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TÉCNICA E EXISTENCIA

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TECNICAE EXISTENCIA:ENSAIOSFILOs6FICOS© Copyright by Antonio Glaudenir. Brasil Maia

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Francisco Alencar MotaGeovani Paulino OliveiraMarly Soares de Carvalho

Dados Intemacionais de cataloga ••ao na FonteBibliotecaria Perpetua Socorro Tavares Guimaraes CRB 3 - 801

Tecnica e existencia: ensaios filos6ficos / organizac;:ao de Antonio Glaudenir Bra-sil Maia. - Sobral: Editora Caminhar / Edic;:OesUniversitarias-UVA, 2012.

283 p.: il.

Isbn: 978-85-87906-61-8

Sutnario

PrefacioIIntonio CoJaf;o Martins

A Existencia nos Limites da Razao Modema

OanieJ Pansarelli ••.••.•...............................•..•••••••........•................••.• 13

Tecnica e Existencia:urn Mapa da Filosofia do seculo XX

Antonio Glaudenir Brasil Maia ••••.••...•••••••••....•......•••••••••..•.••••.•..•.....• 27

o Problema de uma Racionalidade Etica em Nivel de uma ReflexaoFllos6fica dos TIpos de Racionalidade

Luis Alexandre Dias do Carma ••••.•••••••••••.••.•.......••••••.•.•••••••••••••.•..•.•• 41

Ilomem, Ciencia e Tecnica:Urn Mapa Filos6fico-Antropol6gico da Contemporaneidade

I?enato Almeida de Oliveira .••••••••••••••••••••••.•.......••••.•.•...•••••••.......•..•. 61

Tecnica e Politica: Consideras;oes

Ricardo George de Araujo Silva

Napie Galve Araujo Silva ..••.••••.••.•••••...•.••.•......................••...........•..• 77

Razao Pliblica e 0 Potencial da Sociedade Civil

Jovino Pizzi •.•...••.••.•..•••.••.•.••.••••..•..•..••....•.••....•.•..•••.....•••.•.............. 93

Estado Hobbesiano: 0 Primeiro Produto da Era Tecnica

Willam Gerson de Freitas

Marcos Fabio Alexandre Nicolau 109

Reflexao Sobre a Tecnica em Marx

Eduardo Ferreira Chagas .•••..••...••.•••.••.••.•••••.........................•..•.•.••• 137

A Condi~ao Humana em Hannah Arendt:entre a Etica e a Politica

Odilio Alves Aguiar ...............•...................•.••••.•.•.•..•.••.•.••.••.•..•....•. 157

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A Magia da Tecnica em Walter Benjamin

Jose Edmar Lima Filho

Maria Terezinha de Castro Callado •........•.•...•.•.......•.•.....•.•.....•.•...... 179

A Perda da Experiencia:Miseria e Tecnica em Walter Benjamin

Maranna Gama Veridiano

Jose Hilco Costa Santos ............•...............•..•.........•....•................... 203

Hans Jonas e a Etica da Responsabilidade:urn Sim a Vida na Epoca da Civiliza~ao da Tecnica

Jose Soares das Chagas

Claudio de Souza Rocha ..•.............•.........•........•.................•..•........ 215

Tecnica e Legitima~ao em Habermas:Passos e Descompassos

Francisco Romulo Alves Diniz .......•.........•........... :...........•.........•....• 235

Epistemologia do SuI: a Existencia como Reconstru~ao daEmancipa~ao Social para Alem da Tecnica

Casemiro de Medeiros Campos

Milena Marcintha Alves Braz

Antonia Ieda de Souza Prado .•.•.....•.....•...•.•...................•..•....•.•.....• 255

Do Corpo Deformado ao Corpo do Acaso

Andre Luis Bonjim Sousa •........•..................................•.................• 267

PrEfacio

Organizada pelo prof. Dr. Antonio Glaudenir Brasil Maia,v 'm a lume uma publicac;ao de grande monta, de modo particu-1<11'para estudiosos da Filosofia e das Ciencias Humanas, apesard ' sua leitma, induvidosamente, trazer proveito para todos osque dela fizerem uso, dadas a sua abrangencia informativa e a:,ua atualidade tematica.

Tecnica e Existencia: Ensaios Filos6ficos. Urn tern a, 19

.Iutores, 15 ensaios, tres partes; estas, grosse modo, podem ser.<lssim, caracterizadas: na primeira, predominam os aspectospropriamente antropol6gicos; na segunda destacam-se as di-Il1cnsoes politicas do tema focal e na terceira, as perspectivasde pensadores especificos. Os ensaios da primeira parte abor-dam a existencia e a tecnica na modernidade, tecendo urn mapacll1tropol6gico-filos6fico de diversos aspectos, nao deixando deI<ldoos problemas relacionados a racionalidade etica. A segun-da parte percorre os mundos da etica, da politica, da condic;aol1umana entre etica e politica; detem-se na analise da tecni-ca em Marx, do espac;o publico, da razao publica e do EstadoItobbesiano. A terceira e ultima parte nos brinda com ensaios.' bre a tecnica e a perda da experiencia em Walter Benjamin.Traz aprofundadas reflexoes. sobre a etica da responsabilidadena civilizac;ao da tecnica em Hans Jonas e sobre tecnica e suaIcgitimac;ao em Habermas. Encerram 0 livro dois interessantescnsaios: urn, sobre a Epistemologia do SuI: a existencia comorcconstruc;ao da emancipac;ao social para alem da tecnica, eoutro, intitulado Do corpo deformado ao corpo do acaso: corpo,Lecnica e existencia.

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Estado HobbE!siallo: a PrirTIE!iroProduto da Era TEcnica

Willam Gerson de FreitasMestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceara [UFC]. Professor de

Filosofia [FVV)E-mail: [email protected]

Marcos Fabio Alexandre NicolauM'stre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceara [UFC) e Doutorando

em Educa~ao pela Universidade Federal do Ceara [UFC!. Professor deFilosofia da Universidade Estadual Vale do Acarau [UVA].

E-mail: [email protected]

o presente trabalho tern como objetivo discutir alguns as-p 'ctos importantes do Estado idealizado por Thomas HobbesIomo artificio humano. 0 Estado hobbesiano, primeiro produtodd era tecnica, criado para garantir a paz entre os individuos eIdmbem,como aponta Carl Schmitt, 0 primeiro mecanismo mo-demo de grande envergadura, cuja neutralidade depende da in-dt'pendencia das verdades religiosas. Por enxergar a necessidadedd existencia de urn poder politico que ponha fim as querelasIl'iigiosas, Hobbes defende urn Estado tecnicamente neutro. No1'l1lanto,por causa de seu poder supremo, do seu direito de vida( de morte sobre os suditos, bem como da preserva<;ao de seudlr ita natural a todas as coisas, 0 soberano, magnum artificium

do homem, pode falhar no cumprimento do objetivo fundamen-1.11 para 0 qual foi criado: a garantia da vida dos contratantes.

No dialogo Behemoth au a Longo Par/amenta, ThomasIlobbes mostra como 0 clero presbiteriano e papista desen-

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cadeou a guerra civil na Inglaterra. Os diversos e divergentediscursos pautados na religiao eram, para ele, a perigosa espadinvisivel da religiao e da fe que ameac;:ava0 Estado, unico podercapaz de promover a paz. Hobbes se deu conta de que a frag-mentac;:aodas interpretac;:oes religiosas era uma causa grave ddesequilibrio das relac;:oesentre as pessoas, porque "se todos 0

seres humanos fossem coagidos a aceitar como lei de Deus 0

que qualquer particular lhes pretenda impor" obviamente "seriaimpossivel que qualquer lei divina fosse reconhecida". 0 fil6so-fo Ingles aponta que urn grande numero de hornens toma "seuspr6prios sonhos e extravagantes fantasias e loucuras por teste-munho do Espirito de Deus." (Leviata; XXXIII,p.329),julgando-sinspirados por Deus. Tal fato s6 pode levar a incredulidade OU,

o que e ainda muito pior, a cisao e a multiplicidade de discursosnocivos a instaurac;:ao da harmonia e da paz.

A circulac;:aodesordenada de interpretac;:oes das SagradasEscrituras e nociva para a paz da Republica, pois cada qual in-terpreta 0 livro sagrado de acordo com seus pr6prios desejos, 0

que culmina em dissensoes. Hobbes afirma, entao, que e direitodo soberano determinar as interpretac;:oes que, no interior doEstado, favorecem a paz: "pertence a soberania ser juiz de quaisas opinioes e doutrinas sao contrarias a paz, e quais as que lhessao propicias." (Leviata; XVIII,p.l52).E, ainda que cada individuotenha 0 direito de manter em seu intimo suas crenc;:aspessoais,a manif estac;:ao dessas crenc;:as deve concordar com 0 que 0

poder soberano determina como favoravel a conc6rdia. A auto-ridade ultima nao deve emanar mais da Igreja e sim do Estado(XXXIII,p.329).Como esclarece Denis Rosenfield:

propiciando a instabilidade polltica e inviabilizando a vidapublica. (ROSENFIELD,1993, p.2?).

Crer em Jesus significa ter fe que ele e 0 Cristo anunciadoP lr Moises e pelos profetas, tal como esta nos evangelhos, naspre ac;:oesdos ap6stolos e em outras diversas passagens dasI ',:rituras. Como observa Ferdinand Tbnnies, a concordanciad )" suditos quanta a esse unico artigo de fe necessario a sal-V,,(:0 os permite a liberdade quanta as suas crenc;:as intimas,lic'sdeque a manifestac;:ao dessas crenc;:asnao contradiga as leisI Ivis.Por essa razao, compete a autoridade civil a interpretac;:aoIi,,: Escrituras e somente a esta autoridade cabe decidir emI "SO de disputas conceituais (TONNIES,1988,p.304).

Para Hobbes, quem deve determinar quais verda des de-Vemser pregadas no reino cristao e 0 soberano: "E, portanto,d('ver daqueles que tern a autoridade suprema extirpa-Ias dasIlIcntes, nao dando ordem, mas pelo ensino; nao pelo terrorIi(l.· castigos, mas pela perspicuidade das razoes." (Do cidadao,

XIII. § 9, p.203).As multiplas e divergentes doutrinas religiosas',[lO capazes de levar os homens a condic;:aode guerra de todosI llntra todos. 0 Estado, poder capaz de promover a paz, emboraII,0 seja doutrinario ele mesmo, deve, todavia, censurar todosI I,' ensinamentos religiosos que ameacem a paz e 0 born funcio-Iidmento da republica:

o dever do homem enquanto cristao e agir segundo a leireligiosa, expressao da lei naturaL aceitando, para evitarquerelas, urn unico postulado, segundo 0 qual Jesus e 0

Cristo, pois, se assim nao fosse, a 19reja terminaria parimiscuir-se nos assuntos do Estado ou de outras religioes,

As ac;:Oesde todos os homens sac governadas pelas opi-niOes de cada urn deles. Com base nisso, podemos com-preender. par uma infer~ncia evidente e necessaria, quepara 0 interesse da paz e relevante que nao seja divulgadaaos cidadaos nenhuma opiniao ou doutrina pela qual elespossam imaginar que ten ham 0 direito de desobedecer asleis da cidade (isto e, as ordens do homem ou conselho aquem esta cometido 0 poder supremo [...J a pessoa, homemou assembleia (court), a quem a cidade conferiu 0 podersupremo, tern tambem 0 direito de julgar que opinioes e

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doutrinas SaG inimigas da paz, e 0 de proibir que sejamemanadas. (Do cidadao, VI, § II, p.107).

Em Le Leviathan dans 1a doctrine de 1Etat de Thomas Hob-

bes, Carl Schmitt explica que essa convic<;ao hobbesiana revela

uma caracteristica fundamental do Estado que nasce no seculo

XVII: e urn instrumento tecnico neutro, portanto uma obra hu-

mana que difere dos tipos antigos de unidade politica. E 0 pri-

meiro mecanismo moderno de grande envergadura, 0 primeiro

produto da era tecnica, cuja neutralidade depende da indepen-

dencia das verdades religiosas. Para Schmitt e compreensivel

que, apos cern anos de disputas teologicas vas e sanguinolentos

combates religiosos, pensadores como Hobbes buscassem urn

terreno neutro sobre 0 qual se pudesse encontrar a paz, a segu-

ran<;a e a ordem (SCHMITT, 2002, p.l03).

o valor desse poder neutro reside em sua perf ei<;ao tec-

nica e nele, segundo Schmitt todas as outras concep<;oes da

verdade e da justi<;a saG absorvidas pela decisao do coman dan-

te legal. A neutralidade estatal e conservada tanto no caso d

tolerancia quanta na intolerancia, visto que e a ina<;ao estatal

que pode engendrar inseguran<;a. Ou a maquina estatal funcio-

na, dirimindo os conflitos e assegurando a existencia fisica dos

cidadaos, exigindo em contra partida uma obediencia absoluta

as leis; ou nao funciona, degringolando em estado de guerra,

condi<;ao em que ninguem tern a certeza de se auto preservar.

Portanto, como os multiplos discursos que outorgam para si

verdade divina provocam dissensoes, e unicamente a decisi:l

imperativa de urn sistema coercitivo legal que poe termo a d

sordem (SCHMITT, 2002, p.lOS).

o filosofo e jurista alemao discorre sobre 0 capitul

XXXVII de Leviata. que trata "dos milagres e seu usa". Schmit!

lembra que, no inicio da modernidade, acreditava-se nas cura

Illiraculosas por imposi<;ao das maos feita pelos reisl4 e outros

que se diziam prof etas. Ele verifica, po rem, que quanta ao pro-

1>lema da cren<;a em milagreslS, Hobbes e agnostico, ja que parte

do principio que nenhuma pessoa pode saber com seguran<;a se

um evento e milagre ou nao:

A mesma eoisa pode ser milagre para um e nao 0 ser paraoutro. Aeonteee assim que homens ignorantes e supersti-ciosos eonsideram grandes maravilhas as mesmas obrasque outros homens, sabendo que elas derivam da natureza(que nao e obra extraordinaria, mas obra eomum de Deus),nao admiram de modo algum. (Leviata; XXXVIl,p.368).

Esta verifica<;ao permite compreender porque ele cogno-

mina Hobbes de grande decisionista:

E um milagre 0 que 0 poder estatal soberano ordena ererque e um milagre; mas, 0 inver so tambem. e a ironia eparticularmente sensivel - os milagres eessam tao logo 0

Estado os interditem. (SCHMITT, 2002, p.llS).

o soberano decide definitivamente 0 que e urn milagre

porque ele e a razao publica, a public reason por oposi<;ao a

private reason dos individuos que compoem 0 Estado. Como

" A crenc;:ano poder real de eurar e apresentada par Marc Bloch (1993)naIlbra Os reis taumaturgas: a cardter sabrenatural da pader regia. ConformeI\loch, quaisquer afecc;:oes ganglionares cram chamadas, a epoca, de escr6-Ililas, ou mal regio. Era uma doenc;:araramente fatal, mas que sem o~ CU!-t1ddos adequados poderia desfigurar (p.52).A crenc;:a no dom taumaturglco('ra urn dogma de fe dos monarquistas rejeitado pelos partidarios do LongoI'rlrlamento. Foi atribuido pelo povo ao rei Carlos I 0 poder de curar mesmot1l'poisde executado (p.246).Ja sobre 0 rei Carlos II.ha registros hist6ricos deIjlle,ap6s a restaurac;:ao, ele curou cerca de 23000 pessoas em poueo malSI (' quatro anos (p.248). .. . .I" Hobbes afirma que os milagres SaDobras admlTaVelSde Deus, maravllhasI' sinais que 0 Altissimo faz para causar assombro nos homens, SaD cOisasI'::lranhas com causas naturais dificeis de imaginar. Sua definic;:aode milagre. a seguinte: "uma obra de Deus (alem da sua operac;:ao por meio da natu-1('Za, determinada na criac;:ao)feita para tomar mamf esta aos seus eleltos aIllissao de urn ministro extraordinario enviado para a sua salvac;:ao."(Leviata.XXXVII, p.370).E claro que qualquer sudito que proclame a si mesmo ct?mot1elentor de tal poder e consiga arrebanhar segUldares pode causar preJUlzos1\ Republica caso se insurja contra 0 soberano.

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o soberano e 0 representante mais alto de Deus na terra, e 0

lugar-tenente de Deus, seu poder maximo permite, consequen-temente, dominio sobre os artigos de fe:

que a diferencia<;:ao hobbesiana entre ambito privado e publico,e ren<;:ae confissao, fides et conf essio,faith and confession, pode" 'r tomada como urn germe da liberdade de pensamento e doIl1dividualismo modemo, caracteristica da estrutura do sistemal'onstitucional liberaJ16. Se, e no decisionismo estatal que 0 Es-lado como razao publica alcan<;:a sua maxima for<;:aha, porem,11m ponto vulneravel da unidade politica: embora sejam obriga-d s a reconhecer como milagre aquilo que 0 soberano deter-mina como taL os suditos nao estao, em consciencia, obrigados,j crer nele. 0 Estado hobbesiano seria, portanto, urn poder ex-I 'roo, porem sem capacidade de interven<;:ao na esfera privada.

Tbnnies tambem aponta para esta mesma disposi<;:ao nap litica hobbesiana. Segundo ele, seria uma incompreensao dop nsamento de Hobbes supor que este admite a interven<;:ao dalei em todos os dominios da vida privada, por mais que Hobbes('onsidere il6gica toda limita<;:ao juridica ou te6rica do poder es-latal. Essa convergencia a certo espirito liberal estaria dirigidal'ontra a Igreja e a jurisdi<;:ao eclesiastica. Somente 0 soberanollU os juizes aos quais ele encomenda a interpreta<;:ao do di-r'ito podem condenar uma pessoa (TONNIES, 1988, p.300). Aosl'I6rigos cabe a obediencia, como aos demais suditos, e a naoIl1terferencia de questoes espirituais, religiosas, nos assuntos daI<cpublica. 0 homem permanece livre quanta a qualquer outradutoridade que nao seja 0 Estado, e ninguem po de reclamar, apretexto de revela<;:ao ou direito divino, 0 poder de questionar 0

Instrumento criado para realizar a paz entre os homens,A Igreja - que antes tinha existencia separada do Estado

ve 0 seu direito pr6prio questionado. Em Hobbes, ela e apenas

o problema nao e mais 0 de saber se 0 que vemos fazere um milagre, ou se 0 milagre de que ouvimos falar ousobre 0 qual lemos e um fate real, e nao um ate da lin-gua ou da pena, e sim, em termos simples, se 0 relatouma verdade ou uma mentira, E quanta a esse problemanenhum de n6s deve aceitar como juiz a sua razao ouconsciencia privada, mas a razao publica, isto e, a razado supremo lugar-tenente de Deus. E sem duvida ja 0 es-colhemos como juiz, se ja Ihe demos um poder soberanopara fazer tudo quanta seja necessario para a nossa pazdefesa. (Leviata; XXXVII,p.374l.

o Estado hobbesiano, como poder exterior, e justifica-do pel a ignorancia Ompossibilidade de conhecer) toda verdadsubstancial. E nesse ponto que se pode perceber a distin<;:aentre a cren<;:a interior e a confissao exterior em Leviata. Aquestao dos prodigios e dos milagres depende da razao pu-blica, por oposi<;:ao a razao privada. Por outro lado, Hobbedeixa a cada individuo 0 cuidado, conforme sua liberdade dpensar, de decidir, segundo sua razao particular, no que cadurn quer ou nao crer interiormente, e de conservar em seucora<;:ao Untra pectus suum) seu pr6prio juizo. Mas, quando sda a profissao de fe exterior, 0 julgamento privado cessae 0 soberano quem decide 0 que e verdadeiro e 0 que nao(SCHMITT, 2002, p.l16).

A leitura schmittiana mostra que e a paz publica e 0 di-reito do poder soberano que estao em primeiro plano para Ho-bbes. A liberdade de extemar 0 pensamento individuaL dessmodo, estaria apenas no campo do possiveL restrito ao ultimplano, em caso de completa anuencia do Estado. No entanto,muito a seu contragosto que 0 jurista alemao admite, tambem,

I', Fala-se em contragosto de Schmitt pOI' vel' em Hobbes urn germe liberallevando em considera<;ao sua simpatia pelo regime do Terceiro Reich. Entre-I.lnto, ha interpreta<;oes que afirmam que a leitura schmittiana de Hobbes e,Ila verdade, uma critica a modernidade e ao Iiberalismo, mas tambem umarrltica velada ao regime totalitario, como se pode leI' em (SIRCZUK,2007).

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mais uma instituic;ao da Republica que pode ser conformadaou modificada pelo soberano legislador, de acordo com a razaodo Estado. 0 in ten to do fil6sofo Ingles e mostrar que os assun-tos religiosos nao devem dominar a politica. Por seu turno, aIgreja deve ser, conforme Tbnnies, apenas uma organizac;ao deensino inspirada estritamente em fins metafisicos e morais, demodo que as crenc;as e desejos religiosos persistam somentecomo coisa de cunho pessoal e privado. Dessa forma, evita-seo quebrantamento dos poderes temporais do Estado pelas maisdiversas e incoerentes crenc;as em espiritos e pelos temores decastigos eternos (TONNIES, 1988, p.30S).

o maior equivoco do clero, po is, e desejar constantementeo poder civiL tentando usurpa-Io de seu legitimo dono, 0 gover-nante temporal. Agindo e evitando disputas de opiniao decor-rentes da discussao sobre 0 que cada urn julga certo a respeitodo bem e do maL 0 Estado gar ante a paz, e impede a guerraciviL que e a consequencia extrema das dissensoes. As opini-oes disparatadas pelas quais os individuos se baseiam levam acontroversias que dificultam a manutenc;ao da paz. A formac;aodas opiniOes dos suditos e 0 meio que 0 soberano dispoe paraestimula-Ios a obedecer, visto que as atitudes humanas ternorigem nas opinioes sobre beneficios e prejuizos procedentesdas ac;oes.

E por enxergar a necessidade da existencia de urn poderpolitico que ponha fim as querelas religiosas que Hobbes de-fende urn Estado, como diz Schmitt, tecnicamente neutro, quepossua uma neutralidade administrativa "face as opiniOes re-ligiosas das pessoas submissas." (SCHMITT, 2002, p.l04). Assimsendo, distanciando-se da concepc;ao classica, os fundamentosdo poder politico deverao estar assentados na evidencia da ma-tematica e no rigor da ciencia moderna. Como produto artificialdo calculo humano, 0 Estado, magnum artificium do homem, e

1IIIlarealizac;ao da razao dos individuos. E 0 supremo produtotill poder criador humano, cuja imagem de homem artificial for-Iwee, por meio da mecanizac;ao da imagem antropol6gica do ho-IIlCITI,a mecanizac;ao da concepc;ao do Estado. Ja na introduc;aotic Leviata; seu autor evidencia a capacidade humana de criac;ao:lid natureza [...]e imitada pel a arte dos horn ens tambem nisto:qlle the e possivel fazer urn animal artificial." (Leviata; Introdu-1,,)0, p.ll). Na me sma medida em que 0 homem e a mais perfeitaIlbra da natureza, 0 Estado e, por sua vez, a mais primorosaIllvenc;ao humana.

Em busca de ordenar a situac;ao de guerra que foge aolllntrole dos homens, Hobbes enxerga no Estado uma perfeitaIllnstituic;ao racionaL cuja origem e a com pIeta renuncia - dotllreito a todas as coisas - em nome de urn completo ordena-Illento. No en tanto, em favor desta ordem, os individuos geramIIIn tipo de poder sobre eles pr6prios que nao permite qualquerI'specie de regulac;ao. A distinc;ao deste estupendo poder e queII eficacia de seu controle sobre os conflitos, em especial osleligiosos, por intermedio das leis positivas e do poder de fazerl'uInpri-las, esta intimamente ligada ao fa to de necessariamen-Ie ° soberano dever estar fora e acima de qualquer controleIrgal. 0 acordo que institui 0 Estado impede uma situac;ao debrutalidade em favor de uma esfera de cidadania. No entanto, 0

t'Ontrato pode se tornar urn prec;o muito alto a pagar, tendo emvista que se fica it merce de urn poder maior e mais poderosoque 0 de todos os individuos.

No capitulo que abre a segunda parte de Leviata, Hob-bes refere-se ao soberano criado pelos individuos mediante 0

contra to como deus mortal, ao qual cada sudito deve, abaixo

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do Deus imortaL a paz e defesa. A comparac;ao do Estado coma divindade tambem e feita por ele na epistola dedicatoria daobra Do cidadlio, mais precisamente na mesma frase em quecampara 0 homem com 0 lobo: "Para ser imparciaL ambos osditos sao certos - que 0 hornem e urn deus para 0 hornem, eque 0 hornem e lobo do homem". Esse carater divino do podersoberano tern 0 proposito de conceder tamanha autoridade, tor-nando-o capaz de conformar a vontade de todos os individuosa uma so vontade, dando-l he forc;a suficiente para promover apaz interna e externa a Republica.

Como os homens, de uma maneira geraL naturalmenteapreciam a liberdade e a precedencia sobre outros, uma con-dic;ao de guerra se instaura devido as suas paixoes naturais ea sua razao calculadora. 0 desejo de sair desta condic;ao levaao calculo da necessidade de criar urn poder visivel apto amanter todos em respeito. A principal motivac;ao para que osindividuos queiram restringir sua liberdade em favor de urnhomem ou de uma assembleia de homens e 0 cuidado com suapropria conservac;ao e com uma vida mais satisfeita. 0 podercomum tern forc;a suficiente para, por medo do castigo, garantiro cumprimento dos pactos e 0 respeito as leis da natureza, quepreceituam a busca da paz.

Hobbes argumenta que a defesa solitaria dos individuos,movidos por suas ac;oes, seus julgamentos e seus apetites indi-viduais, nao os resguarda dos ataques dos outros, nem protegea multidao com relac;ao a urn inimigo comum. Como as opinioeshumanas sac divergentes, conflitantes e acirradas pelas cren-c;as e desejos, M enormes possibilidades de dissensao e 0 poderde todos, diluido, mostra-se fraco. Por causa dos interesses par-ticulares de cada urn, mesmo quando nao ha inimigo comum, atendencia e que se destruam uns aos outros. Da mesma forma,a uniao temporaria em facc;oes, apenas em urn periodo limitado

de combate, e arriscada e incerta para garantir a seguranc;a.Para 0 fi]6sof0, a maneira mais eficaz de superar tal situac;ao ereduzir as diversas vontades em uma so vontade, concentran-do a forc;a e 0 poder antes espalhados entre os individuos emurn hornem, ou assembleia de homens. Com isso, se garante a. eguranc;a suficiente para que, por meio do pr6prio trabalho, grac;as aos frutos que a natureza da, os individuos possamalimentar-se e viver satisfeitos:

Isso equivale. a dizer: designar urn homem ou uma ass em-bleia de homens como portador de suas pessoas, admitin-do-se e reconhecendo-se cada urn como autor de todo:, osatos que aquele que assim e portador de sua pessoa pra-tical' ou levar a praticar. em tudo 0 que disser respeito apaz e a seguran<;:a comuns; todos submetendo desse modoas suas vontades a vontade dele, e as suas decisOes a suadecisao. (Leviata; XVII, p.l47).

Quando cada urn, junta mente com os demais, cede etransfere 0 uso da espada individual. isto e, 0 direito de se au-togovernar e decidir por si s6 0 publico e 0 privado, a urn poderacima de todos, autorizando previamente todas as suas ac;oesem prol da defesa comurn, a multidao se une em uma s6 pes-soa. Essa pessoa pode ser denominada de cidade (civitas), Esta-do, Republica, poder comum, riqueza comum (commonwealth),

grande Leviata, ou de uma forma mais reverente: deus mortal.

Essa pessoa necessita ter uma forc;a extrema para que se con-cretize sua eficacia diante de todos aqueles que decidam lograrseu pr6ximo ao desobedecer as leis (Do cidadlio, V, § 1,p.91).

Norberto Bobbio destaca tres atributos fundamentais dasoberania hobbesiana: a irrevogabilidade, 0 carater absoluto ea indivisibilidade (BOBBIO,1991,p.43-53).Quanto ao fato de serirrevogaveL Hobbes afirma que 0 pacto de submissao e estipu-lade entre os individuos, e nao entre 0 povo e aquele a quemse transf ere 0 direito a todas as coisas. 0 pacto de submissao e

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feito pela decisao unanime dos que consentem e nao permite acontesta<;ao de uma minoria discordante:

Cada um da multidao - a fim de que possa ter origem acidade - precisa concordar com os demais em que, noassuntos que qualquer um propuser a assembleia, ele aceit •o que for aprovado pela maior parte como constituindovontade de todos. Pois, de outro modo, nunca havera vonta-de de uma multidao de homens, cujos votos e vontades sdiferenciam de maneira tao variada. E, se algum nao con-sentir. apesar disso os demais constituirao a cidade entre 51e sem ele. Disso decorre que a cidade conserva contra quemdissente seu direito primitivo, isto e, 0 direito de guerra quela tem contra um inimigo. (Do cidadao, VI. § 2, p.102).

Alem disso, 0 contrato e realizado em favor de urn tercei-rooNao basta, portanto, apenas 0 cons enso das partes para quseja rescindido. E preciso a concordancia do terceiro diante dqual as partes se obrigaram reciprocamente, visto que entre 0

suditos e 0 soberano jamais existiu urn contrato (este foi apnas urn acordo dos suditos entre sil. Sendo soberano, 0 Estadnao pode estar limitado por urn pacto anterior ao seu poder.Se assim fosse, seria inutil a natureza da autoridade que lhfoi atribuida, porque soberano seria quem tivesse 0 poder dderrogar a soberania.

Quanto ao carcHerabsoluto, Bobbio mostra que Hobbes sopoe claramente a uma teoria do mandato. 0 fato de ser sobe-rano significa que ele agora e 0 unico a ter 0 direito a tudo, quantes estava espalhado na mao de cada individuo particular.soberano nao pode possuir urn mandato porque e absoluto,se houvesse quem 0 limitasse, este seria 0 soberano e nao elAinda que os suditos possuam certa liberdade (naqueles aspetos em que a lei positiva se cala, no silentium legis)!? e mesm

17 0 silencio da lei em Hobbes: "Quanto as outras liberdades, dependemdo silencio da lei. Nos casos em que 0 soberano nao tenha estabelecidouma regra, 0 sudito tem a liberdade de fazer ou de omitir. conforme a SUd

que 0 sudito possua, em caso de risco de morte, 0 direito a de-~obedecer defendendo-se, isso nao diminui 0 poder ilimitado do:oberano, que de maneira alguma comete injuria contra os sudi-los. Nenhum cidadao, portanto, pode julgar 0 soberano absoluto.

Preocupado com a possibilidade de anarquia, Hobbes de-rende, alem do carater irrevogavel e da ilimita<;ao,a indivisibi-lidade do Estado. Ele se dispoe com veemencia contra a sepa-ra<;aoentre poder espiritual e temporal e contra a divisao depoderes soberanos no interior da sociedade, tentando mostrarque as varias instancias da soberania estao tao interdependen-les que nao podem deixar de estar unificadas, sob pena de senfraquecer a pr6pria sociedade e leva-la a destrui<;ao. Desse

modo, todas as vontades devem estar conectadas sob urn unicopoder (irrevogaveL ilimitado e indivisiveO, uma unica vontade,.que representa 0 desejo de todos de alcan<;ar a paz.

Ap6s a cria<;ao do poder soberano, deve haver condi<;oespara que sejam impedidas quaisquer possibilidades de tudo vol-tar ao estado de guerra. Por essa razao, 0 poder instituido deve,'er supremo, e 0 medo da espada soberana deve ser 0 instru-mento que garante a estabilidade da Republica perante aquelesque desejam usurpar 0 poder politico. E partindo da perspectivade urn retorno a guerra que 0 fil6sof 0 Ingles defende que 0

mais importante e que 0 corpo politico, cuja soberania e a alma,seja unitario e sem falha, podendo pertencer a urn individuo ouuma assembleia. 0 soberano impossibilita a dispersao do poder,causa da violencia desregrada, cujo exemplo maior e a guerracivil como situa<;ao limite do jogo de interesses. Por isso, nemdiscursos religiosos, nem supostos direitos naturais podem serusados para se contrapor ao soberano:

o Leviata de Hobbes, composto de Deus e de homem, deanimal e de maquina, e 0 deus mortal que traz aos homens

discri<;ao."(Leviata; XXI.p.1S7l.

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a paz e a seguran<;:a, e isso porque ele exige uma obedi~n-cia absoluta - e nao em razao de um "direito divino doreis". Nao existe direito de resistencia contra ele, que sreclame como um direito superior ou diferente do seu, ouque tenha recursos nas razoes e argumentos da religiao,Somente ele pune e recompensa. Somente ele determinapela lei. forte por seu poder soberano, tanto 0 direito e apropriedade em materia de justi<;:a,e quanta a verdadea fe em materia de cren<;:a religiosa. (SCHMITT,2002, p.ll3),

o soberano e mais que urn governante: ele representa avontade de todos os suditos e, por isso, a unanimidade e ne-cessaria para a instituic;:aodeste poder. Cada urn se reconheccomo autor de todas as ac;:oesdo Estado, portador da pessoados contratantes. Nenhum sudito podera reclamar daquele qupersonifica a vontade de todos, ou mesmo acusa-Io, sem acusara si mesmo e se queixar 'de si mesmo. Assim, 0 direito de vet ,a possibilidade de confrontar as decisoes do Estado, certamentccausa obstaculos ao born funcionamento das prerrogativas soberanas. Evitar a interferencia da religiao ou qualquer outro tipde coligac;:aohumana na politica e preciso, uma vez que a multiplicidade de discursos dispares leva a contendas devido a ac;:1:1de oradores vangloriosos que incitam a multidao a desordem.

No entanto, para reduzir a uma unidade a multiplicidad 'de homens que nao tendem a urn fim ultimo nem sao politico.por natureza, e precise mais que urn poder coercitivo, e indispensavel tambem 0 consentimento dos individuos. E para fortalecer seu argumento da necessidade do contrato, cujo cernesta na relac;:aoentre poder forte e eficaz e assentimento dosuditos, que Hobbes utiliza 0 conceito de representac;:ao.Em urnexcelente artigo, Hannah F. Pitkin (2006)mostra como este conceito possui significado altamente complexo. Segundo Pitkin, arepresentac;:ao e urn fen6meno humane cuja origem semanticade origem latina, ainda que seu significado original nao tivessa ver com quaisquer instituic;:oespoliticas romanas.

Pitkin mostra que, na Idade Media, a palavra represen-Id~ao passa a ser utilizada na literatura da Cristandade comolima encarnac;:ao mistica. A expansao do significado do termo110 seculo XIIIe no inicio do seculo XIV se deveu a crenc;:adeque 0 papa e os cardeais representavam a pessoa de Cristo(' dos ap6stolos. No mesmo periodo, os juristas comec;:aram a\I:ar 0 termo para personificar a vida coletiva. A comunidade'.cria uma pessoa de natureza ficticia, nao reaL mas apenas porIcpresentac;:ao- persona non vera sed repraesentate. Ela ressal-It! que, para compreender como 0 conceito de representac;:ao('ntrou na ac;:aoe atividade politica, e preciso ter em mente 0

d senvolvimento tanto das instituic;:oesquanta 0 etimol6gico dolermo representar, que ocorre no frances e no ingles.

Para Pitkin, esse desenvolvimento culmina em duas tra-dic;:oes:a ideia de que todos os homens estao presentes no Par-I"mento, e a ideia de que 0 governante simboliza ou encarna 0

pals como urn todo. Quanto mais ere see a autoridade do Par-1,1Inento,e seu papel de declarar a lei e reconhecido de formallIais ampla, a posic;:aode representac;:ao passa a ser atribuidac njuntamente ao Rex-in-Parliament, como urn corpo unico ou,('m outras palavras, como a encarnac;:ao de todo 0 reino. E 0

Parlamento como urn todo (frequentemente incluindo 0 Rei) queI' 'presenta 0 reino. Mas, e no clima panfletario de debate politi-co que antecede a guerra civil (passando por sua eclosao e seumomenta posterior) que 0 termo represent ganha decisivamenteconotac;:aopolitica, e 0 membro do Parlamento e definitivamen-I classificado como representante do povo.

Diante desta realidade, Hobbes vislumbrou, nas palavrasde Pitkin, uma forma brilhante de aplicar a palavra represen-lac;:aoao seu argumento. 0 principal objetivo do fil6sofo inglesera se apropriar do vocabulcirio de seus adversarios te6ricospara extrair conclusoes bem diferentes (OSTRENSKY,2010,p.l66).

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Como indica Pitkin, ele define representa<;:ao como autoriza<;: 0,

em que urn represent ante e alguem que recebe autoridade pardagir por outro, e e uma representa<;:ao ilimitada quando se tratdda soberania. E porque a soberania representa a pessoa singultlle publica de todos que ela po de ser considerada uma unidad('Ao mostrar que, ao ser autorizado, 0 representante hobbesiilno adquire novos direitos e poderes e 0 representado adquin'apenas novas obriga<;:6es, Pitkin com preen de bem como se dil II

defini<;:ao formalista de representa<;:ao de Hobbes:

Seu argumento politico sobre a soberania explora a dillcrepancia entre sua definic;:ao formal e 0 usa comum. All

chamaI' 0 soberano de representante, Hobbes constant('mente sugere que 0 soberano fara 0 que se espera ·que 011

representantes fac;:am, nao apenas 0 que the satisfaz. NIl

entanto, a definic;:ao formal assegura que essa expectativIInunca pode ser invocada para critical' 0 soberano ou IT

sistiI' a ele pOl' nao representar seus suditos como deverlll(PITKIN, 2006, p.29).

Os suditos nao podem questionar a decisao sober ana "como observa Eunice Ostrenky, Hobbes quer mostrar que a n'presenta<;:ao originada da transforma<;:ao da multidao em pess II

artificial e independente das pessoas representadas e das pe:soas representantes. Ha uma distin<;:ao entre a pessoa artificiale os governantes e governados: "0 leviata trata da soberaniil.do Estado, e nao da pessoa que representa a soberania - 5 J"Carlos, Oliver ou John." (OSTRENSKY, 2010, p.165).Apenas comounidade, como unifica<;:ao da vontade de muitos, a multidaocapaz de a<;:ao,e sempre relacionada com 0 poder coercitivoEnquanto os representados constituem uma gama de vontad "dispersas, 0 representante unifica-os. Dessa forma, 0 romp Imento do contrato se apresenta como urn retorno a condi<;: (I

natural: "Na hip6tese de rompimento do contrato, que constitulinjusti<;:a praticada pelos suditos, nunca pelo soberano, 0 pod I

1I'!orna a multidao, e a soberania chega ao fim." (OSTRENSKY,IOIQ, p.168).

Como esclarece Raymond Polin, ao definir 0 soberano1111110 pessoa ficticia e representativa de uma pes so a reaL 0

j!llVO, Hobbes faz do povo 0 autor autentico das atitudes execu-III las pelo soberano. Por outro lado, ele faz do soberano 0 uni-II) ator possivel das a<;:6es soberanas, 0 que significa que tudoIquilo que 0 soberano decidir sera reputado ipso facto como

.II,' es desejadas e executadas pelo povo (POLIN, 1953, p.228).I,omente 0 soberano decide ou age, porque seu ato e fundadof' I gitimo:

Se 0 soberano pleitear ou tomar alguma coisa em nomedo seu poder. nesse caso deixa de haver lugar para qual-quer ac;:aoda lei, pois tudo 0 que ele faz em virtu de do seupoder e feilo pela autoridade de cada sudito, e em conse-quencia quem mover uma ac;:ao contra 0 soberano estaramovendo-a contra si mesmo. (Leviata; XXI. p.l88).

o conceito de pes so a em Leviata demonstra a grandiosadllnensao da teoria da representa<;:ao hobbesiana: a persona fic-((/representa integralmente a persona naturalis, se identificando.I cia em uma unidade reaL culminando na uniao de todos emllina 56 vontade. Essa concep<;:ao e suscetivel de ser conside-I.lda, segundo Polin, sobre dais angulos diferentes: colocada ao('xtremo, a ideia de representa<;:ao se eneontra, de fato, elimi-Iwda; eonsequentemente, a ideia de soberania e sua perfei<;:aoI 'cnica en contra seu apiee. 0 soberano absorve em sua per-I,onalidade a propriedade, 0 direito, a eonsciencia, a moraL aI''Iigiao, sem restri<;:6es nem reservas. Chegando a este ponto,('ompreende-se mais claramente 0 porque de Hobbes levar ao('xtremo a soberania e aclamar 0 Estado eomo poderoso mortallad, cuja autoridade de earater divino e condi<;:ao sine qua nonpara eliminar 0 estado de guerra entre os homens.

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Esse poder soberano, a mais extra ordinaria das criac;oeshumanas, e realmente capaz de garantir 0 proposito pelo qualfoi criado: a vida dos contratantes? As paixoes do soberano queesta acima das leis (quer seja urn horn em ou uma assembleia)podem colocar a existencia dos contratantes em risco? MaL'ainda, podem colocar em perigo a Republica e, consequentmente, a propria soberania? Se, na ausencia de impedimento.'artificiais, os homens estao vulneraveis ao ataque dos outro ,no estado civil a vida - 0 maximo dos valores para Hobbestambem pode estar ameac;ada. 0 individuo fica desamparaddiante do poder divino do unico que conserva seu direito atodas as coisas: 0 Estado. Assim, a vida dos suditos estaria emuma situac;ao nao de protec;ao, mas de fragilidade diante d'uma autoridade divina com poder de vida e de morte.

o direito soberano de vida e de morte sobre os suditos .urn dos pontos de partida de Michel Foucault para desenvolv I'

seu pensamento sobre 0 biopoder. Em Hist6ria da SexuaJidade,

ele mostra como a vida dos individuos, no interior do ordenamento juridico soberano (mesmo 0 que se desenvolveu postriormente it teoria de Hobbes), fica condicionada it defesa dEstado e it sua sobrevivencia enquanto tal. que po de matar urnsudito que se levantou contra ele. 0 soberano preserva 0 direitde natureza, que antes do pacto todos possuiam, de defendersua propria vida it custa da morte dos outros. Seu direito sobrea vida se exerce ao mesmo tempo em que vigora seu direitde matar: e seu direito causar a morte ou deixar viver, quandnas guerras intestinas. E quando nas guerras interestatais, asoberania e defendida nao em nome do rei, mas em nome daexistencia de todos, da necessidade de viver.

Entretanto, a manutenc;ao da existencia juridica soberanasignifica a conservac;ao da existencia biologica dos individuo ,

I Ior essa razao que a res posta do soberano com a pen a deIllorte a quem ataca a sua vontade, sua lei, e sua pessoa, e detllfkil aplicac;ao devido it razao de ser do poder e a logica do seuf'Xcrcicio, 0 que desemboca em uma situac;ao paradoxa!:

De que modo um poder viria a exercer suas mais altasprerrogativas e causal' a marte se 0 seu papel mais im-portante e 0 de garantir. sustentar. refore;:ar, multiplicar avida e po-la em ardem? Para um poder deste tipo, a penacapital e, ao mesmo tempo, 0 limite, 0 esc~ndalo e a con-tradic;:ao L1 Sao mortos legitimamente aqueles que cons-tituem uma especie de perigo biol6gico para os outros.(FOUCAUL T, 1993, p.130).

Por is so, considera Foucault que 0 direito de causar alilorte ou deixar viver da lugar a urn poder de causar a vidaIlU devolver it morte, ao est ado de guerra. Vale destacar queII discussao sobre biopolitica e estado de excer;:ao constitui urnIinportante tema da filosofia politica contemporanea, cuja obraIlomo Sacer, de Giorgio Agamben constitui uma ampliac;ao doIiorizonte das considerac;oes de Foucault.

Agamben se apropria de Hobbes para desenvolver sualese acerca do estado de excec;ao como paradigma da filosofiapolitica contemporanea. Agamben destaca que, em Hobbes, a'ioberania pode ser considerada como 0 englobamento do esta-tlo de natureza na sociedade, porque 0 estado de natureza per-Illanece na pessoa do soberano, que e 0 unico a conservar 0 seuIlatural ius contra omnes. A soberania se apresenta, entao, como\1m limiar de indiferenc;a entre natureza e cultura, entre violen-ria e lei. e e esta indistinc;ao que funda a violencia soberana.Para 0 filosofo italiano, a caracteristica fundamental da politicailloderna ultrapassa 0 fato de a vida como tal ser objeto em i-nente dos calculos e das previsoes do poder estatal. Agambent1cstaca que a polemica sofistica da relac;ao entre natureza e lei(. a premissa necessaria da oposic;ao entre 0 estado de natureza

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e a cidade, que Hobbes coloca a base de sua concep<;ao de sob •rania. Enquanto para sofistas como Trasimaco a anterioridad 'da physis justifica, em ultima analise, a violencia do mais fort,para Hobbes, e precisamente esta mesma identidade de estadde natureza e violencia (homo hominis lupus) a justificar 0 poder absoluto soberano (AGAMBEN,2002, pAll.

Para Agamben, 0 pressuposto que legitima 0 principio d .soberania e a antinomia entre physis e nomos, cujo principalatributo e a indistin<;ao de direito e violencia, seja no mais fort'dos sofistas ou no soberano hobbesiano. 0 estado de natureze urn principio interno ao Estado, no momento em que Hob·bes considera-o como se fosse dissolvido, e nao seria, portan-to, uma condi<;ao anterior a lei e total mente alheia ao direitda Republica, mas seria, na verdade, a exce<;ao e 0 limiar queo constitui. A condi<;ao natural da huma':lidade se apresent'lcomo situa<;ao em que cada individuo e para 0 outro passiv Ide morte violenta. Esta situa<;ao de matabilidade dos homens .possivel em todo momenta no estado de exce<;ao, na situa<;Cide dissolu<;ao do poder comum. 0 Leviata, metMora do Estadsoberano, cujo corpo e formado por todos os corpos dos individuos, deve ser lido sob a perspectiva de que sao os corpo,absolutamente mataveis dos suditos que formam 0 novo corppolitico do Ocidente (AGAMBEN, 2002, p.13ll.

Sem adentrar nos detalhes da obra de Agamben, restadiscutir se ha urn limite para a a<;ao da viol en cia soberanaseu direito de vida e de morte. E preciso lembrar. em primeirlugar. que Hobbes combate toda e qualquer possibilidade decontesta<;ao ao poder politico para evitar querelas que pudessem culminar em conflitos intestinos. Quando, por exemplo,fil6sofo ingles pensa na democracia direta e a forma como estaera exercida na Grecia classica, ele aponta seus inconvenientee desvantagens, principal mente a exposi<;ao dos demagogos qu .

'.('Quem 0 movimento das paixoes e nao os retos argumentostld razao: "a democracia, com efeito, e nada mais que uma aris-locracia de oradores, interrompida, as vezes, com a monarquiaI('mporaria de urn orador." (The Elements of Law, XXI. § 5, p.l20).A aristocracia de oradores faz predominar "discursos performa-Ilvos que nao penetram a natureza das coisas, porem se acomo-II, In aos sentimentos, nao exigindo razoes" e solicita a adesaotlas horn ens as suas paixoes, e nao a verdade (ROSENFIELD,\()93, p.39). Urn Estado que pode ter questionado sua etica, suar 'sponsabilidade e sua eficacia, deixa de ser soberano e torna-se terreno fertiI para a propaga<;ao de eloquencia sediciosa.

Inexiste, em Hobbes, urn criterio moral ultimo anterior aop der politico pelo qual todos se deixam guiar naturalmente,I:lo e, urn padrao moral pelo qual todos os individuos orientemIgualmente suas vidas, e 0 que impera e 0 dissenso e a arbitra-I'icdade. As opinioes dos homens acerca do bem e do mal saD~;clnpre incertas, acarretando rebelioes. Por isso, a sociabilidade() orre artificialmente, ou seja, pela via politica. Schmitt lembraque a verdade para Hobbes nao se realiza por si mesma, e paraISSO necessita de ordens dadas pelo poder comum e que sejamexecutadas por todos. E este 0 ideal de neutraliza<;ao tecnica doI:stado que po de ser simplificado na maxima latina Auctoritas,non veritas,jacit Jegen (SCHMITT,1992, p.l49). Segundo 0 alemao,Ilobbes nao distingue auctoritas de potestas e faz da summapotestas a summa auctoritas (2002, p.l05).

A supressao do direito de resistencia significa a possibili-dade de permitir aos outros 0 desfrute de sua liberdade dentroda lei. 0 contra to adquire urn conteudo negativo, uma vez quese assenta no compromisso dos que consentem de nao impediros demais de gozar plenamente de seus pr6prios direitos, nemI'esistir a insta.ncia criada para manter a todos em respeito. MasHobbes discorda da ideia de que 0 povo deva condicionar 0

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exercicio do poder soberano:18 "Se admite a democracia prim i-tiva, 0 fil6sofo nao aceita, porern, que 0 soberano seja respon-savel perante 0 povo, simplesmente porque nao podem existirdois soberanos - ou povos - no Estado." (OSTRENSKY,200 ,p.2}}).0 que deve ser levada ern conta, portanto, e a vontaduna e indivisa do soberano, nao ados governados. Hobbes querevitar que cada individuo conserve sua capacidade de anteciparataques por avaliar, por conta pr6pria, ern que situa<;ao estariaern posi<;aoamea<;ada ern rela<;ao aos outros cidadaos.

Certamente, 0 pacto nao alija os homens de suas faculda-des, de seus desejos, de sua capacidade de calcular e discerniras coisas, nem do medo da morte violenta ou de saber quandestao sendo amea<;ados.0 que os suditos nao podem e reivindi-car novamente seu direito a todas as coisas que agora pertencao Estado ou, ern outras palavras, reivindic~r a posse do pod rpolitico. Dizer que M uma antinomia entre 0 direito de puniro direito de resistir ern Hobbes porque ambos san direitos inalienaveis e urn equivoco. Nos casos que envolvem a preserva<;ada pr6pria vida, os suditos podem usar sua pr6pria for<;a parse defender. Todavia, 0 Estado continuara usando seu direito dpunir. isto e, seu poder para fazer cumprir sua determina<;ao,emnome da preserva<;ao da Republica, ou melhor, da vida de todo ,Se uma lei positiva determina a pena de morte, e certo sudito forcondenado, tern 0 direito de resistir, mas nao pode ele pr6prio,ou corn determinado grupo, se rebelar para revogar a lei. 0 Esta-do usara sua for<;apara que a lei seja cumprida, e usara 0 cum-primento desta para convencer ou instruir os demais cidadaos.

Inexiste urn direito de resistencia dos suditos equivalenteao direito do soberano. Na verdade, a desobediencia civil previstapor Hobbes e sempre individual, do sudito que se defende quandose sente diretamente amea<;ado pelo soberano. 0 soberano, porua vez, usa suas atribui<;6ese 0 seu gladio da forma que achar

mais conveniente para manter 0 seu poder. Nao ha ern HobbesIgo como uma sociedade civil distinta do Estado, que 0 fiscaliza

para coibir urn poder discricionario. 0 Estado nao esta a servi<;oda Republica. 0 Estado e a Republica - M aqui uma rela<;aodeidentidade - e representa a vontade de cada sudito que transferiua ele seu direito a todas as coisas. 0 fil6sofo Ingles nao ofere-ce qualquer esperan<;a de escapat6ria para os que acham que 0

soberano esta abusando do poder e, por isso, insurgem-se. Paramanter 0 born funcionamento da Republica, cabe ao soberanoutilizar os meios que ele considerar mais capaz de promover aonc6rdia entre os homens, como esta bem explicito ern Leviata.

E confiado ao soberano 0 direito de recompensar cornriquezas e honras e 0 de punir, corn castigos corpora is ou pe-cunitlrios, ou corn ignominias, qualquer sudito, de acordo corn alei que previamente estabeleceu. Caso nao haja lei estabelecida,de acordo como 0 que considerar mais capaz de incentivar oshomens a servir a Republica, ou de desestimular a pratica dedesservi<;os a ela (Leviata. XVIII,p.154).

E preciso enfatizar: caso mio haja lei estabelecida, 0 sobe-rano atua levando ern conta aquilo que considera melhor paraa Republica, isto e, para a manuten<;ao do pr6prio Estado. Amais valida garantia contra os eventuais excessos do soberanoabsoluto e, na verdade, que nao seria razoavel para este naoprocurar 0 bem-estar de seu povo, que se confunde corn 0 seupr6prio bem-estar. E uma iniciativa soberana agir de forma aproteger os seus suditos, e nao uma limita<;aooriunda do direitonatural a autopreserva<;ao.

18 O.strensky. concorda com Skinner: Hobbes foi inimigo ferrenho dateona repubhcana da hberdade, que aiegava, dentre outras coisas, que ,enfase do r.el em seus dlreltos de prerrogativa reveiava sua pretensCio d'dlscnclonanedade. Para os republicanos, sob esse poder arbitrario os suditossCioobrigados a urn incessante estado de ansiedade, provocado por nCiosab "o que poderia ou nCioacontecer a eles. Viver sob a monarquia e, portant ,o mesmo que se submeter a escravidCio (OSTRENSKY,2009; SKINNER,2010).

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Como bem observa Frateschi, afirmar que 0 sudito terno direito de resistir quando, por exemplo, e sua vida que estaamea<;ada, nao significa que 0 soberano esteja impedido de ma-ta-lo ou mandar mata-lo. Trata-se de uma aparente contradi<;ao:"em bora cada homem tenha 0 direito natural de usar os meiosque julgar necessarios para sua preserva<;ao, isso nao implica aexistencia de urn dever natural de respeitar a vida alheia." (FRA-TESCHI, 2008, p.157).0 soberano recebe, no momenta do pacto,a autoridade e liberdade para agir como achar melhor, nao es-tando obrigado por dever nenhum. Com 0 poder de vida e demorte sob seu dominio, 0 consentimento do sudito e nada maisque uma aposta na realiza<;ao do fim para 0 qual 0 Estado foicriado. A garantia nao e total. ainda que haja mais motivos paracrer que e melhor e mais seguro viver sob urn poder soberanodo que em estado de guerra.

E fundamental recordar que a preocupa<;ao maior do fi-16sofo ingles e brecar 0 perigo de morte proporcionado pelaguerra, pela sedi<;ao. Ele quer substituir a violencia pura doestado natural por uma violencia orientada pela razao. 0 calcu-10 dos homens em favor da uniao sob a egide estatal tern suaorigem no medo da morte violenta e na vontade de satisfazerseus desejos, conduzindo-os ao acordo que culmina no pactopolitico, que e a razao da conserva<;ao da vida dos contratantes.Com isso, os individuos podem desfrutar dos prazeres do corpo,dos seus bens, e da sociabilidade pacifica. Pelo uso da for<;a, 0Estado assegura sua fun<;ao de restabelecer a ordem publica. Aviolencia legitima e reparadora que de tern sob seu comandoa arma mais eficaz contra a violencia meramente destruidora19

lsso nao implica que 0 governante fique limitado ou te-Ilha abolido 0 seu direito de vida e de morte, ou que por causadisso passe a pertencer aos suditos 0 direito de desobedecer ouI'cvogar a soberania. Os suditos saG autores dos atos do sobera-no. 0 medo ao soberano e compativel com a liberdade, porque·abe ao Estado criar leis civis para ordenar as a<;6es e permitir

i1 convivencia pacifica dos suditos entre si (LeviaW; XXI, p.182).s que criticam 0 poder absoluto e reivindicam a liberdade nao

'stao querendo mais liberdade, mas querem a soberania para si(Do cidadao, X, § 8, p.163; Leviata; XXI, p.183),0 que os coloca naondi<;ao de inimigos do Estado.

Na perspectiva do soberano, seu limite esta em evitar acxacerba<;ao da for<;a, que e perniciosa a Republica. 0 bem co-mum deve ser preservado para que se evitem descontentamentos(', por fim, a grave doen<;a chamada sedi<;ao. Na perspectiva dosudito, pensa Hobbes que sua atitude deve ser pacata e d6ciL mo-derada. Ele acredita que, se agir com modera<;ao, estara sempre<l salvo do perigo, independente de que pessoa natural estiver nodominio. Segundo Hobbes, apenas os ambiciosos, homens vanglo-I'iosos que nao se contentam com seu quinhao de poder e honra,sofrerao as a<;6es duras do Estado. 0 melhor e estar sujeito a·lIguem cujo interesse depende da seguran<;a e do bem-estar dosseus sUditos (Do cidadao, X, § 18,p.l7l), que saG a heran<;a do go-vernante. 0 que mais estimula 0 governante nao e 0 proveito quespera ter do prejuizo causado aos suditos, visto que e no vigor

destes que esta a sua pr6pria for<;a e gl6ria (Leviata; XVIII,p.157).

19 E desse principio hobbesiano de preservac;:ao da seguranc;:a publica quos Estados democraticos firmarao seu fundamento. 0 Estado assumemonop6lio legltimo da violencia fisica, que e seu instrumento especifico. Aconcepc;:ao de Estado como assegurador da seguranc;:a pUblica e 0 que levaSchmitt a defender a policia como a instancia mais essencial do Estado, poisgarante a existencia flsica de todos os cidadaos. (2002, p.93l

E apostando na obediencia do sudito e na prote<;ao do so-berano de sua "heran<;a" que Hobbes deposita sua confian<;a nacoesao e unidade da Republica. A esta altura, pode-se dizer, con-

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cordando com T6nnies, que 0 fil6sofo de Malmesbury acreditana possibilidade de viver em uma Republica na qual imperassnao urn rei tirano e algoz de seu povo, que 0 respeita e consentem seu dominio, mas urn despota ilustrado. Mas isso s6 revela 0

quanto, no final das contas, tanto 0 consentimento ainda preser-va urn resquicio de perigo de morte violenta ao que fica it mercda vontade do governante, quanta a eficacia do soberano depen-de da posse do poder de decisao acima das leis estar sob seu do-minio. 0 certo e que Hobbes sabia muito bem que a condic;:ao hu-mana nunca pode deixar de ter urn ou outro inc6modo - palavraque e nada mais que urn eufemismo quando faz referencia ao pe-rigo de morte violenta. 0 Estado tecnicamente neutro de Hobbes,o primeiro grande produto da era tecnica, remete a Agambensua afirmac;:ao de que sac os corpos absolutamente mataveis dosuditos que formam 0 novo corpo politico do Ocidente e apontapara a importancia das discussoes atuais sobre 0 biopoder.

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REfh:~xaaSabrE a T~chica Ern marxEduardo Ferreira Chagas

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o debate sobre a questao da tecnica e as suas inova<;oes,o progresso tecnico-cientifico, e relativamente recente, e atual-mente esta em pauta, tendo em vista que a sociedade, de ummodo geraL mobiliza-se para enfrentar diversos problemas quepodem submeter a risco 0 proprio planeta ou a destrui<;ao doH nero humano, como, por exemplo: os recentes fenomenos cli-maticos, os ef eitos do aquecimento globaL a desertifica<;ao daI 'rra, a degrada<;ao do meio ambiente, 0 desaparecimento dasIlorestas tropicais, a falta de materias-primas, de agua, de ali-IHento, a fome, os perigos das guerras e a corrida armamentista,.IS crises economicas e 0 desemprego estrutural.

Depois de expressas essas observa<;oes iniciais, tratareida tecnica no pensamento de Karl Marx. Este autor nao desen-volveu uma teoria especifica sobre a tecnica. 0 seu pensamentoInstigante deu, contudo, espa<;o para uma discussao sobre a tec-11010gia,especialmente na sua obra 0 Capital (Vas Kapitan (867),

que toca tambem na questao do papel dela em nossa sociedade.'om referencia a uma reflexao sobre ela, 0 pensamento de

Marx se poe, no sentido geraL de forma positiva, 0 que nao sedcve entender por uma filosofia do progresso tecnico, de cunhoIiberal-burgues. Marx foi 0 primeiro a destacar 0 papel da tecni-('a no desenvolvimento dos potenciais produtivos de uma dadaI'orma<;ao socioeconomica. Para ele, 0 homem e urn ser capaz