TCC Maihara Gimena Juliani

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

    CENTRO DE CINCIAS JURDICAS

    DEPARTAMENTO DE DIREITO

    MAIHARA GIMENA JULIANI

    A TEORIA TRIDIMENSIONAL DA PATERNIDADE APLICADA AO

    RECONHECIMENTO DE FILHO

    Uma leitura a partir dos princpios constitucionais da igualdade e da afetividade

    FLORIANPOLIS

    2013

  • Maihara Gimena Juliani

    A teoria tridimensional da paternidade aplicada ao reconhecimento de filho: uma leitura a

    partir dos princpios constitucionais da igualdade e da dignidade

    Trabalho de Concluso apresentado ao Curso

    de Graduao em Direito da Universidade

    Federal de Santa Catarina, como requisito

    obteno do ttulo de Bacharel em Direito.

    Orientadora: Profa. Msc. Renata Raupp Gomes

    Florianpolis

    2013

  • Aos filhos reconhecidos por lei

    Aos filhos que a lei no reconhece

    Aos filhos reconhecidos pela sociedade

    Aos filhos que a sociedade no reconhece

    Que todos conheam o direito, embora o direito,

    por vezes, no os reconhea.

    (parfrase da dedicatria de Douglas Phillips Freitas

    na obra Curso de Direito de Famlia, na qual

    organizador).

  • AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar, aos meus pais, Elizabeth e Carlos, pilares da minha existncia,

    que me proporcionam todo o conforto e segurana para seguir em frente e que tanto

    abdicaram para promover a educao de todas as suas filhas. Agradeo pelos puxes de orelha

    dados na hora certa e pelo carinho dedicado por todos esses anos.

    s minhas irms, Fernanda, Taihana e Marcela, cuja convivncia e experincias

    compartilhadas traduzem grande parte do que sou. Obrigada por todo o carinho e pacincia

    despendidos nessa jornada.

    Aos demais familiares que torcem pelo meu sucesso, especialmente minha

    madrinha Sandra, que sempre me apoiou nas questes acadmicas e ajudou a despertar em

    mim o prazer pela leitura, cujo hbito me engrandeceu de maneira imensurvel.

    minha amiga Ktia, que me apresentou proposta do tema em estudo e sempre

    me apoiou, contribuindo com emprstimos de materiais e discutindo ideias, incentivando-me

    durante todo o perodo despendido para redigir minha monografia.

    Ao meu amigo e colega de estgio, Vitor, que se disps a pegar diversas obras

    emprestadas da biblioteca de sua faculdade, sem as quais o presente trabalho no seria

    possvel.

    Gisele, assessora do gabinete em que estagiei, que sempre me ajudou no

    desenvolvimento de ideias para minha monografia e nos emprstimos de livros.

    s amizades que cultivei durante a jornada acadmica, especialmente Marcele,

    Tamila, Aninha, Sara, Marina, Char e Gabi, pela fora e incentivo dados para a concluso do

    presente estudo. Pelos momentos especiais vividos juntos e pelas experincias e

    conhecimentos compartilhados.

    A todos os meus demais amigos, sejam da faculdade, do estgio ou da vida, bem

    como a todos os mestres que me deram aulas, compartilharam seus conhecimentos e me

    apresentaram ao mundo jurdico, fazendo com que eu tenha encontrado no curso uma

    profisso pela qual sou apaixonada.

    Agradeo, por fim, professora Renata Raupp que me orientou na medida certa,

    me deixando livre para pesquisar e redigir o estudo, pontuando nos momentos adequados.

    Muito obrigada.

  • RESUMO

    O presente estudo tem por objetivo defender a possibilidade de aplicao de teoria

    tridimensional do direito de famlia ao reconhecimento de filho, o que resulta na aceitao da

    hiptese de multiparentalidade. Para tanto, utiliza-se o mtodo dedutivo. O procedimento

    adotado a pesquisa bibliogrfica e a tcnica a pesquisa indireta (doutrinria e

    jurisprudencial). De incio, apresenta-se um breve apanhado histrico da concepo de

    filiao, no qual observa-se o fenmeno da desbiologizao do direito de famlia, e seus

    critrios de determinao atual. Tambm analisam-se os princpios constitucionais que

    legitimam a aplicao da teoria sobretudo da dignidade da pessoa humana e da igualdade

    jurdica de todos os filhos - e disserta-se acerca da tridimensionalidade humana o ser-no-

    mundo-gentico, o ser-no-mundo-afetivo e o ser-no-mundo-ontolgico. Por fim, estudam-se

    os efeitos do reconhecimento de filho nos casos de mltipla filiao, os quais devem ser

    aplicados de modo integral, uma vez que a melhor forma de contemplar a

    tridimensionalidade humana e os preceitos estabelecidos na Carta Magna.

    Palavras-chave: Teoria tridimensional. Multiparentalidade. Pluripaternidade. Mltipla

    filiao.

  • SUMRIO

    INTRODUO .......................................................................................................................... 8

    1. DISPOSIES GERAIS ACERCA DA FILIAO .......................................................... 10

    1.1 Consideraes histricas sobre a filiao no Brasil ........................................................ 10

    1.2 Critrios determinantes da filiao ................................................................................. 16

    1.2.1 Critrio da Presuno Legal ..................................................................................... 17

    1.2.2 Critrio Biolgico ..................................................................................................... 20

    1.2.3 Critrio Socioafetivo ................................................................................................ 22

    1.3 Consequncias do reconhecimento de filho .................................................................... 25

    2. A TEORIA TRIDIMENSIONAL DA PATERNIDADE ..................................................... 29

    2.1 A tridimensionalidade do ser humano ............................................................................ 29

    2.1.1 O ser-no-mundo-gentico ......................................................................................... 30

    2.1.2 O ser-no-mundo-afetivo ........................................................................................... 31

    2.1.3 O ser-no-mundo-ontolgico ..................................................................................... 32

    2.2 Princpios constitucionais norteadores ............................................................................ 33

    2.2.1. Princpio da dignidade da pessoa humana............................................................... 33

    2.2.2. Princpio da igualdade jurdica de todos os filhos................................................... 34

    2.2.3. Princpio da afetividade ........................................................................................... 35

    2.2.4. Princpio da solidariedade ....................................................................................... 37

    2.2.5. Princpio do pluralismo das entidades familiares .................................................... 38

    2.2.6. Princpio da convivncia familiar ........................................................................... 39

    2.3 Consequncias do reconhecimento de filho na aplicao da teoria tridimensional da

    paternidade ............................................................................................................................ 40

    2.3.1. A aplicao da teoria tridimensional da paternidade como a forma mais acertada de

    contemplar a Constituio ................................................................................................. 40

    2.3.2. Efeitos da aplicao da teoria tridimensional da paternidade ................................. 44

    3. A (IN)APLICABILIDADE DA TEORIA NOS TRIBUNAIS PTRIOS ........................... 51

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................... 70

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..................................................................................... 74

  • 8

    INTRODUO

    A filiao sempre foi compreendida como um fato puramente gentico, fruto da

    relao de um pai e uma me, cujo relacionamento afetivo era apenas uma consequncia do

    vnculo biolgico.

    Posteriormente, passou-se a considerar a possibilidade de reconhecimento da

    filiao afetiva, na qual no se vislumbra nenhuma relao biolgica entre pais e filhos, mas

    observa-se a presena da posse do estado de filho, na qual a criana tratada pelos pais como

    se gentico fosse e recebe deles todo o suporte necessrio para seu desenvolvimento.

    Todavia, h casos em que se tem a presena de mais de um tipo de filiao e a

    tendncia que apenas uma delas seja reconhecida.

    Eis que surge a questo central do presente estudo: por que no se pode

    reconhecer todas elas simultaneamente?

    Analisando-se a igualdade jurdica conferida pela Constituio da Repblica

    Federativa do Brasil de 1988 entre as diversas formas de filiao e o princpio da dignidade da

    pessoa humana, bem como diversos outros preceitos previstos constitucionalmente, visa-se

    dar respaldo ao questionamento acima e proporcionar a reflexo acerca da possibilidade do

    reconhecimento e da manifestao de efeitos simultneos em relao a todas as formas de

    filiao, ou seja, acerca da aplicao da teoria tridimensional do direito de famlia ao

    reconhecimento de filho.

    Por intermdio das fundamentaes tericas do Promotor de Justia do Estado do

    Rio Grande do Sul, Belmiro Pedro Welter e do Magistrado de Santa Catarina atuante na

    Comarca de Joinville, Maurcio Cavallazzi Pvoas, bem como das consideraes de Maria

    Berenice Dias, Cristiano Chaves de Farias, Renata Barbosa de Almeida e Walsir Rodrigues

    Jnior, foi possvel coletar uma gama de informaes acerca da aplicao da hiptese de

    multiparentalidade.

    A pesquisa se mostra relevante para a compreenso de filho e filiao que se tem

    na atualidade, uma vez que ao se admitir diversas concepes de filiao, abre-se a

    possibilidade para que se vislumbre no caso concreto a manifestao de mais de uma forma de

    paternidade para o mesmo filho.

    O presente estudo ser disposto em trs captulos. O primeiro abordar a evoluo

    histrica da concepo de filiao na sociedade brasileira - desde o perodo pr-colonial aos

    dias atuais, passando pelos valores importados da cultura romana -, os critrios determinantes

  • 9

    da filiao presuno legal, biolgico e socioafetivo -, e as consequncias jurdicas do

    reconhecimento de filho.

    O captulo seguinte analisar e conceituar a Teoria Tridimensional da

    Paternidade, passando pela anlise da tridimensionalidade humana e dos princpios

    constitucionais que a legitimam, e dispor acerca das consequncias prticas da aplicao da

    teoria, bem como a hiptese da multiparentalidade e os rus efeitos.

    O terceiro e ltimo captulo ir coletar julgados que rejeitaram a

    multiparentalidade, analisando seus fundamentos, bem como que aplicaram a teoria,

    permitindo a manifestao de todos os efeitos em relao s paternidades/maternidades

    presentes no caso.

    Seguem, por fim, as consideraes finais e as referncias bibliogrficas.

  • 10

    1. DISPOSIES GERAIS ACERCA DA FILIAO

    1.1 Consideraes histricas sobre a filiao no Brasil

    Para entender a concepo de filho e filiao que se tem na atualidade,

    necessria uma abordagem da sua evoluo histrica, pois o tratamento jurdico dos filhos

    emprestado pelo Pacto Social de 1988 corresponde ao trmino de um longo processo de

    discriminaes que, historicamente, marcou a legislao brasileira. 1

    Utiliza-se como ponto de partida o mago das famlias romanas, na qual a prole

    havida fora do matrimnio era ilegtima para executar o papel determinado pela religio ao

    filho, jamais sendo responsvel pelo culto domstico ou pelo culto da religio domstica.

    Isso ocorria porque o pater, senhor e guarda vitalcio do lar e representante dos

    antepassados, no assumia o vnculo moral e religioso decorrente do nascimento do filho

    ilegtimo. 2

    No interregno da vigncia da Lei das XII Tbuas, poca do Direito Romano antigo,

    a filiao ilegtima padeceu a falta de amparo legal, sendo abrangido desde o

    Imprio, at a poca de Constantino, aos filhos havidos da relao concubinria, no

    sendo concedidos os direitos aos alimentos e sucesso paterna. Foi a partir de

    Justiniano que ocorreu a possibilidade da sucesso ab intestato, bem como se

    atribuiu ao pai, obrigao de lhes prestar alimentos. 3

    A prole advinda do concubinato passou a sofrer srias restries com o advento

    do Cristianismo, sendo atenuadas quando da possibilidade de legitimao dos filhos naturais

    aps o casamento de seus pais.

    Na ltima fase do Direito Romano, os filhos naturais gerados no seio de unies

    concubinrias, foram equiparados aos legtimos, sendo que os esprios no foram

    1 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famlias. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

    2011. p. 566. 2 TAVARES, Anna Lvia Freire. A evoluo do direito sucessrio quanto origem da filiao no ordenamento

    jurdico brasileiro: uma anlise luz da constitucionalizao do direito civil. In: Juris Way, 2009. Disponvel em:

    . Acesso em: 24/07/2012. 3 TAVARES, 2009, loc. cit.

  • 11

    alcanados por tal benesse, j que os filhos extramatrimoniais no eram considerados filhos

    e no tinham sequer um pai. 4

    Os filhos gerados em concubinato, no perodo de Augusto, eram considerados

    legtimos nascidos secundum legis, embora permanecessem impedidos de suceder ao pai

    falecido que no deixou testamento.

    A partir do reconhecimento do filho nascido em concubinato, a filiao passou a

    ser conceituada como sendo a relao de parentesco consanguneo, em primeiro grau e em

    linha reta, que une uma pessoa quelas que a geraram.

    Esclarecida a concepo europeia de filiao, remete-se poca do descobrimento

    do Brasil, onde, desde esse perodo, a discriminao dos membros da famlia, principalmente

    mulher e filhos, era fato corriqueiro na Casa-Grande e na Senzala. 5

    No Brasil, os portugueses, no incio do sculo XVI, se depararam com indgenas

    seminus, de costumes muito diferentes da moral crist dos europeus na formao da

    famlia, o que contrariava os princpios da Igreja Catlica quanto aos impedimentos

    matrimoniais por consanguinidade, a existncia da monogamia e a indissolubilidade

    do casamento. Entre os indgenas era permitida a unio entre tio materno e sobrinha,

    j que a linhagem por parte de me no era vista como parente, enquanto o

    parentesco paterno era o nico verdadeiro. Os indgenas adotavam o casamento

    exogmico e tinham tantas mulheres quantas pudessem manter, e o fim do

    casamento era visto com normalidade, pois tanto o homem quanto a mulher tinham

    liberdade para buscarem outros pares. 6

    Na poca colonial, somente os homens migravam para a colnia brasileira, tanto

    por questes polticas aumentar a populao para desbravar toda a extenso territorial

    brasileira -, quanto por preferncia sexual as mulheres indgenas eram consideradas mais

    ardentes na cama -, ou por no haver opo para satisfazer suas necessidades sexuais a

    escassez de mulher branca. 7

    Resultando no nascimento de filhos, essa multiplicidade de relacionamentos entre

    os homens brancos e as ndias, escravas e mestias, tambm causou a impossibilidade de

    descobrir quem o pai.

    Contudo, ressalta-se que a discriminao dos filhos no Brasil apenas teve incio

    com a chegada dos europeus, uma vez que os indgenas no designavam mulher o dever de

    4 TAVARES, 2009.

    5 WELTER, Belmiro Pedro. Teoria Tridimensional do Direito de Famlia. 1. ed. Rio Grande do Sul: Editora e

    Livraria do Advogado, 2009. p. 41 6 WELTER, 2009, loc. cit.

    7 WELTER, 2009, p. 41-42

  • 12

    participao efetiva na formao do filho, sendo apenas considerada um recipiente adequado

    onde o homem depositava a semente para a germinao, desenvolvimento e gerao do fruto,

    e os filhos nascidos de me ndia e pai branco eram chamados de filhos de ningum,

    ninguendades8.

    Desta forma, os filhos nascidos das relaes sexuais entre brancos e ndias,

    africanas e mestias no eram reconhecidos pelo pai branco, somente fazendo crescer o

    nmero de filhos nascidos fora do matrimnio religioso, os ditos filhos ilegtimos9.

    As relaes jurdicas brasileiras, no sculo XVII, passaram a ser regulamentadas

    pelas Ordenaes Portuguesas, sendo que os conflitos familiares eram disciplinados

    especialmente pelas Ordenaes Filipinas.

    As Ordenaes Filipinas, em seu Livro II, Ttulo XXXV, 12, vislumbravam a

    filiao como sendo um favor concedido aos filhos e um meio, oferecido aos pais, de

    exonerar a sua conscincia e de melhorar a sorte dos inocentes frutos de seus erros. E no

    Ttulo LV, 4, do mesmo livro, dispunha que a regulamentao jurdica alcanava, to

    somente, os filhos legtimos ou naturais (frutos do matrimnio), porque quanto aos esprios

    (cujos pais conforme o Direito no se consideram) ho de decorrer as duas ms

    qualidades10.

    Dvida no havia quanto precariedade do tratamento jurdico emprestado aos

    filhos de pessoas no casadas, permitindo perceber a importncia do casamento para

    o Direito das Famlias como um todo.

    Lembrando a frase de Napoleo Bonaparte: a sociedade no tem interesse que os bastardos sejam reconhecidos. 11

    Melhor sorte no teve a matria no Cdigo Civil de 1916, que adotava um sistema

    fechado abordando apenas disposies que favoreciam a classe dominante, na qual ser sujeito

    de direito era ser sujeito de patrimnio, ou seja, ter muitos bens, recebendo, inclusive, a

    designao de Estatuto do Patrimnio Privado. 12

    Em relao filiao, muito embora o projeto primitivo de Clvis Bevilqua no

    trouxesse disposies to discriminatrias, no Congresso Nacional foram acrescidas algumas

    disposies com base em motivos morais e na manuteno do matrimnio. 8 WELTER, 2009, loc. cit.

    9 WELTER, 2009, loc. cit.

    10 FARIAS, 2011, p. 566

    11 FARIAS, 2011, p. 567

    12 DILL, Michele Amaral; CALDERAN, Thanabi Bellenzier. Evoluo histrica e legislativa da famlia e da

    filiao. In: mbito Jurdico, Rio Grande, XIV, n. 85, fev 2011. Disponvel em: . Acesso em 24/07/2012.

  • 13

    Assim, havia evidente distino entre filhos legtimos e ilegtimos, naturais e

    adotivos, classificados pelo Cdigo de acordo com a origem da filiao.

    Filho legtimo era considerado aquele havido na constncia do matrimnio, e

    ilegtimo o advindo de relaes extramatrimoniais. Os ilegtimos ainda se dividiam em

    naturais e esprios, e estes, por sua vez, classificavam-se em adulterinos e incestuosos.

    Ilegtimo natural era a classificao dada quele filho advindo de pais que no

    estavam impedidos de se casarem na poca da concepo, seja por grau de parentesco ou por

    casamento anterior (artigo 183, I a V, do Cdigo Civil de 1916).

    Ilegtimo esprio era o filho oriundo da unio de pais impedidos de se casarem na

    poca da concepo. Destarte, os adulterinos eram os concebidos de pessoas impedidas em

    virtude de casamento com terceiros (artigo 183, VI, do Cdigo Civil de 1916), podendo o ato

    de adultrio ser bilateral ou unilateral, constituindo adultrio patre se gerado apenas por

    homem casado e matre se somente a mulher for casada. J os incestuosos, eram oriundos da

    unio de pais proibidos de contrair npcias pelo grau de parentesco entre si, seja ele natural

    civil ou afim, na linha reta at o infinito e na linha colateral at o terceiro grau.

    A filiao adotiva, apesar de ser reconhecida como uma forma de filiao,

    tambm era alvo de crticas e discriminaes, diante da possibilidade de introduzir na famlia

    filhos incestuosos e adulterinos, lhes sendo negados os direitos sucessrios, em relao aos

    filhos chamados legtimos13.

    O Cdigo Civil de 1916 destinava ainda, um captulo legitimao, como um dos

    efeitos do casamento. Cuja finalidade principal era atribuir aos filhos havidos

    anteriormente os mesmos direitos e qualificaes dos filhos legtimos, como se

    houvessem sido concebidos aps as npcias, com fulcro no artigo 352 do referido

    dispositivo acima mencionado Os filhos legitimados so, em tudo, equiparados aos legtimos. 14

    Em relao sucesso dos descendentes, o Cdigo civilista distinguiu de um lado

    o filho legtimo e, de outro, o natural ou adotivo. Quanto aos filhos incestuosos ou

    adulterinos, seu reconhecimento era expressamente proibido, a teor do artigo 358, sendo,

    portanto, impedidos tambm de serem chamados sucesso de pais ab intestato (que no

    deixaram testamento).

    13

    FARIAS, 2011, loc. cit. 14

    TAVARES, 2009.

  • 14

    Contudo, ressalta-se que, para que o filho natural pudesse concorrer sucesso

    com os filhos legtimos, era necessrio que o reconhecimento fosse feito antes do matrimnio

    que gerou a prole legtima ou, ainda, que os filhos naturais tivessem sido reconhecidos aps a

    dissoluo do casamento.

    A Lei n. 883/49 permitiu o reconhecimento dos filhos ilegtimos, dispondo em seu

    artigo 1 que dissolvida a sociedade conjugal, ser permitido a qualquer dos cnjuges o

    reconhecimento do filho havido fora do matrimnio e, ao filho a ao para que se lhe declare

    a filiao, garantindo ao filho, inclusive, o direito aos alimentos provisionais.

    Anota-se que a referida lei tambm possibilitou que os filhos naturais

    investigassem sua paternidade, mesmo na constncia do matrimnio do indigitado pai. No

    entanto, os filhos adulterinos s podiam requerer a investigao de paternidade aps a

    dissoluo da sociedade conjugal ou em caso de separao de fato dos genitores, h mais de

    cinco anos contnuos.

    Ainda, com o advento da Lei n. 883/49, de acordo com o seu artigo 2, o filho

    adulterino passou a ter direito a metade do que coubesse ao filho legtimo ou legitimado,

    sendo, assim, alcanada a igualdade entre o filho natural e o legtimo sem proteger, contudo, o

    filho esprio.

    Posteriormente, a Lei n. 6.515/77, chamada de Lei do Divrcio, acrescentou um

    pargrafo nico ao artigo 1 da Lei n. 883/49, possibilitando que qualquer dos genitores, ainda

    que casado com outrem e na constncia da unio, pudesse reconhecer filho extraconjugal,

    desde que por testamento cerrado e, no artigo 2, igualou-se o direito herana dos filhos

    consanguneos de qualquer natureza.

    O grande avano dessa legislao foi a proibio de qualquer meno filiao

    ilegtima no registro civil, deixando de lado a postura preconceituosa do qual o legislador se

    fez valer no texto da Lei n. 3.071 de 1916. 15

    Sem dvida, a disciplina anteriormente dedicada aos filhos fundada na existncia de relao matrimonial preexistente entre os seus pais estava conectada em uma lgica patrimonialista, evidenciando que a maior preocupao do ordenamento era

    no prejudicar a transmisso do patrimnio que se organizava atravs do casamento.

    Os bens deveriam estar concentrados na esfera da famlia (entenda-se matrimnio) e

    dali seguiriam pela transmisso sucessria para as pessoas que, por meio da

    consanguinidade, dariam continuidade quele ncleo familiar.16

    15

    DILL, 2011, loc cit. 16

    FARIAS, 2011, p. 568.

  • 15

    Somente com a normatividade garantista da Constituio Federal de 1988, a

    chamada Constituio Cidad, que foi acolhida a isonomia no tratamento jurdico entre os

    filhos, caindo por terra a classificao legal discriminatria quanto aos filhos ilegtimos, que

    perdurou por cerca de sessenta anos no pas.

    O fim da elitizao dos filhos a partir do matrimnio dos pais deu-se,

    principalmente, em virtude do contedo do artigo 227, 6, da Constituio Cidad, que

    proibiu qualquer tratamento discriminatrio entre os filhos, independentemente se frutos ou

    no de unio matrimonial.

    Atravs dessa igualdade, a Constituio acabou concretizando o princpio da

    dignidade da pessoa humana, fundamento base de todo o arcabouo constitucional, previsto

    expressamente no artigo 1, III. Por ser princpio fundamental, portanto, o Estado deve

    limitar-se s suas disposies e garantir a sua promoo.

    Ressalta-se que, alm de desvincular a filiao relao matrimonial entre os

    genitores, a Constituio Federal, nos 3 e 4 do artigo 226, alarga o conceito de entidade

    familiar, abrangendo todos os tipos de famlia, seja oriunda do matrimnio, seja da unio

    estvel, bem como permite a possibilidade da famlia monoparental.

    O reconhecimento da filiao foi abordado, antes do advento do Cdigo Civil de

    2002, na Lei n. 8.069/90 Estatuto da Criana e do Adolescente especificando-o como

    direito personalssimo na linguagem dos artigos 26 e 27, in verbis:

    Art. 26. Os filhos havidos fora do casamento podero ser reconhecidos pelos pais,

    conjunta ou separadamente, no prprio termo de nascimento, por testamento,

    mediante escritura ou outro documento pblico, qualquer que seja a origem da

    filiao.

    Pargrafo nico. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou suceder-

    lhe ao falecimento, se deixar descendentes.

    Art. 27. O reconhecimento do estado de filiao direito personalssimo,

    indisponvel e imprescritvel, podendo ser exercitado contra os pais ou seus

    herdeiros, sem qualquer restrio, observado o segredo de Justia.

    nesse contexto ampliado de concepo de filiao que o Cdigo Civil de 2002

    elaborado, recepcionando expressamente esse novo paradigma no artigo 1.596, ao dispor que

    os filhos, havidos ou no da relao de casamento, ou por adoo, tero os mesmos direitos

    e qualificaes, proibidas quaisquer designaes discriminatrias relativas filiao.

    Embora tenha abraado o novo conceito de entidade familiar, o Cdigo Civil de

    2002 no se desvinculou totalmente das razes do Cdigo Bevilqua, tratando em captulos

  • 16

    distintos os filhos havidos da relao matrimonial e os frutos de uma relao fora dele,

    carregando a presuno de paternidade e maternidade junto com o casamento.

    1.2 Critrios determinantes da filiao

    A atual Constituio Federal, vencendo a fase patrimonialista e patriarcal que

    dominou o direito de famlia brasileiro, consagrou o princpio da igualdade jurdica para todos

    os filhos, independentemente da sua origem, acolhendo a pluralidade filiatria.

    Com isso, o termo filiao passou a englobar os mltiplos e variados critrios para

    determinar a relao paterno-filial, que vo desde o lao gentico at o afeto na convivncia

    cotidiana.

    Assim, hoje utilizam-se trs critrios bsicos para determinar a filiao: a) o da

    presuno legal, baseado em presunes impostas pelo legislador; b) o biolgico, determinado

    pelo vnculo gentico; e c) o socioafetivo, fundado na relao de afeto e solidariedade havida

    entre os entes.

    Ressalta-se que a classificao tem finalidade apenas ilustrativa, porquanto,

    independentemente do tipo de filiao, os direitos e deveres oriundos dessa relao so

    idnticos, destinando-se unicamente a delimitar a extenso do conceito.

    Farias e Rosenvald17

    ponderam que no h e impende frisar expressamente

    prevalncia entre os referidos critrios, inexistindo hierarquia entre eles. Com isso, no se

    pode afirmar a superioridade da filiao afetiva e tampouco da biolgica.

    Contudo, a doutrina e tribunais atuais vm entendendo que, apesar de no haver

    hierarquia entre as formas de filiao, uma ir prevalecer sobre a outra dependendo do caso

    concreto, no sendo aceita a possibilidade de mais de um critrio surtir os efeitos jurdicos da

    relao paterno-filial.

    17

    FARIAS, 2011, p. 586.

  • 17

    1.2.1 Critrio da Presuno Legal

    O critrio da presuno legal para determinar a filiao decorre da mxima

    absorvida no Direito Romano pela expresso pater is est justae nuptiae demonstrant (o pai

    aquele indicado pelas npcias, pelo casamento).

    Manifestado no artigo 1.597, I e II, do Cdigo Civil, o Direito Brasileiro

    privilegiou referida mxima em relao procriao natural:

    Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constncia do casamento os filhos:

    I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivncia

    conjugal;

    II - nascidos nos trezentos dias subsequentes dissoluo da sociedade conjugal, por

    morte, separao judicial, nulidade e anulao do casamento;

    Com o advento do exame de DNA, tal presuno s tem utilidade quanto a

    distribuio do nus da prova nas aes de investigao e negatria de paternidade, uma vez

    que so presunes juris tantum, ou seja, admitem prova em contrrio.

    No caso da presuno estabelecida no inciso I do supramencionado artigo,

    incumbe ao ru o nus de provar, atravs da ao declaratria negativa de paternidade, que

    no genitor da criana nascida no prazo de cento e oitenta dias depois de estabelecida a

    convivncia conjugal. De outra banda, cabe ao filho nascido aps o prazo fixado, provar a

    existncia de vnculo biolgico com o suposto pai, na chamada ao investigatria de

    paternidade.

    Se o filho nasceu at trezentos dias aps a dissoluo da sociedade conjugal, o ru

    na ao de reconhecimento de paternidade tem o nus de provar a inexistncia do vnculo

    biolgico. J na ao negatria de paternidade, cabe ao autor produzir a prova, se militar a

    presuno em favor do ru.

    H, inclusive, a presuno disposta no artigo 1.598 do mesmo diploma, que

    estabelece que se considere como fruto do primeiro matrimnio a prole advinda da mulher

    que se casa novamente em at dez meses da dissoluo da sociedade conjugal e se o

    nascimento da criana ocorrer em at trezentos dias. Considera-se, entretanto, do segundo

    casamento o que nascer em at cento e oitenta dias do incio da nova unio.

  • 18

    Assim, continua prevalecendo o raciocnio de que quem beneficiado com a

    suposio estabelecida no Cdigo Civil no penalizado com o nus de provar o contrrio.

    Entretanto, o citado artigo permite a possibilidade de o filho nascer em data

    includa nos dois prazos e, nesse caso, Ulhoa Coelho18

    diz que no h presuno legal

    especfica, e a questo se resolve em funo das demais.

    Anota-se, ainda, uma quarta presuno, fixada no artigo 1.599 do estatuto

    civilista, na qual se o homem a quem se imputa a paternidade provar, por exemplo, que havia

    feito vasectomia na data da concepo, no ser considerado genitor.

    Na sequncia, os artigos 1.600 e 1.602 estatuem que o adultrio da mulher, ainda

    que confessado, no basta para ilidir a presuno legal, tampouco a confisso materna

    suficiente para excluir a paternidade.

    O artigo 1.597 do Cdigo Civil prev, nos incisos III a V, mais trs hipteses de

    aplicao da presuno pater is est, todas elas vinculadas reproduo assistida.

    Reproduo assistida um conjunto de tcnicas, utilizadas por mdicos

    especializados, que objetiva viabilizar a procriao em casais infrteis.

    Do referido gnero podem derivar duas espcies: a inseminao artificial e a

    fertilizao na proveta ou in vitro.

    A inseminao artificial o procedimento em que se realiza a concepo in utero,

    ou in vivo, ou seja, dentro do corpo da mulher. Por esse procedimento, a fecundao ocorre

    dentro do corpo da mulher, sendo implantado somente o gameta masculino. J na fertilizao

    in vitro, a fecundao feita no laboratrio e, posteriormente, implantam-se os embries j

    fecundados no corpo feminino19

    .

    Atravs de ambos os procedimentos a concepo pode se concretizar de forma

    homloga ou heterloga. Aquela ocorre quando os gametas utilizados para inseminao so

    do prprio casal interessado, com a expressa anuncia de ambos. Nesta, h utilizao de

    material gentico doado por terceiro, cuja identidade no revelada20

    .

    Levando em considerao todas referidas formas de concepo, o supracitado

    artigo dispe que se presumem concebidos na constncia do casamento os filhos:

    III - havidos por fecundao artificial homloga, mesmo que falecido o marido;

    18

    COELHO, Fbio Ulhoa. Curso de Direito Civil: Famlia.Sucesses. 3. ed. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 194. 19

    LUZ, Valdemar P. da. Manual de Direito de Famlia. 1. ed. Barueri: Manole, 2009. p. 168-169. 20

    LBO, Paulo. Direito Civil: Famlias. 4 ed. So Paulo: Saraiva, 2011, p. 221-226.

  • 19

    IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embries excedentrios,

    decorrentes de concepo artificial homloga;

    V - havidos por inseminao artificial heterloga, desde que tenha prvia

    autorizao do marido.

    Farias e Rosenvald21

    observam que, em relao s presunes aplicadas

    reproduo assistida homloga, a Jornada de Direito Civil consolidou entendimento, no

    Enunciado n. 106, no sentido de que a mulher, ao se submeter a uma das tcnicas de

    reproduo assistida com o material gentico do falecido, esteja ainda na condio de viva,

    devendo haver ainda autorizao escrita do marido para que se utilize seu material gentico

    aps sua morte.

    Descumpridas tais prescries, no incidir a presuno pater is est. Contudo, o

    filho poder ajuizar ao de investigao de paternidade post mortem para obter o

    reconhecimento de seu estado filiatrio.

    Ressalta-se que, pelo Cdigo Civil, citadas presunes no so aplicadas no caso

    de unio estvel, apesar do instituto receber tratamento diferenciado pela Constituio em seu

    artigo 226, contando com a especial proteo do Estado.

    A doutrina critica fortemente a posio do Cdigo Civil, de modo que no h

    justificativa para a excluso de unio estvel da incidncia da presuno de paternidade e que,

    assim, o estatuto est criando duas diferentes categorias de filhos:

    os de pessoas casadas (que gozam de presuno e podem exigir, automaticamente,

    os seus direitos decorrentes do parentesco paterno) e os filhos de mulheres no

    casadas (que, no dispondo da presuno, precisam de reconhecimento pelos seus

    pais e, no ocorrendo espontaneamente, precisam investigar a paternidade, aguardar

    a deciso judicial para, somente ento, exigir os direitos respectivos).22

    O Superior Tribunal de Justia23

    entende que a regra pater is est aplica-se tambm

    aos filhos nascidos de pais que viviam sob o regime de unio estvel, reconhecendo que, do

    contrrio, seria manter a discriminao, que a Constituio no quer e probe, entre filhos

    nascidos de casamento civil e filhos nascidos da unio estvel, que a vigente Lei Maior

    igualmente tutela.

    21

    FARIAS, 2011, p. 598. 22

    FARIAS, 2011, p. 591. 23

    BRASIl, Superior Tribunal de Justia. Recurso Especial n. 23/PR. Relator Ministro Athos Gusmo Carneiro.

    19 de setembro de 1998.

  • 20

    1.2.2 Critrio Biolgico

    A filiao do tipo biolgica quando decorre do ato de procriao, ou seja, do jus

    sanguinis existente entre pais e filhos. Em outras palavras, quando o filho porta a herana

    gentica de ambos os genitores, independentemente se a concepo oriunda do tero da me

    ou se ocorre in vitro, desde que os gametas sejam fornecidos pelo pai e pela me que constam

    no registro de nascimento da criana.

    Dentro do contexto de igualdade filiatria preconizado pela Constituio Federal,

    o avano das tcnicas cientficas para a determinao da carga gentica, em especial o exame

    de DNA, causou profundo impacto sobre o critrio legal de determinao da filiao.

    A justia brasileira vem entendendo que mencionada tcnica possibilita a certeza

    na determinao da filiao gentica de uma pessoa, uma vez que, caso perfeitamente

    utilizada, permite determinar com preciso cientfica a origem biolgica, praticamente sem

    margem de erro (99,999%), o que contribui para realar a pluralidade na determinao

    filiatria24

    .

    O Superior Tribunal de Justia, baseado na certeza da tcnica do exame de DNA,

    firmou entendimento na Smula n. 301 que em ao investigatria, a recusa do suposto pai

    a submeter-se ao exame de DNA induz presuno juris tantum de paternidade.

    Trocando em midos, vem se afirmando, jurisprudencialmente, que se o suposto pai

    se recusa realizao do exame pericial, faz presumir (relativamente, claro) a

    paternidade que se pretendia provar. No significa, porm, que o juiz sempre est

    obrigado a julgar de acordo com a recusa. Em determinados casos, como, por

    exemplo, em se tratando de hiptese de filiao socioafetiva, a recusa pode no

    implicar em determinao do estado de filho. Depender, pois, do caso concreto, at

    porque se trata de uma presuno relativa 25

    .

    Tal crdito dado ao exame de DNA vem, no entanto, recebendo fortes crticas de

    parte da doutrina, ao afirmar que no pode ser visto como a palavra infalvel, que tudo resolve

    e encerra todas as discusses, no podendo o juiz passar a assumir a posio de mero

    homologador de laudo26

    .

    inadmissvel que o exame pericial de DNA seja determinado sem que o autor

    sequer tenha oferecido um incio ou indcio de prova, haja vista que, embora de suma

    24

    FARIAS, 2011, p. 610. 25

    FARIAS, 2011, p. 611. 26

    LUZ, 2009. p. 221.

  • 21

    importncia, o exame de DNA deve ser inserido em um conjunto probatrio, e no a nica e

    absoluta prova.

    Entretanto, se os argumentos at ento apresentados no so suficientes para

    dessacralizar esse mtodo de determinao da paternidade, pode-se colocar em questo,

    ainda, a credibilidade do exame de DNA, por estar sujeito a falhas dos mtodos empregados

    ou a fraudes 27

    .

    H mais de dez anos, a revista VEJA publicou um artigo sobre a (in)

    confiabilidade do exame de DNA, no qual ressalta que o exame, se

    realizado com apuro tcnico, atinge ndices de acerto superiores a 99,99%, uma

    margem de erro de menos de um a cada 10.000 testes. Infelizmente, nem todos os

    resultados merecem igual credibilidade. Boa parte dos 35 laboratrios brasileiros

    que realizam esse tipo de trabalho oferece uma verso menos complexa e mais

    barata do exame de DNA. Nesse caso, a margem de erro pode cair para 99%. A

    diferena parece pequena, mas brutal, pois a possibilidade de erro salta para um a

    cada 100 testes 28

    .

    Os erros podem ocorrer pela fraude, com a troca intencional dos tubos de material

    coletado para anlise, rotulao incorreta ou falsidade do laudo, por exemplo. Sem falar na

    possibilidade de falha humana ao cometer os mesmos desvios apenas por imprudncia ou falta

    de cuidado em armazenar o material colhido.

    O professor da disciplina de medicina legal do curso de graduao em Direito da

    Universidade Federal de Santa Catarina, Zulmar Vieira Coutinho29

    , revela que, extra-

    oficialmente, acredita-se que de dez a vinte por cento dos resultados de exames de DNA

    sejam falsos e que os laboratrios pecam pelos seguintes motivos: a) falta de controle de

    qualidade rigoroso; b) profissionais inexperientes para controlar o mtodo, a tcnica e

    interpretar os resultados; c) identificao inadequada de examinados e amostras coletadas; d)

    utilizao de mtodos e tcnicas no apropriados para questes civis ou criminais; e)

    improvisao dos mtodos para tornar mais lucrativo o exame; f) anlise de quantidade

    insuficiente de alelos; g) falta de banco de dados da frequncia dos alelos na populao; h)

    elaborao de laudos incompletos e i) clculos estatsticos equivocados.

    27

    LUZ, 2009, p. 222. 28

    BARBOSA, Bia. Quem o pai? Erros em exames colocam em xeque credibilidade de muitos laboratrios.

    Veja, So Paulo, n. 29, p. 108, 2000. 29

    COUTINHO, Zulmar Vieira. Exames de DNA: probabilidades de falsas excluses ou incluses: 100%?.

    Florianpolis: OAB/SC, 2006. p. 67.

  • 22

    Alm da dificuldade em determinar com cem por cento de certeza a paternidade,

    critica-se o critrio biolgico tambm por levar em conta somente a carga gentica, afastadas

    outras investigaes e debates. Cuida-se, pois, de uma forma determinativa fria, puramente

    tcnica. E, aqui, tem domiclio a impossibilidade de seu acolhimento de forma absoluta30.

    1.2.3 Critrio Socioafetivo

    Estudos diversos, oriundos de outros ramos do conhecimento, reconhecem que a

    figura do pai funcionalizada, decorrendo de uma funo exercida cotidianamente. Parte-se

    da premissa de que cada pessoa ocupa um papel na formao de uma famlia, logo, a funo

    de pai pode ser exercida por outra pessoa que no seja o genitor 31

    .

    Ora, se um homem, mesmo sabendo no ser genitor da criana, trata-a como se

    fosse seu filho, se est diante de um caso de filiao socioafetiva e, consequentemente,

    merecedora da mesma proteo dada s demais formas de filiao.

    A famlia sociolgica constituda imagem e semelhana da famlia gentica,

    com a manuteno contnua dos vnculos de amor, carinho, desvelo, ternura e solidariedade

    que efetivamente sustentam o grupo familiar 32

    .

    Denomina-se posse do estado de filiao a situao ftica na qual uma pessoa

    desfruta do status de filho em relao a outra pessoa, independentemente de corresponder

    realidade legal33

    .

    O estado de filiao compreende um conjunto de circunstncias que solidificam a

    presuno da existncia de relao entre pais, ou pai e me, e filho, capaz de suprir a

    ausncia do registro de nascimento. [...] Trata-se de conferir aparncia os efeitos

    de verossimilhana, que o direito considera satisfatria34

    .

    A partir do conceito de pai de fato originou-se o denominado fenmeno da

    desbiologizao da filiao, uma vez que a socioafetividade no est lastreada no nascimento,

    30

    FARIAS, 2011, loc. cit. 31

    FARIAS, 2011, 613. 32

    LUZ, 2009, p. 250. 33

    LBO, 2011. p. 236. 34

    LBO, 2011, loc. cit.

  • 23

    mas em ato de vontade, cimentada, cotidianamente, no tratamento e na publicidade,

    colocando em xeque, a um s tempo, a verdade biolgica e as presunes jurdicas35.

    Apresenta-se, desse modo, o critrio socioafetivo de determinao do estado de filho

    como um tempero ao imprio da gentica, representando uma verdadeira

    desbiologizao da filiao, fazendo com que o vnculo paterno-filial no esteja

    aprisionado somente na transmisso de gens36

    .

    Numa viso geral, a doutrina brasileira utiliza-se de trs elementos para identificar

    a filiao socioafetiva: tractus (aparncia de parente: tratar a pessoa como filho e esta o tratar

    como pai), nomen (a pessoa portar o sobrenome dos pais) e fama (a pessoa reconhecida

    como filha pela comunidade e pelas autoridades).

    Com efeito, o Cdigo Civil de 2002 inseriu em seu artigo 1.593, a possibilidade

    de outra forma de parentesco, alm do consanguneo ou civil e, consequentemente, de

    filiao: Art. 1.593. O parentesco natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou

    outra origem.

    a expresso de parentesco de outra origem que amplia o leque de

    possibilidades para a conceituao da filiao e alm do consanguneo e do civil ou por

    adoo, de modo a compreender, tambm, a paternidade e a maternidade socioafetivas, cujo

    vnculo advm, como dito alhures, de reconhecimento social e afetivo da paternidade.

    Alis, no se pode dizer que a expresso destacada se refere apenas adoo.

    Caso significasse apenas adoo, o legislador teria repetido a regra do Cdigo Civil anterior

    que dispunha em seu artigo 332 que O parentesco legitimo, ou ilegtimo, segundo procede,

    ou no de casamento; natural, ou civil, conforme resultar de consanginidade, ou adoo.

    A propsito, os enunciados 108 e 256 da Jornada de Direito Civil ratificam o

    entendimento:

    108 Art. 1.603: No fato jurdico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, luz do disposto no art. 1.593, a filiao consangnea e tambm a

    socioafetiva.

    256 Art. 1.593: A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.

    35

    FARIAS, 2011, p. 614. 36

    FARIAS, 2011, loc. cit.

  • 24

    O lao socioafetivo depende, logicamente, da comprovao da convivncia

    respeitosa, pblica e firmemente estabelecida e pode ser feita por qualquer meio de prova,

    desde que admitido em direito, uma vez que a lei no estabeleceu restries ou primazias.

    Todavia, ressalta Lbo37

    que essas provas so complementares de dois requisitos

    alternativos que a lei prev: a existncia do comeo de prova por escrito, proveniente dos

    pais, ou presunes veementes da filiao resultante de fatos j certos.

    Por requisitos alternativos o autor entende que, em conformidade com a

    Constituio Federal, basta um dos requisitos na falta do outro.

    Considera-se comeo de prova por escrito, proveniente dos pais, quaisquer

    documentos que revelem a filiao, como cartas, autorizaes para atos em benefcio

    de filhos, declarao de filiao para fins de imposto de renda ou de previdncia

    social, anotaes dando conta do nascimento do filho38

    .

    Anota-se, todavia, que no preciso que o afeto esteja presente no instante em

    que discutida a filiao em juzo. Deve-se provar, apenas, que o afeto esteve presente

    durante a convivncia, de modo a entrelaar aquelas pessoas ao longo de suas existncias e

    que a personalidade do filho foi formada sobre aquele vnculo afetivo, mesmo que no exista

    mais no momento.

    Ademais, no h como se falar em filiao socioafetiva sem mencionar o exemplo

    categrico da adoo brasileira, em que uma pessoa registra como seu filho um estranho,

    simulando a adoo, embora no se submeta ao devido processo legal.

    Tal atitude, ainda que configure delito contra o estado de filiao (CP 242), nem por

    isso deixa de produzir efeitos, no podendo gerar irresponsabilidades ou

    impunidades. Como foi o envolvimento afetivo que gerou a posse do estado de filho,

    o rompimento da convivncia no apaga o vnculo de filiao que no pode ser

    desconstitudo. Assim, se, depois do registro, separam-se os pais, nem por isso

    desaparece o vnculo de parentalidade. Persistindo a certeza de quem o pai, ou

    seja, mantida a posse de estado de filiao, no h como desconstituir o registro.

    Em outras palavras, quando a filiao baseada no lao afetivo, o pai deixa de ter

    direito negatria de paternidade fundada na inexistncia de lao gentico. Se, sabendo no

    ser o ascendente biolgico, criou algum como se fosse seu filho, no h que se falar em

    desconstituio da paternidade por ausncia de herana gentica.

    37

    LBO, 2011, p. 237. 38

    LBO, 2011, loc. cit.

  • 25

    1.3 Consequncias do reconhecimento de filho

    A Constituio Federal de 1988, no artigo 227, 6, ps fim s desigualdades

    entre os filhos ao dispor que Os filhos oriundos ou no da relao do casamento, ou por

    adoo, tero os mesmos direitos e qualificaes, proibidas quaisquer designaes

    discriminatrias relativas filiao.

    A presuno da paternidade somente gerada pelo casamento pater is est quem

    nuptiae demonstrant. Portanto, em relao aos filhos que no so frutos do casamento, o

    reconhecimento deve se dar de forma expressa.

    O ato de reconhecimento de filho (ou perfilhao), que pode se dar de forma

    espontnea ou forada, tem efeito ex tunc (retroativo) e declaratrio. Sua eficcia erga

    omnes, refletindo tanto para os que participaram do ato de reconhecimento, como em relao

    a terceiros.

    Ademais, dessa eficcia decorre a indivisibilidade do reconhecimento: ningum

    pode ser filho em relao a uns e no filho com relao a outros39.

    O reconhecimento espontneo ou voluntrio quando se aperfeioa de forma

    desejada, sem qualquer imposio ou constrangimento daquele que pratica o ato. ato pelo

    qual o pai, a me ou ambos, declaram o vnculo que os une ao filho nascido, conferindo-se o

    status familiae, correspondente40.

    As formas de reconhecimento voluntrio esto expressamente previstas no artigo

    1.609 do Cdigo Civil:

    Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento irrevogvel e

    ser feito:

    I - no registro do nascimento;

    II - por escritura pblica ou escrito particular, a ser arquivado em cartrio;

    III - por testamento, ainda que incidentalmente manifestado;

    IV - por manifestao direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento

    no haja sido o objeto nico e principal do ato que o contm.

    Anota-se que as referidas formas de reconhecimento so aplicveis tanto ao pai

    quanto me, embora se saiba ser mais comum em casos de declarao da paternidade.

    39

    VENOSA, Slvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Famlia. 4. ed. So Paulo: Atlas, 2004. p. 324. 40

    FARIAS, 2011, p. 626.

  • 26

    A perfilhao voluntria, independentemente do meio adotado, tem natureza

    personalssima, sendo permitido, contudo, que seja feita atravs de procurador com poderes

    especficos para tanto, outorgados por escritura pblica ou particular (artigo 59 da Lei de

    Registros Pblicos Lei n. 6.015/73).

    Dispe ainda o artigo 1.613, do Cdigo Civil, que o ato no pode estar submetido

    a condio, termo ou encargo ou mesmo a qualquer outra modalidade cujo objetivo seja

    restringir o reconhecimento filiatrio. Alm do mais, trata-se de ato livre, irrevogvel e

    irretratvel.

    Entretanto, no sendo a filiao reconhecida de forma espontnea, os filhos

    podem obter o reconhecimento da sua condio de forma forada, atravs da ao de

    investigao de paternidade, que se processa de acordo especialmente com os artigos 1.606,

    1.615 e 1.616, do Cdigo Civil.

    A ao em referncia considerada personalssima, alm de indisponvel e

    imprescritvel, pelo Cdigo Civil, que estabelece no art. 1.606, que s pode ser

    intentada pelo prprio filho. Se menor de 16 anos de idade, a ao deve ser ajuizada

    pelo respectivo representante legal, geralmente a me, que promover o pleito em

    nome do filho, e no em nome dela; entre dezesseis e dezoito anos de idade, o menor

    dever ser assistido pela me41

    .

    Em relao ao filho dotado de capacidade plena, o ato de reconhecimento somente

    pode ser realizado mediante o seu consentimento, no importando se a filiao de ordem

    biolgica ou afetiva.

    Seja ato voluntrio ou forado, como decorrncia da indivisibilidade, o filho

    reconhecido passa a gozar de todos os direitos assegurados aos demais, sendo-lhes

    assegurados tanto os efeitos de ordem pessoal, quanto os de ordem patrimonial.

    So efeitos de ordem pessoal a criao do vnculo de parentesco na linha reta e

    colateral, com o consequente direito a utilizao do nome familiar; a sujeio ao poder

    familiar, caso seja menor de idade, bem como a guarda e as visitas.

    A criao do vnculo de parentesco na linha reta permite a incluso do nome da

    famlia, como expresso de sua identidade, devendo constar no Registro Civil, com meno

    dos nomes paterno e materno, bem como dos avs, e gera, tambm, impedimentos na rbita

    41

    MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito de Famlia. 41. ed. So Paulo: Saraiva,

    2011. P. 459.

  • 27

    civil, como os impedimentos para casamento, e pblica, como os impedimentos para assuno

    de determinados cargos pblicos.

    De acordo com o artigo 1.612, do Cdigo Civil, o reconhecimento sujeita o filho,

    enquanto menor, ao poder familiar, que o instrumento da funo educacional da famlia,

    devendo ficar sob a guarda do genitor que o reconheceu, e, se ambos o reconheceram e no

    houver acordo, sob a de quem melhor atender aos interesses do menor.

    Entretanto, quele que no for o guardio, resguardado o direito de visitar o

    filho e de fiscalizar a sua educao.

    Cuida-se de um munus pblico, de modo que ao Estado interessa o seu bom

    desempenho. No prprio caput do artigo 227, da Constituio Federal, nota-se a

    exemplificao de inmeros direitos da criana e do adolescente que devem ser observados no

    exerccio do poder familiar: o direito vida, sade, alimentao, educao, ao lazer,

    profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e

    comunitria, alm do direito a ser o menor colocado a salvo de toda forma de negligncia,

    discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso.

    Portanto, trata-se de poder indelegvel exceto parcialmente entre os que o

    titulam - que a lei concede aos pais para que possam dispor de instrumentos para o adequado

    cumprimento de sua importante tarefa de preparar o filho para a vida42.

    O artigo 1.634, do Diploma Civil, elenca uma srie de obrigaes correspondentes

    ao exerccio do poder familiar, em rol no taxativo, embora sejam de cincia natural das

    pessoas os encargos prprios da paternidade:

    Art. 1.634. Compete aos pais, quanto pessoa dos filhos menores:

    I - dirigir-lhes a criao e educao;

    II - t-los em sua companhia e guarda;

    III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;

    IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autntico, se o outro dos pais

    no lhe sobreviver, ou o sobrevivo no puder exercer o poder familiar;

    V - represent-los, at aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, aps

    essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;

    VI - reclam-los de quem ilegalmente os detenha;

    VII - exigir que lhes prestem obedincia, respeito e os servios prprios de sua idade

    e condio.

    Classificam-se como efeitos de ordem patrimonial: o direito prestao

    alimentcia e o direito sucessrio recproco entre pais e filhos reconhecidos.

    42

    COELHO, 2012, p. 200.

  • 28

    O efeito do direito prestao alimentcia deve ser concedido tanto ao genitor que

    reconhece como ao filho reconhecido, pois, de acordo com os artigos 1.694, do Cdigo Civil,

    e 229, da Constituio Federal, os parentes devem prestar alimentos uns aos outros, sendo a

    obrigao alimentar recproca entre pais e filhos.

    A lei enftica ao afirmar que a prestao alimentar , ao mesmo tempo, um

    direito e uma obrigao: Podem os parentes, os cnjuges ou companheiros pedir uns aos

    outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatvel com a sua condio

    social, inclusive para atender s necessidades de sua educao. (CC 1.694).

    Em outro momento o Cdigo acrescenta:

    Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, no estiver em condies de suportar totalmente o encargo, sero chamados a concorrer os de grau imediato;

    sendo vrias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na

    proporo dos respectivos recursos, e, intentada ao contra uma delas, podero as

    demais ser chamadas a integrar a lide. (CC 1.698);

    Tambm afirma no pargrafo nico do artigo 1.704: Se o cnjuge declarado

    culpado vier a necessitar de alimentos, e no tiver parentes em condies de prest-los, nem

    aptido para o trabalho, o outro cnjuge ser obrigado a assegur-los, fixando o juiz o valor

    indispensvel sobrevivncia.

    Por essa obrigao, coloca-se o pai no dever de prestar ao filho (ou vice-versa) o

    necessrio para a manuteno e, no caso do direito alimentar do filho, para a criao,

    educao, sade e recreao; em suma, para atender as necessidades fundamentais do parente.

    Rizzardo43

    conclui o conceito de alimentos como tudo quanto indispensvel s

    necessidades da vida, como vestimentas, alimentao, moradia, atendimento mdico

    hospitalar, instruo etc.

    Outro efeito decorrente do reconhecimento a equiparao, para efeitos

    sucessrios, dos filhos de qualquer natureza, estabelecendo direito sucessrio recproco entre

    pais e filhos, que so classificados como herdeiros necessrios, cuja lei protege mediante a

    reserva da legtima.

    Como decorrncia dos efeitos sucessrios, autorizado ao filho propor ao de

    petio de herana e de nulidade de partilha, devendo-se observar as restries clausulao

    da legtima (artigo 1.848, do Cdigo Civil), bem como a matria pertinente possibilidade de

    afastamento da herana (deserdao - artigo 1.962, do Cdigo Civil).

    43

    RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Famlia. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense. 2011. p. 646.

  • 29

    2. A TEORIA TRIDIMENSIONAL DA PATERNIDADE

    2.1 A tridimensionalidade do ser humano

    A famlia a mais antiga comunho plena de vida gentica, afetiva e ontolgica,

    a qual sempre foi (des) cuidada pelo prisma da normatizao do mundo biolgico,

    desconectada dos mundos afetivo e ontolgico44.

    Essa a concepo inicial trazida por Welter em sua tese sobre a teoria

    tridimensional do direito de famlia, na qual assevera que o humano habita, ao mesmo tempo,

    os mundos gentico (mundo das coisas), (des) afetivo (modo de ser-em-famlia e em

    sociedade) e ontolgico (modo de relacionar consigo mesmo), de modo que a interpretao do

    direito de famlia apenas pelo modo gentico normatizado prova de que a igualdade material

    no passa de uma abstrao.

    Ao falar dos mundos do ser, May45

    reporta distino feita pelos analistas

    existenciais dos trs mundos, que tambm aplicada por Welter, isto , trs aspectos

    simultneos do mundo que caracterizam a existncia de cada um de ns como um ser no

    mundo.

    Primeiramente, existe Umwelt, que significa literalmente mundo ao redor; esse o mundo biolgico, geralmente conhecido em nossos dias por ambiente. Em seguida

    h o Mitwelt, literalmente com o mundo, o mundo dos seres do mesmo tipo, o mundo dos semelhantes de uma pessoa. O terceiro Eigenwelt, o mundo prprio, o mundo dos relacionamentos consigo mesmo.

    A partir de tais consideraes, passa-se anlise de cada um dos mundos

    humanos e o modo como compem o ser.

    44

    WELTER, 2009, p. 19. 45

    MAY, Rollo. A descoberta do ser. Traduo de Cludio G. Somogyi. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. p. 139.

  • 30

    2.1.1 O ser-no-mundo-gentico

    O mundo gentico do ser humano, ou Umwelt, o mundo das coisas, da

    autorreproduo dos seres vivos, das necessidades, portanto, um complexo programa gentico

    que influencia o homem em sua atividade, movimento ou comportamento, atravs do qual

    permanece ligado aos demais de sua espcie. o mundo que transmite todas as caractersticas

    da ancestralidade biolgica.

    O direito de famlia sempre foi visto apenas por parte do mundo biolgico, uma

    vez que a sua normatizao recolhe apenas uma amostra do conceito de famlia, decorrendo

    desse preconceito a fixao do parentesco, do direito de herana, da filiao, do poder

    familiar, da guarda, das visitas, enfim, de todos os direitos do ser humano, e no somente os

    de famlia.

    No mundo gentico que ocorre a transmisso s geraes: a compleio fsica,

    os gestos, a voz, a escrita, a origem do ser humano, a imagem corporal, semelhando-se

    fisicamente me ou pai e garantindo, atravs do exame de DNA, a certeza cientfica da

    paternidade/maternidade46

    .

    o mundo das leis e ciclos naturais, do dormir e acordar, do nascer e morrer, do

    desejo e do alvio, o mundo da limitao e do determinismo biolgico, o mundo imposto no qual cada um de ns foi lanado por meio do nascimento e deve, de alguma forma, ajustar-se

    47.

    Ressalta-se, contudo, que os analistas existenciais no desprezam a realidade do

    mundo biolgico, apenas no concordam com os idealistas que reduziram o mundo humano

    ao determinismo biolgico, sendo interpretado de modo cartesiano e puramente mecanicista.

    46

    WELTER, 2009, p. 47. 47

    MAY, 1988, loc. cit.

  • 31

    2.1.2 O ser-no-mundo-afetivo

    O texto do direito de famlia no pode ser visto unicamente pela normatizao

    gentica, devendo ser analisado tambm pelo mundo (des) afetivo, ambos inter-relacionados,

    condicionando-se um ao outro.

    Segundo Rollo May48

    , o mundo afetivo (Mitwelt)

    o mundo dos inter-relacionamentos entre os seres humanos.

    [...]

    Em Mitwelt, porm, as categorias de ajustamento e adaptao no so exatas; o

    termo relacionamento oferece a categoria certa. Se eu insisto para que outra pessoa

    ajuste-se a mim, no a estarei tomando como pessoa, como Dasein, mas como

    instrumento; e, mesmo que eu me ajuste a mim prprio, estarei usando a mim

    mesmo como objeto. O indivduo no pode jamais falar com exatido de seres

    humanos como objetos sexuais; no momento em que a pessoa um objeto sexual, voc no estar mais falando de uma pessoa. A essncia do relacionamento que no

    contato ambas as pessoas apresentam uma mudana.

    Em praticamente todas as reas do direito, a afetividade vista como linguagem

    integrante da tridimensionalidade humana. Entretanto, o afeto pode transformar-se em

    desafeto, porquanto, simultaneamente, cega e ilumina os humanos, fazendo parte da

    existncia.

    Welter49

    assevera que para compreender essa viso familiar afetiva e desafetiva

    preciso aceitar a universalidade da compreenso da hermenutica filosfica, uma vez que ela

    afasta a falsidade institucionalizada, fazendo emergir as verdadeiras valoraes que orientam

    as convivncias grupais.

    necessrio que o homem derrube o teto preconceituoso que o encobre, de que na

    famlia s h afeto, para que se possa obter uma paisagem e uma passagem compreenso do

    ser humano como humano, que, s vezes, est afetivo e outras desafetivo50

    .

    48

    MAY, 1988, p. 140-141. 49

    WELTER, 2009, p. 53 50

    WELTER, 2009, loc. cit.

  • 32

    O ser humano retroage sua condio de mero ser vivo quando est desafetivo,

    vivendo apenas no mundo gentico, ignorando os mundos afetivo e ontolgico. Se afeto

    harmonia, sade e inteligncia, o desafeto desequilbrio, doena, ausncia de educao.

    Portanto, o homem est por vezes afetivo e por outras desafetivo, razo pela qual

    h necessidade da produo do direito, da realidade, de modo a buscar qual o sentido

    abrangido pelo direito de famlia.

    2.1.3 O ser-no-mundo-ontolgico

    O ser humano, completando a sua tridimensionalidade, tambm ontolgico,

    porque se comporta e se relaciona no mundo sem divises, sem teoria exclusiva, porquanto

    um ser nico, tridimensional, que convive e compartilha nos mundos da ancestralidade

    sangunea, do relacionamento social/familiar e consigo mesmo51

    .

    O Engenwelt, ou mundo prprio, o modo menos compreendido ou tratado

    adequadamente na psicologia moderna e na psicologia profunda. Pressupe autoconscincia

    (ou percepo de si mesmo), auto-relacionamento, e est presente unicamente nos seres

    humanos. a base na qual se v o mundo real em sua perspectiva verdadeira, a base sobre a

    qual se relacionam. a percepo do que uma coisa qualquer no mundo significa para quem a

    mira.

    Ressalta-se que

    nas lnguas orientais, tais como a japonesa, os adjetivos, implicitamente, sempre

    incluem um sentido de para mim. Isso quer dizer que, quando digo que esta flor linda, significa que para mim esta flor linda. Nossa dicotomia ocidental entre sujeito e objeto nos levou, em contraste, a assumir que dissemos o mais importante

    ao afirmar que a flor linda inteiramente separada de ns, como se a afirmao

    fosse mais verdadeira em proporo insignificncia do que ns tenhamos a ver

    com o fato52

    !

    Observa-se, assim, que a atitude de deixar o mundo ontolgico esquecido, alm de

    contribuir para uma aridez intelectual e perda de vitalidade, tambm tem muito a ver com o

    51

    WELTER, Belmiro Pedro. Teoria Tridimensional do Direito de Famlia. Revista Jurdica, Porto Alegre, n.

    390, v. 58, p. 22, 2010. 52

    MAY, 1988, p. 142.

  • 33

    fato de que as pessoas modernas sejam propensas perda do senso de realidade em suas

    experincias53

    .

    Por fim, deve ficar claro que esses trs mundos so diferentes, mas simultneos,

    de modo que esto sempre inter-relacionados, condicionando-se uns aos outros. No se pode,

    portanto, compreender o direito de famlia exclusivamente pela normatizao gentica e/ou

    afetiva, mas, sim, pela tridimensionalidade humana.

    2.2 Princpios constitucionais norteadores

    A Teoria Tridimensional da paternidade possui sustentao na Constituio

    Federal, de modo que deve ser considerada a aplicao de alguns princpios para a sua

    compreenso.

    A teoria, que defende a possibilidade da manifestao simultnea de todos os

    efeitos decorrentes do reconhecimento da paternidade em relao a todos os critrios de

    filiao (legal, biolgico e socioafetivo), tambm chamada de multiparentalidade,

    fundamentada em diversos princpios, sobretudo na dignidade da pessoa humana; igualdade

    jurdica de todos os filhos; afetividade; solidariedade; pluralismo das entidades familiares; e

    da convivncia familiar.

    2.2.1. Princpio da dignidade da pessoa humana

    O princpio da dignidade da pessoa humana um dos pilares de sustentao do

    Estado Democrtico de Direito. No se pode pensar mais em direitos desatrelados da ideia e

    conceito de dignidade.

    A preocupao com a promoo dos direitos humanos e da justia social levou o

    constituinte a consagrar a dignidade da pessoa humana como valor nuclear da ordem

    constitucional, podendo ser identificado como o princpio da manifestao primeira dos

    53

    MAY, 1988, loc. cit.

  • 34

    valores constitucionais, carregado de sentimentos e emoes. sentido e experimentado no

    plano dos afetos54

    .

    Diz-se que um macroprincpio do qual derivam todos os demais, representando

    o epicentro axiolgico da ordem constitucional, de modo a delimitar todas as relaes, tanto

    privadas, quanto estatais, que se desenvolvem na sociedade.

    Previsto expressamente como fundamento do Estado Democrtico de Direito no

    artigo 1, III, da Constituio Federal, o princpio em estudo transparece a opo pela pessoa,

    provocando a despatrimonializao e a personalizao dos institutos jurdicos.

    Assim, nota-se que o Direito de Famlia est intrinsecamente ligado aos Direitos

    Humanos e dignidade. Isso deve significar a legitimao e a incluso no lao social de todas

    as formas de famlia, respeito a todos os vnculos afetivos e a todas as diferenas.

    Portanto, o princpio da dignidade humana significa para o Direito de Famlia

    a considerao e o respeito autonomia dos sujeitos e sua liberdade. Significa, em

    primeira e ltima anlise, uma igual dignidade para todas as entidades familiares55.

    Deste modo, pode-se dizer que ir de encontro ao princpio em comento dar

    tratamento diferenciado s vrias formas de filiao.

    2.2.2. Princpio da igualdade jurdica de todos os filhos

    Hoje, seja qual for o critrio determinante da filiao, todos os filhos so

    considerados iguais. o que preconiza o artigo 227, 6, da Constituio Federal: Os filhos,

    havidos ou no da relao do casamento, ou por adoo, tero os mesmos direitos e

    qualificaes, proibidas quaisquer designaes discriminatrias relativas filiao.

    Os mesmos dizeres so observados no artigo 1.596, do Cdigo Civil, que

    transforma em regra o princpio constitucional da igualdade entre os filhos e o da proibio

    das designaes discriminatrias.

    Ressalva Pereira56

    que

    54

    DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famlias. 6. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 62. 55

    PEREIRA, Rodrigo da Cunha . Princpios Fundamentais Norteadores do Direito de Famlia. Belo Horizonte:

    Del Rey. 2005. p. 100. 56

    PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Cdigo Civil Da Famlia Anotado. 2. ed. Porto Alegre: Sntese. 2003. p. 99.

  • 35

    Filho filho, independentemente de sua origem gentica ou vnculo jurdico. A

    nica designao e distino possvel e juridicamente correta se havido dentro ou

    fora do casamento, em razo da presuno da paternidade. Isto no significa uma

    designao discriminatria e nem preconceituosa, apenas jurdica.

    Assim, observa-se que os filhos devem ter tratamento isonmico, no se

    admitindo a distino entre filhos legtimos, naturais e adotivos, quanto ao nome, poder

    familiar, alimentos, sucesses e todos os demais efeitos da relao parental.

    A consagrao da igualdade entre filhos, decorrente do princpio da dignidade da

    pessoa humana, constitui simultaneamente garantia constitucional e direito subjetivo. Assim,

    no pode sofrer limitaes ou restries da legislao ordinria.

    Berenice Dias57

    ressalta que essa vedao o que se chama de princpio

    constitucional da proibio de retrocesso social e completa aduzindo que

    A partir do momento em que o Estado, em sede constitucional, garante direitos

    sociais, a realizao desses direitos no se constitui somente em uma obrigao

    positiva para a sua satisfao passa a haver tambm uma obrigao negativa de no se abster de atuar de modo a assegurar a sua realizao. O legislador

    infraconstitucional precisa ser fiel ao tratamento isonmico assegurado pela

    Constituio, no podendo estabelecer diferenciaes ou revelar preferncias. Do

    mesmo modo, todo e qualquer tratamento discriminatrio levado a efeito pelo

    Judicirio mostra-se flagrantemente inconstitucional.

    O Estado, como visto, assume um dever de no permanecer inerte na defesa dos

    direitos sociais, de modo que sempre deve privilegiar o tratamento isonmico dado pela

    Constituio aos filhos.

    2.2.3. Princpio da afetividade

    Como evoluo das relaes familiares, a realizao pessoal da afetividade e da

    dignidade da pessoa humana, no ambiente de convivncia e solidariedade, se tornou a funo

    bsica da famlia atual.

    Srgio Resende de Barros define afeto familiar como

    57

    DIAS, 2010. p. 70.

  • 36

    um afeto que enlaa e comunica as pessoas, mesmo quando estejam distantes no

    tempo e no espao, por uma solidariedade ntima e fundamental de suas vidas de vivncia, convivncia e sobrevivncia quanto aos fins e meios de existncia,

    subsistncia e persistncia de cada um e do todo que formam58

    .

    Em suma, o princpio que edifica o direito de famlia na estabilidade das

    relaes socioafetivas e na comunho de vida, com primazia sobre as consideraes de carter

    patrimonial ou biolgico59

    .

    Fez despontar a igualdade entre irmos biolgicos e adotivos e o respeito a seus

    direitos fundamentais, restando enfraquecida a resistncia dos juristas que no admitem a

    igualdade entre a filiao biolgica e a socioafetiva.

    A afetividade princpio implcito na Constituio Federal, podendo ser

    encontrado como fundamentos essenciais: a) todos os filhos so iguais, independentemente de

    sua origem (artigo 336, 1); b) a adoo, como escolha afetiva, alou-se integralmente ao

    plano da igualdade de direitos (artigo 227, 5 e 6); c) a comunidade formada por qualquer

    dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de famlia

    constitucionalmente protegida (artigo 226, 4); d) a convivncia familiar (e no a origem

    biolgica) prioridade absoluta assegurada criana e ao adolescente (artigo 227)60

    .

    O artigo 1.593, do Cdigo Civil, tambm preconiza uma regra geral para o

    princpio em comento ao estabelecer que o parentesco natural ou civil, conforme resulte de

    consanguinidade ou outra origem.

    Essa regra geral impede que se considere como verdade real apenas a biolgica,

    de modo que as formas de filiao, sejam elas consanguneas ou de outra origem, tm a

    mesma dignidade e so regidas pelo princpio da afetividade.

    Os laos de afeto no derivam do sangue, mas da convivncia familiar. Portanto,

    pode-se dizer que a posse de estado de filho o reconhecimento jurdico do afeto, com o

    cristalino objetivo de garantir felicidade, como um direito a ser alcanado.

    Observa-se, assim, a transformao da famlia na medida em que se acentuam as

    relaes de sentimentos entre seus membros e se valorizam as funes afetivas da famlia.

    58

    BARROS, Srgio Resende de. A ideologia do afeto. Revista Brasileira de Direito de Famlia. Porto Alegre:

    IBDFAM Sntese, v. 4, n. 14, p. 9, 2002. 59

    LBO, 2011, p.70. 60

    DIAS, 2010, p. 71.

  • 37

    Depreende-se que a comunho de afeto incompatvel com o modelo nico,

    matrimonializado, da famlia. Por isso, a afetividade entrou nas cogitaes dos juristas, de

    modo a explicar as relaes familiares contemporneas61

    .

    Na trilha dessa evoluo, o direito das famlias alojou uma nova ordem jurdica

    para a famlia, e o afeto passou a ter valor jurdico.

    2.2.4. Princpio da solidariedade

    Com a entrada em vigor da Constituio Federal de 1988, a famlia passou a ser

    guiada pelo princpio da solidariedade, visto anteriormente apenas como um dever moral.

    A regra matriz do princpio da solidariedade o inciso I, do artigo 3, da

    Constituio Federal que dispe que um dos objetivos fundamentais de Repblica Federativa

    do Brasil constituir uma sociedade solidria.

    A expresso solidariedade tem origem nos vnculos afetivos e compreende a

    fraternidade e a reciprocidade, o que cada um deve ao outro62

    . O pathos da sociedade atual

    o da solidariedade, portanto, da sociedade e de cada um dos seus membros individuais, pela

    existncia de cada um dos membros da sociedade63

    .

    resultado da superao do individualismo jurdico, do modo de pensar e viver a

    sociedade a partir do predomnio dos interesses individuais. No apenas um dever

    impositivo do Estado, na realizao de polticas pblicas, de forma a importar tambm em

    deveres recprocos entre as pessoas64

    .

    O princpio em comento, no mbito das famlias, apresenta duas dimenses: a

    primeira, no plano interno das relaes familiares, em razo do respeito recproco e dos

    deveres de cooperao entre seus membros; a segunda, nas relaes do grupo familiar com a

    comunidade, com as demais pessoas e com o meio ambiente que vive65

    .

    Desse modo, a famlia atual tecida na complexidade das relaes afetivas e

    solidrias que o ser humano constri entre a liberdade e o desejo. A convivncia familiar

    61

    DIAS, 2010, p. 72. 62

    DIAS, 2010, p. 67. 63

    LBO, 2011, p. 63. 64

    PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coordenador). Famlia e Solidariedade: Teoria e Prtica do Direito de Famlia.

    Rio de Janeiro: IBDFAM Lumen Juris. 2008. p. 03. 65

    PEREIRA, 2008, p. 10.

  • 38

    somente possvel em ambiente solidrio, expressado na afetividade e na

    corresponsabilidade.

    Lbo66

    conclui dizendo que

    A famlia brasileira, na atualidade, est funcionalizada como espao de realizao

    existencial das pessoas, em suas dignidade, e como lcus por excelncia de

    afetividade, cujo fundamento jurdico axial o princpio da solidariedade. Quando o

    comando constitucional refere-se a sociedade solidria inclui, evidentemente, a base da sociedade (art. 226), que a famlia.

    2.2.5. Princpio do pluralismo das entidades familiares

    Pelo princpio da pluralidade das entidades familiares, a Constituio Federal

    alargou o conceito de famlia, deixando de ser reconhecida como base da sociedade apenas as

    unies matrimonializadas.

    O sustentculo do princpio em questo encontra-se no prembulo da Carta

    Magna, que estabelece que deve ser assegurado o exerccio dos direitos sociais e individuais,

    assim como a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justia como valores supremos da

    sociedade.

    O legislador constituinte, ao reconhecer que a famlia um fato natural e o

    casamento uma conveno social, mera solenidade, adaptou o Direito aos anseios e s

    necessidades da sociedade67

    .

    A famlia [...] no se constitui apenas de pai, me e filho, mas antes uma

    estruturao psquica em que cada um de seus membros ocupa um lugar, uma

    funo, sem estarem necessariamente ligados biologicamente. Desfez-se a ideia de

    que a famlia de constituiu, unicamente, para fins de reproduo e de legitimidade

    para o livre exerccio da sexualidade68

    .

    Com isso, passou a receber proteo do Estado, no apenas a famlia oriunda da

    relao marital, mas toda e qualquer outra manifestao afetiva, como a unio estvel e a

    famlia monoparental. A famlia passou a ser, predominantemente, lugar de afeto, da

    66

    PEREIRA, 2008, p. 17. 67

    FARIAS, 2011, p. 47. 68

    PEREIRA, 2005, p. 166.

  • 39

    comunho do amor, em que toda forma de discriminao afronta o princpio basilar do direito

    de famlia.

    Faz-se mister ressaltar que o rol da previso constitucional de entidades familiares

    (artigo 226) no taxativo, estando protegida qualquer entidade familiar, fundada no afeto,

    esteja, ou no, contemplada expressamente na dico legal.

    , destarte, dessa garantia da liberdade e da igualdade, sustentadas por este

    macroprincpio, que se extrai a aceitao da famlia plural, que vai alm daquelas previstas

    constitucionalmente e, principalmente, diante da falta de previso legal69

    .

    2.2.6. Princpio da convivncia familiar

    O princpio da convivncia familiar o direito de a pessoa vivenciar a relao

    afetiva diuturna e duradoura entretecida pelas pessoas que compem o grupo familiar, em

    virtude de laos de parentesco ou no, no ambiente comum70

    .

    O dito ambiente comum supe uma residncia, uma casa, o que, no entanto, no

    requisito para a convivncia familiar, porquanto comum a separao fsica de membros de

    uma mesma famlia sem, contudo, seja perdida a referncia ao ambiente comum, tido como

    pertena de todos.

    A Constituio Federal d proteo especial casa, conforme dispe o artigo 5,

    XI, sobretudo porque a inviolabilidade imprescindvel para que a convivncia familiar se

    construa de modo estvel e, acima de tudo, com identidade coletiva prpria, o que faz com

    que nenhuma famlia se confunda com outra71

    .

    O direito convivncia familiar assegurado especialmente criana e ao

    adolescente, estando previsto expressamente na Carta Magna:

    Art. 227. dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana, ao

    adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito vida, sade,

    alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao

    respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-los a

    salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade

    e opresso.

    69

    PEREIRA, 2005, p. 167. 70

    LBO, 2011, p. 74. 71

    LBO, 2011, loc. cit.

  • 40

    A doutrina unssona ao afirmar que o direito de a criana e o adolescente serem

    criados e educados no seio da famlia condio indispensvel para que a vida se desenvolva.

    Sendo considerado como uma necessidade vital da criana, atribuindo-lhe a mesma

    importncia que se atribui ao direito vida.

    O princpio em tela tambm se manifesta expressamente no artigo 1.513, do

    Cdigo Civil, no momento em que probe qualquer interveno na comunho de vida

    instituda pela famlia.

    O direito convivncia familiar, apesar de ser dirigido especialmente criana e

    ao adolescente, destinado famlia e a cada membro dela, alm de ao Estado e sociedade

    como um todo. Por outro lado, a convivncia familiar o substrato da verdade real da

    famlia socioafetiva, como fato social facilmente afervel por vrios meios de prova72.

    2.3 Consequncias do reconhecimento de filho na aplicao da teoria tridimensional da

    paternidade

    Com supedneo nos princpios constitucionais, sobretudo nos da igualdade entre

    os filhos, da dignidade da pessoa humana e da afetividade, passa-se a analisar a possibilidade

    da aplicao da teoria tridimensional do direito de famlia no tocante paternidade.

    Assim, a grande questo a ser enfrentada a seguinte: possvel o

    reconhecimento dos vnculos biolgico e afetivo, mantendo-se o vnculo que j consta no

    registro de nascimento do filho, simultaneamente? Ou seja, algum pode ter reconhecido mais

    de um pai e/ou mais de uma me ao mesmo tempo?

    2.3.1. A aplicao da teoria tridimensional da paternidade como a forma mais acertada

    de contemplar a Constituio

    Visando preservar todos os direitos fundamentais do ser humano, vozes ainda

    tmidas da doutrina nacional passaram a defender a possibilidade de multiparentalidade, que

    a aplicao filiao da teoria tridimensional do direito de famlia.

    72

    LBO, 2011, loc. cit.

  • 41

    A tese da multiparentalidade prega que a filiao socioafetiva no pode eliminar a

    possibilidade de filiao biolgica, uma vez que se tratam de critrios distintos, podendo

    coexistir simultaneamente sem qualquer embarao.

    Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Jnior 73 corroboram com a

    teoria de modo que, para eles,

    parece permissvel a duplicidade de vnculos materno e paterno-filiais,

    principalmente quando um deles for socioafetivo e surgir, ou em complementao

    ao elo biolgico ou jurdico pr-estabelecido, ou antecipadamente ao

    reconhecimento de paternidade ou maternidade biolgica.

    A possibilidade da multiparentalidade contempla a teoria tridimensional do

    direito de famlia criada por Belmiro Welter74

    , pois, como visto anteriormente, o ser humano

    , a um s tempo, biolgico, afetivo e ontolgico, no sendo possvel contemplar a

    tridimensionalidade humana ao se aceitar apenas um dos critrios filiatrios. Diante disso, o

    autor conclui pela existncia da possibilidade de estabelecimento de trs vnculos paternos (e,

    logicamente, mais trs maternos) para cada pessoa humana.

    A possibilidade da coexistncia simultnea de vnculos parentais decorrentes de

    todos os critrios determinantes da filiao mais do que apenas um direito, uma obrigao

    constitucional, na medida em que preserva direitos fundamentais de todos os envolvidos75

    .

    Fernanda Otoni de Barros76, em seu artigo Do Direito ao Pai: Sobre a

    paternidade no ordenamento jurdico, descreve uma situao real, por ela atendida na

    qualidade de Psicloga do Poder Judicirio de Minas Gerais, que ilustra com nitidez a

    injustia gerada pela opo entre pai biolgico e pai afetivo, decorrente da violao de

    diversos princpios basilares do direito de famlia.

    A supracitada autora relata a histria sofrida por Antnia, filha de Virgnia:

    Virgnia morou com Antnio por 15 anos e dessa relao nasceram quatro filhos [...]

    era arrumadeira da fazenda onde seu marido foi vaqueiro. Resolveram morar juntos

    73

    ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famlias. Rio de

    Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 383. 74

    WELTER, 2009, p. 295-314. 75

    PVOAS, Maurcio Cavallazzi. Multiparentalidade: A possibilidade de mltipla filiao registral e seus

    efeitos. Florianpolis: Conceito Editorial. 2012. p. 79. 76

    BARROS, Fernanda Otoni de. Do Direito ao Pai: Sobre a paternidade no ordenamento jurdico.In: Juliana e

    Fernando Gontijo Advocacia e Consultoria das Famlias e Sucesses. Disponvel em: http://www.gontijo-

    familia.adv.br/2008/artigos_pdf/Fernanda_Otoni/DireitoPai.pdf>. Acesso em 01/12/2012.

  • 42

    com a gravidez do Joo. Tiveram uma vida muito difcil, com filhos nascendo, ano

    aps ano [...].

    Nos primeiros anos, o casal criou os filhos com o trabalho de Antnio. [...]

    At que a vida foi ficando mais difcil, os filhos [...] comearam a demandar maiores

    cuidados, o que acarretava um custo maior. Antnio [...] comeou a executar outras

    tarefas para ter um ordenado maior no fim do ms. [...] At que sofreu um acidente

    de caminho, que o impossibilitou de fazer bicos. Para ajudar a famlia, o seu patro

    ofereceu a Virgnia a oportunidade de cuidar dos servios domsticos da fazenda.

    Nessa poca, o casal tinha trs filhos, j crescidos [...] o que propiciou a Virgnia

    cuidar dos servios da fazenda com dedicao quase exclusiva. [...] aos poucos foi

    acumulando maiores tarefas [...] s vezes, quando era dia de festa, passava o fim de

    semana na casa da fazenda.

    O dono da fazenda, Sr. Rafael Barcelos, era um poltico importante na regio, foi

    casado duas vezes e tinha um filho, o Rafa. Este logo se engraou para o lado de

    Virgnia e, por alguns anos, principalmente quando bebia, ia se encontrar com ela

    em seus aposentos, na calada da noite.

    [...] Desses encontros nasceu Antnia.

    Antnio, que nada percebia, recebeu com festa o nascimento da primeira filha e

    dedicou-se ela (sic), uma vez que no trabalhava tanto como antes e a mulher ficava

    muito tempo fora de casa. [...]77

    .

    Sem mencionar o contedo da deciso prolatada pelo juzo, nota-se que o caso

    narrado perfeito para ilustrar co