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Teatro - TNSJ Saturday Night.pdf · encenadas de Gregory Crewdson ou de In Sook Kim – cuja obra editada é livro de cabeceira recomendável a encenadores, realizadores, desenhadores

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EstrEia absoluta Teatro Nacional São João

uma criação Vanishing Point

concEpção E dirEcção Matthew Lenton

15-18 Set 2011

cenografia e

desenho de luz

Kai Fischer

música e

desenho de som

Mark Melville

figurinos

Leah Lovett

dramaturgia

Pamela Carter

colaboração

artística

sandy grierson

interpretação

Flávia gusmão

gabriel da Costa

Lara hubinont

sandy grierson

teresa arcanjo

figuração

adriana Vaz

de Carvalho

co-produção

Vanishing

Point, tnsJ,

Centro Cultural

Vila Flor –

teatro oficina,

são Luiz teatro

Municipal,

tramway,

Compagnia

teatrale

europea

qui-sáb 21:30

dom 16:00

dur. aprox. 1:10

M/16 anos

saturday night

mecenas TnsJO TnsJ é membrO da

cO-FInancIamenTO OdIsseIa

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a Vida dos outros

Inauguramos a temporada 2011-2012 com a estreia absoluta de Saturday Night, uma produção plural que congrega entidades nacionais e estrangeiras, e que é parte significativa do programa Odisseia: Teatro do Mundo.

Após uma residência iniciada no passado mês de Abril, na sala de ensaios do Mosteiro de São Bento da Vitória, onde um grupo de criadores de países diversos fez a sua aproximação ao método de trabalho (sessões pontualmente assistidas e discutidas por observadores externos, que culminaram numa apresentação pública informal), o grupo continuou os ensaios em Glasgow, a cidade-sede da companhia Vanishing Point.

Temos agora a oportunidade de experienciar o teatro mudo de Matthew Lenton, que nos coloca perante o inadvertido jogo de quem vê de fora a realidade aparente da casa, para onde se espreita ou contempla a vida dos outros, reconhecendo que o inferno é cada um de nós. Casa virada avesso do refúgio dos seus habitantes onde, tal como em cada qual, o medo e a ameaça de destruição se gera dentro do corpo, conflitualidade fantasmagórica sem nome e tantas vezes sem propósito.

Partindo da observação das fotografias encenadas de Gregory Crewdson ou de In Sook Kim – cuja obra editada é livro de cabeceira recomendável a encenadores, realizadores, desenhadores de luz, directores de fotografia e outros amantes de ficções imagéticas –, este grupo de inquilinos vem para nos desinquietar os sentidos e o sentido da aparente normalidade. Em tempo de prognósticos reservados, enquanto prosseguimos em desassossego, desalojados de certezas, deixemo-nos convocar para esta noite, parceiros que somos de absurdas realidades.

nuno carinhas

Director Artístico do TNSJ

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Os irmãos Grimm, infatigáveis coleccionadores de folclore e mitos, ao definirem o termo “Heimlich” no seu próprio Deutsches Worterbuch, apontaram a noção de “familiar”, aquilo que é próprio à vida doméstica e ao lar, um sentimento de segurança e de protecção contra o medo. Enquanto isso, a palavra ia assumindo gradualmente as funestas dimensões do seu aparente contrário: o estranho, o não-familiar.anthony vidler

In The Architectural Uncanny: Essays in the Modern Unhomely.

Cambridge: The MIT Press, 1992.

Inquietante [Unheimlich] é o nome de tudo o que devia ter permanecido secreto e oculto mas veio à superfície.

“friedrich schelling

Citado por Sigmund Freud – The Uncanny.

London: Penguin Books, 2003.

se possível os elementos na imagem viriam de fora partir de baixo14,2x11 cms - cores(com bleed 2mm)

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Para aCabar de Vez CoM os sonhos de uMa Vida PerFeita

sEtE pErguntas a Matthew Lenton

por Pedro sobradoPedro sobrado Pelo que li em recortes de imprensa, as cidades de nápoles e glasgow acabaram por ter um papel determinante na criação de Interiors [espectáculo anterior da companhia Vanishing Point, estreado em 2009]. os ensaios deste Saturday Night começaram em abril, no Mosteiro de são bento da Vitória. Que importância teve esse tempo passado numa cidade como o Porto e como vê, a esta distância, essas semanas de trabalho?Matthew Lenton esse período foi dedicado a reunir um grupo variado de actores, que tinham de aprender a trabalhar de uma forma muito peculiar e difícil. concentrámo-nos em conhecer-nos uns aos outros como membros de uma companhia e em começar a partilhar uma linguagem teatral, explorando a forma e as suas possibilidades. dedicámos muito menos tempo a explorar o material do espectáculo propriamente dito.

nas paredes da sala de ensaios do Mosteiro estavam afixadas fotografias de gregory Crewdson e da sua uncanny America, de tom hunter e da sua vizinhança, dos edifícios transparentes de in sook Kim. aliás, o espectáculo toma de empréstimo o título de uma das séries desta fotógrafa sul-coreana. ao contrário

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uma ideia completamente nova. Há muito que me sentia fascinado pelas fotografias de Gregory crewdson, e vi nisto uma oportunidade de explorar mais a fundo este fascínio. espero poder realizar o projecto da Alice no ano que vem, talvez com alguns dos mesmos colaboradores. em relação aos “textos”: nem sequer sei se gosto da palavra “dramático”. Talvez não saiba o que significa. segundo o dicionário, quer dizer “uma série de acontecimentos empolgantes, emocionantes ou inesperados” – isto, para mim, é a vida.

não há texto, mas também não há propriamente silêncio. Parto da memória daquela apresentação work in progress de Maio, que está certamente ultrapassada. recordo--me de que, nessa sessão, a música era omnipresente e induzia uma certa atmosfera, digamos, “melo--apocalíptica”… É a música que diz aquilo que, noutros espectáculos, fica a cargo do texto?até certo ponto, sim. Interessa-me a forma como as letras de canções podem relacionar-se indirectamente com as cenas que ocorrem ao mesmo tempo. a relação entre aquilo que vemos e ouvimos é crucial. além disso, a “impressão” comunicada por certas músicas ou sons é importante. contudo, em Saturday Night cabe igualmente ao público trazer o que, noutros espectáculos, é trazido pelo texto. cabe-nos escrever o texto. cabe-nos imaginá-lo. Há pistas, mas temos de escavar. Saturday Night não é para quem quer a papa toda feita.

elaborou uma divertida lista de coisas que fizeram durante a construção do Interiors: tirar fotografias às janelas à noite, brincar com microfones, ir às ilhas shetland para apreender a atmosfera, desenhar casas, fazer improvisações sem texto, embebedarem-se numa festa… Que coisas não tiveram então oportunidade ou desejo de fazer e fizeram agora, durante o processo de Saturday Night?Olhámos para mais imagens de casas, especialmente as assombradas. brincámos a ser macacos. Olhámos para as fotos de crewdson, Hunter e Kim. Vimos 2001: Odisseia no Espaço. Vimos As Asas do Desejo. Lemos os ensaios de anthony Vidler sobre o architectural uncanny. Folheámos livros sobre arquitectura modernista. Improvisámos sem usar palavras. Jogámos desenfreadamente à bola no início de cada tarde.

Trad. José gabriel Flores.

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7de Interiors, que partia de um texto dramático, Saturday Night inspira-se sobretudo na fotografia?sim, especialmente no mistério que opera nas fotografias desses artistas. Interessa-me encorajar o público a “projectar os seus sonhos” naquilo que vê num espaço, tal como faz alguém que olha para o trabalho desses fotógrafos. algumas pessoas irão ver nisso a intenção de dar “espaço” ao público – aquele tipo de espaço imaginativo de que dispõe o público de um espectáculo de dança, por exemplo. Para outras, poderá ser uma forma de exigir “trabalho”, no sentido negativo do termo, da parte do público. depende do nosso ponto de vista, e gosto pessoal.

descreveu Saturday Night como “o irmão mais novo” de Interiors. em que sentido ele é também “mais sombrio e mais surreal”?em certos pontos, Saturday Night chega a ser o oposto de Interiors. é uma obra mais sombria, mais densa, com temas mais pesados. Interiors talvez celebrasse a efemeridade da vida, enquanto Saturday Night lamenta-a e examina o caos da nossa existência neste planeta, a forma como muitas vezes os nossos sonhos de uma vida perfeita se vêem frustrados pelas forças caóticas da natureza.

Saturday Night coloca o espectador na posição ambígua do voyeur. nos vossos espectáculos, o palco é uma janela indiscreta?Tanto Interiors como Saturday Night possuem sem dúvida alguns elementos em comum com o filme de Hitchcock. no entanto, em Janela Indiscreta a natureza do voyeur é muito clara – é um homem que partiu uma perna e que está retido em casa, o que joga com o enredo do filme. em Saturday Night o voyeur é o público, todos nós. contudo, o espectáculo não recrimina os espectadores por serem voyeurs. convida-nos a mergulhar no seu mundo, convida-nos a olhar e sonhar.

Interiors inspirava-se numa peça de Maeterlinck. Saturday Night começou por chamar-se The Looking Glass e inspirava-se em Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll. depois, tanto quanto sei, também isso ficou para trás. Qual é a vossa relação com os textos, e especialmente com os textos dramáticos?Para falar com franqueza, o projecto da Alice foi abandonado por uma questão inteiramente prática. O Festival de nápoles afastou-se do projecto por razões financeiras. Tudo isso teve consequências complicadas, entre as quais o facto de que só iria trabalhar com cinco actores, em vez de dez. Para mim, era impossível concretizar o projecto da Alice, tal como o concebera, apenas com cinco actores, por isso tive de encontrar

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o serviço” se munem, a cada manhã, de um grande espanador de penas ou mesmo de um aspirador eléctrico, talvez não ignorem inteiramente o facto de que contribuem, tanto quanto os mais positivos sábios, para manter à distância os malignos espectros que repugnam ao asseio e à lógica. Mais cedo ou mais tarde, é verdade, o pó, caso persista, começará talvez a ganhar terreno sobre a criadagem, invadindo os imensos escombros dos edifícios abandonados, das docas desertas: e, nesse dia longínquo, nada mais poderá salvar-nos dos terrores nocturnos.

georges bataille

Citado por Anthony Vidler – The Architectural

Uncanny: Essays in the Modern Unhomely.

Cambridge: The MIT Press, 1992.

Os contadores de histórias não supuseram que a Bela Adormecida despertaria coberta por uma espessa camada de pó; tal como não imaginaram as sinistras teias de aranha que, ao primeiro movimento, a sua cabeleira castanha romperia. Não obstante, as tristes nuvens de pó invadem sem cessar as habitações terrenas, sujando-as uniformemente; como se os sótãos e os velhos quartos tivessem sido preparados para a próxima entrada de obsessões e fantasmas, para uma existência larvar, inebriada pelo cheiro mofento da poeira antiga. Quando as raparigas “para todo

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preenchê-lo de significação verbal e narrativa. Em suma, como perante qualquer fotografia, o espectador tem de agir sobre a cena, revelá-la.

Saturday Night realiza a um ponto tal o processo de autonomização da linguagem que as superfícies das palavras acabam por se circunscrever aos movimentos e gestos que vêm, em última instância, autonomizar o próprio silêncio. Ainda assim, em nenhum momento este silêncio tende a converter-se em mutismo, porque o corpo não pára de falar e, nesse sentido, manifesta-se como a possibilidade de ser evidente em silêncio. Muta evidentia: vemos tudo, não ouvimos nada. Esta dramaturgia é absolutamente visual, somática, orgânica, mesmo quando há música a tocar.

O que numa tal dinâmica cénica produz significado(s) é assim a energia das intensidades, a tensão permanente desse pathos nunca verbalizado, cujo efeito de sentido cada espectador tem de ir preenchendo em esboços progressivos com as suas próprias pulsões e, mais ainda, com as suas interrogações: como se chamam? O que os une? O que os separa? O que se passa verdadeiramente ali? Sobre que falam? O que os consome? A que reagem? O que está a acontecer fora de cena? E o palco parece devolver sempre estas e outras dúvidas com a instigação de Lisa/Grace na Janela Indiscreta de Hitchcock: tell me exactly what you saw and what you think it means.1 O drama é assim a visão do drama, e o próprio do visível, poderiam dizer estas personagens com Merleau-Ponty, é justamente ser superfície de uma profundidade inesgotável. Eis o que faz com que este visível possa ser aberto a outras visões que não a de cada um de nós; eis portanto o lugar decisivo da intencionalidade de

cada espectador no horizonte perceptivo da peça, eis o princípio da(s) incerteza(s) enquanto espaço da comunicação artística. Alexandre O’Neill parece ecoar: defenestrados, somos o olhar que as janelas de si próprias expulsaram.

Há porém uma lição de ética a retirar da histórica janela indiscreta do mestre do suspense: num plano imediato, trata--se de um mundo secreto privado que o espectador-voyeur procura observar, e as pessoas fazem e dizem muitas coisas em privado que não poderiam nunca explicar em público. Porque o privado é o espaço da intimidade, e a intimidade o lugar onde o inexplicável mora. Através das suas janelas, Saturday Night leva-nos a invadir uma casa, a violar uma intimidade, a cair na tentação de procurar explicar o inexplicável, isto é, de fazer público o privado, de tornar colectiva a experiência individual. E, neste sentido, a violação não deixa de ser uma espécie de alienação carregada de esperança, que nos leva a colocar aquela que parece ser, afinal, a questão essencial em tempo de crise: qual é o verdadeiro problema da habitação? Ou ainda: o problema da habitação não será, na verdade, equivalente ao problema do ser (humano)? Na lição de Heidegger, ser homem quer dizer: estar sobre a terra como mortal, isto é: habitar. Ruy Belo lembraria logo que uma casa é a coisa mais séria da vida. E Saturday Night parece, por sua vez, lembrar-nos que a vida é a coisa mais séria de uma casa: ou, melhor ainda, que uma casa é uma vida e que é necessário antes de mais aprender a habitar. O que talvez explique que esta febre de sábado à noite pareça ter, afinal, a duração de uma vida inteira, que o presente que se nos oferece ao olhar tenha carácter de eternidade, e que toda a história da humanidade pareça estar contida neste

SATurdAy NIGhT ou o ProbLeMa da habitaçãojoana matos frias*

Espectáculo resultante de um processo de criação colectiva em residência, que conheceu uma apresentação pública informal no passado mês de Maio, no Mosteiro de São Bento da Vitória, Saturday Night vem de alguma forma dar continuidade ao anterior e muito celebrado espectáculo de Matthew Lenton, fundador da companhia escocesa Vanishing Point: Interiors, de 2009, galardoado pela crítica com vários prémios, entre os quais o de melhor encenação e o de melhor produção.

Se a atmosfera tendencialmente intimista de Saturday Night recupera alguns princípios subjacentes à encenação de Interiors, onde o espectador assistia, por uma janela, à desconcertante progressão da conversa entre um grupo de amigos reunidos à volta de uma mesa, já o título da peça vem invocar o título homónimo de uma conhecida obra fotográfica de 2007 da artista coreana, actualmente radicada na Alemanha, In Sook Kim, evidenciando desde logo a dinâmica de crossover artístico que estruturalmente configura a obra de Lenton, cujo processo criativo não deixa nunca de fazer intersectar linguagens de domínios como a fotografia, a pintura, o vídeo ou a música. Mas esta dinâmica, em Saturday Night, é ainda o sinal e o sintoma de uma certeza para que Roland Barthes

chamou a atenção: antes de mais, é pelo Teatro que a Fotografia participa na arte. O diálogo com o universo fotográfico de In Sook Kim – que se estende ainda a correlações também assumidas com os trabalhos do britânico Tom Hunter e do norte-americano Gregory Crewdson, entre outros – torna-se bastante flagrante em todo o método de composição visual da peça, que parece efectivamente reconstituir o efeito perceptivo da montagem a cores de In Sook Kim. A artista compôs um mosaico de fragmentos de vidas justapostas dentro de um enorme hotel de Düsseldorf, a que o espectador tem acesso privilegiado através da janela de cada um dos 66 quartos: todos os compartimentos do edifício transparente são habitados por uma ou várias personagens assim imobilizadas num momento tensional, experimentando a mais dramática solidão ou o mais desesperante tédio, ora envolvidas em actos sexuais e pornográficos, ora à beira do homicídio ou do suicídio, e assim sucessivamente, numa multiplicação de micronarrativas cujo efeito de conjunto resulta no perturbador espectáculo da solidão como factor definitório da condição humana e dos lugares que o Homem ocupa. Como no interior de Saturday Night de Lenton, o espectador transforma-se num voyeur, e só nessa condição é que acede ao universo que lhe é dado a ver através daquelas muito singulares janelas indiscretas. E como no irónico Saturday Night de In Sook Kim, também em Saturday Night de Lenton a possibilidade do voyeurismo traz consigo uma dificuldade que é uma exigência: é que a janela indiscreta não deixa passar um único ruído, uma única palavra, o drama não tem voz, cabe ao espectador completá-lo, imaginá-lo,

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Talvez seja mais do que uma mera coincidência o facto de Sigmund Freud e Edwin Hubble terem partilhado o mesmo momento da história, Freud expondo a mente racional como uma minúscula clareira na floresta negra da alma, Hubble revelando que a nossa galáxia é apenas uma entre biliões, que a vastidão do espaço é inimaginável. Contemplar o céu nocturno e sentir a imensidão e a paixão da criação é vislumbrar uma paisagem interior igualmente vasta.

wyn wachhorst

In The Dream of Spaceflight: Essays on the Near Edge of Infinity.

New York: Basic Books, 2000.

“lugar a um tempo íntimo e colectivo, sufocantemente fechado mas cheio de poros: entre a saída (o poros) e o limite (o peros) constitui-se, afinal, não o lugar onde alguma coisa acaba, mas sim o lugar e o tempo a partir dos quais alguma coisa começa a ser.

Esta casa, nesta noite, de janela escancarada, vem demonstrar com toda a subtileza como o espaço habitado é um espaço afectivo de enraizamento, desenhando uma topografia íntima que reúne os lugares onde temos expectativas, onde sentimos receios, onde amamos, onde recordamos, onde fazemos projectos, onde imaginamos, onde construímos e mobilamos a um tempo a realidade e os sonhos, as evidências e os mistérios. Esta casa, nesta noite, é um espaço existencial e psicológico onde afinal também o invisível se manifesta e habita, já que a casa, mais ainda do que a paisagem, é um estado de espírito. Por isso, esta casa, nesta noite, é contraditoriamente realista e onírica, evocando de forma muito clara a atmosfera hopperiana e a iluminação surrealista de várias fotografias não--documentais do norte-americano Gregory Crewdson, em cuja obra Matthew Lenton também declaradamente se inspirou para a concepção da peça. Na twilight zone em que literalmente as imagens de Crewdson sempre parecem construir--se, assistimos a uma sucessão de dramas compactados, a fragmentos de narrativas inexistentes situados numa série de cenários desconfortáveis cujas tensões e mistérios permanecem, tal como em Saturday Night, indecifráveis. A latência de uma ameaça invisível é, porventura, o efeito mais perturbador das imagens de Crewdson, e também o que preside ao progressivo desconforto que Saturday Night vai provocando no espectador,

à medida que parece ampliar-se uma estranha e incontrolável (con)fusão entre o exterior e o interior da casa, entre a imprevisibilidade do espaço natural e a segurança do espaço doméstico, entre o transcendente e o imanente.

Caberá ao espectador decidir se estes mistérios invisíveis que invadem o visível habitam dentro ou fora de cada um de nós. E talvez dar ouvidos à incansável Stella da outra janela indiscreta: We’ve become a race of Peeping Toms. What people ought to do is get outside their own house and look in for a change.2

* Investigadora em literatura contemporânea e artes visuais.

1 “Diz-me exactamente o que viste e o que pensas

que significa.”

2 “Tornámo-nos uma raça de mirones. As pessoas deviam

era sair e espreitar para dentro das suas próprias casas,

para variar.”

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americana. O mundo da fotografia de Crewdson revela paralelos ainda mais vincados com o trabalho de Cindy Sherman – por exemplo, com os seus primeiros Untitled Film Stills, e também com os posteriores cenários de horror. O trabalho de Crewdson pode ser igualmente aproximado das fotografias com “caixa de luz” meticulosamente encenadas de Jeff Wall. Assim como Wall, Crewdson está interessado em criar um mundo cujo realismo minucioso o torne absolutamente credível, mas que, ao mesmo tempo, transcenda o realisticamente possível. O trabalho de Crewdson, tal como o de Wall, tem sempre como objecto o interface entre natureza e civilização. Apesar destas semelhanças, os dois fotógrafos diferem profundamente sob outros pontos de vista. Enquanto Wall usa sobretudo modelos da história da arte nas suas fascinantes, se bem que frias, imagens com câmara de efeitos de néon, e se debruça de forma particular sobre situações de conflito social na sociedade americana, Crewdson recupera os mitos populares do cinema de Hollywood e utiliza-os para criar imagens sugestivas de uma sociedade americana que, alienada de si mesma, contempla o abismo da sua própria psique colectiva devastada.

Com Hover (1996-97), Crewdson procedeu a uma mudança decisiva que em parte se liga aos seus trabalhos iniciais dos anos 80, e formulou pela primeira vez com total clareza o tema central da sua obra, que se mantém até hoje: o levantamento fotográfico da América suburbana e rural como estudo psicológico aprofundado dos seus medos, anseios e desejos ocultos. Em Hover, a sua única série a preto-e--branco até à data, a câmara foca as ruas e os quintais cercados a partir de um ponto

elevado. Nestes interfaces entre natureza e civilização, o fotógrafo observa um homem a assentar um relvado na estrada em frente à sua casa, ursos a vasculhar nos contentores do lixo, bombeiros numa enigmática chamada de urgência, misteriosos círculos concêntricos na relva de um quintal bem cuidado e uma mulher que dispôs canteiros de flores a intervalos regulares no meio da rua. Em todas estas cenas de desarticulação e dissociação, as pessoas retratadas mostram-se silenciosas e estranhamente indiferentes, mesmo quando são personagens centrais. Olham fixamente os acontecimentos que se desenrolam à sua frente como se estivessem hipnotizadas e incapazes de comunicar – nem o horror nem a alegria as afectam, enquanto a ordem do seu pequeno mundo se vai dissolvendo a pouco e pouco.

Se em Hover o formato relativamente pequeno das provas fotográficas e a sobriedade do preto-e-branco contribuem para a sua austeridade quase documental, criando um refrescante contraste com o tema das imagens, as séries seguintes de Crewdson – Twilight (1998-2002), Dream House (2002) e Beneath the Roses (2003-05) – revelam-se muito mais ricas e barrocas. Twilight, a sua série mais conhecida até à data, pode ser vista como a ideia condutora de todas as suas obras, uma vez que, no fundo, todas elas são mensagens de uma zona de penumbra em que as sombras se alongam e a luz artificial dos candeeiros públicos se substitui à luz natural. É a hora em que o poder da razão esmorece e a fantasia tece as suas próprias histórias, imediatamente antes do Sono da Razão de Goya e dos monstros que o mesmo produz. No mundo de Crewdson, as forças ocultas e as obscuras energias da natureza desenfreada e indomável acabam mesmo por invadir as habitações humanas. Vemos

“Mensagens de uMazona de PenuMbra”stephen berg*

A fotografia de Gregory Crewdson gira em torno de um único grande tema: a penetração do reprimido, do misterioso e do inexplicável num mundo supostamente protegido e belo. Com uma energia que claramente pode ser descrita como obsessiva, Crewdson trabalha para criar um universo de imagens cujo carácter idílico, detalhada e diligentemente retratado, é destabilizado de forma duradoura e irrevogável. Dada a sua preferência por fotografias elaboradamente produzidas, em que o sobrenatural desempenha um papel central, pode ser surpreendente que Crewdson se refira a si próprio como um “fotógrafo realista de paisagens americano” e se insira na tradição dos grandes cronistas da vida quotidiana americana, de Walker Evans a Garry Winogrand e William Eggleston. Esta auto-descrição, contudo, não é tão provocatória e afectada como parece. No fundo, o trabalho de Crewdson tem a preocupação constante de fazer o levantamento da América rural das pequenas cidades, observando a vida para além dos centros urbanos com precisão e rigor. Embora viva em Nova Iorque, o seu interesse está na América que não é espectacular – a América dos pequenos subúrbios com casas de madeira brancas e pastel aninhadas numa paisagem amena de colinas suavemente arredondadas,

tudo colorido pelo sol tépido do entardecer de um interminável Verão índio. É uma América de relvados bem tratados e cruzamentos com pouco trânsito, de alpendres de madeira com cadeiras de baloiço e salas de estar feudais mobiladas com um toque de kitsch; uma América em que tudo fica ali à mão, onde o liceu tem exactamente o mesmo aspecto que tinha no filme de 1973 American Graffiti. Assim, naturalmente, é também um mundo de imagens cuja credibilidade deriva em grande parte de ser sentido como o somatório de todas as imagens da América que já vimos, uma realidade de segundo grau que se nos depara tão convincente como a realidade primária. Uma ilusão que – ao contrário da cópia – é superior à realidade, na medida em que recria e aperfeiçoa o original.

Mas quando por fim o insólito invade o ambiente familiar, o elaborado realismo de Crewdson desaparece; transforma--se numa mágica arte fotográfica que usa “a iconografia da natureza e a paisagem americana como sucedâneos ou metáforas da ansiedade psicológica, do medo ou do desejo” (Gregory Crewdson). A sua insistência no aberrante e no anormal liga-o claramente a Diane Arbus, cujo trabalho muito aprecia, e que iluminou, como ninguém antes dela, os aspectos obscuros e estranhos da realidade

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vanishing point

companhia de teatro sedeada em Glasgow, na escócia, a Vanishing Point foi fundada em 1999. Visa criar um novo tipo de teatro para públicos contemporâneos e os seus espectáculos têm merecido múltiplos prémios e distinções. a companhia possui uma vocação internacional e conta com a colaboração de destacados artistas de vários países. a direcção artística é assegurada por matthew Lenton, que assinou a encenação de todos os espectáculos da companhia. entre estes, contam-se Lost Ones (2004), apresentado em todo o reino Unido e nos teatros nacionais do Kosovo e macedónia; Subway (2007), uma co-produção com o Lyric Hammersmith de Londres e o Teatro nacional do Kosovo, que contou com o envolvimento de músicos kosovares; Little Otik (2008), adaptação do filme de Jan Švankmajer co-produzida pelo national Theatre of scotland; The Beggar’s Opera (2009), co-produção com o royal Lyceum Theatre de edimburgo e o belgrade Theatre de coventry, que reinventa a peça de John Gay como uma ópera--rock; e Interiors (2009), co-produção com o napoli Teatro Festival e o Traverse Theatre de edimburgo, espectáculo que continua em digressão internacional. Para além de todo o reino Unido, o trabalho da companhia tem sido apresentado no Kosovo, macedónia, sri Lanka, França, Itália e Geórgia.

matthew lenton

Fundou a companhia de teatro Vanishing Point em 1999 e encenou a totalidade dos seus espectáculos. como encenador, trabalhou também com o national Theatre of scotland e vários outros teatros e estruturas. do seu trabalho mais recente, realizado fora do âmbito da Vanishing Point, destaquem-se a criação de Journeyman, uma produção do national Theatre studio de Londres, e Boy, o seu primeiro filme, realizado para o channel 4 e a produtora Touchpaper Television. Foi o primeiro encenador do reino Unido a dirigir uma edição da école des maîtres, projecto europeu de formação e criação que envolve jovens actores de diversos países europeus. Trabalhou também no Teatro rustavelli de Tbilisi (Geórgia) e, com especial regularidade, na royal scottish academy of music and drama, desenvolvendo projectos com estudantes de teatro e encenando The Visit, de Friedrich dürrenmatt, e Roberto Zucco, de bernard-marie Koltès.

uma árvore desenraizada em plena sala de estar; não é possível que tenha entrado ali pelo buraco relativamente pequeno do tecto. Um urso vagueia por uma sala completamente atafulhada. Noutra sala, um homem amontoa febrilmente tiras de relva, formando uma pilha cónica. Em outros trabalhos, o soalho de uma sala foi despedaçado, deixando passar uma misteriosa luminescência que vem das profundezas do subsolo. A célula protectora que é a casa perdeu a sua função de abrigo e tornou-se um lugar precário, governado por energias e forças reprimidas. Num quarto de banho asseado e parcialmente revestido de azulejos, vemos um rapaz apenas em cuecas, introduzindo o braço num buraco aberto no chão, em direcção a uma cavidade subterrânea e insalubre, atravessada por canos de esgoto. Aqui, de forma paradigmática, Crewdson encena o primeiro contacto com o subconsciente

e o reprimido enquanto acto que revela o sujeito abatido e alienado de si mesmo: a parte do braço que penetra na escuridão é de uma palidez de morte e anormalmente longa. Não parece ter nada a ver com o resto do corpo que está lá em cima, no quarto de banho – é como se fosse qualquer coisa separada dele.

* Excertos de “The Dark Side of the American Dream”.

In Stephan Berg (ed.) – Gregory Crewdson 1985-2005.

Ostfildern: Hatje Cantz, 2009.

Trad. Rui Pires Cabral.

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the tyger

william blake

Tyger Tyger, burning bright,In the forests of the night:What immortal hand or eye,Could frame thy fearful symmetry?

In what distant deeps or skies,Burnt the fire of thine eyes?On what wings dare he aspire?What the hand dare seize the fire?

And what shoulder, & what art,Could twist the sinews of thy heart?And when thy heart began to beat,What dread hand? & what dread feet?

What the hammer? what the chain,In what furnace was thy brain?What the anvil? what dread grasp,Dare its deadly terrors clasp?

When the stars threw down their spearsAnd water’d heaven with their tears:Did he smile his work to see?Did he who made the Lamb make thee?

Tyger Tyger burning bright,In the forests of the night:What immortal hand or eye,Dare frame thy fearful symmetry?

o tigre

william blake

Tigre Tigre, brilho em brasa,Que a floresta à noite abrasa:Que olho eterno ou mão podia,Traçar-te a fera simetria?

Em que longe lerna ou céus,Arde o fogo de olhos teus?Em que asas ousa ele ir?Que mão ousa o fogo asir?

E qual ombro, & qual arte,Pode os tendões do cor vergar-te?Quando a bater teu cor se pôs,Que atroz mão? que pé atroz?

Qual martelo? qual o grilho,Foi teu cér’bro em que fornilho?Que bigorna? que atra garra,Teu mortal terror amarra!

Quando estrelas dardejaramE com seu pranto os céus molharam:Sorriu vendo o feito o obreiro?Quem fez a ti fez o Cordeiro?

Tigre Tigre brilho em brasa,Que a floresta à noite abrasa:Que olho eterno ou mão podia,Ousar-te a fera simetria?

Trad. Jorge Vaz de Carvalho.

In Canções de Inocência e de Experiência.

Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.

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apoios

apoios à divulgação

agradecimentos

Jessica Cuna

Sandra Macedo

Vânia Gonçalves

Mr. Piano/Pianos – Rui Macedo

Polícia de Segurança Pública

ficha técnica vanishing point

direcção de produção

Fiona Fraser

direcção de cena Lee Davis

direcção técnica Neil McLean,

Elaine Diffenthal (assistência)

produção executiva

Severine Wyper

gestão de projectos

Eleanor Scott

ficha técnica tnsj

coordenação de produção

Maria João Teixeira

direcção técnica

Carlos Miguel Chaves

direcção de palco Rui Simão

direcção de cena Pedro Guimarães,

Ricardo Silva

cenografia Teresa Grácio

(coordenação)

guarda-roupa e adereços Elisabete

Leão (coordenação); Teresa

Batista (assistência); Celeste

Marinho (mestra de guarda-

-roupa); Nazaré Fernandes, Virgínia

Pereira (costureiras); Isabel Pereira

(aderecista de guarda-roupa);

Guilherme Monteiro, Dora Pereira,

Nuno Ferreira (aderecistas)

luz Filipe Pinheiro (coordenação);

José Rodrigues, Abílio Vinhas,

António Pedra, Nuno Gonçalves

maquinaria Filipe Silva

(coordenação); Paulo Ferreira,

António Quaresma, Jorge Silva,

Lídio Pontes, Adélio Pêra, Joel

Santos, Carlos Barbosa

som Francisco Leal (coordenação);

António Bica, Joel Azevedo

vídeo Fernando Costa

Teatro Nacional São João

Praça da Batalha

4000-102 Porto

T 22 340 19 00

F 22 208 83 03

Teatro Carlos Alberto

Rua das Oliveiras, 43

4050-449 Porto

T 22 340 19 00

F 22 339 50 69

Mosteiro de São Bento

da Vitória

Rua de São Bento da Vitória

4050-543 Porto

T 22 340 19 00

F 22 339 30 39

www.tnsj.pt

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Vanishing Point

CCA

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Glasgow G2 3JD

Scotland

T +44 0141 353 1315

www.vanishing-point.org

[email protected]

edição

Departamento de Edições

do TNSJ

Coordenação Pedro Sobrado

Design gráfico Joana Monteiro

Fotografia João Tuna, Gregory

Crewdson (p. 18-20)

Impressão Multitema – Soluções

de Impressão, S.A.

Não é permitido filmar, gravar ou

fotografar durante o espectáculo.

O uso de telemóveis, pagers

ou relógios com sinal sonoro é

incómodo, tanto para os intérpretes

como para os espectadores.

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