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UNIVERSIDADE TÉCNICA DE LISBOA INSTITUTO SUPERIOR DE ECONOMIA E GESTÃO ECONOMIA SOLIDÁRIA NO BRASIL E EM PORTUGAL: aproximações e distanciamentos sob a ótica da confiança Igor Vinicius Lima Valentim Orientação: Doutor José Maria Carvalho Ferreira Júri: Presidente: Reitor da Universidade Técnica de Lisboa Vogais: Doutor José Maria Carvalho Ferreira, professor catedrático aposentado do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa Doutor Casimiro Marques Balsa, professor associado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Doutora Carmen de Jesus Dores Cavaco, professora auxiliar do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa Doutora Maria João Ferreira Nicolau dos Santos, professora auxiliar do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa Doutor João Carlos de Andrade Marques Graça, professor auxiliar do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa Lisboa, SETEMBRO de 2011

TD-IVLV-2011

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  • UNIVERSIDADE TCNICA DE LISBOA INSTITUTO SUPERIOR DE ECONOMIA E GESTO

    ECONOMIA SOLIDRIA NO BRASIL E EM PORTUGAL: aproximaes e distanciamentos sob a tica da

    confiana

    Igor Vinicius Lima Valentim

    Orientao: Doutor Jos Maria Carvalho Ferreira

    Jri: Presidente: Reitor da Universidade Tcnica de Lisboa

    Vogais: Doutor Jos Maria Carvalho Ferreira, professor catedrtico aposentado do Instituto Superior de Economia e Gesto da Universidade Tcnica de Lisboa Doutor Casimiro Marques Balsa, professor associado da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Doutora Carmen de Jesus Dores Cavaco, professora auxiliar do Instituto de Educao da Universidade de Lisboa Doutora Maria Joo Ferreira Nicolau dos Santos, professora auxiliar do Instituto Superior de Economia e Gesto da Universidade Tcnica de Lisboa Doutor Joo Carlos de Andrade Marques Graa, professor auxiliar do Instituto Superior de Economia e Gesto da Universidade Tcnica de Lisboa

    Lisboa, SETEMBRO de 2011

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    UNIVERSIDADE TCNICA DE LISBOA INSTITUTO SUPERIOR DE ECONOMIA E GESTO

    ECONOMIA SOLIDRIA NO BRASIL E EM PORTUGAL: aproximaes e distanciamentos sob a tica da

    confiana

    Igor Vinicius Lima Valentim

    Orientao: Doutor Jos Maria Carvalho Ferreira

    Jri: Presidente: Reitor da Universidade Tcnica de Lisboa

    Vogais: Doutor Jos Maria Carvalho Ferreira, professor catedrtico aposentado do Instituto Superior de Economia e Gesto da Universidade Tcnica de Lisboa Doutor Casimiro Marques Balsa, professor associado da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Doutora Carmen de Jesus Dores Cavaco, professora auxiliar do Instituto de Educao da Universidade de Lisboa Doutora Maria Joo Ferreira Nicolau dos Santos, professora auxiliar do Instituto Superior de Economia e Gesto da Universidade Tcnica de Lisboa Doutor Joo Carlos de Andrade Marques Graa, professor auxiliar do Instituto Superior de Economia e Gesto da Universidade Tcnica de Lisboa

    Lisboa, SETEMBRO de 2011

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    Dedico esta tese aos meus avs, Elza e Genaro, referncias eternas de valores, estmulos e amor

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo minha me por todos os cuidados e carinho ao longo de trinta anos de vida.

    Aos meus avs, pela dedicao, e pelas lies e exemplos vivos do que amor, honestidade e determinao. Sem dvida me ensinaram tambm que desistir no faz parte do dicionrio.

    Simone, no apenas pelas ajudas, conselhos e alertas, mas principalmente pelos sorrisos encantadores, pelo amor e pelo companheirismo que espero durarem para essa e para outras vidas.

    Ao inicialmente orientador e posteriormente orientador e amigo Z Maria. Pela abertura permanente ao dilogo, pela sinceridade em todos os momentos e por me mostrar, na carne e na alma, que a cincia est, antes de tudo, em ns mesmos. Obrigado por lutar por um mundo melhor com suas atitudes e no apenas palavras. Obrigado por ter sempre confiado e acreditado em mim. Sempre.

    Ao Thiago, um amigo com a maisculo, sempre pronto e disposto a ajudar em tudo que est ao seu alcance. Obrigado pelo ombro, pelos ouvidos, pela companhia de sempre. Espero que a amizade dure por muitos anos.

    Aos integrantes da Associao da Padre Cacique, em especial Snia, Ivani (Boneco) e Dinda, que sempre me acolheram, ouviram, se abriram e ajudaram. Minha vida melhorou a cada dia que convivi com vocs.

    Patrcia, pelas revises, dicas e sugestes, sempre importantes. A Marlon Bastos, Carla Trota, Silvia Ferreira e Margarida, que sempre

    contriburam muito durante minhas estadias nos Aores. A Beatriz Hellwig, que desde os tempos de Porto Alegre se mostrou

    mais que uma colega de trabalho. Ao integrante e s integrantes da Megasil, que sempre me acolheram de

    braos abertos. Balbina, Conceio, Aldora, Eduarda, Francisco, Lurdes, Lina, entre outras. Vocs so exemplos vivos de que outros mundos so possveis.

    A Carolina, Cristiano e Jlio. Com vocs no apenas compartilho as preocupaes acadmicas, mas a resistncia, a busca efetiva e a tentativa de construir coletivamente uma sociedade apoiada em amizade e solidariedade.

    A Marasa, Silvani e Joo, amigos brasileiros em Portugal.

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    FCT pelo apoio financeiro e aos funcionrios do SOCIUS, em especial Mnica e Bruno, pela ajuda e disponibilidade de sempre.

    Este um trabalho coletivo e s foi construdo com a ajuda, a energia, o tempo e a dedicao de muitas pessoas. Dessa forma, desde j agradeo a todos e a todas que contriburam na caminhada que resulta, agora, nesta obra. E queles e quelas que no mencionei aqui os nomes, perdoem-me pelo lapso imperdovel.

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    RESUMO

    O trabalho/emprego e seus valores se expandem para todas as esferas da vida. O individualismo, a competio e a desconfiana so naturalizados. A Economia Solidria (ES) engloba organizaes que geram trabalho e renda para milhares de pessoas enquanto buscam valores como o igualitarismo e a autogesto.

    A confiana parece ter importncia nessas organizaes, mas embora a ES seja estudada no Brasil e em Portugal, no so encontradas investigaes aprofundadas a seu respeito no pas europeu, nem tampouco estudos focados na confiana no contexto desta outra economia.

    Meu primeiro objetivo, portanto, identificar uma organizao portuguesa de ES. Mas valores so vividos nas prticas e relaes cotidianas e no dados a priori espera de coleta. Neste sentido, este trabalho busca fazer cincia dando ateno s marcas dos encontros dos quais sou parte. Procuro conviver com os integrantes de uma organizao de ES no Brasil e outra em Portugal para investigar, com o auxlio do mtodo cartogrfico, a respeito da confiana nas relaes entre seus membros.

    Busco experienciar como lidam com as marcas produzidas pelo viver nos relacionamentos cotidianos, como a confiana se manifesta, se constri e se desconstri. Que sentidos ela adquire? Em dois pases que investigam a ES, pesquiso aqui como duas organizaes se aproximam e se distanciam sob a tica da confiana entre seus membros.

    Palavras-chave: Economia Solidria, Confiana, Cartografia, Autogesto, Associao, Cooperativa

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    ABSTRACT

    Work/job and its values expand to all spheres of life. Individualism, competition and distrust are naturalized. Solidarity Economy (SE) encompasses organizations that generate work and wealth to thousands of people while fighting for values like egalitarianism and self-management.

    Trust seems to be important in these organizations, but although SE is studied in Brazil and in Portugal, there could not be found deep investigations about it in the European country and not even studies focused on trust in this other economy.

    My first objective is, then, to identify a Portuguese SE organization. But values are lived in practices and daily relationships, and not a priori data waiting to be collected. In this sense, this work aims to make science giving attention to the marks of the encounters which I am part of. I look for living with the members of one SE organization in Brazil and one in Portugal to investigate, with the help of cartographic method, about trust in the relationships between their associates.

    I aim to experiencing how they deal with the marks produced by the living in the daily relations, how trust emerges, is constructed and deconstructed. Which senses does it acquire? In two countries that investigate about SE, I research here how two organizations approach and distance under the optics of trust between their members.

    Keywords: Solidarity Economy, Trust, Cartography, Self-management, Association, Cooperative

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    LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

    ACEESA Associao Centro de Estudos em Economia Solidria do Atlntico

    ACMDMR Associao de Catadores de Materiais Reciclveis dos Direitos dos Moradores de Rua

    ADS Agncia de Desenvolvimento Solidrio AMA Associao Martima Aoreana APA Associao Portuguesa para o Ambiente CEE Comunidade Econmica Europeia CES/UC Centro de Estudos Sociais CES/UA Centro de Estudos Sociais da Universidade dos Aores CMI Capitalismo Mundial Integrado Coopernova Cooperativa de Novos Valores Ltda Cresaor Cooperativa Regional de Economia Solidria dos Aores Crida Centre de Recherche e dInformation sur la Dmocratie et

    lAutonomie DMLU Departamento Municipal de Limpeza Urbana EA Escola de Administrao ES Economia Solidria EUA Estados Unidos da Amrica HACCP Hazard Analysis and Critical Control Points IAS Instituto de Aco Social INPI Instituto Nacional da Propriedade Industrial IP-RAM Instituto de Emprego da Regio Autnoma da Madeira IPSS Instituio Particular de Solidariedade Social ISCTE Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa IVA Imposto sobre Valor Agregado MDM Movimentos dos Moradores de Rua MTE Ministrio do Trabalho e Emprego ONG Organizao No Governamental PMPOA Prefeitura Municipal de Porto Alegre RCCS Revista Crtica de Cincias Sociais RMG Rendimento Mnimo Garantido

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    SENAES Secretaria Nacional de Economia Solidria SGM Secretaria Geral do Municpio SJRP Social Justice Residence Program SPV Sociedade Ponto Verde UAC Universidade dos Aores UFBA Universidade Federal da Bahia UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul USSEN United States Solidarity Economy Network UTL Universidade Tcnica de Lisboa

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    NDICE DE QUADROS, GRFICOS E FIGURAS

    Pg.

    Quadro 1 Importncia terica da confiana para alguns valores da ES 160

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    SUMRIO

    AGRADECIMENTOS ......................................................................................... 4 RESUMO............................................................................................................ 6 ABSTRACT ........................................................................................................ 7 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ............................................................ 8 NDICE DE QUADROS, GRFICOS E FIGURAS ........................................... 10 SUMRIO ........................................................................................................ 11 APRESENTAO ........................................................................................... 14 INTRODUO ................................................................................................. 27

    Construo do problema de pesquisa e objetivos .................................................................. 27

    O que chamamos de cincia? .................................................................................................. 31

    Uma cincia moderna ............................................................................................................. 37

    Cincias Humanas e Sociais ..................................................................................................... 44

    Etnografia ................................................................................................................................ 52

    Pesquisa-ao .......................................................................................................................... 58

    Por uma tica, esttica e poltica de investigao .................................................................. 63

    Cartografia ............................................................................................................................... 67

    CAPTULO 1. CARTOGRAFIAS CONTEMPORNEAS ................................ 79 1.1 A Centralidade do Trabalho .............................................................................................. 85

    1.2 Trabalho, Valores e Subjetividade ..................................................................................... 91

    CAPTULO 2. ECONOMIA SOLIDRIA .......................................................... 99 2.1 Origens e Histrico da Economia Solidria ....................................................................... 99

    2.2 Quem faz parte da Economia Solidria? ......................................................................... 102

    2.3 Gesto e Economia Solidria ........................................................................................... 110

    CAPTULO 3. CONFIANA ........................................................................... 120 3.1 Histrico sobre a confiana ............................................................................................. 121

    3.2 Confiana hoje ................................................................................................................. 123

    3.3 Aprendizagem da confiana ............................................................................................ 128

    3.4 Confiana de acordo com as definies tericas ............................................................ 130

    3.5 A confiana e a primazia da racionalidade ...................................................................... 140

    3.6 Crticas racionalidade como base para a confiana ..................................................... 147

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    3.7 Confiana, respeito por si mesmo e vidas cotidianas ..................................................... 156

    3.8 Confiana e Economia Solidria ...................................................................................... 159

    CAPTULO 4. ECONOMIA SOLIDRIA NO BRASIL ................................... 164 4.1 Os caminhos at a Associao de Catadores de Materiais Reciclveis dos Direitos dos

    Moradores de Rua ................................................................................................................. 164

    4.2 A chegada ACMDMR .................................................................................................... 170

    4.3 A ACMDMR um breve histrico ................................................................................... 171

    4.4 O cotidiano da ACMDMR ................................................................................................ 177

    4.4.1 A ACMDMR em julho de 2004 .................................................................................. 178

    4.4.2 A ACMDMR em janeiro de 2006 .............................................................................. 186

    4.4.3 A ACMDMR em novembro de 2008 ......................................................................... 198

    4.5 16 de dezembro de 2008 na ACMDMR algumas reflexes .......................................... 205

    CAPTULO 5. CARTOGRAFANDO A ECONOMIA SOLIDRIA EM PORTUGAL ................................................................................................... 210

    5.1 Chegada ao aeroporto de Ponta Delgada e loja da Cresaor.......................................... 215

    5.2 Centro de Estudos Sociais da Universidade dos Aores .................................................. 218

    5.3 Centro de Empreendedorismo da Universidade dos Aores .......................................... 219

    5.4 II Congresso de Economia Solidria dos Aores .............................................................. 221

    5.5 Instituto de Aco Social ................................................................................................. 226

    5.6 Resumo sobre IPSS e conversa com Marlon Bastos ........................................................ 229

    5.7 Reflexes provisrias ...................................................................................................... 232

    CAPTULO 6. ECONOMIA SOLIDRIA NOS AORES ............................... 234 6.1 Os caminhos e a chegada Megasil ................................................................................ 234

    6.2 A cooperativa Megasil: um breve histrico .................................................................... 239

    6.3 A cooperativa Megasil em 2009 ...................................................................................... 249

    6.4 Megasil em 2010: condies de um trabalho com farinha, amor e suor ....................... 267

    ALGUMAS CONSIDERAES ..................................................................... 277 REFERNCIAS .............................................................................................. 314

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    No posso separar a cincia de mim mesmo Z Maria

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    APRESENTAO

    O trabalho que aqui se inicia no apenas um produto fechado e encerrado, mas principalmente a narratividade de um processo: um processo-tese. Portanto, importante alertar, desde j, que este documento busca compartilhar no apenas o resultado de uma pesquisa, mas caminhos e descaminhos construdos coletivamente, por mim e todos aqueles com os quais encontrei ao longo dos ltimos quase seis anos e que, em maior ou menor grau, participaram destas construes comigo.

    inegvel que, para alguns, as horas necessrias para a leitura de todo o documento se mostraro demasiadamente cansativas. Neste sentido, provvel que deem mais ateno aos resultados dos percursos de pesquisa aqui apresentados, tratando o documento como um produto, um produto-tese.

    Apresento aqui muitos dos percursos e histrias que tornaram possveis, ajudaram a construir e fazem efetivamente parte das pesquisas empreendidas. Tentando ser fiel s experincias de vida aqui compartilhadas, busco tratar tambm das vivncias que considero as mais importantes para a construo do trabalho. Vivncias essas que no apenas retratei, pois efetivamente me modificaram como pesquisador e como ser humano j que, durante estes processos, no me restringi a apenas elaborar o trabalho, mas fui igualmente e reciprocamente modificado por ele. Dito de outra maneira, os esforos vo na direo que este seja um trabalho com e no sobre pessoas e organizaes.

    Nasci e morei at os 23 anos de idade na cidade do Rio de Janeiro. Passei quase cinco anos no curso de graduao em Administrao da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no qual me formei em maio de 2003. Eu sentia, ento, a necessidade de respirar novos ares, ouvir novas histrias, conhecer pessoas em lugares diferentes.

    Mais que isso, me sentia inquieto, principalmente nos dois ltimos anos do curso, ao ver duas faces do que me parecia um mesmo fenmeno. Por um lado, ao ter estagiado em banco de investimentos, consultoria, empresa de informtica e trabalhado em curso de idiomas, se tornava cada dia mais claro para mim que a explorao no e por meio do trabalho era uma realidade nua e crua e ocorria de diversas maneiras.

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    Por outro lado, o que mais me angustiava era ver que a maior parte dos meus colegas de curso, mesmo cumprindo interminveis horas extras (muitas das quais no remuneradas), sofrendo faltas e atrasos na universidade relacionados dedicao ao trabalho, considerava natural esse tipo de poltica e ambicionava crescer cada vez mais dentro das empresas nas quais se encontravam trabalhando sob a forma de emprego ou estgio.

    Durante os quase cinco anos de graduao em Administrao na UFRJ tive disciplinas relacionadas administrao financeira, contabilidade, marketing e gesto de recursos humanos, entre outras. Todas elas apresentaram contedos ligados a modos de gesto cujo objetivo maior e nico o lucro financeiro, tratando todos os demais aspectos de uma organizao, inclusive as pessoas, como recursos.

    A impresso que eu tinha era de que a participao de todos era estimulada apenas no discurso organizacional, ou seja, nas situaes em que no houvesse questionamento da organizao e da finalidade do status quo. Da mesma maneira, parecia-me que igualdade e justia eram palavras bonitas nos panfletos empresariais e nos manuais de gesto de pessoas, mas de operacionalizao duvidosa, tendo em vista que as receitas e lucros organizacionais estavam longe de serem divididos igualmente por todos.

    Nesses contextos, a explorao de muitas pessoas para o benefcio de poucas, a competio, o entendimento do outro como adversrio ou mesmo como inimigo, o tratamento da cooperao e das parcerias de maneira utilitria e temporria - apenas quando derem lucro - eram todos aspectos de um modo de vida estimulado e cultivado pela heterogesto, vivenciado no dia-a-dia da universidade e das empresas.

    Angustiava-me ver que em uma universidade pblica federal como a UFRJ, um aluno do curso de Administrao tivesse contato com nada ou quase nada de contedo crtico. A instituio no oferecia, na Administrao, nenhuma linha de formao crtica para os futuros administradores. Da mesma forma, no pareciam existir, nas disciplinas do curso, preocupaes quanto ao debate dos impactos e consequncias dos contedos lecionados para as pessoas e para as sociedades, de modo mais amplo.

    Teorias administrativas, ferramentas de gesto e polticas voltadas administrao de organizaes e da prpria vida humana eram ensinadas sem

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    que fosse sequer ressaltado o carter poltico que carregavam e de quem eram os interesses visavam atender.

    Intrigava-me ver que eu havia passado quase cinco anos me dedicando, nas mais diversas disciplinas, (re)produo de tcnicas e ferramentas, ensinadas como possuidoras de carter apoltico, e voltadas maximizao do lucro a qualquer preo. Como podiam ser estimulados, em uma universidade pblica, unicamente valores tais como a competio, o individualismo, a ambio e a primazia do financeiro frente a todo o resto?

    Mesmo dentro do ambiente universitrio e em uma universidade pblica era raro perceber estmulos mobilizao coletiva, a formas de administrao que estimulassem valores mais humanos tais como a cooperao, a solidariedade e o igualitarismo. Eu nunca havia ouvido falar em Economia Solidria, associativismo ou mesmo autogesto.

    Ou seja, a gesto que eu havia aprendido at ento na universidade e nas minhas experincias profissionais era desempenhada de uma nica maneira heterogesto , ainda que travestida nos mais diversos modelos, filosofias e ferramentas de gesto de negcios, e voltada nica e exclusivamente para o lucro.

    Em janeiro de 2004, caminhei 1.561km em direo ao Sul do Brasil para fixar residncia em Porto Alegre, com o intuito de cursar um Mestrado em Administrao na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

    Ao chegar em Porto Alegre, bem no comeo de 2004, eu me sentia um completo estranho, j que no conhecia absolutamente ningum na capital do estado mais ao sul do Brasil. Ao mesmo tempo, me sentia bastante motivado para iniciar o curso, tendo em vista que o principal motivo que me levou a escolher justamente a UFRGS para o mestrado foi a existncia de professores com vertentes crticas no corpo do curso.

    Ainda que at ento eu no tivesse ouvido falar em Economia Solidria, um dos maiores motivadores da minha ida para Porto Alegre havia sido justamente um conjunto de sentimentos relativos a todas essas vivncias e angstias que me haviam afetado durante a graduao no Rio de Janeiro. Eu me sentia inquieto com a naturalidade com que a maior parte das pessoas parecia encarar as situaes que narrei anteriormente.

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    Logo no primeiro ms do mestrado em Porto Alegre comecei a me informar sobre os projetos e pesquisas em andamento na Escola de Administrao (EA) da UFRGS. Foi ento que comecei a ler diversos artigos sobre a temtica da Economia Solidria (ES), que englobava organizaes autogestionrias supostamente pautadas por valores tais como a solidariedade e o igualitarismo, bem distintos daqueles que se constituam como dominantes e me angustiavam.

    J em abril do mesmo ano de 2004, comecei a elaborar, juntamente com Fabiano, colega de curso, um pr-projeto para a construo e realizao da primeira edio de um projeto de extenso que envolveria a atuao da EA/UFRGS em associaes e cooperativas de Economia Solidria na Grande Porto Alegre. Este projeto, intitulado Residncia Solidria, encontra-se descrito em mais detalhes no captulo 4 (Economia Solidria no Brasil), devido sua importncia para o trabalho aqui construdo.

    A partir do envolvimento na construo da primeira edio da Residncia Solidria em territrio gacho fui tendo contato, simultaneamente, com as produes/publicaes acadmicas e com o cotidiano das organizaes de ES, j que participava tanto como um dos trs coordenadores do projeto quanto como residente. Na primeira funo tive a oportunidade de ter contato com diversas associaes e cooperativas. Na segunda, junto com Beatriz Hellwig, pude estreitar e aprofundar laos com uma dessas organizaes.

    Comecei a construir uma histria que se mostraria bem mais profunda que um simples trabalho com a Associao de Catadores de Materiais Reciclveis dos Direitos dos Moradores de Rua (ACMDMR), constituda a partir da mobilizao coletiva de ento moradores de rua, em luta por melhores condies de vida e trabalho.

    Um dos objetivos como participante da Residncia Solidria era construir um projeto juntamente com os membros da associao, a partir das suas demandas. Estas nem sempre se mostravam claras e tnhamos a inteno, como residentes, que elas fossem construdas coletivamente e no a partir de sugestes dos universitrios.

    Sentamos, em alguns momentos, que se algumas ferramentas administrativas fossem de domnio dos membros da ACMDMR, o resultado do

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    trabalho coletivo poderia ser melhorado. Mas, por outro lado, tnhamos conscincia plena do risco que essa importao de conceitos e ferramentas da Administrao poderia acarretar srios riscos para os valores e modo de organizao da associao.

    As pomposas teorias, modelos e ferramentas da gesto se mostravam incompatveis com a postura de uma associao que no buscava o lucro como mximo objetivo e que aparentemente lutava por relaes baseadas na igualdade entre seus membros.

    Ficou ntida a falcia da superioridade do conhecimento acadmico, o qual se apresentava inadequado para contribuir para a administrao e para a consolidao de uma associao baseada em princpios diferentes dos capitalistas. Era necessrio, ento, buscar a construo de novos conhecimentos coletivos. No na Universidade nem pelos universitrios, mas sim entre os nossos saberes e os deles, sem a superioridade de um sobre o outro.

    Para isso, era fundamental buscar tambm conhecer que objetivos aquelas pessoas tinham, que valores vivenciavam nas relaes que construam, que sonhos possuam, que histrias de vida carregavam, bem como marcas deixadas por vitrias, derrotas, alegrias e tristezas.

    Mostrava-se importante viver junto com essas pessoas a organizao coletiva que construram, bem como aguar a sensibilidade com relao aos sentidos adquiridos pelo trabalho e vida que ali empreendiam. Passei mais de 18 meses indo semanalmente ACMDMR. Foi a partir desse mtuo conhecer-afetar, de diversos estranhamentos, aprendizados e afetos, compartilhados com os leitores com mais detalhes no captulo 4, que a confiana foi despontando e se construindo como um tema de importncia.

    Quanto mais eu conhecia os membros da associao, suas histrias de vida e seus cotidianos, mais parecia que a confiana poderia ser entendida como um elemento-chave na mobilizao coletiva, organizao em forma de associao e no consequente cotidiano daquelas pessoas, compartilhando espaos de trabalho e moradia na ACMDMR.

    importante ressaltar que, quando cheguei pela primeira vez na associao, jamais havia imaginado que a confiana se construiria como foco de investigao. Meu maior interesse era conviver com aquelas pessoas em

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    seus cotidianos de trabalho e vida e poder perceber como se organizavam, porque haviam construdo a associao daquela forma e quais desafios enfrentavam.

    medida em que a confiana tomava corpo como conceito-chave nas relaes construdas entre aquelas pessoas, voltei a procurar referncias acadmicas sobre a ES, agora em busca de relaes entre a confiana e este tipo de organizao. Que pesquisas haviam sido feitas sobre a importncia da confiana em organizaes de ES? Nesse sentido, elaborei revises tanto da literatura sobre Economia Solidria (presente no captulo 2) quanto sobre confiana (presente no captulo 3). Mas, para minha surpresa, no encontrei pesquisas dedicadas ao estudo da confiana no mbito desta outra economia.

    Restavam, portanto, mais perguntas do que respostas: em que medida a confiana perpassava as relaes entre os ento membros da ACMDMR antes da constituio da associao? Que importncia teve a confiana entre eles para a formao e posterior institucionalizao do grupo? E nas relaes cotidianas? Quais os impactos da confiana na convivncia cotidiana? Por fim, que sentidos e significados a confiana adquiria nas relaes dirias entre essas pessoas? Essas foram algumas das perguntas que me convocaram a dar mais ateno ao conceito dentro de organizaes de ES.

    A primeira etapa da pesquisa, focada na investigao da temtica da confiana dentro da ACMDMR, foi concluda no final de 2008 e est compartilhada, com mais detalhes, como dito anteriormente, no captulo quatro.

    Entretanto, a concluso dessa fase deixou muitas lacunas e questes sem resposta. Perguntava-me a respeito da importncia da confiana no apenas para a ACMDMR, mas se ela tambm seria importante para outras organizaes consideradas como de ES. Que sentidos o conceito adquiriria em outros contextos?

    Se at 2004 eu nunca havia ouvido falar em Economia Solidria, em 2006, aps a reviso bibliogrfica mencionada anteriormente, era possvel notar que esta outra economia j vinha sendo discutida com esse nome no Brasil e em pases como Frana e Canad, desde meados da dcada de 1990. A partir da dcada de 2000, era passvel de constatao o aumento das pesquisas e publicaes sobre o assunto, tanto em territrio brasileiro quanto

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    nos pases francfonos citados anteriormente, bem como em outros pases da Amrica Latina.

    Entretanto, me chamava ateno o fato de que Portugal, responsvel pela colonizao de extensas reas do territrio brasileiro, vinha tambm discutindo sobre Economia Solidria, principalmente a partir de 2003, com as publicaes de Boaventura de Sousa Santos (2003) - a partir de sua presena em diversas edies do Frum Social Mundial - e de Amaro (2005) e Cunha (2005). Isso me causava estranhamentos porque a Constituio Portuguesa cita e prev polticas pblicas para a economia social, representante de outro corpo conceitual, diferente da Economia Solidria.

    Por um lado, os textos presentes no livro organizado por Boaventura de Sousa Santos (Santos, 2003) abordam experincias de ES em outros pases, tais como ndia, Brasil e Moambique, mas nenhuma efetivamente em Portugal.

    Por outro lado, as publicaes de Rogrio Roque Amaro (Amaro, 2005; Amaro e Madelino, 2006) discorrem sobre uma verso conceitual da Economia Solidria diferente da brasileira e da francfona. De acordo com estas publicaes, essa outra verso da ES seria baseada em experincias localizadas nos arquiplagos dos Aores e Madeira (Portugal), bem como Canrias e Cabo Verde: a chamada Macaronsia.

    Para minha surpresa, a nica referncia a alguma organizao pertencente ES em Portugal foi trazida por Cunha (2005: 15) quando ele comentou sobre a criao, nos Aores, da Cooperativa Regional de Economia Solidria dos Aores (Cresaor), a qual permitiria o estudo e a construo de um sistema de sustentabilidade contnua do Movimento de Economia Solidria. Entretanto, no pude encontrar maiores detalhes sobre a organizao na publicao.

    No encontrei pesquisas realizadas com alguma organizao pertencente a esta outra economia nem tampouco uma estimativa de quantas so as existentes, que tipo de trabalho realizam nem, muito menos, como so as vivncias e relaes dentro das organizaes em Portugal.

    No foi possvel encontrar, nas publicaes referidas, investigaes aprofundadas realizadas juntamente a organizaes consideradas como de

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    Economia Solidria em solo portugus. Mostrava-se necessrio, ento, conhecer experincias portuguesas desta outra economia.

    Em buscas na internet, deparei-me com o site de uma associao intitulada Associao Centro de Estudos em Economia Solidria do Atlntico (ACEESA), dedicada aparentemente ao estudo do tema e sediada na Ilha de So Miguel, nos Aores, Portugal. Entretanto, no foi possvel, na poca, achar no site da instituio meno a nenhuma organizao de ES no pas europeu.

    Mas, ento, quais organizaes portuguesas poderiam ser consideradas como de Economia Solidria? Como eu poderia encontrar, em Portugal, organizaes baseadas nos princpios e valores desta outra economia? Isto no parecia ser tarefa fcil a partir do momento em que no era possvel sequer encontrar os contatos delas nas publicaes pesquisadas.

    Tendo como base a pesquisa com os catadores da ACMDMR em Porto Alegre, no Brasil, comecei a reparar que existiam, tambm em grandes cidades portuguesas, enormes quantidades de resduos slidos reciclveis pelas ruas. A diferena para o Brasil era que enquanto em Portugal eu jamais tivesse reparado algum catador realizando a recolha, no Brasil vrias pessoas sobreviviam justamente a partir da recolha e venda desses materiais.

    Meu primeiro esforo caminhou, ento, no sentido de buscar associaes e cooperativas de catadores de materiais reciclveis em Portugal. Ser que eles existiriam tambm no pas ibrico, assim como no Brasil, Argentina, Colmbia, ndia e Egito?

    Neste sentido, realizei uma investigao que est, em parte, publicada em um captulo de livro em ingls (Valentim, 2009a). Participei de um encontro sobre a temtica dos resduos slidos e reciclagem em bidos, Portugal, durante o ano de 2008. Na oportunidade, tive a chance de conversar com representantes de diversas organizaes ligadas ao setor, tais como a Associao Portuguesa para o Ambiente (APA) e Sociedade Ponto Verde (SPV).

    Foi possvel entender que, em Portugal, qualquer pessoa que deseje realizar transaes comerciais com os resduos descritos precisa ter uma organizao legalmente institucionalizada, a qual precisa ser certificada pela SPV, entidade composta por diversos atores pblicos e privados, responsvel

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    por diversas polticas ligadas ao tratamento dos resduos e reciclagem em Portugal.

    No seria exagerado afirmar que a SPV uma das organizaes mais importantes sobre o assunto nesse pas ibrico. Ela realiza campanhas nos mais diversos meios de comunicao estimulando a reciclagem e a SPV que determina, por meio de suas polticas, que tipos de materiais so considerados reciclveis e quais devem ser enviados diretamente para os aterros sanitrios.

    Pude perceber tambm que os resduos devem ser recolhidos nica e exclusivamente por empresas enquadradas dentro dos moldes e parmetros de certificao estabelecidos pela SPV, ou seja, suas parceiras, que podem ou no ser as cmaras municipais, tendo em vista que a SPV recebe taxas de todos aqueles que produzem resduos.

    Os resduos slidos, aps coletados, so direcionados a empresas de tratamento e reciclagem tambm acreditadas pela SPV de acordo com cada regio geogrfica. Devido a todas essas restries, relacionadas principalmente a interesses econmicos, a busca por catadores em Portugal no encontrou trabalhadores individuais autnomos realizando tal tarefa nem, muito menos, alguma associao ou cooperativa de trabalhadores do lixo.

    Se uma pessoa ou grupo decidir recolher caixas de papelo nas ruas para recicl-las e/ou comercializ-las, estar cometendo uma ao ilegal e sujeita a punies previstas nas legislaes reguladoras.

    A partir do momento em que no foram encontradas associaes nem cooperativas autogestionrias de trabalhadores do lixo, aumentou ainda mais a inquietao sobre como e onde encontrar organizaes que pudessem ser consideradas como de Economia Solidria em Portugal, de acordo com seus princpios, valores e formas organizacionais.

    Resolvi conversar com meu orientador e amigo, Jos Maria Carvalho Ferreira (Z Maria), sobre esta questo e sobre as pesquisas que eu j havia realizado em Portugal at ento. Expus a ele que, de acordo com o que os referenciais acadmicos indicavam, o arquiplago dos Aores talvez fosse um lugar mais indicado para dar prosseguimento busca por organizaes de Economia Solidria em Portugal.

    A primeira parte da pesquisa, conduzida no Brasil, j havia me apontado a insuficincia da aplicao de questionrios ou visitas pontuais e

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    descontinuadas para a realizao de um estudo a respeito dos sentidos e significados da confiana entre as pessoas, j que o conceito est muitas vezes ligado ao foro mais ntimo das pessoas.

    O trabalho necessitava que em Portugal, assim como no Brasil, eu efetivamente vivesse ativamente a pesquisa, ou seja, realizasse uma pesquisa com os membros de uma organizao portuguesa de ES e no apenas sobre eles. Nesse sentido, contei a Z Maria que eu pretendia me mudar para os Aores para conduzir a pesquisa durante o tempo que se mostrasse necessrio.

    Z concordou que talvez pudesse ser uma boa sada a mudana para os Aores, j que ele tambm no conhecia nenhuma organizao com esses princpios em Portugal continental. Ele me alertou que j tinha ouvido falar de uma organizao aoriana que poderia, talvez, possuir alguns dos princpios e valores da ES e, portanto, ser parte da investigao: uma associao de pescadores intitulada Associao Martima Aoreana (AMA). Guardei os contatos para futura visitao in loco.

    Na tentativa de ampliar a busca por organizaes de Economia Solidria e encontrar pesquisadores dedicados temtica, entrei em contato com a Universidade dos Aores (UAC). Isso se mostrava necessrio no apenas para conhecer a ES na regio, mas, principalmente, por uma questo de respeito. Parecia-me salutar que, se eu pretendia ir para os Aores investigar determinada temtica, seria minimamente respeitoso contatar a universidade local para ver se j estavam sendo realizadas (ou haviam sido feitas) pesquisas sobre o tema. Se possvel fosse somar esforos, por que tentar reinventar a roda?

    Aps alguns emails enviados para professores da referida UAC, me respondeu Maurcio Borba, professor na rea de Cincias Sociais. Trocamos diversos emails sobre a ES e, nessas comunicaes eletrnicas, ele me contou que j havia trabalhado com a temtica nos Aores alguns anos antes, quando era funcionrio do Instituto de Aco Social (IAS). Maurcio salientou que desde que se tornou professor da UAC, h quase uma dcada, no havia mais tido contato com organizaes deste tipo e, portanto, pouco sabia do atual estado dessa outra economia na regio. Alertou que, do pouco que conhecia, a ES

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    parecia ser tratada como uma poltica pblica de cima para baixo e no como um movimento proveniente da iniciativa popular.

    A partir do contato com Maurcio Borba, formalizei junto UAC minhas intenes de pesquisar a Economia Solidria nos Aores em um projeto intitulado Economia Solidria nos Aores: cartografias estrangeiras, aprovado pela referida universidade. Esta formalizao se mostrou necessria para que eu pudesse utilizar as instalaes da UAC como base logstica de pesquisa, para alm de poder morar na sua Residncia Universitria.

    Na altura, j com o firme propsito de me mudar para a ilha de So Miguel, e devido proximidade geogrfica, resolvi conversar diretamente com Rogrio Roque Amaro sobre o assunto. Aps algumas tentativas de contat-lo sem sucesso durante o ano de 2008, ele gentilmente me recebeu, em abril de 2009.

    Nesse bate-papo pude discutir com Rogrio a respeito de sua elaborao terica sobre a Economia Solidria e sobre suas experincias com a temtica nos Aores. Conversamos tambm sobre a ACEESA e ele, ao saber da minha mudana para o referido arquiplago, me convidou a participar da 2 edio do Congresso Internacional de Economia Solidria, a ser realizado na mesma ilha em maio de 2009.

    Agradeci o convite e confirmei minha presena. Ele me indicou algumas cooperativas ligadas Economia Solidria para que eu visitasse na ilha de So Miguel, tais como a Cooperativa Regional de Economia Solidria dos Aores (Cresaor) e a Celeiro da Terra. Passou-me, tambm, nomes de algumas pessoas que eu poderia contatar para conhecer mais sobre as experincias de Economia Solidria desenvolvidas, dentre as quais: Jaime Malta (IAS), Jussara (Cresaor) e Janana (ACEESA).

    Ainda em abril de 2009, finalmente sa de Lisboa e me mudei para a Residncia Universitria da UAC, situada em Ponta Delgada, capital da ilha de So Miguel, nos Aores. J no desembarque comecei a buscar no aeroporto pistas que pudessem me ajudar na jornada insular.

    Morei por cinco meses ininterruptos nos Aores, durante os quais conheci diversas pessoas ligadas, em maior ou menor grau, ao que se d o nome de Economia Solidria no arquiplago e em Portugal.

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    Conversei com professores universitrios, funcionrios de diversos escales do governo da Regio Autnoma dos Aores e trabalhadores de diferentes organizaes no governamentais (ONGs). Conheci e dialoguei, tambm, com membros de vrias organizaes, os quais demonstraram diferentes entendimentos e vivncias dos valores e princpios do que chamado de Economia Solidria. Foi interessante notar que, dentre estas organizaes, apenas algumas so reconhecidas por determinados atores sociais como pertencentes ES.

    Muitos dos caminhos percorridos na ilha de So Miguel esto narrados, com mais detalhes, nos captulos 5 e 6 desta publicao. Durante os cinco meses de residncia no meio do oceano Atlntico foi possvel mapear algumas das interconexes que tangem o mundo da Economia Solidria nos Aores.

    Como j ressaltado, eu estava em busca de viver a confiana nas relaes estabelecidas entre os integrantes de organizaes autogestionrias e de conhecer e sentir como eles lidam com as marcas deixadas neles ao longo da vida, atento aos sentidos e significados adquiridos pela confiana nas relaes.

    A partir de vivncias conjuntas eu queria perceber em que medida a confiana poderia ser entendida como importante para a mobilizao coletiva deles em uma organizao autogestionria situada em um pas com estreita ligao com o Brasil, mas possuidor de contextos scio-histricos diferentes.

    Poderia ser a confiana, tambm nesses outros contextos, considerada como importante para a mobilizao coletiva, para o convvio dirio e para a consolidao de uma organizao pautada pelos valores tidos como pressupostos da ES?

    Por fim, em sociedades que buscam as generalizaes a qualquer preo, eu me questionava sobre que sentidos e significados a confiana adquire para membros de uma outra organizao autogestionria, em outro contexto, em outro lugar. Por fim, a partir da investigao no Brasil e em Portugal, em que medida organizaes de Economia Solidria diferentes se aproximam e se distanciam quando olhadas com foco na confiana?

    Em que medida organizaes autogestionrias diferentes, localizadas no Brasil e em Portugal, se aproximam e se distanciam quando olhadas com foco

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    na confiana? Que pistas as vivncias com essas organizaes nos do para compreender a importncia desse conceito nas relaes interpessoais? Pode ser, a confiana, entendida como um conceito-chave para duas organizaes consideradas como de Economia Solidria, mesmo em pases diferentes?

    Foi fundamental conhecer pessoas que, juntas, lutam por outros modos de vida a partir de atitudes baseadas em valores e princpios mais amorosos e humanos do que aqueles que parecem ser os dominantes hoje. Teve grande importncia ter tido a oportunidade de conhecer, conviver e trabalhar com os membros de uma cooperativa localizada na ilha de So Miguel, e poder participar de seus cotidianos, planos, desafios, histrias de vida, sonhos e medos.

    Como dito inicialmente, mais que uma sntese em forma de produto, o valor deste trabalho reside no seu carter processual, um processo-tese. Convido, portanto, os leitores para que percorram as diversas etapas deste trabalho, marcadas por transformaes, descobertas, emoes, construes, desconstrues e aprendizados, inclusive do prprio autor. O convite sugere que se abram s potencialidades de afetao presentes nos episdios aqui narrados e seus desdobramentos. Espero, dessa forma, que o trabalho possa afetar os leitores de formas diversas, suscitando perguntas, dvidas, questionamentos, inquietaes, aes e mudanas, principalmente na direo de mundos mais justos, igualitrios, solidrios e confiantes.

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    INTRODUO

    Construo do problema de pesquisa e objetivos Cada vez maior o nmero de pessoas que precisam trabalhar mais

    para conseguir os meios necessrios para sobreviver. Neste rastro, o trabalho-emprego e seus valores se expandem progressivamente para todas as esferas da vida no planeta: vive-se cada vez mais para trabalhar.

    Administrar uma organizao , na maioria esmagadora dos casos, sinnimo de buscar a gerao de lucros a qualquer preo. Basta olhar para o sem-nmero de tcnicas, ferramentas e modelos de gesto, cujo objetivo maior (e nico) o lucro financeiro, tratando todos os demais aspectos da organizao, da sociedade e do planeta, como meros recursos.

    curioso notar como esse prprio entendimento da gesto como o uso de ferramentas, tcnicas e modelos tende a despolitizar seus valores e fins, tratando-a como politicamente neutra e supondo que seus objetivos so comuns a todas as pessoas.

    Paralelamente, a poltica tratada como sinnimo de poltica partidria, e cada vez mais carrega um estigma negativo, ligado muitas vezes corrupo. Assim, ela perde sua caracterstica primeira e originria: poltico, do grego politiks, diz respeito a tudo aquilo que tem a ver com o que pblico e, portanto, com a organizao da vida em sociedade.

    Nesses contextos, a explorao de muitas pessoas para o benefcio de poucas, a competio, o entendimento do outro como adversrio ou mesmo como inimigo e o tratamento da cooperao e das parcerias como meramente utilitrias so apenas alguns dos valores construdos e estimulados, embora nem sempre de modo claro.

    Impressiona sentir que valores como o individualismo, o desejo de vencer a qualquer custo, de dominar e conquistar, bem como a preocupao maior com os resultados do que com os meios usados para atingi-los, so considerados como naturais. Progressivamente, sem refletir-se muito sobre que consequncias podem ensejar, esses valores so apropriados como prprios por muitos de ns e virtualmente tratados como necessrios para aqueles que desejam vencer. Dito de outro modo, esses valores e princpios

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    so expandidos no apenas para a gesto de empresas, mas para todas as reas da vida.

    As aes, posturas e atitudes que caminham em outras direes, guiadas por valores diferentes dos mencionados acima, tendem a ser entendidas como ingnuas, romnticas, loucas ou at mesmo criminosas. Os outros devem servir apenas enquanto ajudarem a potencializar os prprios rendimentos e interesses: utilitarismo nas relaes.

    raro perceber estmulos mobilizao coletiva, a formas de administrao que estimulem valores mais humanos, tais como a cooperao, a solidariedade e o igualitarismo. Mas h iniciativas que parecem no ter o lucro como objetivo primeiro, dentre as quais algumas associaes e cooperativas, nomeadas como pertencentes Economia Solidria (ES). Estas organizaes coletivas distinguem-se por buscarem valores tais como a autogesto, o igualitarismo e a primazia do humano frente a mxima do lucro financeiro a qualquer preo. preciso busc-las, ouvi-las, viv-las.

    A partir do convvio com os integrantes de uma associao de catadores de lixo em Porto Alegre, Brasil, originada justamente a partir da mobilizao coletiva de ento moradores de rua, pude, durante vrios meses, aprender com diferentes histrias de vida. Nesse mtuo conhecer-afetar, de diversos estranhamentos, aprendizados e afetos, a confiana foi se construindo como um tema de importncia, parecendo que poderia ser entendida como um elemento-chave na mobilizao coletiva, organizao em forma de associao e no consequente cotidiano daquelas pessoas.

    Como bem apontado por Luhmann (1979), a confiana um dos atributos que mais influem nas relaes interpessoais. E, em um mundo baseado na guerra (Ferreira, 2008) e na competio, a confiana parece ter um papel ainda mais importante em organizaes coletivas que buscam valores como os da ES.

    No se investiga a respeito de Economia Solidria apenas no contexto brasileiro. A partir de reviso bibliogrfica sobre o tema, possvel notar que a ES j vem sendo discutida com esse nome, no Brasil e em pases como Frana e Canad, desde meados da dcada de 1990. E, de alguns anos pra c tem se falado tambm em Economia Solidria em Portugal, e no mais tanto em

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    Economia Social, ainda que este ltimo conceito esteja presente na Constituio da Repblica Portuguesa.

    Para minha surpresa, nenhuma das publicaes portuguesas (Amaro, 2005; Amaro e Madelino, 2006; Cunha, 2005; Governo dos Aores, 2005; 2007) encontradas sobre Economia Solidria em Portugal retratavam experincias desenvolvidas por associaes e/ou cooperativas em solo portugus. Mostrava-se necessrio, ento, conhecer experincias portuguesas desta outra economia.

    Tambm no encontrei pesquisas dedicadas ao estudo da confiana no mbito desta outra economia. A confiana no faz parte, como valor-chave ou como princpio, das teorizaes a respeito da Economia Solidria no Brasil. No obstante, as teorias sobre o conceito da confiana foram elaboradas a partir de outros contextos e tipos de organizaes, diferentes das associaes e cooperativas consideradas como de Economia Solidria.

    E se, por um lado, existem aportes tericos sobre a confiana entre membros de organizaes privadas, o mesmo no pode ser afirmado a respeito de estudos dentro de organizaes de Economia Solidria, nem no Brasil, nem em Portugal. Nesse sentido, mostrava-se relevante e urgente o desenvolvimento de pesquisas que aprofundassem a confiana na viso dos integrantes de associaes e cooperativas, sob a pena de enquadrar os sentidos do conceito nessas organizaes a partir de referenciais elaborados em outros contextos.

    Apresentavam-se, ento, diversos problemas e mais perguntas do que respostas: qual importncia da confiana para a formao e posterior institucionalizao de um coletivo com as caractersticas da Economia Solidria? Que sentidos1 a confiana adquire nas relaes dirias entre essas pessoas? Como a confiana se manifesta, se constri e desconstri nas

    1 Adoto uma noo de sent ido inspirada em Gi l les Deleuze (1992: 161-162),

    para quem o sent ido de uma propos io o interesse que e la apresenta, a novidade que e la traz. O sent ido, na ex tenso deste trabalho, no se refere ao cer to ou ao errado, nem a uma ident idade referente a um signif icado estanque. Em contrapar t ida, e le d iz respei to s sensaes que uma propos io pode susc itar em circunstnc ias diferentes e s d iversas formas de l idar com elas . Dito de outra maneira, o sent ido tem, aqui , a ver com as maneiras pelas quais as propos ies afetam e constroem modos de ex istnc ia.

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    relaes cotidianas? O que ela suscita? Como os integrantes dessas organizaes lidam com as marcas produzidas pelo viver?

    E, ao pensar em dois contextos to diferentes como o portugus e o brasileiro, como duas organizaes diferentes de ES - uma no Brasil e outra em Portugal - se aproximam e se distanciam sob a tica da confiana?

    O primeiro problema de pesquisa se constri como justamente encontrar em Portugal uma organizao portuguesa que possa ser considerada, com base nos valores da Economia Solidria, como pertencente a esta outra economia. S a partir da que se pode buscar, ento, investigar sobre a confiana neste contexto.

    Portanto, o trabalho que aqui se introduz tem como objetivo geral analisar as aproximaes e distanciamentos entre duas organizaes de Economia Solidria uma no Brasil e outra em Portugal sob a tica da confiana.

    Para dar conta desse objetivo geral, tendo em vista que j existia contato com uma organizao brasileira de ES, este estudo tem como objetivos especficos:

    a) Identificar e conhecer uma organizao de Economia Solidria em Portugal;

    b) Investigar, nas relaes cotidianas entre os integrantes das organizaes no Brasil e em Portugal, como lidam com as marcas produzidas pelo viver, ou seja, como a confiana se manifesta, se constri e se desconstri, bem como que sentidos ela adquire e o que suscita.

    Procuro situar esta tese como parte de uma realidade complexa como a contempornea, sem a preocupao de aprision-la dentro barreiras disciplinares rgidas. Para tanto, considero relevante expor, desde o incio deste trabalho, algumas brevssimas reflexes sobre a concepo de cincia adotada neste trabalho, bem como a respeito das polticas - inclusive metodolgicas - que o norteiam.

    Nesse sentido, abordo a seguir uma breve discusso a respeito do conhecimento e da cincia. Passeio pelas origens histricas e de diversas modalidades de cincia, abordando tambm as Cincias Humanas e Sociais (CHS). Neste ponto, dialogo com dois mtodos bastante usados nas CHS,

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    etnografia e pesquisa-ao, analisando suas caractersticas e contrastando-as com os objetivos deste trabalho, j abordados anteriormente. Por fim, reflito a respeito de uma necessria postura/poltica de pesquisa que no dissocie a cincia de uma tica, esttica e poltica, concluindo com a apresentao do mtodo cartogrfico e o resumo e ordem dos captulos desta tese.

    O que chamamos de cincia? Voltar s supostas origens da filosofia dita ocidental de extrema

    importncia para refletir a respeito de temas como conhecimento e cincia, tal como me proponho neste momento do trabalho.

    No perodo compreendido entre os sculos XII e V a. C., tambm chamado de perodo pr-socrtico, Parmnides versou a respeito da exigncia de identidade na clebre frase atribuda a ele: o ser , o no ser no (Souza Filho, 1998). Em sua concepo, pensar o ser como algo diferente do que idntico a si mesmo seria um erro, j que contrariaria a imobilidade e a invariabilidade da lgica e da realidade.

    J para Herclito tudo seria movimento e, portanto, nada poderia ser idntico a si. bem conhecida a sua frase ningum pode banhar-se duas vezes no mesmo rio (Souza Filho, 1999b), pela qual se referia ao fluxo contnuo do que chamamos realidade, incompatvel com qualquer nvel de permanncia.

    Ao considerar-se que nada permanente e que tudo desaparece em um contnuo processo de tornar-se outra coisa, como designar alguma coisa? O que est em jogo o conhecimento da realidade e a possibilidade de uma experincia do mundo (Leopoldo e Silva, 2009: 8).

    Plato pode ser considerado como o nome mais importante no que se refere ao incio da filosofia ocidental. Ele era um ateniense do sculo IV a. C., decepcionado com sua cidade. Sua obra, ao mesmo tempo em que define o que a filosofia, define tambm a razo. Como apontado por Marilena Chau (2002: 225), foi a filosofia de Plato que estabeleceu, pela primeira vez no ocidente, os critrios da racionalidade.

    As especulaes quanto ao conhecimento e sua forma de aquisio vieram a ser notrias a partir de Plato. Uma das interpretaes predominantes de sua obra diz respeito ao dualismo platnico, isto , instaurao de dois

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    mundos (Leopoldo e Silva, 2009: 9): o das formas, mundo sensvel, lugar das aparncias instveis, e o mundo das ideias, inteligvel, lugar das essncias eternas e imutveis.

    Plato foi discpulo de Scrates e acreditava ser impossvel obter o verdadeiro conhecimento no plano das sensaes. Chau (2002) ainda lembra da afirmao socrtica de que o bem mais precioso do ser humano a sua alma racional, graas qual pode ser justo e praticar a virtude.

    O pensamento de Plato considera que existem formas ideais ou essncias de todas as coisas sensveis. Em outras palavras, para cada coisa existente h, no mundo das ideias (Silva, 2009: 42), um modelo eterno daquilo que captado pelos sentidos.

    possvel perceber influncias da matemtica, principalmente dos pitagricos, na filosofia platnica, em especial no sentido da aplicao das formas. Souza Filho (1998: 56) relata a inscrio, no prtico da Academia de Plato, da seguinte frase: Que ningum entre se no souber geometria. Para Plato, assim como existem as formas matemticas universalmente aplicveis, tambm existem ideias ou valores, igualmente universais.

    Rech (2005: 32) faz uma interessante anlise ao considerar que Plato abriu uma pgina da filosofia que jamais se fechou: a busca do pensamento verdadeiro pela introspeco, na interioridade, no a priori, devido a uma desconfiana com relao a tudo que tem origem na percepo dos sentidos. Mas Plato no estava sozinho em sua poca. Enquanto Atenas enfrentava grave crise democrtica, ele tinha os sofistas como culpados pela crise, devido a considerar suas concepes de educao como perversas, fundadas apenas nos desejos e interesses dos indivduos.

    Por sua vez, os sofistas afirmavam que nem todo individualismo conduziria ao egosmo, mas que, ao contrrio, o interesse individual seria conduzido para a busca de uma coerncia na vida social, atingida justamente pela construo de consensos. Isso poderia explicar a importncia da oratria, da palavra e do discurso na educao dos sofistas. Estes no seguiam nenhuma teoria e muito menos um sistema filosfico (Rech, 2005: 35), para alm de buscarem a total autonomia do ser humano. O homem no possuiria mais, fora de si, qualquer referncia ou garantia de verdade. No haveria nem

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    cincia nem conhecimento verdadeiro, mas um fluir de opinies em constante mutao. Plato criticava os sofistas considerando que lhes faltava consistncia intelectual, para alm de julg-los como os grandes responsveis pela produo da ignorncia, da injustia e da violncia. Para Plato, a segurana e a estabilidade podiam ser consideradas como caractersticas necessrias e fundamentais a qualquer pensamento, motivo pelo qual, em seu entender, no se poderia permanecer em um patamar no qual se tratasse como verdadeiro o pensamento relativista dos sofistas.

    Contra a subjetividade e a relatividade, Plato ressuscitou Scrates no embate com os sofistas, estabelecendo princpios universais para direcionar a vida, tanto nas esferas individual e privada quanto no exerccio de suas atividades pblicas. No exagerado afirmar, portanto, que a busca de valores universais definia o caminho platnico para se chegar ao conhecimento.

    O caminho para esse conhecimento verdadeiro estaria na superao da retrica pela lgica, dando fim aos conflitos de opinio: uma busca do valor universal, fundado exclusivamente na razo humana, em um esforo espiritual que purificaria a alma no rumo do conhecimento da essncia, do conhecimento puro. A busca do Justo, do Belo e do Bem so exemplos que mostram que toda a filosofia platnica convergiu, em grande medida, para ideias que se revestissem de carter universal e que servissem de referncia ao agir humano.

    Segundo Chau (2002: 284), Plato inaugurou, no pensamento ocidental, a ideia da razo como cincia. Na concepo de Martins (1999: 88-89), Plato foi o primeiro a considerar a vida como perigosa e a desejar uma ordem que a cristalizasse, dominasse e controlasse. E esse domnio somente poderia ser conseguido a partir daquilo que levasse ao mundo do controle: a razo, a qual necessitaria se impor sobre a carne, o corpo, a matria, a natureza, os sentidos, bem como sobre os entes e povos que no a tivessem. Ele menosprezaria, portanto, o corpo, a matria e os sentidos, valorizando um mundo moral, racional, idealizado.

    interessante trazer os apontamentos de Silva (2009: 41), para quem a nota caracterizadora da razo o conhecimento. O termo conhecimento tem origem no latim cognoscere, ou seja, procurar saber, conhecer (Harper, 2001).

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    Consiste na apropriao intelectual de determinado campo emprico ou ideal de dados, tendo em vista domin-los e utiliz-los (Japiass e Souza Filho, 2006).

    A ideia central a de que a razo (ou seus correlatos: o entendimento, o intelecto, a mente, etc.) se encontra acima da natureza, fora desta, separvel do mundo que ela observa e manipula: mundo pronto, estvel, dj-l, espera de contemplao e observao. Ou seja, existiriam dados.

    Foi a partir da contribuio de Scrates e de Plato, portanto, que se construiu o que chamo, neste trabalho, de racionalismo metafsico socrtico-platnico, apoiado em divises dicotmicas do mundo (formas/ideias, bem/mal, sensvel/inteligvel, aparncias/essncias, entre outras), que no eram realizadas pelos pr-socrticos.

    Aristteles, outro filsofo de grande importncia e discpulo de Plato, por sua vez, possua entendimento diferente. Para ele, o verdadeiro conhecimento s seria atingido quando as causas do ser fossem enunciadas, visto que s seria possvel conhecer algo quando se soubesse o seu porqu. Todo ser possuiria quatro causas (Leopoldo e Silva, 2009: 8): material - que consistiria em dizer do que o evento formado -, formal - aquela que diria a forma como o evento se d -, eficiente - conceituada como o porqu de algo ter acontecido - e, por sua vez, a causa final, que explicaria para qu algo aconteceria.

    Aristteles no foi, como Plato, o filsofo da dicotomia metafsica pela qual so concebidos dois mundos hierarquizados. Ele procurou distinguir, na mesma realidade, os elementos que se referem ao contedo sensvel e aqueles que, do ponto de vista inteligvel, tm a funo de ordenar a multiplicidade para que ela ganhe coerncia e sentido para encontrar-se, a mesmo, a verdade (Leopoldo e Silva, 2009: 9).

    O raciocnio lgico serviria para Aristteles somente como garantia da correta apreenso dos universais, isto , para assegurar que a matria e os sentidos no causaram enganos nesta operao intelectual. De acordo com o entendimento de Martins (1999: 85) a respeito do pensamento aristotlico, as essncias definiriam a universalidade das coisas e se encontrariam incorporadas na matria. Ou seja, enquanto para Plato as essncias estariam em um mundo parte, servindo apenas de modelo exterior para as coisas,

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    para Aristteles elas se encontrariam encarnadas na matria. Mas ambos consideravam que as coisas possuam essncias e buscavam-nas.

    A Gnoseologia (do grego gnosis: conhecimento, e logos: teoria, cincia) se preocupa em estudar a origem, a natureza o valor e os limites da faculdade de conhecer. Como ramo autnomo, a Gnoseologia no existia nem na Antiguidade nem na Idade Mdia, apesar das teses propostas por Plato e Aristteles. A disciplina da Teoria do Conhecimento s passou a existir, de fato, em 1690 com a obra de John Locke, intitulada An essay concerning human understanding. Portanto, o iderio do que considerado cincia fruto de uma viso de mundo datada, que encontra seus primrdios na metafsica socrtico-platnica. importante ressaltar que os pressupostos de Scrates, Plato e Aristteles no passaram o tempo sem receber crticas. Uma das correntes crticas frente a estes posicionamentos foi a dos cticos. Os argumentos cticos problematizaram a tese de que a realidade existe de modo determinado, independente do nosso conhecimento, e de que esta realidade pode ser conhecida tal como ela (Souza Filho, 1999a : 11-12). Eles tambm questionaram as noes de verdade e certeza.

    A crtica dos cticos era voltada principalmente contra o apelo aos poderes do intelecto - desde a luz natural at a iluminao divina - como garantia de conhecer o real tal como este e apreender seus princpios, de penetrar em sua essncia, pressuposto combatido pelos cticos (Souza Filho, 1999a: 2, grifo meu).

    Os cticos provavelmente foram os primeiros na filosofia antiga a questionar a definio de cincia como tendo por objetivo o conhecimento das causas, a partir da ideia de que no podemos ser causa do real, mas apenas de nossas prprias representaes. Ao rejeitarem o apelo intuio como capaz de produzir evidncias, os cticos admitiram que nosso conhecimento fosse sempre parcial e limitado (Souza Filho, 1999a: 14), embora, ainda assim, devesse ser considerado como conhecimento.

    Ainda que no se pudesse ter um conhecimento absoluto, evidente e definitivo sobre a totalidade do real, para os cticos poderia se fazer cincia se fosse redefinida a concepo de conhecimento cientfico, separando-o da

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    metafsica socrtico-platnica e renunciando-se ao conhecimento das essncias e dos primeiros princpios. A concepo de que conhecemos aquilo que criamos, isto , de que o conhecimento se manifesta e se concretiza no ato de criar ou fazer algo, ope-se ideia da contemplao de verdades eternas e imutveis, independentes do intelecto humano e s quais este ganha acesso atravs de uma faculdade privilegiada, tal como o pensamento intuitivo. Entretanto, o pensamento intuitivo e a doutrina da iluminao (da luz da razo) a ele associada possuem uma longa tradio e uma grande influncia na formao da filosofia ocidental.

    A doutrina da iluminao, segundo a qual um poder de carter transcendente, representado pela metfora da luz, torna possvel o conhecimento e o entendimento da realidade foi um dos principais elos entre a tradio judaico-crist e a cultura helenstica, de cujos desdobramentos derivou-se a filosofia crist medieval, sobretudo de inspirao agostiniana, ou, mais genericamente, neoplatnica (Souza Filho, 1999b).

    Durante o pensamento medieval foram construdos contextos em que essa doutrina se estabeleceu como soluo para o problema do conhecimento, mantendo que a mente humana possua em seu interior uma capacidade de ver a essncia das coisas, tornada possvel pela origem, em ltima instncia divina, dessa viso. Este contexto serviu de ponto de partida para a regra da f de Lutero (mais na linha fidesta2) e para a epistemologia cartesiana (mais na linha racionalista3), de acordo com Souza Filho (1999a: 8).

    As religies tiveram enorme influncia em assuntos ligados ao conhecimento durante grandes pocas e continuam tendo at os dias atuais. Podendo ser compreendida dentro da linha fidesta, a teoria agostiniana (Agostinho, 1936) procurou mostrar que nosso conhecimento do real s seria possvel na medida em que nossa mente possusse uma centelha do fogo

    2 dentro da qual deve-se conf iar na exper inc ia da f e cuja verdadeira

    c inc ia a c inc ia de Deus. Esta pos io remete a Nicolau de Cusa e Pico del la Mirandola, bem como a Lutero e seu apelo f. Enquanto os cat l icos apelavam autor idade e tradio milenar da Igreja, Lutero apelava consc incia ind ividual e regra da f como cr i tr io de val idade e autent ic idade da in terpretao da palavra de Deus (Souza F i lho, 1999: 4-5) . 3 cujo pr inc ipal nome Descartes. Visava negar os quest ionamentos ct icos e

    inst i tu ir uma teor ia do conhec imento racional , contra a af irmao ct ica dos l im ites do conhec imento humano. A in tuio in te lectual ser ia o pr inc ipal meio de acesso verdade.

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    divino, pelo fato de termos sido criados imagem e semelhana de deus (Souza Filho, 1999a: 7).

    Uma cincia moderna Foi a partir do sculo XVI, principalmente com a corrente racionalista

    mencionada, que se viu o advento da cincia na sua forma considerada moderna, principalmente devido influncia de homens como Coprnico, Newton e Galileu. Para eles, a razo se colocava frente da religio como forma de regular e dominar a vida e a sociedade. O deus platnico, aristotlico e medieval refletia um desejo supostamente humano de segurana e de controle dos imprevistos.

    Em 1543 Coprnico defendeu o sistema heliocntrico, baseado em clculos, segundo uma inspirao pitagrico-platnica que considerava a matemtica como a linguagem apropriada para se obter a verdade acerca da natureza.

    Giordano Bruno (1548-1600), padre dominicano e cosmlogo copernicano, contestou em seus livros os dogmas escolstico-aristotlicos, tendo por isso sido queimado nas fogueiras da Inquisio, em 1600.

    Ren Descartes (1596-1650), cerca de dois mil anos depois de Plato, considerou que as ideias claras eram as que no se deixavam misturar aos sentidos, pois o corpo seria a fonte da confuso e obscuridade das ideias. Ele desenvolveu a histria de uma razo considerada separada do corpo da natureza, assim como de seu prprio corpo, desejada pelo intelecto e assim idealizada por ele.

    Descartes, um dos grandes vultos do pensamento racionalista, afirmou em seu livro O Discurso do Mtodo (Descartes, 1649), que o homem, por ser um animal racional, possuiria a faculdade de bem julgar e de discernir o certo do errado. Todavia, como nem todos utilizariam de maneira correta a razo, da surgiria a necessidade de um mtodo, ou seja, um caminho que levasse de maneira segura aquisio da verdade.

    Com isso, ele props um mtodo universal que sintetizou os princpios do reducionismo, do mecanicismo e do racionalismo: ao considerar o corpo como uma mquina e a razo como separada deste, seria possvel objetivar a

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    natureza-objeto em oposio a um ego-sujeito (Martins, 1999: 86), o qual ento a ordenaria, dominaria e manipularia, dividindo-a em quantas partes fosse possvel.

    A ideia de que para se conhecer melhor seria preciso dividir se tornou uma regra do mtodo cientfico decorrente da concepo cartesiana. Decompondo-se a realidade seria possvel entender melhor suas partes, isoladamente mais simples, para depois recompor o todo. Esta concepo foi construda com base no pressuposto de que o mundo seria estvel e ordenado.

    O ego cogito cartesiano (penso, logo existo), reproduzindo em grande parte a metafsica socrtico-platnica, criou o dualismo sujeito-objeto, colocando o primeiro como possuidor de uma verdade universal a respeito do segundo. Assim, a filosofia ocidental (eurocntrica) assumiu o papel de sujeito possuidor de uma conscincia universal fundamentada na ideia de pensamento cientfico (Alcadipani e Rosa, 2010: 375).

    Como desdobramento disso, Dussel (1994) argumenta que, antes mesmo de Descartes criar o ego cogito, a expanso colonial europeia, deflagrada a partir de 1492, havia criado o ego conquistus (conquisto, logo existo). Ou seja, a arrogncia do pensamento cientfico ocidental de se colocar no lugar de um deus, como sujeito possuidor de uma verdade universal, foi precedida pelas condies histricas, polticas, econmicas e sociais geradas pela colonizao do mundo no ocidental. No exagerado ressaltar que todo conhecimento produzido sempre situado, pois falamos sempre de algum lugar nas relaes de poder, uma vez que ocupamos ao mesmo tempo um lugar epistmico e um lugar social (Mignolo, 2002). Entretanto, na perspectiva ocidental eurocntrica acima mencionada, de base cartesiana e inspirada na metafsica socrtico-platnica, prevalece o ego no situado, escondido atrs da enunciao sem nome e sem rosto, em busca do conhecimento dos universais, dos dados, da verdade. Ao desvincular o lugar epistmico do lugar social (Alcadipani e Rosa, 2010: 375), a figura do sujeito universal fica preservada, garantindo assim sua suposta neutralidade.

    Um dos elementos mais importantes do mtodo cartesiano foi a aplicao sem precedentes da anlise. Como afirma Demo (1995), foi a anlise que tornou possvel, por exemplo, o conhecimento controlado.

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    A anlise seria a demonstrao da racionalidade por parte de um sujeito com discurso coerente e consistente sobre um objeto, colocando o desafio da objetividade. A anlise permitiria, assim, definir, apontar ideias claras, conceitos delimitados e teorias supostamente transparentes, o que foi fundamental no desenvolvimento de alguns aspectos da sociedade ocidental.

    E, de acordo com essa proposta cartesiana, o formalismo metodolgico sustenta-se na neutralidade/objetividade, com forte mitificao da racionalidade. Os humanos tornam-se seres basicamente racionais, que usam sua capacidade unida a uma cuidadosa observao do mundo exterior, para a produo de um conhecimento considerado cientfico e para o consequente domnio da natureza, tendo como meta abordar a natureza essencial das coisas, a partir da noo de verdade.

    A era moderna caracterizada, em sua acepo dominante, entre outras coisas, por uma transio do domnio da tradio - marcada pelo hbito e pelos costumes - para o domnio do conhecimento racional. Entretanto importante ressaltar, a partir das origens da filosofia ocidental aqui abordadas, a ligao entre os pressupostos da era moderna e aqueles da metafsica socrtico-platnica. Vale lembrar que, conforme Veiga-Neto (2002), o paradigma da cincia moderna encontra-se calcado na razo, na conscincia, no sujeito soberano, no progresso e na totalidade do mundo.

    Ou seja, a cincia moderna surgiu de uma dupla exigncia: da necessidade de experimentao, rompendo assim com a cincia medieval e, ao mesmo tempo, essa experimentao exigida em nome de um princpio oriundo tanto do platonismo quanto do aristotelismo: a busca dos universais.

    A crena em um princpio fundamental, que Scrates e Plato formularam como o bem, e o cristianismo como deus (Nietzsche, 2001), transposta para o domnio da cincia, fundamenta a crena em um mundo metafsico e em uma verdade incondicionada. Dessa linha resulta, segundo Nietzsche (2005), uma indelvel moralizao da cincia, que ento abandona sua justificativa inicial - a busca do conhecimento - e passa a almejar uma verdade definitiva e estvel, o que determina seu atuar segundo pressupostos morais restritivos.

    Nietzsche (2005) adota o ponto de vista de que aquilo que caracteriza a cientificidade seu procedimento metodolgico, e no a posse da verdade. Ele

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    recusa a existncia de um nico mtodo possvel para a cincia. Para ele, a cincia est separada da posse da verdade e no possui parmetros restritivos, j que o estabelecimento de critrios e parmetros com vistas determinao de seus interesses, metas e contornos so procedimentos morais e no cientficos. Nietzsche apoia-se na ideia que a subordinao do conhecimento moral vem do realismo moral, originado desde Scrates e Plato e da crena de que o conhecimento correto advm de aes (e mtodos) corretas.

    Como afirma Santos (2005), segundo a mecnica newtoniana, o mundo da matria uma mquina cujas operaes so determinadas exatamente por meio de leis fsicas e matemticas, um mundo esttico e eterno a flutuar num espao vazio, um mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscvel por via da sua decomposio nos elementos que o constituem.

    A influncia do desenvolvimento da fsica foi to grande na humanidade que diversas outras reas do conhecimento ainda buscam obter a mesma credibilidade que esta chamada cincia natural. Em geral, isto feito a partir da busca incessante pelo que se acredita ser o mtodo emprico da fsica. Este mtodo cientfico consistiria na coleta de dados, livre de preconceitos, por meio de cuidadosa observao e experimentao, seguida da consequente derivao de leis e teorias por algum tipo de procedimento lgico.

    Entretanto, existe um problema que diz respeito impossibilidade de uma inferncia livre de preconceitos. Mesmo a observao mais simples depende de experincias anteriores. A compreenso do que so objetos ou dados s possvel porque h um conjunto de experincias vividas anteriormente.

    No foi por acaso que os empiristas (do grego empeiria, experincia sensorial) chegaram de modo distinto dos racionalistas s suas concluses. Apesar de no serem homogneas as teses dessa corrente, de modo geral, para seus autores a mente pode ser considerada um receptor de tudo aquilo que captado mediante os sentidos: nada vem mente sem ter passado pelos sentidos.

    Francis Bacon (1561-1626) props a unio da razo e da experincia, inaugurando o mtodo indutivo-experimental, visando descoberta das formas

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    e de movimentos ocultos que estariam na origem das propriedades de base ou da natureza das coisas.

    Os empiristas ingleses do sculo XVII questionavam a possibilidade da metafsica: a forma ou mtodo de se obter a verdade consistiria na induo, ou seja, na generalizao a partir de uma experincia com caractersticas constantes. No entanto, este pensamento foi refutado pelo mais radical dos empiristas: David Hume.

    Hume pode ser considerado como um dos que negaram totalmente a possibilidade da metafsica. Ele afirmava ser a causalidade nada mais que um hbito adquirido pelas nossas mentes, o que levaria convico que os fenmenos possuiriam essa propriedade de constncia.

    Desde a poca de Plato, ainda outros pensadores negaram a metafsica dicotmica de inspirao socrtico-platnica e compreenderam o corpo e a alma corno uma nica coisa, tais como Herclito, Espinosa (1632-1677) e Nietzsche (1844-1900).

    Nem a prevalncia do biolgico sobre o cultural, nem a do social sobre o orgnico. Espinosa, contemporneo de Descartes, explicitou, contrariamente concepo cartesiana (de inspirao socrtico-platnica, como j mencionado), a compreenso do real como nico. A mente no poderia destacar-se do corpo, excluir-se da natureza material, corprea, para dizer-lhe ou ditar-lhe a verdade, como um sujeito observaria um objeto em uma relao neutra e de total exterioridade (Martins, 1999: 99).

    Na concepo de Espinosa, a linguagem, a cincia e os discursos seriam apenas suportes (Martins, 1996: 35) de compreenso do sentido, o que se daria a cada instante na vida. No mais redues, representaes ou substituies da vida real. O sentido, o objeto em movimento, vivencivel, sensvel, relacional, no se confundiria com o suporte; o suporte faria compreend-lo, no sendo mais considerado como descritor de sua suposta essncia. Ou seja, o mundo do suporte e o mundo sensvel seriam aceitos como um s (Martins, 1999). Espinosa j propunha isso desde o sculo XVII.

    J Nietzsche, cerca de duzentos anos depois de Espinosa, elaborou sua crtica metafsica ocidental com base no questionamento da existncia de uma realidade subjacente e estvel (Barros, 2008: 63).

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    A predicao do objeto d-se de acordo com o interesse de nossas consideraes (Nietzsche, 2005), sendo a percepo sensorial a base dos juzos e do conhecimento humano sobre as coisas (Zichy, 2002: 39, citado por Barros, 2008). Uma perspectiva cientfica que despreza este carter falha, devido a seu desconhecimento do homem, e, precisamente por isso, ineficaz, no cientfica e, portanto, contraditria, se compreendida no contexto da cultura ocidental em seu anseio pela verdade (Barros, 2008: 67). Aspirar verdades definitivas por meio das faculdades cognitivas seria, para Nietzsche, falta de rigor cientfico.

    Nietzsche (2001) criticava a superestimao da conscincia no processo de conhecer. Para ele, a pretenso de considerar a conscincia e a racionalidade como fontes nicas de uma possvel verdade acabou por circunscrever a interpretao do saber em um mobilizar formal de conceitos vazios.

    Segundo Nietzsche (2001), os princpios mobilizados pelo racionalismo metafsico foram determinantes para o distanciamento do mundo e para a superficialidade cientfica da metafsica. Ele viu um processo de moralizao da cultura, identificado por ele como responsvel pela supremacia da perspectiva universalizante da metafsica e da cincia no Ocidente a partir de Scrates.

    Em outras palavras, o que Nietzsche visava com a crtica tanto do racionalismo metafsico quanto do universalismo moral cristo era, fundamentalmente, denunciar o processo histrico de falsificao e negao da efetividade tal qual ela se apresenta na metafsica em favor de perspectivas moralizantes e sem carter cientfico pleno (Nietzsche, 2005).

    Desse modo, para Nietzsche, contrariamente interpretao cartesiana, a conscincia (cogito) deixa de ser uma certeza imediata e de poder apreender de maneira direta e neutra os objetos a ela exteriores. Quanto aspirao cientfica ocidental, o problema ento consistiria em atribuir-lhe atribudo um valor superior, devido ao fato de ser com base nela que o homem mostraria o seu agir como ser racional.

    No parece mera coincidncia que a aplicao do termo cientfico, oferecida pelo senso comum, em geral, implique um grau superior de confiabilidade a uma afirmao qualquer (Bertucci, 2010: 10).

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    A arqueologia do graduado em Filosofia e Psicologia Michel Foucault (2007) uma crtica prpria ideia de racionalidade, chegando ao ponto de abandonar a cientificidade e o prprio conceito de cincia (trocado pelo de saber). Ele (Foucault, 2007) chamou ateno para o fato de que o que est em questo, quando se fala da vida, so os corpos reais, considerados no apenas enquanto organismos - muito menos objetivados e normatizados por uma racionalidade cientfica redutora -, mas enquanto indivduos relacionais, simblicos, histricos e polticos.

    O estudo de Foucault (2007) denuncia que, no momento em que a cincia acreditava estar sendo o mais cientfica e objetiva possvel, ela estava cega justamente pela confiana em seu prprio progresso, em sua prpria histria, estabelecendo uma construo to mais perversa e mitificadora (e, portanto, no cientfica) quanto se acreditava mais neutra e natural e se naturalizava como algo objetivo, concreto, real, neutro ou, em uma palavra, cientfico.

    Como bem apontado por Bertucci (2010), o mtodo se tornou um artifcio de controle do conhecimento e no do seu desenvolvimento. Quando se diz o que cincia, est se apontando tambm o que deve ser cincia, segundo um conjunto de valores e normas considerados importantes no campo acadmico, socialmente construdo. Em outras palavras, a demarcao entre o conhecimento cientfico e no cientfico fundamentalmente normativa (Bertucci, 2010: 19), moral (Nietzsche, 2001).

    Todo critrio de cientificidade reflete o desejo humano de contar como cientfico - ou como vlido - apenas o que transmita uma apaziguadora aparncia de certeza e inquestionabilidade (Martins, 1999: 102), ou seja, valor de verdade universal.

    Ademais, se o mtodo com o qual o conhecimento cientfico se desenvolve obedece a um conjunto de normas, socialmente construdas e, consequentemente, historicamente mutveis, h relaes entre os resultados do conhecimento cientfico e o contexto no qual ele desenvolvido.

    As ideias de neutralidade e objetividade do conhecimento, ao burocratizarem a cincia, rompem (apenas aparentemente) com qualquer elemento de subjetividade no fazer cientfico que conecte o homem diretamente a uma viso de si e do mundo. Isso carrega uma separao

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    entre o eu e o mundo, na qual o ltimo est l espera de ser conhecido e desvendado pelo primeiro. Afinal, conhecer e definir o mundo , tambm, conhecer e definir a si mesmo, e analisar significa tambm interpretar e ressignificar o mundo (Bertucci, 2010: 20, grifo meu). Ter essa conscincia permite evitar a iluso da objetividade da cincia, assim como redirecionar as crticas, muitas vezes, para ns mesmos.

    Cincias Humanas e Sociais O surgimento e a ascenso das chamadas Cincias Humanas e Sociais se inserem em contextos marcados por abordagens traduzidas por meio de experimentos, com o intuito de compreender a realidade (Romagnoli, 2009: 166). As bases so observar, analisar, compreender e concluir.

    O pensamento positivista, do qual Comte (1856; 1899) reconhecido como um dos principais representantes, se baseou na ruptura entre o sujeito e o objeto, possibilitando a apropriao de modelos e mtodos das Cincias Naturais como garantia e critrio da verdade do conhecer. A verdade do objeto estaria assegurada pela fiel e comprovada apreenso emprica, pela possibilidade de repetio, refutao e experimentao, descrio do objeto em sua representao, forma de manifestao imediata ou aparncia. Tanto mais verdadeiro seria o seu conhecimento quanto mais fossem fiis sua descrio e representao, de maneira que qualquer sujeito poderia comprovar a sua verdade, desde que garantidos os mesmos procedimentos e regras de conhecer (Miranda e Resende, 2006: 513).

    Boaventura de Souza Santos (2005) nota duas tendncias diferentes em relao s cincias do homem: a primeira busca aplicar s Cincias Sociais os princpios das chamadas Cincias Naturais, a partir do exemplo aparentemente bem sucedido da Fsica. A segunda reivindica s Cincias Sociais um estatuto metodolgico e epistemolgico prprio. Ambas seriam limitadas, j que, ainda segundo Santos (2005), a primeira falharia ao no compreender o prprio desenvolvimento metodolgico da Fsica para poder aplic-lo, e a segunda porque dividiria artificialmente o mundo social e o mundo natural, criando uma barreira para compreender sua interdependncia.

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    A partir da segunda metade do sculo XX, comearam a ser mais desenvolvidas pesquisas consideradas qualitativas, as quais visavam o aprofundamento no mundo dos significados das aes e das relaes humanas. Surgiu, nesse momento histrico, a distino entre pesquisa quantitativa e pesquisa qualitativa (Smith, 1994). Embora revolucionrias em relao s pesquisas quantitativas e experimentais, muitas modalidades de pesquisa qualitativa ainda se amparavam (e o fazem at hoje) no paradigma moderno de cincia. Se nas Cincias Naturais so feitos experimentos para alcanar as verdades do mundo, no mbito das Cincias Humanas e Sociais necessrio transitar por um campo terico estabelecido e legitimado e realizar estudos coerentes com o estatuto de cientificidade dessas reas especficas para se atingir a verdade ou para se construir um conhecimento vlido. Nessa articulao a teoria aplicada ao objeto de estudo de forma interpretativa, sustentando um conhecimento que , em si, reducionista e homogeneizante. Ou seja, o paradigma moderno parte do pressuposto que a teoria separada do objeto e que no so, de fato, indissociveis (Romagnoli, 2009: 167-168).

    At os dias atuais os mtodos cientficos ainda permanecem sendo encarados, em grande medida, mesmo nas Cincias Humanas e Sociais, como instrumentos para a explicao da verdade, embasados, como vimos, na ligao teoria/procedimentos metodolgicos. E a racionalidade, mesmo que seja tema de grande questionamento, repousa como a garantia de seu alcance (Romagnoli, 2009: 168).

    interessante reparar nas inspiraes cartesianas. Mais ainda, curioso e intrigante perceber a (re)produo da metafsica socrtico-platnica ao longo de diferentes sculos, no apenas como concepo-base do que cincia e conhecimento, mas simultaneamente como elemento central da viso de mundo e de vida.

    Para Caria (1999: 13), na economia dos trabalhos de investigao, a reflexo epistemolgica e metodolgica ocorre predominantemente em forma de manuais que tendem a descontextualiz-la da prtica cientfica, esquecendo-se que no existem mtodos, mas sim metodologias (Almeida e Pinto, 1980), ou seja, estudos relacionados aos mtodos.

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    A tentao maior a de excluir do campo cientfico tudo aquilo que no se apresente na forma e no estilo dominantes, em vez de aceitar o debate sobre as fronteiras da cincia e sobre as interconexes das prticas cientficas com outras prticas sociais (Caria, 1999: 14). De acordo com este autor, quanto mais perifrica a posio e trajetria no campo, mais os socilogos-investigadores so confrontados, nos seus processos de profissionalizao, com a necessidade de justificar as suas concepes de cincia a outros.

    No podem ser negados os avanos das Cincias Sociais desde o seu surgimento, assim como a importncia do reconhecimento da Sociologia como cincia. Dentro das Cincias Sociais, mesmo a Sociologia comeou a se dividir em ramos cada vez mais diferenciados. A anlise de Norbert Elias (1980), alicerada na histria da cincia, permite contextualizar essa questo, no se podendo entender o que cincia, e mais propriamente Sociologia, sem se pensar sobre todo o processo de diviso social do trabalho cientfico que se deu nos ltimos sculos.

    Entretanto, a preocupao excessiva em delimitar o social ou em desenvolver anlises estritamente sociolgicas fatalmente levou negligncia em relao aos seus vnculos com outras esferas, que so apenas distinguveis em termos de uma lgica formal, como conceitos analticos, e no como entidades opostas a indivduos biolgicos e psicolgicos (Velho, 1995).

    Para Telmo Caria (1999: 16), a Sociologia precisa pensar e repensar a quem se dirige, para quem faz cincia e como da decorre o modo como se faz cincia social: apenas para os socilogos? Para legitimar decises e prticas poltico-jurdicas e novos e velhos discursos crticos sobre a realidade social? Ou para estimular a capacidade reflexiva e de ao de atores sociais que aspiram a mudanas institucionais e/ou a transformaes nas relaes sociais (a comear pelas prprias prticas cientficas)?

    Este ponto de discusso traz tona a dimenso poltica relacionada ao trabalho cientfico, que no aceita e nem desejada por todos os profissionais acadmicos. Max Weber (2001; 2005) foi um dos mais reconhecidos dentre os que demonstraram uma persistente resistncia a todo tipo de contaminao do conhecimento cientfico pela poltica.

    Assim, esmiuar os mecanismos de controle social latentes na produo cientfica fundamental para qualquer estudo que reconhea a necessidade de

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    autonomia e respeito diversidade. A metodologia da c