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11 Campinas, 27 de agosto a 2 de setembro de 2012 Geógrafa investiga, em dissertação, relação entre educadores e meninos de rua Foto: Antoninho Perri Publicação Dissertação: “A educação e a arte nos entreluga- res da rua – uma história de educadores e meni- nos de rua” Autora: Marina Moreto Orientador: Rogério Adolfo de Moura Unidade: Faculdade de Educação (FE) Tecendo a colcha no chão da praça MARIA ALICE CRUZ [email protected] m desejo muito grande de mudar alguma coisa num Brasil tão desigual” leva profis- sionais de diferentes áreas a encontrarem sua missão como educadores sociais de rua, na opinião da geógrafa Marina Mo- reto. Autora da dissertação “A educação e a arte nos entrelugares da rua – uma história de educadores e meninos de rua”, orientada pelo professor da Faculda- de de Educação (FE) da Unicamp Rogério Adolfo de Moura, Marina lembra que a situação de rua é muito presente nas metrópoles brasileiras. Educadora social de rua por vocação, ela explica que o que muito se vê é somente uma tentativa de retirada dos meninos da rua, sem um trabalho que seja socioeducativo. “Acre- dito que essa motivação por fazer algo diferente por uma população tão à margem é algo instigante nas pessoas”. “Arrisco dizer ainda que nem somente os chãos das praças podem ensinar esse trabalho. Ser educador de menino de rua, assim como ser professor, psicó- logo, médico, ou seja, trabalhar com gente que sofre, pressupõe haver uma disposição emocional individu- al, uma vontade própria, um impulso, um desejo que não tem a ver com a formação acadêmica, mas com a empatia com o outro, por acreditar que a relação com o outro pode ser vetor de uma mudança individual e social”, faz questão de reler com ênfase a educadora e ex-coordenadora da Casa Guadalupana. A disser- tação é redigida assim mesmo, em primeira pessoa, alinhavando sua experiência como educadora social à reflexão das metodologias utilizadas pelo educador de rua, bem como a relação entre este profissional e os meninos. Marina foi atraída pela proposta de entender como as artes são usadas com meninos em situação de rua. “Sempre gostei de arte-educação. Descobri o mundo no Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educa- ção (Laborarte) da Faculdade de Educação, ao mesmo tempo em que me especializei em psicanálise e artete- rapia para fundamentação teórica de minha pesquisa”, explica Marina. A dissertação, de acordo com ela, mis- tura educação, arte, situação de rua e políticas sociais. A ONG Mano a Mano, grupo de extensão da Uni- camp, e a Casa Guadalupana, setor da ONG Institui- ção Padre Haroldo, que era cofinanciada pela Prefeitu- ra de Campinas, são lembradas para destacar algumas metodologias desenvolvidas para o trabalho com os jovens. Entre dez projetos desenvolvidos com os me- ninos, Marina destaca o Zine Meninos Românticos, revis- ta mensal feita pelos próprios meninos, com poesia, texto, fotos, montada por um educador em parceria com o grupo. Segundo Marina, esta revista tinha tira- gem de mil cópias por mês, distribuídas entre meni- nos, serviços públicos e alguns pontos de cultura da cidade. Além do Zine, os meninos participavam de proje- tos como “Maracatu”, no qual desenvolviam ativida- des desde a construção de instrumentos até aulas para executá-los. Neste projeto, eles formaram um bloco de carnaval puxado por meninos de rua. Marina tam- bém faz questão de citar o projeto de alfabetização, desenvolvido não simplesmente para letramento, mas também para dar segurança para que eles pudessem ir para a escola. Dentro dessas atividades, os meninos eram levados a passeios mensais em lugares como Mu- seu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), acampamentos do Movimento Sem-Terra (MST). Na dissertação, as descrições das atividades são funda- mentadas pela pedagogia social de Paulo Freire. Na abordagem, não poderia faltar a colcha, uma metodologia desenvolvida pela Mano a Mano e ado- tada pela Casa Guadalupana, em que os educadores iam para as ruas com uma caixa, uma colcha de cama de casal e esperavam os meninos se aproximarem para brincar sobre aquele pedaço de pano, criando um uni- verso, regado a conversas, brincadeiras, choros, conta- ção e relato de histórias e até encaminhamentos, como por exemplo, para atendimento médico. “Considero a colcha uma intervenção artística urbana necessária, dando visibilidade a um indivíduo criativo, cheio de energia, que aprecia o universo estético e cultural para além das veredas das drogas, do crime e do sofrimen- to”, reflete. Marina trata a colcha como uma interven- ção urbana, onde o que era construído ficava pregado em alguma parede ou pendurado como um móbile, ou em uma árvore de praça. “Quando iam para a rua e não encontravam os meninos, deixavam recado para eles. Os motoristas que por ali passavam observavam as cenas. Eles mexiam com aquele espaço”, ressalta. A aproximação entre educadores e meninos de rua era permeada por essas atividades artísticas e lúdicas, dando suporte emocional e educativo para os partici- pantes almejarem outras coisas em sua vida. “Quem mais quer tirá-los da rua servindo como suporte para eles se enxergarem como indivíduos, sujeitos autôno- mos para sair do estigma de que meninos em situação de rua são iguais a droga, furtos, malandro, tromba- dinha?”, indaga Marina. Ela atenta para o fato de que o intuito do trabalho não era transformar meninos e educadores em artistas profissionais, mas usar o que a arte desperta de emoção, sentimento, criatividade para sonhar com outra condição. Marina lembra que em Campinas os educadores tinham o MIS como parceiro, garantindo espaço para expor os trabalhos produzidos pelos adolescentes, dando visibilidade aos trabalhos. VÍNCULOS Marina revela que todos os meninos participantes do projeto tinham família, mas o vínculo familiar era fragilizado por situações de violência, condições pre- cárias, falta de dinheiro, de moradia fixa, grande nú- mero de filhos. “Em nenhum momento, tomávamos a família como culpada pelo fato de o menino estar na rua, mas aconteciam várias violações de direito que levavam os meninos às ruas. Então, tentávamos resta- belecer o vínculo”, afirma Marina. O trabalho como educador social torna-se ainda mais gratificante quando alguns adolescentes conse- guem mudar sua história de vida a partir das ativida- des oferecidas, como é o caso de um jovem poeta que, fascinado pela escrita, compôs um livreto com mais de 60 poemas e continuou a escrever poesia. Tempo depois, um de seus poemas foi encontrado em uma revista eletrônica. De acordo com Marina, os educadores assumem um grande compromisso com esse trabalho, sem me- dir o grande esforço exigido para isso, além da necessi- dade de muito estudo. “Uma coisa muito interessante que tirei como resultado das entrevistas dos educado- res foi a importância das diversidades das formações. A maioria tinha nível superior, entre eles havia filó- sofo, designer, cientista social, física, educadora física, artista plástico, pedagogo. E cada um traz contribuição no trabalho com eles, todos puxando para o viés artís- tico”, revela a pesquisadora. Muitos que não tinham essa facilidade encontravam sua importância na con- versa com os meninos, em dupla com outro educador, para trabalhar outras questões. A pesquisa de mestrado torna mais clara a melhor forma de utilizar a relação educação-arte com meni- nos de rua na prática, a partir da entrevista com dez educadores. Ela reforça que muito já se publicou em termos de abordagem teórica da arte, da educação, da importância da pedagogia. “Mas eu quis mostrar como isso era feito”, diz Marina. Em Campinas, segundo a pesquisadora, existe uma Associação de Educadores Sociais, e, como a profissão não é regulamentada, a associação é um espaço importante para lutarem por seus direitos, porém a situação é delicada, segundo Marina, já que muitos empregadores atribuem ativida- des múltiplas aos educadores sociais. Cada instituição, segundo a pesquisadora, decide o que vai fazer. Poder mostrar como essas relações acontecem a partir de experiência prática é uma questão de honra para quem tem o desejo muito grande de mudar algu- ma coisa num Brasil tão desigual. “Considero ainda que a colcha e a arte não salvarão nenhum menino de rua de sua situação social e econômica, mas essas fer- ramentas de trabalho lançam reflexão suficiente para que pensem sobre sua vida e possam fazer escolhas”, conclui. A geógrafa Marina Moreto: “Ser educador de menino de rua pressupõe haver uma disposição emocional individual”

Tecendo a colcha no chão da praça - Portal Unicamp · é somente uma tentativa de retirada dos meninos da rua, ... mentadas pela pedagogia social de Paulo ... “Quando iam para

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11Campinas, 27 de agosto a 2 de setembro de 2012

Geógrafa investiga, em dissertação, relação entre educadores e meninos de rua

Foto: Antoninho Perri

PublicaçãoDissertação: “A educação e a arte nos entreluga-res da rua – uma história de educadores e meni-nos de rua”Autora: Marina MoretoOrientador: Rogério Adolfo de MouraUnidade: Faculdade de Educação (FE)

Tecendo a colcha no chão da praça

MARIA ALICE [email protected]

m desejo muito grande de mudar alguma coisa num Brasil tão desigual” leva profis-sionais de diferentes áreas a encontrarem sua missão como educadores sociais de rua, na opinião da geógrafa Marina Mo-

reto. Autora da dissertação “A educação e a arte nos entrelugares da rua – uma história de educadores e meninos de rua”, orientada pelo professor da Faculda-de de Educação (FE) da Unicamp Rogério Adolfo de Moura, Marina lembra que a situação de rua é muito presente nas metrópoles brasileiras. Educadora social de rua por vocação, ela explica que o que muito se vê é somente uma tentativa de retirada dos meninos da rua, sem um trabalho que seja socioeducativo. “Acre-dito que essa motivação por fazer algo diferente por uma população tão à margem é algo instigante nas pessoas”.

“Arrisco dizer ainda que nem somente os chãos das praças podem ensinar esse trabalho. Ser educador de menino de rua, assim como ser professor, psicó-logo, médico, ou seja, trabalhar com gente que sofre, pressupõe haver uma disposição emocional individu-al, uma vontade própria, um impulso, um desejo que não tem a ver com a formação acadêmica, mas com a empatia com o outro, por acreditar que a relação com o outro pode ser vetor de uma mudança individual e social”, faz questão de reler com ênfase a educadora e ex-coordenadora da Casa Guadalupana. A disser-tação é redigida assim mesmo, em primeira pessoa, alinhavando sua experiência como educadora social à reflexão das metodologias utilizadas pelo educador de rua, bem como a relação entre este profissional e os meninos.

Marina foi atraída pela proposta de entender como as artes são usadas com meninos em situação de rua. “Sempre gostei de arte-educação. Descobri o mundo no Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educa-ção (Laborarte) da Faculdade de Educação, ao mesmo tempo em que me especializei em psicanálise e artete-rapia para fundamentação teórica de minha pesquisa”, explica Marina. A dissertação, de acordo com ela, mis-tura educação, arte, situação de rua e políticas sociais.

A ONG Mano a Mano, grupo de extensão da Uni-camp, e a Casa Guadalupana, setor da ONG Institui-ção Padre Haroldo, que era cofinanciada pela Prefeitu-ra de Campinas, são lembradas para destacar algumas metodologias desenvolvidas para o trabalho com os jovens. Entre dez projetos desenvolvidos com os me-ninos, Marina destaca o Zine Meninos Românticos, revis-ta mensal feita pelos próprios meninos, com poesia, texto, fotos, montada por um educador em parceria com o grupo. Segundo Marina, esta revista tinha tira-gem de mil cópias por mês, distribuídas entre meni-nos, serviços públicos e alguns pontos de cultura da cidade.

Além do Zine, os meninos participavam de proje-

tos como “Maracatu”, no qual desenvolviam ativida-des desde a construção de instrumentos até aulas para executá-los. Neste projeto, eles formaram um bloco de carnaval puxado por meninos de rua. Marina tam-bém faz questão de citar o projeto de alfabetização, desenvolvido não simplesmente para letramento, mas também para dar segurança para que eles pudessem ir para a escola. Dentro dessas atividades, os meninos eram levados a passeios mensais em lugares como Mu-seu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), acampamentos do Movimento Sem-Terra (MST). Na dissertação, as descrições das atividades são funda-mentadas pela pedagogia social de Paulo Freire.

Na abordagem, não poderia faltar a colcha, uma metodologia desenvolvida pela Mano a Mano e ado-tada pela Casa Guadalupana, em que os educadores iam para as ruas com uma caixa, uma colcha de cama de casal e esperavam os meninos se aproximarem para brincar sobre aquele pedaço de pano, criando um uni-verso, regado a conversas, brincadeiras, choros, conta-ção e relato de histórias e até encaminhamentos, como por exemplo, para atendimento médico. “Considero a colcha uma intervenção artística urbana necessária, dando visibilidade a um indivíduo criativo, cheio de energia, que aprecia o universo estético e cultural para além das veredas das drogas, do crime e do sofrimen-to”, reflete. Marina trata a colcha como uma interven-ção urbana, onde o que era construído ficava pregado em alguma parede ou pendurado como um móbile, ou em uma árvore de praça. “Quando iam para a rua e não encontravam os meninos, deixavam recado para eles. Os motoristas que por ali passavam observavam as cenas. Eles mexiam com aquele espaço”, ressalta.

A aproximação entre educadores e meninos de rua era permeada por essas atividades artísticas e lúdicas, dando suporte emocional e educativo para os partici-pantes almejarem outras coisas em sua vida. “Quem mais quer tirá-los da rua servindo como suporte para eles se enxergarem como indivíduos, sujeitos autôno-mos para sair do estigma de que meninos em situação de rua são iguais a droga, furtos, malandro, tromba-dinha?”, indaga Marina. Ela atenta para o fato de que o intuito do trabalho não era transformar meninos e educadores em artistas profissionais, mas usar o que a arte desperta de emoção, sentimento, criatividade para sonhar com outra condição. Marina lembra que em Campinas os educadores tinham o MIS como parceiro, garantindo espaço para expor os trabalhos produzidos pelos adolescentes, dando visibilidade aos trabalhos.

VÍNCULOSMarina revela que todos os meninos participantes

do projeto tinham família, mas o vínculo familiar era fragilizado por situações de violência, condições pre-cárias, falta de dinheiro, de moradia fixa, grande nú-mero de filhos. “Em nenhum momento, tomávamos a família como culpada pelo fato de o menino estar na rua, mas aconteciam várias violações de direito que

levavam os meninos às ruas. Então, tentávamos resta-belecer o vínculo”, afirma Marina.

O trabalho como educador social torna-se ainda mais gratificante quando alguns adolescentes conse-guem mudar sua história de vida a partir das ativida-des oferecidas, como é o caso de um jovem poeta que, fascinado pela escrita, compôs um livreto com mais de 60 poemas e continuou a escrever poesia. Tempo depois, um de seus poemas foi encontrado em uma revista eletrônica.

De acordo com Marina, os educadores assumem um grande compromisso com esse trabalho, sem me-dir o grande esforço exigido para isso, além da necessi-dade de muito estudo. “Uma coisa muito interessante que tirei como resultado das entrevistas dos educado-res foi a importância das diversidades das formações. A maioria tinha nível superior, entre eles havia filó-sofo, designer, cientista social, física, educadora física, artista plástico, pedagogo. E cada um traz contribuição no trabalho com eles, todos puxando para o viés artís-tico”, revela a pesquisadora. Muitos que não tinham essa facilidade encontravam sua importância na con-versa com os meninos, em dupla com outro educador, para trabalhar outras questões.

A pesquisa de mestrado torna mais clara a melhor forma de utilizar a relação educação-arte com meni-nos de rua na prática, a partir da entrevista com dez educadores. Ela reforça que muito já se publicou em termos de abordagem teórica da arte, da educação, da importância da pedagogia. “Mas eu quis mostrar como isso era feito”, diz Marina. Em Campinas, segundo a pesquisadora, existe uma Associação de Educadores Sociais, e, como a profissão não é regulamentada, a associação é um espaço importante para lutarem por seus direitos, porém a situação é delicada, segundo Marina, já que muitos empregadores atribuem ativida-des múltiplas aos educadores sociais. Cada instituição, segundo a pesquisadora, decide o que vai fazer.

Poder mostrar como essas relações acontecem a partir de experiência prática é uma questão de honra para quem tem o desejo muito grande de mudar algu-ma coisa num Brasil tão desigual. “Considero ainda que a colcha e a arte não salvarão nenhum menino de rua de sua situação social e econômica, mas essas fer-ramentas de trabalho lançam reflexão suficiente para que pensem sobre sua vida e possam fazer escolhas”, conclui.

A geógrafa Marina Moreto: “Ser educador de menino de rua pressupõe haver uma disposição

emocional individual”