando ele chegou, subiu correndo a escada e ria,

e falava: ‘Mãe, você é louca mesmo! Como você se mete nesse barco

quebrado no fundo do mar!’. Sabe, eu sonho muito alegre com ele porque foi

tão brutal a perda que eu tive que... eu não me conformei, não é que eu não

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me conformei, mas.... Ele tinha almoçado comigo na véspera, nós tínhamos

dado risada, brincado, o dia seguinte...E teve coisas terríveis...ele teve morte

cerebral, você sabia? Ele misturou algumas drogas ... (silêncio)... E eu me

lembro quando minha empregada me chamou, e ela teve uma presença de

espírito...ligaram do hospital e ela falou que...eu vou falar isso pra você porque

a maternidade é uma coisa muito séria. A gente só descobre quando cai nesse

sofrimento. Fazia pouco tempo que eu tinha tido um infarte; a diabetes às

vezes mexe com umas veinhas...eu tenho um coração perfeito, forte, mas .... E

ela disse: ‘Olha, eu não posso falar com a minha patroa porque ela tem

problema de coração, o que foi?’. Aí ela foi lá bater na porta e ela falou: ‘Dona

Elisa, parece que teve um problema e Carlos foi internado, mas está tudo

bem...’ e a minha filha já vinha me buscar. Quando nós chegamos lá no

hospital, ele tava na emergência. Aquilo é um horror! É uma época de

atordoamento...Veio um médico e explicou o que tinha acontecido...e tem um

nível de batimento, eu não sei exatamente o que é, nem estava em condições

de entender, só sei que nosso nível normal de vida é 14. Ele tava com 3, o que

significa morte cerebral. E o médico foi falando, ele foi devagarzinho, mas

falou: ‘A senhora tem que começar a pensar na doação de órgãos...’. então

você imagina o que é isto. Dois dias antes eu tinha feito um almoço

maravilhoso aqui e ele adorava comer, e se matou de comer! E ele quis comer,

nós rimos, brincamos, foi um almoço de despedida porque ele entrou no

elevador, me jogou um beijo, e nunca mais eu vi ele vivo”.

E a senhora tem essa cena na cabeça até hoje...

“Você tem tudo na cabeça, de um filho. Você não sabe como presta atenção

num filho. E isso foram as coisas que eu aprendi. E quando os médicos me

deixaram entrar...e eu vi que ele tava corado, respirando forte, o corpo ali,

quente. Não dava pra acreditar! É tão forte a ligação...foi uma experiência

muito triste... Quando eu entrei, o enfermeiro falou pra eu conversar com ele,

chamar, e eu falando: ‘Carlos, luta, abre os olhos!’. E quando eu saí, ele não ia

nem sair do pronto-socorro, o enfermeiro falou: ‘A senhora não quer voltar, por

favor? Ele teve uma melhora, depois que a senhora falou.’ Só que subiu de 3

pra 4, uma coisinha de nada, e o enfermeiro falou: ‘Eu já vi muita coisa

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estranha acontecer nesse hospital...’. Mas realmente depois tornou a cair. Mas

com isso ele foi removido pra outro hospital porque já havia uma mínima

esperança de vida, subindo de 3 pra 4. Ele ficou mais um dia no outro

hospital....

O Carlos era casado? Tinha filhos?

O Carlos era desquitado, mas tinha 3 filhos, então tive eu que tomar as

decisões que são horríveis. E eu falei pro médico: ‘Se meu filho pudesse salvar

uma criança, salvar uma vida, se ele tem possibilidade disso, é o que ele iria

querer. Mas eu quero que o senhor saiba que eu não confio no senhor, eu não

acredito em nenhum desses exames!’. Porque era inacreditável, de um dia pro

outro, em horas, acreditar numa coisa dessas. E aí que eu agüentei, é do meu

feitio agüentar, eu fico firme e depois eu desabo. Fiquei firme no velório, teve a

missa e no dia seguinte da missa eu fui pra São Roque, eu tenho uma casa lá,

no mato, e eu fiquei uns 6 meses lá, sozinha. Eu não tinha condição de falar

com as pessoas. Eu literalmente acabei. Nem atendia telefone, só minhas

filhas e meus netos ...porque você tem uma caída física e emocional. Fiquei

muito frágil, tão fraca que eu não conseguia andar no jardim. Cai tudo!

A senhora procurou ajuda de algum profissional?

“Eu comecei um tratamento com uma grande psiquiatra, e ela é uma cabeça

fantástica. Tanto que estou lendo um trabalho dela, ela esta escrevendo um

trabalho, uma beleza! Tinha que ser uma pessoa assim pra me ajudar. Ela é

altamente qualificada e é uma pessoa maravilhosa...Esse texto dela é uma

beleza, posso até passar uma cópia pra você depois”.

A senhora procurou ajuda depois de quanto tempo?

“Um mês, em São Roque mesmo. Ela tinha chácara lá. E eu ia com meu

caseiro e voltava. Foi minha filha que arrumou. Então, eu estava lendo o

trabalho dela e de repente comecei a encontrar o que tinha acontecido comigo.

Por isso que o tempo pra mim é um eterno presente agora, o tempo mudou pra

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mim. Entendi que meu inconsciente e consciente estabeleceram portas de

comunicação, possibilitando transformações até então inviáveis. Ao modificar o

passado, o rito faz a criatura entrar na reversibilidade do tempo e recriar

simbolicamente o mundo. Isso acontecia comigo, então quando eu comecei a

ler, eu dizia pra ela... e nesse momento ou você morre de vez, o que acontece

com muitas, ou você renasce, e aqui fala ‘Quando nascemos num tempo novo,

precisamos morrer para certas realidades’. Esses ritos de passagem é que são

maravilhosos. Através deles está a aceitação de uma morte para entrar numa

nova vida. Mas é a minha morte. É uma coisa que eu pensei sempre que fosse

assim, e aí vai a maneira de ser de cada um. Eu acredito que muitas pessoas

renasçam por uma lógica, por uma aceitação, e tem um livro que você deveria

ler que chama “Em busca de um Sentido”...

Ah! Eu li esse livro! É muito bom mesmo!

“Esse livro me ajudou muito, porque ele lida com a essência do amor. (Pega o

livro e lê alguns trechos) :

Enquanto avançamos aos tropeços, quilômetros a fio (Você sabe, ele ele

esteve num campo de concentração) vadeando pela neve (...) nenhum de nós

pronuncia uma palavra mais, mas sabemos neste momento que cada um só

pensa em sua mulher. Vez por outra olho para o céu onde vão empalidecendo

as estrelas (...) converso com minha esposa. Ouço-a responder, vejo-a

sorrindo, vejo seu olhar como que a exigir e a animar ao mesmo tempo e- tanto

faz se é real ou não a sua presença- seu olhar agora brilha com mais

intensidade que o sol que está nascendo (...) Continuo falando com ela, e ela

continua falando comigo. De repente me dou conta: nem sei se minha esposa

ainda vive! Naquele momento fico sabendo que o amor pouco tem a ver com a

existência física de uma pessoa. Ele está ligado a tal ponto à essência

espiritual da pessoa amada, a seu “ser assim” que a sua “presença” e seu

“estar-aqui-comigo” podem ser reais sem sua existência física em si e

independentemente de seu estar com vida (...) As circunstâncias externas não

conseguiam mais interferir no meu amor, nas minhas lembranças e na

contemplação amorosa da imagem espiritual da pessoa amada. Se naquela

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ocasião tivesse sabido: minha esposa está morta - acho que este

conhecimento não teria perturbado meu enlevo interior naquela contemplação

amorosa .

Não é maravilhoso isso?”

É lindo!

E de repente você não pode procurar o consolo só na religião, porque eu sou

religiosa, então tinha horas de desespero que eu me agarrava em Nossa

Senhora e ela realmente me acolhia. Mas você tem que ter também um espírito

de luta, que eu sempre tive na minha vida. De manhã eu sempre falo ‘Hoje eu

vou fazer isso’ e faço. Agora eu estou lutando com o computador. E eu aceito a

separação do meu filho, mas não o fato de ter perdido ele. E de tal maneira eu

trabalhei isso, li muito, eu cheguei a um ponto em que eu não tenho a

presença, mas eu tenho ele vivo. E é tão forte que nesse sonho que eu contei,

às vezes eu até dou risada, eu precisava conservar alguma coisa, nem que

fosse essa ligação. No dia que eu passei o primeiro e-mail, eu imaginei o

Carlos rindo de mim! Tem uma ligação do amor que nesse livro o psiquiatra

explica que é uma coisa física. Não é através da religião, é através de uma

coisa nossa que nós desconhecemos. Eu procurei minha saída dentro de mim;

não sou de fantasia, de ler mão, essas coisas”.

Dá até pra perceber isso pelo sonho que a senhora c ontou...A senhora estava num barquinho quebrado e...

“Encontrei Carlos e ele caçoou da minha loucura... era uma relação nossa, nós

nos entendíamos muito bem! Brigávamos pra burro e nos entendíamos muito

bem. Minha psiquiatra ainda falou ‘Meu Deus, Elisa como você amava esse

filho!” Nunca passa pela sua cabeça perder um filho ... Eu emagreci uma

barbaridade... fiquei completamente sem força; mas depois que eu passei por

esse trauma , eu tive uma ajuda fantástica, tanto que consegui ser forte

novamente e fui devagarzinho me recuperando. Agora eu mudei... eu sei que

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mudei. Hoje, eu corto muita coisa que acho supérfluo! Tem uma porção de

coisas que você tolera a vida inteira e que não gosta, né? Agora, eu não tolero

mais! Imagina que se eu tenho um casamento e não estiver com vontade de ir,

eu não vou mesmo! Que besteira meu Deus do céu, entendeu? Tem tanta

coisa boa! Eu adoro mexer no computador, adoro pintar, meu grupo de pintura

é ótimo, elas são pessoas inteligentes; é uma verdadeira terapia o que eu faço

na pintura! O computador também é muito gostoso, eu estou me

comunicando... E eu conservo muito hoje minha família, porque eu acho que eu

sou o elo que... Então meus netos ligam, mandam e-mail...é só e-mail de neto,

neto, neto”...(risos)

Como era a relação de Carlos com a senhora e com a família?

“No momento em que ele faltou, apesar dele ser desquitado...o Carlos reunia

os filhos todas as semanas e, ele era boêmio, ele sempre foi boêmio...e

distraído! Em Brasília eu entrei no quarto, e o Carlos estava assim: com o lápis

no ar, de pijama, eram 8:30, estava na hora do colégio e eu falei, “Filho, você

ainda está desse jeito?” Ele falou: “Mamãe desculpa, puxou a coberta e deitou!

Ele achou que era hora de dormir, e era hora de tomar banho e ir para o

colégio”. Eu e ele juntos também era terrível, porque eu sou muito distraída.

Teve uma vez que eu fui no cinema e falei pra moça, ‘Por favor eu quero uma

entrada pra Senhora do Destino’, ela falou: ‘Será que a senhora não prefere A

Dona da História?’ (risos) eu troco o nome dos filmes”.

Senhora do Destino era uma novela!

“E hoje o Carlos não tem essa possibilidade de ficar com os 3 filhos, né?

Então, vira e mexe eles vem aqui... eu tenho essa preocupação de ajudar . A

minha filha Rebeca também faz muito...assumiu o papel de tia mesmo, de

verdade, para ajudar o Carlos. Porque a gente sabe que ele queria essa união

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dos filhos...Eu tenho uma manifestação nervosa, você sabe o que é psoríase?

É uma manifestação emocional que a pele fica... dá pra você ver aqui?...Isso

aqui, fica cheio de casquinha, eu comecei a coçar, e começou a subir,

começou a aparecer nas pernas, nas costas e a pressão começou a mexer.

Então, eu fui pra Lapinha, que é uma clínica naturalista, tratar uma semana e

acabei ficando 21 dias. Lá você esquece do mundo, faz tudo que tinha pra

fazer sem forçar, é uma beleza de desintoxicação da cabeça e do corpo! Meu

médico falou que eu sempre vou ter um motivo de desgaste emocional, que vai

exigir do meu corpo. Então, eu preciso cuidar muito do corpo para compensar

... por isso que eu ando, faço exercícios, no fim de semana eu viajo bastante...e

estou sempre em contato com a família... Realmente são só coisas agradáveis

que faço hoje em dia. É lógico que se alguém precisar de mim pra uma

doença...mas eu acho que todos me poupam um pouco, porque tudo está bem

agora, mas pra me abalar é fácil porque...

Eu sou feminista no sentido... eu acho que a mulher não deve procurar ser

igual o homem, porque a mulher é muito melhor que o homem (risos). O

homem pode ter grandes vantagens, mas a mulher é o caminho da vida, ela

tem inteligência, tem sensibilidade, tem delicadeza de sentimento maior. Lógico

que os homens têm suas qualidades mais fortes e que é preciso que

tenham...Nós não vamos ser mais fortes que eles em certas coisas. O

equilíbrio é o que eu acho que hoje abriu uma porta para as mulheres que era

negada...Havia 2 tipos de mulher, a puta e a pura, só não existia o meio termo.

Hoje a mulher tomou conta do seu lugar, da sua liberdade, estuda, trabalha.

Mas, a grande realização da mulher é o filho; eu acho que depois que o filho

cresce, que ele não precisa mais de você, aí você vai se realizar. Tem uma

frase da Cora Coralina, você conhece a Cora Coralina? “

Conheço...

“Ela diz que a mulher de 50 anos está na sua plenitude, porque... veja o que

ela colocou...ela está livre da menstruação (risos), normalmente tem filhos e

genros, já deverá ter netos...Ela está absolutamente completa, de maneira que

ela dispensa até o homem. Aí, ela escolhe: ou ela vai ser uma vovozinha,

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fazendo tricô dentro de casa, ou ela vai curtir uma vida absolutamente livre com

uma bagagem de experiência total. É lindo isso...eu diria que foi justamente na

época que eu fui trabalhar com 49 anos. O que foi inesperado foi o baque da

perda do Carlos”.

A senhora contou que se casou de novo depois de fic ar viuva ...

“O meu segundo marido e eu ficamos casados 14 anos. Depois, sabe quando

há um desgaste de relacionamento? A família dele é meio complicada e eu

senti que não estava sendo bom pra ninguém, nem pra ele nem pra mim.

Então, cheguei e falei: ‘... olha, eu acho melhor eu vir pra cá, ficar no meu

apartamento e você no seu’...Eu considero isso como um presente de Deus!

Parece que Deus que fez isso, porque, nós ficamos separados 3 anos, e

nesses 3 anos o Carlos também estava separado, então nós convivemos muito

nessa época. Coisas que não fazíamos antes quando eu estava casada: ele

vinha pra cá, almoçava comigo, jantava comigo, ia para São Roque comigo,

vinha aqui bater papo, trazia os filhos e eu ajudava com os pequenos. Nós

gostávamos muito de música, ele comprava discos para mim... e era muito

engraçado porque nós dois estávamos separados e ele caçoava e fazia umas

críticas do meu ex-marido e eu chorava de rir e também caçoava da ex-mulher

dele. Mas, depois do suicídio meu ex-marido, que nesses 3 anos não se

conformava com a separação, foi muito, muito dedicado e ele sofreu tanto com

a perda do Carlos que isso também me pegou muito; então nós voltamos e foi

bom...ele é uma pessoa inteligentíssima, muito companheiro, nós conversamos

muito, viajamos no fim de semana”.

Quais são suas expectativas para o futuro?

“Houve um tempo em que eu fiquei sem expectativas, completamente! Mas

agora.. eu gosto muito de viajar, mas a gente muda, muda muito. Eu diria que

eu coloco hoje muito, as minhas expectativas em meus netos, no progresso

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deles e tudo. A vida que eu levo, as coisas que eu faço, estou sempre

procurando ver filmes bons, estou sempre procurando sair e me ocupar com

coisas que ocupem a minha cabeça porque eu tenho uma cabeça que pensa

muito e não pode ficar desocupada. Eu tenho uma vida cheia porque me

ocupar me faz bem. Se eu não me ocupo o Sol escurece...A minha expectativa

de vida foi transferida para minha família... é a minha vida hoje, porque eu

preciso encher a minha vida. Hoje eu estou bem, estou bem vestida e bem

cuidada. Minha família é o que me impulsiona, é o que me alegra, eu sinto que

eu substitui aquilo que você espera para si mesmo; eu espero para a minha

família. Eu vivo por eles, e isso é uma coisa muito boa...”

Como foi o primeiro ano depois do suicídio?

“Foi muito difícil... sentia culpa por não ter percebido que não estava tudo tão

bem como parecia...fiquei em São Roque...quase desisti de tudo... mas, agora

não...sinto muita saudades... A saudade é a dor da ausência da

presença...porque ele não está ausente, pelo contrário, acho que ele está mais

presente...”

Ele já tinha tentado alguma vez?

“Nunca...”

A senhora já tinha passado por algum tipo de estres se emocional?

“Eu fiquei em cadeira de rodas uma vez com quarenta e poucos anos devido

ao estresse que eu tive. E não era nada, não tomei nenhum remédio, era só

emocional ... O que eu acho que na minha vida faltou é que sempre que você

tem que tomar uma posição na sua vida deve impor os seus limites com calma.

Quando você for levada a ceder no que você é, no que você deseja, no que

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você acha certo; nunca admita ser violentada na sua índole, nos seus

sentimentos. Saiba impor os seus limites! Não deixar que as pessoas, o marido

ou seja lá quem for avance no seu limite. E se você fizer isto sempre, irá

conseguir fazer isto com calma, sem se violentar ou violentar a sua natureza.

Eu acho que isto é básico em qualquer momento, seja no trabalho, no contato

com as pessoas, no casamento, até com os filhos. O respeito enfim é o mais

importante, pois no momento em que você cede irá se desgastar e

dependendo da violência que você sofre, violência não estou dizendo física,

estou dizendo violência contra sua natureza; o que você se força a fazer chega

num ponto em que ou você irá explodir ou irá ficar doente; porque isto é

também uma coisa que aconteceu comigo, com 45 anos. Apesar de eu ter

conseguido tanta coisa, para viver uma vida com uma homem de qualidades

maravilhosas mas que foi um homem muito autoritário, eu casei muito criança

sem saber impor os meus limites... eu passei da autoridade da mãe para a

autoridade do meu marido, isto não existe mais hoje, vocês casam em outras

situações, mas sempre existe. Eu acho que quando a pessoa se respeita ela

leva a vida com mais segurança, com paz, e isto até transparece para que a

outra pessoa não abuse de você. Por que senão, de alguma maneira se você

se violentar, de alguma maneira isto vai te prejudicar, ou fisicamente. Então,

quando você é muito violentada; e isso que eu acho que é o grande presente

que vocês tem hoje da vida, pois hoje vocês têm um direito de estudar, de

querer, de escolher; antigamente você era levada, pois os pais decidiam o que

era melhor para você, depois o marido. No momento em que você mantém

tranqüilamente aquilo que você é, aquilo que você deseja enfim, mantendo os

seus limites e vendo o do outro, é lógico, tem que haver uma troca nisto, aí

você vence qualquer coisa. Só na maneira de você falar o retorno já vem

equilibrado. Tem uma fala: ‘Meu Deus me ajude a lutar pelas coisas que devo

lutar, Meu Deus me ajude a não lutar pelas coisas que não devo lutar; e

principalmente saber distinguir uma da outra’. Isto é uma coisa sábia pois às

vezes você luta em vão ou cede em vão, e é preciso saber quando ceder mas

sempre dentro da sua dignidade”.

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A senhora falou da situação do estresse com 40 anos , a senhora ficou em

cadeira de rodas?

“Foi. Aí foi um problema que eu toquei de leve, eu tive um casamento muito

difícil...”

Se a senhora se sentir incomodada em falar sobre is so...

“Não, não meu bem! É que eu não sei se isso interessa para você! O meu

primeiro casamento foi muito difícil, meu marido era um homem de uma

inteligência brilhante, mas ele tinha traços neuróticos, eu não sei definir

exatamente. Tinha uma ótima postura, tanto que ele ocupou grandes cargos,

era brilhante! Mas como ele não tinha uma resistência nervosa, o que foi

piorando com a idade porque ele era um alcoólatra também, isso trouxe uma

vida pesada em casa, e foi aí que eu me desgastei muito. Por isso que eu falei

dos limites, houve um momento em que eu tinha uns 28 anos, que eu fui por

uma linha errada. Eu pensei ‘se eu conseguir ter um lar normal e tranqüilo,

como o que eu cresci, os meus filhos irão crescer com a cabeça boa! Se eles

crescerem dentro de um lar perturbado, pela minha vida com meu marido, eles

irão ficar todos perturbados!’. Mas ao fazer isto, eu renunciei às coisas que eu

gostava, eu virei aquela ‘panos-quentes’ que qualquer coisa eu ajeitava,

ninguém consegue viver assim, com o tempo seu organismo não agüenta!

Você tem as suas necessidades, seus desejos, suas vontades. Eu consegui

sublimar minha vida através de estudo, através de faculdade, tanto que meu

médico dizia para eu não parar de estudar, porque era uma fuga. E realmente,

quando a mamãe morreu, com 44 anos eu tive um estresse emocional que foi

tratado com análise, não tomava remédio nenhum! Tá vendo aqui uma

deformação óssea? Aqui na minha mão? Isso eu tive aos 40 anos, nos pés, na

coluna, até no maxilar! Fiz análise muito tempo, mas ainda brincava que eu era

como um vazinho que foi regado. Por isso eu acho importante saber dizer “não,

eu não gosto disso”, “não, agora eu não vou porque não estou com vontade!”.

É ruim ser criada só com a noção de dever, como eu fui; tanto que minha

analista fala que naquela época eu fiz uma coisa terrível, eu atentei contra

minha vida! A vida é a gente se satisfazer também, com a leitura de um livro,

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com um filme, com um sorvete, com um pôr-do-sol, um banho de mar, e está

em condições saborear tudo isso. Mas a gente se recupera, até o meu coração

eu recuperei, não tem nem marcas! Eu tive um enfarte, justamente por causa

de todos estes desgastes, minha pressão começou a subir... Por isso é que eu

digo, não é só cuidar, a vida é um todo e você está dentro desse todo. E eu

falei em violência, não se deixe violentar, porque foi o diagnóstico médico que

eu obtive a primeira vez que eu fui ver o que estava acontecendo. O médico

falou ‘ainda bem que a senhora está com a cara ótima, está rindo e tudo mais,

mas a senhora está péssima! Está com estresse, dores... e a senhora não vai

tomar nenhum remédio, a senhora vai pra um analista!’ E realmente eu sarei,

mas isso porque eu tive consciência disso que vocês tem hoje, me ver, me

respeitar também. Eu não sei, houve um tempo em que eu pensava ‘nossa, eu

vivi tanto tempo’, estava sempre lutando, mas eu tinha a impressão que eu

tinha passado muito por cima das coisas; porque o meu primeiro marido tinha

um problema psicológico então ele era um homem extremamente gentil e

extremamente violento. Hoje eu acho que a personalidade dele mexeu muito

com Carlos... E como eu era muito criança no início, e naquela época as coisas

eram muito diferentes, eu achei que a minha função maior seria manter um

laço, um lar mais adequado para criar filhos saudáveis. Mas talvez eu tenha

desistido demais de mim e isso foi um erro...para mim e para meus filhos... No

momento em que você sacrifica você mesmo além do que deve por

determinadas coisas você está atentando sobre a coisa mais preciosa que

existe que é a vida! E você não pode destruir a vida que existe em você”.

Tem alguma situação que a senhora lembre mais de Ca rlos?

“Sempre lembro...aniversário é difícil...Natal também é uma coisa difícil! Não

tem mais festa, com troca de presente. É forçar demais! É o tal limite. Eu agora

faço uma reunião simples de família. Pra que me violentar tanto? Eu acho que

esta é uma hora em que você precisa procurar saber os seus limites, também

no que você deve se esforçar. No momento em que a gente está bem, que é o

que acontece hoje comigo, é bom pra minha família, por isso que eu cuido de

mim porque eu acho que é bom para as netas, bom pra todos.

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Tá certo... muito bom!

“Ajudou?”

Nossa, bastante, foi ótimo!

“Eu preciso pensar que tenho que continuar, que ainda tem muita coisa para

fazer! Nunca acaba... e eu acho que envelhecer é uma coisa tão natural da

vida, não pesa o envelhecer. Outro dia na aula tinha uma moça que ia fazer

pesca submarina e eu falei ‘isto é uma limitação chata da idade da gente’ e

pensei que delícia que deve ser! Estas são as limitações da idade, mas tem

muita compensação também! Teve um livro que eu li quando eu tive esse

estresse quando tinha 40 e poucos anos, que chama “Passagens”, ele já está

ultrapassado, outro dia eu o peguei e não achei mais graça! Mas na época foi

ótimo! Inclusive dizia ‘o ardil dos 30’, hoje a mulher de 40 anos, parece ter 30, e

ele dizia uma coisa que eu nunca mais esqueci: que esta história de que a vida

tem verão, outono, inverno... não é assim; a vida tem várias primaveras, vários

verões, vários outonos e vários invernos! Se você me perguntasse hoje: ‘Elisa,

você gostaria de voltar a ser menina?’ Eu diria não. Não que lá não tivesse

coisas boas... Mas eu acho que o segredo da vida é procurar ter uma paz

interior para poder ver melhor o que está na sua frente...

Como a senhora se sente hoje?

Eu acho que...Eu tenho uma neta, que é magrinha, cabelos compridos, que

parece muito comigo e com a minha filha. Outro dia convidaram ela para

dançar em um teatro e ela dançou uma música lindíssima, clássica moderna,

ela estava sofisticada com o cabelo comprido, maquiada, e vendo ela

dançando no palco, eu passei por uma experiência incrível. Eu via a minha

neta dançar, eu via a minha filha e me via! Foi tão forte isto que eu falei para

minha filha ‘só isto já justifica toda a minha vida!’ E eu disse, vendo minha neta

dançar foi uma coisa tão forte porque ela virava e eu me via, ela parece

comigo, e via minha filha. E eu falei ‘isso é o que é a vida!’

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Que lindo, Dona Elisa! Muito obrigada pela entrevis ta... gostei muito de a

conhecer a senhora...

O que é isso, eu te adorei! Vou mandar um texto que recebi de minha analista

para você por e-mail, sabe, agora eu estou aprendendo a usar a internet, estou

lutando, tem horas que dá vontade de jogar o computador no chão. Mas estou

fazendo aulas de computação, e sou aquelas alunas chatas, pois tudo eu quero

saber! Hoje eu tenho aula e vou saber o que é o tal do msn. Um dia eu mandei

um e-mail com um texto bonito para minha filha, e ela me respondeu falando

que gostou muito e que estava feliz das minhas novas aprendizagens! Aí eu

mandei um e-mail para ela falando que eu tinha gostado bastante e que

qualquer dúvida que ela tivesse, era só me perguntar! (risos).

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ENTREVISTA COM INÊS

Casada, 64 anos, psiquiatra.

Gostaria de pedir para que a senhora me contasse um pouco de sua

história e do processo de elaboração do luto pelo s uicídio de Fernando.

O luto materno, diferentemente de outros lutos, contraria a natureza. Está

suposto que os filhos enterrem os pais e não que os pais enterrem os filhos.

Então, aí eu acho que vai um movimento contra a natura, que já...além do luto

pela perda, tem um elemento altamente estressante que é o contra-

natura...algo trágico...não é natural...acontece, mas não é esperado.

Agora mais especificamente o luto materno por suicídio, você junta o luto, o

não natural, mais um tema tabu, que é o suicídio em si. Então, você me

pergunta sobre essa elaboração...é um processo muito trabalhoso, ainda mais

por suicídio do filho. Eu não estou querendo classificar intensidades ou graus

de trabalho que dão lutos maternos... Por um lado é claro, as pessoas têm

sensibilidade adequada para com o outro, afinal não é a qualquer momento

que a dona ou o dono de um luto quer falar sobre ele; há momentos em que

você está precisando da energia para fazer outra coisa. Mas, não se trata

desse cuidado com o enlutado para não invadir ou forçá-lo a falar quando não

quer, mas eu ressalto essa espécie de proibição...não é educado abrir espaço

para o tema do suicídio...e isso de fato atrapalha muito, porque há momentos

em que a pessoa enlutada com um tema tão difícil quer um interlocutor...e se já

é difícil falar, para o interlocutor ouvir sem dar um jeito de engavetar...Isso

dificulta a elaboração...É como uma ferida na pele que para cicatrizar não se

pode ficar cutucando toda hora, mas também não se pode deixar de mexer,

olhar, cuidar. A elaboração desse luto é uma transcendência desse fato, é uma

coisa que pode acontecer a qualquer um. É natural, acontece. Como a chuva,

como o trovão, como as marés ou a tempestade. Há que perceber, há que se

viver, sentir, se recolher, se molhar, nadar, boiar, mergulhar, cavar, contemplar,

é complexo, trabalhoso, por um lado tão "antinatura" e por outro tão natural.

A gente não é mais pintada que o outro, a gente não é especial porque isso

acontece, né? Não é fácil para ninguém. Eu também perdi meu pai muito cedo,

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com 10 meses...Embora perder os pais seja mais natural que perder os filhos,

não do jeito que foi para mim, que perdi meu pai muito cedo. Veja, eu não

quero tentar te interpretar, mas querendo responder sua pergunta, de que jeito

que é essa elaboração, e eu acho que é isso que você está fazendo: você está

usando seus recursos, a sua criatividade, aplicando num trabalho. Cada um vai

usar os recurso que tem, os meios que tem...Uma pessoa pode recorrer à

pintura, religião, rituais de ajuda, grupos para participar, partilhar, compartilhar

vivências de fortes lutos...É como um colo: poder falar, compartilhar.

As pessoas têm diferentes forças para reagir aos traumas...Minha mãe passou

por um luto patológico, porque ela perdeu o marido na fase de apaixonamento

e não conseguiu se recuperar direito nunca. Eu tinha só dez meses, mas cresci

com esse pavor de ficar presa num luto de alguma situação...Como tudo pode

ter a sua serventia, para mim isso teve também, sabe? Eu sou “luto-patológico-

fóbica” (risos). Então eu já pensava muito sobre esse tema da morte não

natural, da morte precoce acontecer perto de mim...rolou dessa forma na minha

vida...

Tem um trabalho sobre stress-pós-traumático que descreve um quadro que

chamam de crescimento-pós-traumático, o CEPT. Tem o TEPT, que é o

transtorno do estresse-pós-traumático e o CEPT, que é quando as pessoas

crescem depois do trauma. Então a finalidade da ajuda psicoterápica ou

qualquer outra forma de ajuda é transformar um TEPT num CEPT, porque o

trauma gera um desequilíbrio. Não tem como ficar do jeito que você estava,

andando no ritmo que você andava, não é? Até para não cair você precisa dar

uma corridinha, porque mexe com a dinâmica...Com uma porrada o ego

mergulha no self e ele pode ficar preso, que é o luto patológico, que é o TEPT,

como ele pode sair de lá, depois de ter sofrido muito, mas fortificado...igual ele

não fica...

Se a culpa no suicídio do filho é inevitável, a falsa culpa também é, porque até

de ficar bem você se sente culpada. Eu lembrei de um casal amigos de meus

pais que tinha um filho único que foi fazer faculdade na Inglaterra. Então eu e

meu marido nos tornamos muito amigos desse casal e eles acabaram

adotando minha família e a gente adotou eles. Era um senhor e uma senhora

muito idosos...Eu aprendi muito com essa senhora, e ela me mimava muito,

talvez como forma de compensar o filho que não estava perto para ela

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mimar...Ela era um encanto, muito delicada, generosa. E ela sabia que eu

gostava muito de fruta do conde e ela comprava na feira na estação certa,

porque naquela época não é como agora que tem fruta o ano inteiro, e me

dava só porque sabia que eu gostava...eu estava grávida, tinha criança

pequena...e íamos bastante na casa dela...Ela sempre guardava a fruta do

conde para mim. Eu sabia que ela também gostava muito de fruta do conde, e

o filho que dela que estava na Inglaterra amava. Só que eu vinha e ela dava

para mim e eu via que ela não comia. Ela falava “leva para você”, e eu dizia

“mas a senhora gosta” e ela sempre insistia para eu levar. Até que um dia eu

falei “Não! A senhora vai me explicar por que não come; a senhora gosta!” E

ela me explicou que ao saber que na Inglaterra não tinha fruta do conde e por

isso seu filho não podia comer a fruta que tanto gostava, “então eu não como”

(risos). Então tem isso, né? Se ela comesse a fruta se sentiria culpada, porque

como é que ela se permitiria comer algo que gostava muito, e que só dava uma

vez por ano, se o filho estava privado? No luto materno o filho também está

privado de tanta coisa, no imaginário, e você vai comer alguma coisa que seu

filho gostava? É impossível não lembrar, não se sentir culpada. Se você lembra

de algo que um filho vivo gosta de comer, é só mandar para casa dele. O meu

neto uma vez me perguntou: “Vovó, será que no céu tem purê de batata para o

papai? Porque se não tiver e ele ver a gente comendo, ele não vai ficar com

vontade?”

Você já pensou que existe ex-marido, ex-namorado, mas não tem ex-filho, ex-

mãe. Eu não deixei de ter um filho porque ele morreu. Eu tive 5 filhos, e não é

que antes eu tinha 5 e agora eu tenho 4; eu tenho quatro vivos e um morto. Ele

continua ocupando um espaço na sua vida, falam dele...carne moída, purê de

batata, arroz, feijão e salada de tomate, todos em casa lembram dele...não só

eu. A empregada quando faz essa comida comenta: “hoje é a comida do

Fernando”. Como ele morava em Floripa e lá ele não fazia esse tipo de comida

de casa de mãe, quando ele dizia: “Mãe, vou chegar, faz aquela?” Tem um

filho que morre, mas tem uma outra forma de vida, a imagem dele fica...como a

do seu pai...que apesar de ter morrido, continua presente...