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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ - CAMPUS DE CASCAVEL CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES CURO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS – NÍVEL DE MESTRADO E DOUTORADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E SOCIEDADE PATRICIA ZANCANARO GODIN DA MARGEM À CADEIA: ADOLESCENTES NA CRIMINALIDADE E O DISCURSO VEICULADO PELA VEJA

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ - CAMPUS DE CASCAVELCENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES

CURO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS – NÍVEL DE MESTRADO E DOUTORADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E SOCIEDADE

PATRICIA ZANCANARO GODIN

DA MARGEM À CADEIA: ADOLESCENTES NA CRIMINALIDADE E O DISCURSO VEICULADO PELA VEJA

CASCAVEL –PR

2017

PATRICIA ZANCANARO GODIN

DA MARGEM À CADEIA: ADOLESCENTES NA CRIMINALIDADE E O DISCURSO VEICULADO PELA VEJA

Dissertação apresentada à Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE –para obtenção do título de Mestre em Letras, junto ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, nível de Mestrado e Doutorado - área de concentração: Linguagem e Sociedade.

Linha de Pesquisa: Estudos da linguagem: Descrição dos fenômenos linguísticos, culturais, discursivos e de diversidade.

Orientador: Prof. Dr. João Carlos Cattelan

CASCAVEL –PR

2017

Para Khristian, pelo apoio e amor incondicionais. E por acreditar neste sonho nas vezes que nem eu mesma

acreditei.

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais por serem a base sob a qual eu construí e realizei muitos sonhos, dentre eles a concretização deste mestrado.

A minha doce Amanda, cuja existêncialeva tudo a fazer sentido.

A Khristian Bayer, meu amor e companheiro de vida, projetos, ideias, sonhos e conquistas.

A minha irmã Marcia, por acreditar em mim e por compartilhar comigo, desde o início da minha existência, todos os meus sonhos e planos para o futuro.

Ao professor orientador João Carlos Cattelan, pela dedicação, atenção eorientação comprometida durante a realização deste trabalho.

Às professoras Roselene e Luciane que compõem a banca desta dissertação, pelos apontamentos relevantes para a concretização deste trabalho.

A minha querida colega de mestrado e amiga Fernanda Pereira, pelas inúmeras conversas, sugestões e apoio durante o período de produção deste trabalho e também por ser uma pessoa de infinita luz e bondade que eu tive o prazer de

conhecer e me aproximar nestes últimos anos.

Aosdemais colegas da pós-graduação, que dividiram saberes ecompartilharamdificuldades, tornando esta caminhada mais prazerosa.

GODIN, Patricia Zancanaro. Da margem à cadeia: adolescentes na criminalidade e o discurso veiculado pela Veja. 2017. 100 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Cascavel, 2017.

RESUMO

O presente trabalho visa analisar quais efeitos de sentido emergem do discurso da revista Veja sobre adolescentes que cometem ato infracional (ACAI), tomando como perspectiva teórica a corrente francesa da Análise de Discurso (AD), partindo, sobretudo, de Pêcheux (1990; 1995; 1999; 2014). Para tanto, trabalha-se com sequências discursivas extraídas de seis matérias inseridas na editoria Geral da revista, publicadas entre abril de 2013 e janeiro de 2016, que abordam a temática da criminalidade na adolescência, para que, por meio da materialidade linguística, possa-se averiguar a prática discursiva desta revista. Veja é a revista mais vendida no Brasil, seus números expressivos de venda a tornam representativa nacionalmente e seus posicionamentos, ligados a acontecimentos de âmbito nacional, são significativos. Desse modo, a revista encontra-se em um lugar privilegiado no que diz respeito à formação de opinião pública, quer seja dentro do país, quer seja como referencial para as nações estrangeiras. A revista, inserida no Discurso Jornalístico, atua na institucionalização de sentido(s), e contribui com a construção do imaginário social criando modos de ver e interpretar a realidade. Assim, busca-se investigar a produção de sentidos da revista, relacionando o linguístico com sua exterioridade constitutiva para, então, compreender a emergência de determinados sentidos em detrimento de outros. Destaque-se que a análise procura não apenas apontar evidências no discurso da Veja, mas, sobretudo, trabalhar com o processo de produção das evidências identificando as marcas do ideológico que determinam o curso de cada discurso. Acredita-se que elucidar as práticas discursivas e conhecer o processo de construção e de reprodução dos discursos hegemônicos sobre os ACAI, seja um passo fundamental na elaboração e difusão de um discurso alternativo, contra-hegemônico e a construção de um olhar generoso sobre esses jovens no que tange às suas trajetórias de risco, sofrimento e descaso social.

Palavras chave: Análise de discurso, adolescente que comete ato infracional, efeitos de sentido, revista Veja

GODIN, Patricia Zancanaro. From the margin to the Jail: teenagers in criminality and the discourse published by Veja magazine. 2017. 100 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Cascavel, 2017.

ABSTRACT

The present work aims to analyze what effects of meaning emerge from the discourse of Veja magazine about adolescents, who commit an infraction act (ACAI), taking as theoretical perspective the french Discourse Analysis (AD), starting from Pêcheux (1990) 1995) (1999) (2014). In order to do so, we have worked with discoursive sequences (SD) extracted from six articles included in the magazine's General Publication, published between April 2013 and January 2016, which address the theme of crime during adolescence, so that, the discursive practice of this journal can be verified through linguistic materiality. Veja is the most sold magazine in Brazil, its expressive sales numbers make it representative nationally and its positions, related to national events, are significant. In this way, the journal is in a privileged place regarding the construction of public opinion, whether within the country or as a reference for foreign nations. The magazine, inserted in the Journalistic Discourse, acts in the institutionalization of meaning(s), and contributes to the construction of the social imaginary creating ways of seeing and interpreting reality. Thus, this work seeks to investigate the production of meanings of the journal, relating the linguistic to its constituent exteriority, so that it will be possible to understand the emergence of certain senses in detriment of others. It should be emphasized that the analysis seeks not only to point out evidences in the discourse of Veja magazine, but, above all, to work with the process of production of the evidences, identifying the marks of the ideological that determine the course of each discourse. It is believed that elucidating the discursive practices and knowing the process of construction and reproduction of the hegemonic discourses over the ACAI, will be a fundamental step in the elaboration and diffusion of an alternative, counter-hegemonic discourse and the construction of a generous look on these young people, in relation to their trajectories of risk, suffering and social neglect.

Keywords: Discourse analysis, adolescent who practices infraction act, effects of meaning, Veja magazine

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..........................................................................................................................1

1. O ARCABOUÇO TEÓRICO DE AD.....................................................................................6

1.1 Do estruturalismo à teoria do discurso............................................................................6

1.2 Discurso........................................................................................................................10

1.3 Sentido, Paráfrase e Polissemia...................................................................................16

1.4 Formação discursiva e Formação ideológica................................................................19

1.5 Interdiscurso..................................................................................................................23

1.6 Condições de produção................................................................................................26

1.7 Ideologia e sujeito.........................................................................................................29

2. ADOLESCENTE, MENOR, ATO INFRACIONAL E REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO CENÁRIO NACIONAL: discursos e contradiscursos..................................................34

3. VEJA: uma prática discursiva.........................................................................................43

4. LUGAR DE BANDIDO É NA CADEIA: Veja e a redução da maioridade penal............50

5. PARA A IMPUNIDADE, A CADEIA: Veja e o reforço de paráfrases.............................68

CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................92

REFERÊNCIAS......................................................................................................................95

O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta

o poder do qual nos queremos apoderar.

 Michel Foucault

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INTRODUÇÃO

As causas da criminalidade na adolescência éuma questão que vem

ganhando dimensões cada vez maiores no cenário brasileiro devido ao crescente

número de jovens que se envolvem com a criminalidade. O modelo de produção

capitalista é atravessado por profundas contradições em suas características mais

desiguais e excludentes. Alguns jovens, cujas vidas sãomarcadas pelas rígidas

desigualdades sociais e pela alienação do mundo do capital, encontram na

violência uma maneira individual de fazer parte do sistema, o que gera a sua

associação direta à criminalidade.

Como consequência, os adolescentes que cometem ato infracional

(doravante ACAI) são estigmatizados e sua imagem banalizada por meioda

grande imprensaque tem o poder de construirsentidos positivos ou negativos

acerca deles, além de mobilizar pré-conceitos, dando determinada ênfase a

matérias de crimes cometidos por adolescentes, principalmente adolescentes de

classe pobre.

Quando se fala em mídia, é preciso lembrar que ela representa uma das

instituições que influenciam na formulação de modos de ver e de interpretar a

realidade, haja vista que se faz presente em todos os lugares e momentos da vida

dos indivíduos. Nesse sentido, sob a forma dos veículos de comunicação e do

discurso jornalístico (doravante DJ), ela circula opiniões, impressões, conceitos e

julgamentos. Especificamenteno caso dos ACAI, a mídia age sobre o imaginário

social, construindo um efeito de verdade que leva os indivíduos a pensarem de

determinada maneira, como se as informações veiculadas representassem a

realidade. Outras vezes, ela busca criar uma realidade à parte, apontando formas

de viver e de pensar:

Os discursos veiculados pela mídia, baseados em técnicas como a confissão (reportagens, entrevistas, depoimentos, cartas, relatórios, descrições pedagógicas, pesquisas de mercado), operam um jogo no qual se constituem identidades baseadas na regulamentação de saberes sobre o uso que as pessoas devem fazer de seu corpo, de sua alma, de sua vida(GREGOLIN, 2007, p. 11).

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Pode se afirmar que os veículos midiáticos têm, com frequência, emitido

juízos sobre a questão da criminalidade na adolescência, seja apontando

soluções para o problema, ou condenando a ‘impunidade’ em se encontram os

ACAI. Refletir sobre essa questão é o fator que impulsiona esta pesquisa, a qual

propõe a investigar como a revista Veja se posiciona sobre o assunto. O objetivo,

então, é identificar quais efeitos de sentido emergem do discurso da revista Veja sobre adolescentes que cometem ato infracional.

O corpus desse trabalho é composto pela análise de sequências

discursivas (SDs) extraídas de seis matérias inseridas na editoria Geral da

revista,publicadas entre abril de 2013 e janeiro de 2016, que abordam a temática

da criminalidade na adolescência. Entende-se que é por meio da materialidade

discursiva que serão encontrados os vestígios do processo de produção do

discurso daVeja e os efeitos de sentido produzidos por ela.Espera-se, ainda,

perceber o posicionamento da revista sobre as medidas preventivas contra a

entrada de adolescentes na criminalidade, ou seja, quais seriam, para ela, as

medidas preventivas e remediativas apresentadas para a questão.

Ressalta-se que a escolha da Veja ocorre por sua representatividade

nacional, pois é a revista mais vendida no Brasil com uma tiragem superior a um

milhão de cópias semanais, fator que justifica a escolha para a análise da

produção discursiva. O semanário participa ativamente de discussões de cunho

ideológico e político, bem como veicula, com certa frequência, reportagens sobre

o tema em questão.

Para fornecer as bases para a análise, tomou-se como perspectiva teórica

acorrente francesa da Análise de Discurso (AD), partindo, sobretudo, de

Pêcheux(1990; 1995; 1999; 2014). De acordo com Gregolin (2007), “a articulação

entre os estudos da mídia e os de análise do discurso enriquece dois campos que

são absolutamente complementares, pois ambos têm como objeto as produções

sociais de sentidos” (GREGOLIN, 2007, p. 13). Enquanto a mídia produz sentidos,

a AD se propõe a investigar como os indivíduos são afetados por eles em termos

de leitura de mundo. Assim, uma análise desenvolvida a partir da AD contempla

aspectos que estão além do dito, que superam o plano superficial da leitura, que

expõem o que está implícitoe, além disso, mostra como os não ditos significam.

Para Orlandi (2010), “a análise de discurso concebe a linguagem como mediação

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necessária entre o homem e a realidade natural e social” (ORLANDI, 2010, p. 15).

Ainda, segundo ela, o objeto da AD é o “discurso” e o significado de “discurso”

contém a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento, ou seja, é a

linguagem em movimento.

Nesse sentido, a autora defende que o que interessa para a AD é ‘o

significar’, ou seja, a língua enquanto produtora de sentidos, levando em conta os

fatores externos que contribuem para isso, ou seja, os fatores sociais que levam o

homem a se“expressar” de determinada maneira.

A AD preocupa-se com a maneira como o discurso é afetado por fatores

históricos e ideológicos, pois entende que o funcionamento da linguagem não é

constituído por fatores puramente linguísticos. Logo, tendo em vista o objetivo da

AD, este campo teórico relaciona-se com outras áreas do conhecimento como o

Materialismo Histórico e a Psicanálise, buscando contemplar aspectos relativos à

produção dos discursos que a Linguística por si só não conseguiu alcançar.

Retomando os estudos do filósofo Louis Althusser sobre ideologia, Michel

Pêcheux,precursor da AD, “propunha uma teoria do discurso em que se

concebesse o discurso como uma materialidade ideológica” (AMARAL; ZOPPI

FONTANA, 2015, p.42). Pêcheux (2014)entendia a ideologia como uma estrutura

por meio da qual os indivíduos são interpelados em sujeitos. De acordo

comAmaral e Zoppi Fontana(2015), Pêcheux,

na sua proposta de uma teoria materialista dos processos discursivos, traz para o campo dos estudos da linguagem a concepção althusseriana de Ideologia, definindo-a como uma estrutura-funcionamento que dissimula sua existência no interior mesmo de seu funcionamento, produzindo um tecido de evidencias subjetivas[...]nas quais se constitui o sujeito (AMARAL; ZOPPI FONTANA, 2015, p. 42).

Dessa maneira, é a interpelação ideológica que possibilita a inscrição dos

indivíduos em uma determinada formação discursiva e “pela interpelação

ideológica em sujeito inaugura-se a discursividade” (ORLANDI, 2010, p. 48).

Destaca-se que este trabalho não parte de uma perspectiva em que se

considera a imprensa como uma instância manipuladora, visto que o processo de

produção do discurso decorre de um processo mais complexo. Além do mais, há

de se considerar que, para a AD, cada veículo de comunicação está situado em

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um contexto sócio-histórico-ideológico específico, o que determina seu discurso.

Portanto, entende-se que as posições defendidas pelaVeja resultam de fatores

condicionantes que provêm de uma formação discursiva (FD) e se materializam

no discurso.

Entretanto, por outro lado, é importante assinalar que “o ato de noticiar [...]

não é neutro nem desinteressado: nele se encontram, entrecruzando-se,

interesses ideológicos e econômicos do jornal” (MARIANI, 1999, p.102), o que

significa que a neutralidade midiática é ilusória.

Para a sua constituição, este trabalho será segmentado da seguinte

maneira:No primeiro capítulo, apresenta-se o arcabouço teórico da AD que dá

suporte para a pesquisa. Este capítulo é dividido em cinco seções, que visam

tratar dos principais conceitos da teoria. No item “Do estruturalismo à teoria do

discurso”, discute-se como a teoria do discurso se constitui e quais as

articulações que ela faz.Nos itens seguintes,discutem-se os conceitos de

Discurso, Sentido, Paráfrase e Polissemia, Formação discursiva e Formação

ideológica, Interdiscurso, Condições de Produção, Sujeito e Ideologia, bem como

a relevância desses conceitos para a teoria do discurso.

No segundo capítulo, ADOLESCENTE, MENOR, ATO INFRACIONAL E REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO CENÁRIO NACIONAL: discursos e contradiscursos, buscou-se apresentar um panorama geral da legislação voltada

para os adolescentes que cometem ato infracional e uma breve retomada

histórica dessas leis e as práticas que elas legitimavam sobre esses sujeitos. O

capítulo seguinte buscou fazer alguns apontamentos sobre o discurso jornalístico

e a revista Veja, mostrando algunsdados considerados significativos sobre o

semanário para melhor compreensão do objeto de pesquisa.

O quarto capítulo, intitulado LUGAR DE BANDIDO É NA CADEIA: Veja e a redução da maioridade penal é destinado à apresentação da análise da

reportagem O dever de reagir, em que, a partir da polêmica originada pelo

assassinato cometido por um adolescenteque completaria 18 anos três dias após

o crime,Veja constrói uma argumentação em defesadaredução da maioridade

penal, ancorada na tese de que justiça significa punição. Baseando-se em uma

visão simplista e silenciadora, a revista apresenta três razões pelas quais a

mudança na legislação deveria acontecer.

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No capítulo seguinte,PARA A IMPUNIDADE, A CADEIA: Veja e o reforço de paráfrases, destinado à análise das SDs das demais reportagens, são

apresentadas considerações que permitem identificar regularidades presentes na

FD da Veja. Novamente a revista defende o endurecimento da legislação pautada

na tese de que justiça significa punição e, por meio de diferentes paráfrases,

retoma os mesmos ditos que apontam para a criminalização dos ACAI e os

relegam à prisão, seja pela punição ou pela prevenção.

Por fim, apresentam-se asconsiderações finais, momento em que se as

respostas para as motivações iniciais desta pesquisa são comentadas.

6

Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e

redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu

acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

Michel Foucault

1.O ARCABOUÇO TEÓRICO DE AD

1.1 Do estruturalismo à teoria do discurso

Em linhas gerais, este capítuloapresenta as bases teóricas da Análise de

Discurso, partindo de seu surgimento na França, na década de 60, e discutindo os

conceitos que são relevantes para o desenvolvimento deste trabalho. Para

tanto,foram apresentadas algumas considerações sobre o empreendimento que

resultou na AD, bem como sobre quais foram os objetivos iniciais da disciplina,

seu surgimento e os desdobramentos atuais.

O início do século XX foi marcado pela eclosão dos estudos linguísticos

desencadeados pela teoria inaugural de Ferdinand Saussure e pela obra Curso de Linguística Geral. Considerado o pai da Linguística Moderna, Saussure,

docente da Universidade de Genebra, desenvolveu uma série de estudos sobre a

língua(gem) que revolucionaram o campo da Linguística e a fizeram ser

concebida como ciência e modelo para as outras ciências.

Dentre as dicotomias elencadas por Saussure, ele concebe, numa delas, a

língua e a linguagem como acontecimentos distintos. Para ele, a língua

não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social, para permitir essa faculdade nos indivíduos. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; a cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence, além disso ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade (SAUSSURE, 1939, p. 17).

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Esta dicotomia é tomada como princípio básico de reflexão para a distinção

que é feita entre os estudos da linguagem, em geral, e da língua, em particular, e

do discurso. Saussure (1939) concebia a língua como uma unidade pronta, um

produto social da linguagem e uma ferramenta que auxilia os indivíduos a

produzirem os atos de fala. Conforme explica Marcuschi (2008)

O mestre genebrino concebia a língua como um fenômeno social, mas analisava-a como um código e um sistema de signos. A dar credito aos ensinamentos contidos no Curso, interessavam-lhe apenas o sistema e a forma e não o aspecto de sua realização na fala ou no seu funcionamento em textos (MARCUSCHI, 2008, p. 27).

A linguagem, por sua vez, para ele, constitui-se num conjunto mais

complexo, que envolve fenômenos físicos, psíquicos e fisiológicos. Na dicotomia

mencionada, Saussure estabeleceu uma dicotomia entre a língua e a fala, visto

que, para ele, “a língua não constitui, pois, uma função do falante: é produto que o

indivíduo registra passivamente; não supõe jamais premeditação, e a reflexão

nela intervém somente para a atividade de classificação”(SAUSSURE, 1939, p.22).

Já a fala,

é, ao contrário, um ato individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: 1°, as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2°, o mecanismo psico-físico que lhe permite exteriorizar essas combinações (SAUSSURE, 1939, p.22).

Saussure apontou, assim, para a necessidade de uma linguística da fala e

de uma linguística da língua e se dedicou ao estudo da última. Os estudos

doautor mudaram os rumos da Linguística moderna. Sua contribuição teórica

iniciou o movimento denominado como ‘estruturalismo’ e teve influência sobre

diversas áreas até os dias atuais. Além disso, foi a partir de seu trabalho que a

Linguística passou a ser autônoma, “separando-se dos estudos históricos, da

psicologia, da filologia e da literatura” (MARCUSCHI, 2008, p. 27).

No entanto, estudos posteriores buscaram contemplar o que Saussure

alijou da teoria, ou seja, os aspectos que não podem ser contemplados a partir de

sua visão de língua como um sistema fechado. Dentre as diversas correntes

dedicadas a estudar a linguagem (que não serão debatidas aqui, visto que não se

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configuram como foco deste trabalho), a ADé uma disciplina que se propôs a

estudá-la a partir de seus aspectos linguísticos, históricos e ideológicos.

É dessa forma que o filósofo francês Michel Pêcheux inaugura, na década

de 60, a Teoria do Discurso, a partir da publicação da obra Análise automática do discurso e de doisartigos publicados sob o pseudônimo de Thomas Herbert.

O seu objetivo inicial era instigar uma reviravolta no campo das Ciências Sociais

e, ao mesmo tempo, fornecer o instrumento científico de que teriam necessidade.

De acordo com Henry (2014), para Pêcheux, há uma ligação direta entre as

Ciências Sociais e a prática política, cujo instrumento é o discurso. Dessa

maneira, Pêcheux, “tendo em vista provocar uma ruptura no campo ideológico

das ciências sociais, escolheu o discurso e a análise de discurso como o lugar

preciso para se intervir teoricamente” (HENRY, 2014, p.24) e recusou a

concepção de linguagem proposta pelas ciências sociais, que a reduziam a um

instrumento de comunicação: “é justamente para romper com a concepção

instrumental tradicional da linguagem que Pêcheux fez intervir o discurso”

(HENRY, 2014, p.25).

O que Pêcheux buscava, com a teoria do discurso, era um modo de pensar

a linguagem na sua relação com a história, articulando conhecimentos oriundos

de outros campos, em uma tentativa de conciliar a historicidade das relações e

práticas do homem com os aspectos relativos à língua e à linguagem.

Inicialmente, a teoria de Pêcheux esteve voltada para o discurso político,

visto que a década de 60 foi afetada por grandes transformações políticas e

econômicas. Conforme afirmado, o autor buscava causar uma reviravolta no

campo das Ciências Sociais, pois “esse modo de reflexão estava comprometido

com o empirismo, embaraçado na problemática subjetivista (centrada no

indivíduo), e ligado ao formalismo” (MARIANI, 2008, p.46). Conforme explica

Orlandi (2010),

Em uma proposta em que o político e o simbólico se confrontam, essa nova forma de conhecimento coloca questões para a Linguística, interpelando-a pela historicidade que ela apaga, do mesmo modo que coloca questões para as ciências sociais, interrogando a transparência da linguagem sobre a qual elas se assentam (ORLANDI, 2010, p. 16).

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Desse modo, buscando constituir uma teoria que servisse como método e

que contemplasse uma análise da linguagem em todos os aspectos, Pêcheux

(2014) relacionou a teoria do discurso com conhecimentos advindos de três

outras áreas:

1. o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria das ideologias;2.a lingüística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação, ao mesmo tempo;3.a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos.Convém explicitar ainda que essas três regiões são, de certo modo, atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica)(PÊCHEUX; FUCHS,2014 p.160).

Dessa articulação resultou o empreendimento que propõe analisar a língua

a partir de outra perspectiva, a do discurso, e pensar a questão do sentido de

maneira diferente do que propunham as teorias linguísticas tradicionais.

Pêcheux inscreve sua reflexão nos princípios fundamentais da concepção materialista de história e, assim, instaura o campo de conhecimento da Análise de Discurso sob a regência de uma ‘teoria do discurso’ orientada e inscrita no materialismo histórico (AMARAL; ZOPPI FONTANA, 2015, p.42).

Pêcheux concebe o discurso como uma esfera determinada, sobretudo,

pelo campo ideológico. Contudo, o autorreconhecea indispensabilidade da língua

como base linguística, submetida a leis internas próprias, como suporte para os

processos discursivos. Conforme explica o autor,

É, pois, sobre a base dessas leis internas que se desenvolvem os processos discursivos e não enquanto expressão de um puro pensamento, de uma pura atividade cognitiva, etc., que utilizaria ‘acidentalmente’ os sistemas linguísticos (PÊCHEUX, 1995, p.91).

Para ele, a língua é utilizada por sujeitos que se inscrevem em relações

ideológicas de classes, o que faz com que esse sistema, embora seja o mesmo

para todos, não seja utilizado por todos damesma maneira:

Diremos que as contradições ideológicas que se desenvolvem através da unidade da língua são constituídas pelas relações contraditórias que mantêm, necessariamente, entre si os ‘processos discursivos’, na medida em que se inscrevem em relações ideológicas de classe(PÊCHEUX, 1995, p. 93).

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Portanto, embora os processos discursivos se desenvolvam sobre a

mesma base linguística, os discursos não são os mesmos,isto é, apesar de a

língua ser comum a todos, os(efeitos de) sentidos se diferenciam, uma vez que

são afetados pela ideologia. Dessa maneira, importa àADtomar a língua enquanto

base comum para que os processos discursivos se desenvolvam.

Sendo assim, em AD, “não se trabalha, como na Linguística, com a língua

fechada nela mesma, mas com o discurso [...] nem se trabalha, por outro lado,

com a história e a sociedade como se elas fossem independentes do fato de que

elas significam” (ORLANDI, 2010, p.16).

O trabalho com a AD não busca se debruçar sobre questões de

organização dos signos ou sobre regras normativas. A ela, interessa o sentido

produzido na/pela língua, uma vez que procura “compreender a língua fazendo

sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral do homem e

da sua história” (ORLANDI, 2010, p.15); compreender os sentidos dos textos

considerando o sujeito inscrito numa circunstância histórica e observando o

homem, significando e compreendendo significados enquanto efeitos de uma

determinada sociedade. Conforme explica Orlandi (2010),

A Análise do Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da língua, não trata da gramática, embora essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando (ORLANDI, 2010, p. 15).

Dessa maneira, o que interessa àAD é a significação, ou seja, a língua

enquanto produtora de sentidos, levando em conta os fatores externos que a

afetam eque levam o homem a falar de uma maneira e não de outra.Logo, em

AD, faz-se necessário,sobremaneira,tratar do conceito de‘discurso’, pois a teoria

se constitui a partir de e em torno dele.

1.2 Discurso

Oconceito de‘discurso’parte, sobretudo, de Pêcheux (2014)e não indicia um

objeto no sentido empírico do termo. O discurso aponta parafuncionamento da

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linguagem e coloca em relação sujeitos afetados pela língua e pela história em

um complexo processo de constituição de sentidos e dos próprios sujeitos.

Conforme explicitadopor Orlandi(1987),

A noção fundamental, parece-me, é a de funcionamento. Quer dizer, do ponto de vista da Análise do Discurso, o que importa é destacar o modo de funcionamento da linguagem, sem esquecer que esse funcionamento não é integralmente linguístico, uma vez que dele fazem parte as condições de produção que representam o mecanismo de posicionamento dos protagonistas e do objeto do discurso (ORLANDI, 1987, p. 107).

A autora esclarece que fazem parte do discurso outros fatores além dos

ingredientes linguísticos;portanto, ele não pode ser concebido como transmissão

de informação oumeio de comunicação, já que a linguagem serve também para

não comunicar. Dessa forma, oque acontece entre os interlocutores é o

processode produção de efeito de sentidos: “o termo discurso[...] não trata

necessariamente de uma transmissão de informação entre A e B, mas, de modo

mais geral, de um ‘efeito de sentidos' entre os pontos A e B” (PÊCHEUX, 2014,

p.81 - grifo do autor), como esse trabalho procuroumostrar, quando busca analisar

os efeitos de sentido que a Veja (re)produz, buscando estabelecer práticas

discursivas em torno do adolescente que comete ato infracional.

Aproximar o ‘discurso’ da significaçãoe distanciá-lo da tese da transmissão

de informaçãopermite refletir sobre o funcionamento da linguagem de maneira

não reducionista, isto é, pensar a linguagem a partir da perspectiva do discurso

implica considerar a relação entre a língua e a sua exterioridade.

Conceituar ‘discurso’significa, pois, “colocar em relação o campo da língua

(suscetível de ser estudada pela Linguística) e o campo da sociedade (apreendida

pela história e pela ideologia)” (GREGOLIN,1995, p.17). Neste sentido, pensa-se

o discurso como materialização da ideologia. Nas palavras de Brandão (2004), ele

é o ponto onde se articulamprocessos ideológicos e fenômenos linguísticos.

Segundo Fiorin (1990),

o discurso deve ser visto como objeto lingüístico e como objeto histórico. Nem se pode descartar a pesquisa sobre os mecanismos responsáveis pela produção do sentido e pela estruturação do discurso nem sobre os elementos pulsionais e sociais que o atravessam. Esses dois pontos de vista não são excludentes nem

12

metodologicamente heterogêneos. A pesquisa hoje precisa aprofundar o conhecimento dos mecanismos sintáxicos e semânticos geradores de sentido; de outro, necessita compreender o discurso como objeto cultural, produzido a partir de certas condicionantes históricas, em relação dialógica com outros textos (FIORIN, 1990, p. 177).

‘Discurso’ não possuium sentido empírico,não representa a comunicação

entre interlocutores da enunciação e não pressupõe um sistema; pelo contrário,

ele pressupõe um funcionamento e uma materialidade ideológica dosaspectos

que envolvem e afetam os homens em suas relações sociais,colocados em uma

determinada classeno seio da sociedade.

Convémdiferenciar ‘discurso’ e ‘texto’: “enquanto o texto é um enunciado

materializado, o discurso abarca uma esfera mais ampla da prática de linguagem”

(ORSATO, 2009, p.53). O discurso compreende vários textos que circulam e

estão presentes na sociedade, sendo o segundo a ponta do iceberg de uma

FD.Em suas relações cotidianas e sociais, o homem produz discursos em

diferentes esferas. Estes discursos materializam-se por meiode textos que

circulam na sociedade e se inscrevemem diferentes gêneros.

Todavia, o que interessa para a AD é o estudo do texto a partir de seus

aspectos histórico-ideológicos. Isso implica remetê-lo àdeterminada FD e

considerar as suas condições de produção, isto é: quem produziu o texto, para

quem ele foi produzido, em que momento histórico e quais eram as relações

ideológicas que afetavam o contexto de produção. Conforme explica Pêcheux

(2014),

é impossível analisar um discurso como um texto, isto é, como uma sequência linguística fechada sobre si mesma, sendo necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção (PÊCHEUX, 2014, p. 78).

Até os desdobramentos que levaram a Linguística a ser concebida como

ciência, estudar um texto era

colocar a seu respeito questões de natureza variada provenientes, ao mesmo tempo, da prática escolar que ainda é chamada de compreensão do texto, e da atividade do gramático sob modalidades normativas ou descritivas; perguntávamos ao mesmo tempo: ‘De que fala este texto?’ e ‘Este texto está em conformidade com as normas da língua na qual ele se apresenta?’ ou então

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‘Quais são as normas próprias a este texto?’(PÊCHEUX,2014, p. 59).

Assim, por muito tempo, olhou-se para os textos como unidade pronta e

acabada e estabelecer a sua ‘compreensão’ significavatranscorrer sua superfície

para entender o que ele dizia e/ou como ele dizia.Um destes caminhos seria a

Análise de Conteúdo que, de acordo com Pêcheux (2014), situa-se “em um nível

supralinguístico, pois o que está em questão é o acesso ao sentido de um

segmento do texto, atravessando-se sua estrutura linguística” (PÊCHEUX, 2014,

p. 63).

A AD contesta a noção de significação sustentada pela Análise de

Conteúdo, pois, “para esta, o sentido de um texto são as informações que ele

contém”(POSSENTI, 2011 p.358) e seu método de leitura se baseia no

levantamento da informação representadapor categorias temáticas.Para a AD,

para chegar ao sentido de um texto, épreciso remetê-loa condições de produção

específicas:

A ruptura da AD com a análise de conteúdo se dá tanto pela crítica da leitura baseada em categorias temáticas quanto pela diferente abordagem do sentido: em lugar de seu tratamento como informação, a AD introduz a noção de efeito de sentido entre interlocutores(POSSENTI, 2011, p.358).

Portanto, para a AD, a relevância da análise do texto é enquanto discurso,

isto é, há que se desvendar o que não está dado na superfície linguística, ou seja,

os seus aspectos ideológicos, sociais e históricos que envolvem, em primeira

instância, a produção do discurso até a sua materialização enquanto texto:

Entendemos, portanto, discurso como um dos patamares do percurso de geração de sentido de um texto, o lugar onde se manifesta o sujeito da enunciação e onde se pode recuperar as relações entre o texto e o contextosócio-histórico que o produziu(GREGOLIN, 1995, p.17).

O conceito de discurso também encontra respaldo em Foucault1 (2008).

Para ele, o discurso é “um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem

1Michel Foucault é trazido para este trabalho por considerar-se importante para o enriquecimento teórico, entretanto, embora este autor também faça parte da AD, seus apontamentos teóricos se desencontram em alguns conceitos e perspectivas da linha central que segue esta dissertação, respaldada, sobretudo, em Michel Pêcheux.

14

na mesma formação discursiva" (FOUCAULT, 2008, p. 132). O discurso pertence

a um

conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 2008, p. 133).

Para Foucault (2008), os discursos são concebidos como uma dispersão,

ou seja, não estão ligados por um princípio de unidade. Para o autor, é necessário

recuperar as regras capazes de compor o discurso,ou seja, as chamadas regras

de formação, isto é, os princípios de regularidade dados por uma mesma FD.

De acordo com o autor, essas regularidades seriam estabelecidas por meio

da análise dos enunciados, visto que o enunciado é o ingrediente principal que

constitui um discurso que, no entanto, não se reduz a uma formação linguística de

signos com estrutura e delimitações; ao invés disso, constitui-se como “função

que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que

apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço” (FOUCAULT, 2008,

p. 98).

Descobrir tais regularidades significa interrogar a emergência dos

discursos, isto é, o que possibilita o aparecimento de um discurso e impede o

surgimento de outro, pois, toda vez que algo é dito, há outro dito interditado que

deixa de vir à tona por forças coercitivas. Esse jogo de forças provém da

exterioridade, que dita direções, impõe barreiras e controla as práticas discursivas

em um determinado momento histórico. Assim, analisar a prática discursiva da

revista Veja significa interrogar a emergência de determinados sentidos, ou seja,

porque se diz X e não Y sobre adolescentes que cometem ato infracional, quais

as condições de produção desse discurso e a qual/quais discurso(s) ele interdita.

Foucault (1996) destaca, ainda, o discurso como o lugar de articulação

entre o saber e o poder, uma vez que“quem fala, fala de algum lugar, a partir de

um direito reconhecido institucionalmente. Esse discurso, que passa por

verdadeiro, que veicula saber (o saber institucional), é gerador de

poder”(BRANDÃO, 2004, p.37).

15

Logo, pensar em discurso leva a pensar em efeito de sentido e fazer

análise de discurso significa entendercomo o discurso se constitui, quais são as

relações que o cercam, como os ditos se organizam e os nãoditos significam. O

analista deve transcorrer a superfície linguística, buscando as marcas deixadas

pelo ingrediente ideológico quedetermina o curso de cada discurso.

O discurso possui um fio que se liga a outros ditos e também não ditos

para construir o sentido. À AD, importa mostrar como um dito silencia outro e

também porque os ditos vêmà tona e não outros, como se exemplifica a partir da

SD abaixo,que compõe a linha fina da matéria O dever de reagir da edição nº

2318,publicada pela revista Vejaem 24 de abril de 2013:

SD01: Por ser menor de idade, o assassino de Victor Deppman vai ficar não mais que três anos internado. Isso tem de mudar.

De acordo com a SD acima, Veja afirma que o adolescente que matou

Victor Deppman ficará três anos internado por cometer o crime apenas por ter

menos de 18 anos. Ao final da SD, a revista enfatiza queessa situação “tem de

mudar”. Ao analisar discursivamente esta SD, verifica-se que a expressão“não

mais que”produz o efeito de que o tempo que o adolescente ficará internado é um

tempo curto. Para Veja,seria necessária uma pena maiordo que três anos pelo

assassinato. Já “Isso tem de mudar”mostra que a revista se inscreve em uma FD

que entende que os ACAI devem ser condenados e punidos como adultos, sendo

passível a aplicação de penas maiores.

O que não está dito nesta SD é que ambos os rapazes eram menores de

idade: tanto Victor Deppman quanto o rapaz que cometeu o assassinato. O que

fica em silêncio é que o adolescente assassinado pertenciaà classe média,

possuía uma identidade, um nome e sobrenome, uma família e um lugar na

sociedade. Jáo adolescente que cometeu assassinato é designado como

‘assassino’.Seu nome é apagado,destitui-se sua identidade, assim como o seu

lugar/posição na sociedade:

Resta a esses sujeitos a segregação, como se aqueles que estão à margem o fazem por escolha própria, apagando as (não) condições de estarem em outro lugar, considerado, por quem vive ‘dentro das regras comuns, o lugar de quem

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trabalha, estuda, enfim, sobrevive ‘dignamente’ (OLIVEIRA, 2015, p. 197)

É da ordem do ‘discurso’, portanto, colocar o dito em relação com o não

dito. O que é interditado também significa, pois ofator ideológicose manifesta na

língua, cria realidades e produz (efeitos de) sentidos. Tendo em vista que pensar

em discurso implica pensar em efeito de sentido, faz-se necessário abordar como

o sentido é entendido pela AD.

1.3Sentido, Paráfrase e Polissemia

Ao colocar em relação os aspectos linguísticos e os fenômenos históricos

na construção dos dizeres, a teoria do discurso de Pêcheuxdesenvolve uma

noção peculiar de ‘sentido’ e rompecom a ideia de literalidade, visto que a língua

não é um sistema fechado e imutável, masestá sujeita às “condições de

possibilidade do discurso” (ORLANDI, 2010, p. 22).

A teoria proposta por Pêcheux (2014)parte da concepção do sentido como

‘efeito de sentido’, o qual é gerado no interior de uma FD e é afetado por

determinações externas. De acordo com Cattelan (2008),

Pensar o sentido como um efeito é assumir que os recursos da língua não são estáveis; é afirmar que o sentido que assumem são próprios do acontecimento discursivo de que fazem parte, podendo não vir a se repetir (CATTELAN, 2008, p. 34).

Para a AD, o sentido não está colado às palavras e não tem uma relação

direta com o mundo e com as coisas: “o sentido não é função de um

significante/palavra, mas de uma dupla ou de uma (n)upla de

significantes/palavras em relação de mútua substituibilidade” (POSSENTI, 2011,

p.372).

Dessa maneira, descarta-se a literalidade ou a predeterminação dos

sentidos. Também não se pensa em correspondência entre significante e

significado comopropunha Saussure. O sentido é construído a partir de posições

ideológicas e históricas dadas e é formulado no interior de uma FD, por meio de

um processo complexo que independe da vontade e da consciência do

enunciador. Sobre isso, Pêcheux (1995)afirma:

17

Uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido que lhe seria ‘próprio’, vinculado a sua literalidade. Ao contrário, seu sentido se constitui em cada formação discursiva, nas relações que tais palavras, expressões ou proposições mantêm com outras palavras, expressões ou proposições da mesma formação discursiva (PÊCHEUX, 1995, p. 161).

Para refletir sobre a questão da determinação do sentido, Pêcheux

(2014)esboça o conceito de ‘efeito metafórico’, sendo ele a determinação do

sentido por meio da relação que uma palavra ou expressão mantém com um

conjunto de outras palavras ou expressões que possuem entre si uma relação

passível de substituição: “Chamaremos efeito metafórico o fenômeno semântico

produzido por uma substituição contextual” (PÊCHEUX, 2014, p. 96).

Nessa perspectiva, a construção de sentido das palavras “nunca é o

sentido de uma palavra, mas de uma família de palavras que estão em relação

metafórica” (POSSENTI, 2011, p.372) no seio de uma FD.

Assim como acontece com as palavras, também acontece com o domínio

dos enunciados. O sentido dos enunciados é efeito da relação de substituibilidade

por enunciados pertencentes a uma mesma FD.De acordo com Pêcheux e Fuchs

(2014), o sentido é construído e

a produção do sentido é estritamente indissociável da relação de paráfrase entre sequências tais que a família parafrástica destas sequências constitui o que se poderia chamar a ‘matriz de sentido’. Isto equivale a dizer que é a partir da relação no interior desta família que se constitui o efeito de sentido, assim como a relação a um referente que implique este efeito (PÊCHEUX; FUCHS, 2014, p. 167).

Isto significa que, para produzir sentido, o sujeito recorre,

inconscientemente, a uma rede de palavras e enunciados já ditos, isto é, a uma

família parafrástica, que se constitui como uma “matriz de sentido” (PÊCHEUX,

2014, p. 167) no interior de uma FD. Logo, pensa-se em paráfrase enquanto

matriz de sentido, ou seja, como uma base de formulação do mesmo dizer: “a

paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer” (ORLANDI

2010, p. 36).

Embora o sujeito tenha a ilusão de ser a origem do discurso, os enunciados

apenas se formulam a partir de outros querepousam sob uma memória discursiva.

Produzem-se, assim, formulações variadas desse discurso. O funcionamento

18

parafrástico e o efeito metafórico estão imbricados quanto à constituição de

sentidos. Eles trabalham como processo de sustentação e de retomada dos

sentidos de uma FD.

Acresça-se à paráfrase outra noção relativa ao funcionamento da

linguagem: a polissemia.Orlandi (2010) a define como “a simultaneidade de

movimentos distintos de sentido no mesmo objeto simbólico” (ORLANDI, 2010, p.

38).A polissemia representa a “ruptura dos processos de significação” (ORLANDI

2010, p. 36), isto é, o deslocamento das regras de produção da linguagem,

fazendo intervir outros sentidos.Para a autora, essas duas forças trabalham

movimentando os dizeres, de modo que representam o mesmo e o diferente.

Dessa maneira, segundo ela, o funcionamento da linguagem ocorre em meio a

um jogo entre processos parafrásticos e polissêmicos, entre o estabilizado e a

ruptura.

Enquanto a paráfrase configura-se como retomada dos já-ditos, a

polissemia representa o deslocamento que acontece por meioda “ruptura do

processo de produção da linguagem, pelo deslocamento das regras, fazendo

intervir o diferente, produzindo movimentos que afetam os sujeitos e os sentidos

na sua relação com a história e com a língua” (ORLANDI, 2010, p.37).

Para compreender o processo de constituição dos discursos, é preciso

pensar na relação entre o mesmo e o diferente,tendo em vista que é por meio

dele que os sujeitos e os sentidos se movimentam. Ademais, a AD pensa a

linguagem enquanto polissêmica, pois a língua está sujeita a equívocos, com

margem para deslizes e lugar de outro possível, em que se manifestam os efeitos

ideológicos que circunscrevem os homens nas suas relações.

Neste sentido, entender quais são os efeitos de sentido gerados pelo

discurso da Vejasobre os ACAIimplica analisar como ocorrem os processos

parafrásticos e polissêmicos no discurso do semanário, ora (re)formulando

sentidos cristalizados, ora movimentando outros sentidos.Para tanto, apresenta-

se, a seguir, uma análise sumária da SD exposta no item anterior;busca-se, aqui,

entender quais são os efeitos de sentido propiciados pela SD.

SD01: Por ser menor de idade, o assassino de Victor Deppman vai ficar não mais que três anos internado. Isso tem de mudar.

19

Ao afirmar “isso tem de mudar”,Veja se refere à legislação brasileira que

determina que o período máximo de internação de um ACAI seja de três anos.

Nessa SD, a afirmação do semanário vai ao encontro de um determinado

consenso sobre o menor criminosoque defende a redução da maioridade penal.

O que se verifica nessa SD é uma paráfrase de que adolescente que

comete crime é bandido e deve ser condenado e punido como adulto. O

semanário enfatiza “os três anos”como um tempo curto, assume a necessidade

de mudança eproduzum outro/mesmo dizer a partir de um sentido

sedimentado.Os efeitos de sentido dessa SD se restringem a construções que

apontam para a penalização e a depreciação dos ACAI, que são determinados

pela FD de que Veja é suporte.

Para precisar o conceito e a determinação da FD sobre o discurso, aborda-

se, a seguir,oseu conceito ea sua relevância para a teoria do discurso enquanto

instância em quese constitui o sentido.

1.4Formação discursiva e Formação ideológica

Para a AD, o sujeito é determinado pela FD e é atravessado pela ideologia.

Ele não possui controle sobre seus dizeres, pois é a FD que regula o processo de

constituição dos sentidos; ele sofre as determinações do fator ideológico. Todavia,

para entender esse processo, é importante pensá-lo enquanto produto das

relações de classe e do modo de produção dominante de determinada formação

social.

Para Pêcheux e Fuchs (2014), a “reprodução contínua das relações de

classe é assegurada materialmente pela existência de realidades complexas

designadas por Althusser como ‘aparelhos ideológicos do Estado’” (AIE)

(PÊCHEUX; FUCHS, 2014, p. 163). Para eles, os AIE põem em jogo “práticas

associadas a lugares ou relações de lugares que remetem às relações de classe”

(PÊCHEUX; FUCHS, 2014, p. 163) e estas se organizam em formações que

mantêm entre si relações de confronto, aliança ou dominação. Assim, é no interior

dos AIE que são constituídas formações ideológicas (FIs):

Falaremos de formação ideológica para caracterizar um elemento (este aspecto da luta nos aparelhos) suscetível de intervir como uma força em confronto com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social em dado momento; desse

20

modo, cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e representações que não são nem ‘individuais’ nem ‘universais’ mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras. (PÊCHEUX;FUCHS, 2014, p. 163)

As FDs, por sua vez, “representam ‘na linguagem’ as formações

ideológicas que lhe são correspondentes” (PÊCHEUX 1995, p. 161), isto é, elas

materializam a ideologia por meioda linguagem. Logo, a FI está para o crer

enquanto a FD está para o falar, sendo estas duas instâncias discursivas

norteadas pela ideologia. Sobre isso, Pêcheux e Fuchs (2014) explicam que

se deve conceber o discursivo como um dos aspectos materiais do que chamamos de materialidade ideológica. Dito de outro modo, a espécie discursiva pertence, assim pensamos, ao gênero ideológico, o que é o mesmo que dizer que as formações ideológicas ‘comportam necessariamente’ como um de seus componentes, uma ou várias formações discursivas interligadas que determinam o que pode e deve ser dito[...] numa certa relação de lugares no interior de um aparelho ideológico, e inscrita numa relação de classes. (PÊCHEUX;FUCHS, 2014, p.163-164).

Para os autores, a Ideologia age por meiodas FIs realizando a interpelação

dos indivíduos em sujeitos a partir de uma determinada conjuntura, isto é, a partir

de características particulares que levam em conta “características ‘regionais’ (o

direito, a moral, o conhecimento, Deus, etc.) e, ao mesmo tempo, de suas

características de classe” (PÊCHEUX, 2014, p.164).

O conceito de FD é fundamental para a AD, “pois permite compreender o

processo de produção de sentidos, a sua relação com a ideologia e também dá

ao analista a possibilidade de estabelecer regularidades no funcionamento do

discurso” (ORLANDI, 2010, p.43).Para Pêcheux (1995), a FD é “aquilo que, numa

formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura

dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve

ser dito” (PÊCHEUX, 1995, p 160).Isso significa dizer que os enunciados são

produzidos a partir de elementos ditados por uma FD, criandoum efeito ilusório de

escolha, ou seja: o indivíduo tem a impressão de ter o controle do discurso

quando é condicionado pela ideologia e pela condição de produção de um lugar

social. Dessa maneira, “o sujeito é levado, então, a deixar de fora de seu discurso

elementos que possam trazer à tona outras formações ideológicas,

21

estabelecendo-se, assim, uma ‘seleção’ de crenças, valores e formas linguísticas”

(TAVARES, 2006, p. 194).

A noção de FD éoriunda de Foucault (2008). Ele a concebe desse modo:

no caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva (FOUCAULT, 2008, p. 43).

Assim, a FD é concebida por Foucault comouma dispersão em cujo interior

se produz um conjunto de regras, as quais definem o sentido dos enunciados que

a constituem. Essas regularidades são constituídas depré-construído. Para

Brandão (2004),

O pré-construído remete assim às evidências através das quais o sujeito dá a conhecer os objetos de seu discurso: ‘o que cada um sabe’ e simultaneamente ‘o que cada um pode ver’ em uma situação dada. Isso equivale a dizer que se constitui, no seio de uma FD, um Sujeito Universal que garante ‘o que cada um conhece, pode ver ou compreender’ (BRANDÃO, 2004, p.48).

É a partir do domínio da FD que se produzem os pontos de estabilização

no sujeito, que levam a ver e a entender a realidade de certo modo. Reconhecer a

si mesmo como sujeito ocorre no interior das FDs; é ai que o sentido se constitui.

Dessa maneira, uma FD representa discursivamente as formações

ideológicas, isto é, a forma de pensar e de ler o mundo dosujeito, o que

demonstra o caráter ideológico dos sentidos e implica a articulação entre

linguagem e ideologia. Logo, os sentidos são construídos na medida em que são

remetidos à determinada FD.

Pêcheux (2014) reitera que as FDs existem no interior de relações de

classe e se reformulam na história, ou seja, fornecem elementos que podem ser

retomados em outras relações ideológicas, transformando-se em outrasFDs e

originando outros discursos. Assim, deve-se compreender que uma FD não

éfechada e homogênea:“Elas são constituídas pela contradição, são

heterogêneas nelas mesmas e suas fronteiras são fluidas, configurando-se e

reconfigurando-se continuamente em suas relações” (ORLANDI, 2010, p.44).

22

Nesse sentido, Pêcheux (2014) afirma ser impossível precisar as fronteiras

entre FD, FI e condições de produção, considerando o caráter dialético destes

conceitos. Portanto, é preciso pensar nos elementos que trabalham para a

composição do processo discursivo como unidades indissolúveis.

Diante do que vem sendo discutido, busca-se, agora, analisar a SD01 de

modo a identificar em que FD predominanteVeja se inscreve:

SD01: Por ser menor de idade, o assassino de Victor Deppman vai ficar não mais que três anos internado. Isso tem de mudar.

Veja se inscreve em uma FD que toma os ACAI como bandidos que devem

ser punidos. Esta FD, por sua vez, está inserida em uma FI de bases direitista e

neoliberal2, que se harmonizam e se caracterizampor um modelo de

gerenciamento de estado e capitalque beneficia, sobretudo, os interesses da

classe média, classe esta de que não faz parte a maioria dos adolescentes que

praticam crimes, já que,

Segundo Rocha (2002), havia no país 9.555 adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação e internação provisória. Destes, 90% (noventa por cento) eram do sexo masculino; 76% (setenta e seis por cento) tinham idade entre 16 e 18 anos; 63% (sessenta e três por cento) não eram brancos e destes 97% (noventa e sete por cento) eram afrodescendentes; 51% (cinqüenta e um por cento) não freqüentavam a escola; 90% (noventa por cento) não concluíram o Ensino Fundamental; 49% (quarenta e nove por cento) não trabalhavam; 81% (oitenta e um por cento) viviam com a família quando praticaram o ato infracional; 12,7% (doze vírgula sete por cento) viviam em famílias que não possuíam renda mensal; 66% (sessenta e seis por cento) em famílias com renda mensal de até dois salários mínimos, e 85,6% (oitenta e cinco vírgula seis por cento) eram usuários de drogas. (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE- p.19, grifo nosso)

Logo, os sentidos produzidos a partir desta FD serão sempre negativos

com relação aos ACAI, porque a gama de enunciados disponibilizados para a

construção dos dizeres sobre eles estão em relação de substituibilidade no

interior desta FD. Isto é, embora sejam palavras ou expressões literalmente

diferentes, no interior da FD elas recebem o mesmo sentido.2Afirmação feita a partir de Silva (2008) em que a autora, em um estudo sobre a Veja, conclui que a revista atua sob as bases de uma ideologia neoliberal e trabalha em prol de hegemonizar tal modelo de gerenciamento de capital na sociedade.

23

1.5 Interdiscurso

Acrescente-se outro conceitoda AD que faz parte constitutiva do processo

de produção do discurso: o‘interdiscurso’. Pêcheux (1995) o enfatizaafirmando

que a sua objetividade material contraditória é dissimulada pelas FDs:

[...] propomos chamar interdiscurso a esse ‘todo complexo com dominante’ das formações discursivas, esclarecendo que também ele é submetido à lei de desigualdade-contradição-subordinação que [...] caracteriza o complexo das formações ideológicas (PÊCHEUX, 1995, p. 162).

A noção de interdiscursoao deslocamento de palavras ou enunciados

acontece historicamente entreFDs e concerne aocaráter heterogêneodo discurso.

O interdiscurso surge como o já-dito e como o fio pelo qual passam os discursos

que se pautam em uma FD e seencontram em relação de dependência para com

esse “todo complexo com dominante”, ratificando/retificando certos sentidos.

A noção de interdiscursode Pêcheux (1995) mostra a dependência das

FDspara com o interdiscurso: “Toda formação discursiva dissimula, pela

transparência do sentido que nela se constitui, sua dependência com respeito ao

‘todo complexo com dominante’” (PÊCHEUX,1995, p.162). Assim, toda FD será

definida, construída e mantida sobre a relação com o ‘interdiscurso’ como

princípio de constituição.

Logo,assim como uma FD é margeada pelointerdiscurso, a interpelação

dos indivíduos em sujeitos de seu discurso também passa pelo fio do

interdiscurso. Conforme explica Pêcheux (1995),

Podemos agora precisar que a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito):essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apóia-se no fato de que os elementos do interdiscurso que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são re-inscritosno discurso do próprio sujeito (PÊCHEUX, 1995, p. 163).

Nessa perspectiva, o sujeito ocupa lugares no seio social: lugar do

professor, do aluno, do pai, e é levado a enunciar a partir do que esta posição

requer, ou seja, a FI e a FD determinam o que pode e o que não pode ser dito em

cada posição.

24

A noção de interdiscurso, paraOrlandi (2010), não se diferencia de

memória discursiva, pois ela julga existir uma proximidade entre as duas

concepções: “A memória [..]tem suas características quando pensada em relação

ao interdiscurso.E nessa perspectiva ela é tratada como interdiscurso”(ORLANDI,

2010,p.31).

Para Pêcheux (1999), por outro lado,

a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem reestabelecer os implícitos (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição legível em relação ao próprio legível (PÊCHEUX, 1999, p. 52)

A noção de interdiscurso que Orlandi propõe, mais ou menos, na esteira de

Pêcheux, surge como memória, isto é, um passado discursivo eum conjunto de já-

ditos que sustentam a formulação dos novos dizeres. Para a autora,

Pelo conceito de interdiscurso, Pêcheux nos indica que sempre já há discurso, ou seja, que o enunciável (o dizível) já está aí e é exterior ao sujeito enunciador. Ele se apresenta como séries de formulações que derivam de enunciações distintas e dispersas que formam em seu conjunto o domínio da memória. Esse domínio constitui a exterioridade discursiva para o sujeito do discurso (ORLANDI, 1992, p. 89-90).

Assim, a noção de interdiscursocumpre a função de “designar o exterior

específico de uma FD” (PÊCHEUX, 2014, p.310).Por isso, toda FD só se constitui

e se mantém por meio de sua relação com o discurso outro.

Para Possenti (2011) a noção de ‘interdiscurso’de Maingueneau (1997) é

operacional para a AD e a ideia de espaço discursivo proposta pelo autor coincide

com a definição defendida por Pêcheux.Para Maingueneau (1997),

O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma forma discursiva é levada [...] a incorporar elementos pré-construídos, produzidos fora dela, com eles provocando sua redefinição e redirecionamento, suscitando, igualmente, o chamamento de seus próprios elementos para organizar sua repetição, mas também provocando, eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de determinados elementos (MAINGUENEAU, 1997, p. 113).

25

O autor ainda propõe pensar no interdiscurso a partir de uma tríade que

inclui o universo discursivo, o campo discursivo e o espaço discursivo.No primeiro

caso, o autor entende o conjunto de FDs de uma conjuntura dada. Para Possenti

(2011), esse universo constitui-se como o horizonte a partir do qual se constroem

os campos discursivos.Os campos discursivos se referem ao conjunto de FDsque

se encontram em concorrência em uma região desse universo: “É no interior do

campo discursivo que um discurso se constitui [...] tal constituição pode ser

descrita em termos de operações regulares sobre FDs já existentes”

(MAINGUENEAU, 1997,apud POSSENTI, 2011,p.383).O espaço discursivo, por

sua vez, refere-se a subconjuntos de FDs, cuja relaçãodeve ser julgada relevante

pelo analista.

Maingueneau (1997) aloca no interdiscurso a relação do “Mesmo do

discurso e seu Outro” (MAINGUENEAU, 1997, p. 32), isto é, o outro como

condição para o mesmo: “O Outro encontra-se na raiz de um Mesmo sempre já

descentrado em relação a si próprio, que não é em momento algum passível de

ser considerado sob a figura de uma plenitude autônoma”(POSSENTI, 2011,

p.384).

A noção de interdiscurso possibilita dizer que os discursos sempre estão

em relação de troca, isto é, não são independentes uns dos outros. O

interdiscurso funciona como um passado/presente discursivo de discursos

distintos e dispersos.Isso justifica o fato de as sequências linguísticas possíveis

de serem enunciadas por um sujeito já estarem dadas, pois são intercambiáveis e

circulam entre diferentes FDs, fator que constitui o interdiscurso sob condições de

produção dadas.

Para o desenvolvimento deste trabalho, parte-se, sobretudo, do conceito de

interdiscurso proposto por Pêcheux, pois ele define e constitui uma FD enquanto

evidência discursiva e como possibilidade de relação entre discursos. Ele indicia,

assim, a relação de um discurso com outros discursos, fazendo emergir outros

sentidos. Por isso, toda FD só se define na sua relação com o interdiscurso, pois

é ele que dá forma à FD, permitindo as interferências discursivas.Isso significa

que estudar um discurso é colocá-lo em relação com outros e que a emergência

de uma FD surge por meio do interdiscurso como um espaço de regularidade em

quediversos discursos entram na sua composição.

26

Portanto, analisar o discurso de Veja, isto é, analisar seus

posicionamentos, significa entender como os sentidos emergem no interior de

uma FD e na relação com outros discursos, ora se mantendo e ora se

deslocando.

Uma análise da SD01, a partir da perspectiva do interdiscurso, permite que

se vislumbre a que discursoa Veja se opõe, polemicamente:

SD01: Por ser menor de idade, o assassino de Victor Deppman vai ficar não mais que três anos internado. Isso tem de mudar.

Aoafirmar“Isso tem de mudar”, o semanário se contrapõe a uma FD que

entende que a redução da maioridade penal não deve acontecer e que três anos

de internamento é um tempo de reclusão apropriado para a recuperação

dosACAI, incluso nesta FD, está o discurso jurídico3, que assegura a

inimputalibilidade penal aos menores de 18 anos.

Assim, parte-se de um discurso que assegura a inimputabilidade de

menores de idade para um discurso que os condena. O interdiscurso perpassa

essas duas FDs, na medida em que carrega posicionamentos diferentes sobre

eles. Enquanto em uma FD eles são vistos como bandidos e criminosos, na outra,

eles são tidos como crianças/adolescentes que ainda se encontram em processo

de construção de identidade e, por ainda não possuírem completa consciência

dos seus atos, não devem ser submetido ao sistema criminal e criminal comum.

No entanto, deve-se entrever que, para além dessa controvérsia, a

passagem de um discurso para outro mantém, por meio de memória

discursiva,que a solução para a criminalidade é a penalização. Logo, a punição

seria o caminho para conter a criminalidade praticada por adolescentes. A única

diferença entre elas se refere à idade em que imputabilidade seria adequada.

1.6 Condições de produção

A noção de ‘condições de produção’, (CP) que será abordada a partir de

agora, configura-se como um conceito central para a AD. Pêcheux (2014) define

as CP como circunstâncias de um discurso, ou seja, as condições nas quais um

discurso está inserido.Elas “compreendem fundamentalmente os sujeitos e a

3Discurso jurídico é entendido neste trabalho sob a forma do ordenamento jurídico vigente, as leis.

27

situação” (ORLANDI, 2010, p.30).Em sentido estrito, a circunstância diz respeito

ao contexto imediato do discurso e, em sentido amplo, está relacionada ao

contexto sócio-histórico e ideológico. Todavia, deve-se destacar que,

para a AD, os contextos imediatos somente interessam na medida em que, mesmo neles, funcionam condições históricas de produção. Ou seja, os ‘contextos’ fazem parte de uma história, já que, também nessas instâncias de enunciação, os enunciadores se assujeitam à sua FD(POSSENTI, 2011, p.369).

Para Possenti (2011) as CP se distanciam da ideia de contexto e situação,

perspectivas representadas na linguística atual pela pragmática, que supõe

cenários institucionalizados ou ainda situações ritualizadas.Logo,

O que é levado em conta, no que se refere aos participantes de um evento discursivo, não é o eventual conhecimento que tenham das regras que comandam um certo intercâmbio linguístico[...] mas o que lhes escapa[..]: o fato de que cada um enuncia a partir de posições que são historicamente constituídas (POSSENTI, 2011, p. 367).

Ao cunhar a noção de CP, Pêcheux se opõe ao modelo comunicativo da

linguagem4, proposto por Jakobson 1960,no qual considera que o processo de

comunicação se dá entre um emissor (A) e um receptor(B) por meio de um código

comum, a língua, em um determinado contexto e por um canal específico.

Para Pêcheux (2014), a língua/discurso não funciona desse modo. O autor

substitui a noção de “emissor” e “receptor” por locutor e interlocutor e, ao invés de

comunicação, Pêcheux propõe definir ‘discurso’. Ademais, o autor não reconhece

a presença empírica de homens individuais no discurso, mas a representação de

‘lugares’ determinados na estrutura de uma formação social.

Assim, as CPrepresentam uma série de representações que contribuem

para a construção de sentidos. Isso significa que,ao enunciar, o sujeito ocupa

uma determinada posição ideológica, isto é, a posição do patrão, do empregado

etc. A partir desta posição, ele projeta imagens sobre si mesmo e os outros

participantes, que também ocupam lugares discursivos e sustentam determinadas

imagens.

4Não será aprofundado aqui visto que não se configura como foco deste trabalho.

28

Dessa maneira, todo processo discursivo supõe aexistência de formações

imaginárias (FIMs),por meio dasquais os indivíduos produzem imagens de si

mesmos, de seus locutores e do objeto do discurso, o que ocasiona um jogo

ilusivo que coordena a troca de palavras a partir da imagem que cada um faz de

si e do outro(s).Conforme explica Pechêux (2014),

o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro.Se assim ocorre, existem nos mecanismos de qualquer formação social regras de projeção, que estabelecem as relações entre as situações (objetivamente definíveis) e as posições (representações dessas situações) (PECHÊUX, 2014, p. 82).

Pêcheux (2014) apresenta um quadro por meio do qual é possível

visualizar as FIMs que estão em jogo em todo processo discursivo e esboçam “a

maneira pela qual a posição dos protagonistas do discurso intervém a título de

condições de produção” (PÊCHEUX, 2014, p. 82).Esquematicamente, o autor

apresenta o quadro com asexpressões e respectivas questões que são colocadas

em relação na produção dos discursos. A saber, projeta-se: 1) a imagem do lugar

de A para o sujeito colocado em A, com a pergunta “Quem sou eu para lhe falar

assim?”; 2) a imagem do lugar de B para o sujeito colocado em A, com a pergunta

“Quem é ele para que eu lhe fale assim?”; 3) a imagem do lugar de B para o

sujeito colocado em B, com a pergunta “Quem sou eu para que ele me fale

assim?”; 4) a imagem do lugar de A para o sujeito colocado em B, com a pergunta

“Quem é ele para que me fale assim?”; 5) o “ponto de vista” de A sobre R, com a

pergunta “De que lhe falo assim?”; 6) o “ponto de vista” de B sobre R, com a

pergunta “De que ele me fala assim?”. A partir desse complexo jogo de

imagens,constroem-se os processos discursivos. Para Pêcheux (2014), o

contexto ou a situação em que um discurso é construído pertence às CPs.

Pêcheux (2014) defende que a reflexão sobre as CPs permite pensar os

processos discursivos em sua generalidade e considerar que os fenômenos

linguísticos devem ser concebidos em funcionamento, que não é integralmente

linguístico e não pode ser definido “senão em referência ao mecanismo de

colocação dos protagonistas e do objeto de discurso, mecanismo que chamamos

de ‘condição de produção’ do discurso” (PÊCHEUX, 2014, p. 78).

29

Portanto, para a AD, a produção de efeitos de sentido é indissociável das

CPs. Verificar o que um discurso significa implica remetê-lo àsCPs específicas

num momento histórico especifico, isto é, considerar a ligação entre os processos

discursivos e as circunstâncias do discurso.

Dessa maneira, quando Veja enuncia, ela ocupa um lugar determinado na

formação social: o lugar da imprensa jornalística brasileira. Ela produz um

discurso a partir desta posição para um locutor representado por seus leitores.

Isso implica que o semanário se dirija diretamente ao público leitor, em especial,

aos seus leitores que são oriundos, em sua grande maioria, da classe média

brasileira.

Portanto, quando Veja produz um discurso, ela ocupa o seu lugar, que é o

de uma revista política com tendências neoliberais e adepta do capitalismo.

Desse modo, os ditames que a determinam,enquanto esfera jornalística, também

interferem na produção doseu discurso, ou seja, fazem com que ela rompa com a

suposta essência do jornalismo, que teria o dever de ‘informar’, com as demais

implicações que a mídia, enquanto AIE, desempenha na formação social.

Neste sentido, analisar o discurso daVeja significa percorrer o intradiscurso

das reportagens, buscando os vestígios das marcas de produção que determinam

cada tomada de posição da revista. Assim, deve-se partir do texto para o

discurso. Todavia, primeiramente, faz-se necessário discutir sobre como a AD

concebe a constituição do sujeito discursivo e qual a relação deste processo com

a ideologia.

1.7 Ideologia e sujeito

A teoria do discurso proposta por Pêcheux está calcada nos conceitos de

‘ideologia’ e de ‘sujeito’. Para tratar de ‘Ideologia’, Pêcheux retoma os estudos do

filósofo Louis Althusser. Althusser (1985) parte do conceito de ideologia proposto

por Marx e busca desenhar uma concepção mais abrangente. De acordo com ele,

na obra Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado, para manter sua

dominação, a classe dominante gera mecanismos de perpetuação e de

reprodução das condições materiais, ideológicas e políticas de exploração,

usando Aparelhos Repressivos de Estado (ARE): exército, polícia, prisões,

30

tribunais, chefes de estado, governo e administração, e Aparelhos Ideológicos de

Estado (doravante, AIE): família, escola, religião, cultura e mídia.

Para Althusser, estas instituições têm a finalidade de reprodução das

relações de produção assegurada pela superestrutura jurídico-política e

ideológica. O autor destaca, ainda, que não existe aparelho apenas repressivo ou

apenas ideológico, pois ambos trabalham tanto pela ideologia quanto pela

repressão:

Qualquer Aparelho de Estado, seja ele repressivo ou ideológico, funciona simultaneamente pela violência e pela ideologia, mas com uma diferença muito importante que impede a confusão [...]. É que em si mesmo o Aparelho (repressivo) de Estado funciona de uma maneira massivamente prevalente pela repressão (inclusive física), embora funcione secundariamente pela ideologia. [...] Da mesma maneira, mas inversamente, devemos dizer que, em si mesmos, os Aparelhos Ideológicos de Estado funcionam de um modo massivamente prevalente pela ideologia, embora funcionando secundariamente pela repressão, mesmo que no limite, mas apenas no limite, esta seja bastante atenuada, dissimulada ou até simbólica (ALTHUSSER, 1985, p. 47).

A noção de ‘Ideologia’ proposta por Pêcheux toma o conceito elaborado

por Althusser, entretanto, para Pêcheux (1995), as ideologias “não são feitas de

‘ideias’, mas de práticas” (PÊCHEUX, 1995, p. 144). Dessa maneira, a ideologia

deveria ser estudada em sua materialidade expressa no discurso. Pêcheux

entendia que os AIE não eram o modo operante da ideologia da classe

dominante, visto que é impossível atribuir a cada classe sua ideologia, masque

era por meio deles que a ideologia se materializava:

‘A ideologia da classe dominante não se torna dominante pela graça do céu...’, o que quer dizer que os aparelhos ideológicos do Estado não são a expressão da dominação da ideologia dominante, isto é, da ideologia da classe dominante [...], mas sim que eles são seu lugar e meio de realização(PÊCHEUX,1995, p.144-145).

Para o autor, não existe uma ideologia da classe dominante e uma

ideologia da classe dominada; existe, sim, uma ideologia que atravessa a

dinâmica da luta de classes e se concretiza nos AIE.

Ademais, de acordo com Pêcheux e Fuchs (2014), a ideologia não pode

ser concebida como a esfera das ideias e não está acima do mundo das coisas e

31

dos fatos econômicos. Ao contrário, ela deve ser caracterizada como uma

materialidade específica articulada sobre a materialidade econômica. Assim, o

funcionamento da ideologia deveria ser concebido como determinado pela

instância econômica, visto que se configura como uma das condições, condição

não econômica, da reprodução das relações de classes:

Esta reprodução contínua das relações de classe (econômica, mas também, não-econômica) é assegurada materialmente pela existência de realidades complexas designadas por Althusser como ‘aparelhos ideológicos do Estado’ e que se caracterizam pelo fato de colocarem em jogo práticas associadas a lugares ou a relação de lugares que remetem às relações de classes, sem, no entanto, decalcá-las exatamente. (PÊCHEUX; FUCHS, 2014, p.163)

Eis a importância do conceito de ‘ideologia’ para a teoria do discurso, pois

o discurso é a materialidade específica da ideologia. De acordo com Orlandi

(2010), "um dos pontos fortes da Análise de Discurso é re-significar a noção de

ideologia a partir da consideração da linguagem. Trata-se, assim, de uma

definição discursiva de ideologia" (ORLANDI, 2010, p. 45). Dessa maneira, a

ideologia ganha um sentido maior do que as ideias de classe dominante e

dominada e, por meio da AD, estabelece a relação entre sujeito, língua e mundo

que operam na construção do sentido.

Para Orlandi (2010), a ideologia tem por função produzir evidências que

apagam o processo de interpelação dos indivíduos em sujeitos, dando a eles a

impressão de serem sempre-já-sujeitos e sua inscrição em uma determinada FD

levando-os a crer na literalidade dos sentidos: “São essas evidências que dão aos

sujeitos a realidade como sistema de significações percebidas, experimentadas”

(ORLANDI, 2010, p.47). Para compreender essas evidências, é necessário

discutir como elas ocorrem por meio de esquecimentos.

Para Pêcheux (1995), há duas formas de “esquecimento”.O esquecimento

2 causa a impressão ilusória de linearidade entre o pensamento, a linguagem e o

mundo, ou seja, ele provoca a impressão de controle e de seleção

dosenunciados:

Propomos chamar este efeito de ocultação parcial esquecimento nº2 e identificar aí a fonte da impressão de realidade do pensamento para o sujeito (‘eu sei o que eu digo’, ‘eu sei o que eu falo’) (PÊCHEUX &FUCHS, 2014, p. 175).

32

Esse esquecimento causa a impressão de realidade para o pensamento,

criando uma ilusão referencial, compreendida como evidência do sentido.

Já o esquecimento 1 é ideológico e inconsciente e provoca a impressão de

que o indivíduo é origem dos dizeres e dos sentidos. Ele oculta a maneira como o

sujeito é afetado pela ideologia para que possa ‘significar’: “O esquecimento nº1,

cuja zona é inacessível ao sujeito, precisamente por esta razão, aparece como

constitutivo da subjetividade na língua” (PÊCHEUX; FUCHS, 2014, p. 177).

Neste sentido, o esquecimento estruturaa subjetividade. Ele se constitui

como um processo necessário para a constituição do sujeito e do sentido, pois as

palavras não se originam nele e os ditos não são dele. O sujeito é o suporte de

um processo que já está em funcionamento.

Para Possenti (2011), a noção de sujeito proposta pela AD talvez seja uma

das principais rupturas da teoria com as demais correntes linguísticas dominantes

e, mais uma vez, Althusser está na origem do conceito, rompendo com a ideia de

ser consciente, dono do discurso e senhor dos sentidos. O sujeito da AD não é a

fonte de sentidos e significados; ele é afetado pela ideologia. Para que produza o

dizer, ele precisa se submeter à língua e à história para constituir e produzir

sentidos.

“Para a AD, não há falante, locutor ou emissor. Há sujeito” (POSSENTI,

2011, p.385) que é interpelado pela ideologia, marcado pelo inconsciente e pela

história, o que significa que nenhum sujeito é a origem dos sentidos e dos

significados: “os sujeitos acreditam que ‘utilizam’ os discursos, quando, na

verdade, são seus ‘servos’ assujeitados, seus suportes” (PÊCHEUX, 1983, apud

POSSENTI, 2011).

Esse assujeitamento é involuntário e não acontece na forma de escala. Os

indivíduos simplesmente entram na ordem do discurso desde o seu nascimento e

são constituídos como sujeitos na medida em que interagem com os outros no

espaço discursivo comum de interlocutores marcados pela ideologia e pela

história. Conforme explica Orlandi (2010), o sujeito é

materialmente dividido desde sua constituição: ele é sujeito de e sujeito à. Ele é sujeito à língua e à história, pois, para se constituir, para (se) produzir sentidos, ele é afetado por elas. Ele é assim determinado, pois, se não sofrer os efeitos do simbólico, ou seja, se

33

não se submeter à língua e à história, ele não se constitui, ele não fala, não produz sentidos (ORLANDI, 2010, p. 49).

Portanto, para a AD, os sujeitos não correspondem a pessoas empíricas,

mas a lugares sociais. Os sujeitos ocupam lugares determinados na estrutura de

uma formação social, o que os leva a se expressar de determinada maneira, ou

seja, a significar de acordo com o que a posição requer. Orlandi (2010) destaca

que, desse modo, os sujeitos são intercambiáveis, o que significa que, quando se

fala a partir da posição de “mãe”, por exemplo, os sentidos irão derivar do que

requer o lugarde “mãe” inscrita em determinada FD.

Logo, o trabalho em AD leva em conta como os sujeitos se constituem por

meio da ideologia, considerando que esse processo não acontece explicitamente,

mas ele é apagado. Conforme explica Henry (2014),

O que precisa ser compreendido é como os agentes desse sistema reconhecem eles próprios seu lugar sem ‘saber’ que têm um lugar definido no sistema de produção [...] O processo pelo qual os agentes são colocados em seu lugar é apagado;não vemos senão as aparências externas e as consequências (HENRY, 2014, p. 26).

Portanto, para a AD, os indivíduos tornam-se sujeitos discursivos pela

interpelação da ideologia e por meio da identificação com determinada FD.

Considerandoo que foi exposto até aqui,propondo relacionar a teoria a sua

aplicação a um corpus, os conceitos trabalhados neste capítulo serão retomados

na seção de análisedosrecortes discursivosda Veja,todavia, primeiramente, na

seção seguinte, apresentam-se alguns discursos sobre o adolescente que comete

ato infracional, para que se possa entender como a memória discursiva sobre eles

ancora-se em práticas históricas de punição e de repressão.

Sou humano, e nada que é humano me é estranho

Karl Marx

34

 2. ADOLESCENTE, MENOR, ATO INFRACIONAL E REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO CENÁRIO NACIONAL: discursos e contradiscursos

Por volta de 1980, a criança e o adolescente passaram a servistos a partir

de outra perspectiva.Movimentos sociais em prol da defesa dos seus

direitosaconteciam em todo o mundo, fator que culminou na Convenção sobre os

Direitos da Infância pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas

(ONU). Como fruto desse tratado e do momento que direcionava umolhar especial

sobre a infância, a criança e adolescente passaram a ser percebidoscomo

sujeitos que possuem direitos e necessidades de proteção integral por parte da

família, da sociedade e do estado. No Brasil, o acordado nessa convenção foi

ratificado por meio do artigo 227 e 228 da Constituição Federal de 1988 e,

posteriormente, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)5. De acordo

com Sartório (2007),

O ECA é uma lei que nasceu em meio a um contexto de lutas sociais e políticas, de conquistas e rupturas, nasceu em resposta ao esgotamento do Código de Menores, num contexto de afirmação dos direitos humanos, de processo democrático, de descentralização administrativa e de participação da sociedade civil no processo decisório (SARTÓRIO, 2007, p. 32).

Assim sendo, o ECA, cuja Lei é a de nº 8.069/90, criada em 13 de julho de

1990, dispõe, especificamente, sobre os direitos da criança e do adolescente. De

acordo com o documento, considera-se criança “a pessoa até doze anos de idade

incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (Lei

8.069,1990,Art. 2º).Além de produzir um sistema de garantias constitucionais, o

ECA serve como parâmetro norteador para as políticas de atendimento à criança

e ao adolescente e para as ações jurídico-sociais destinadas à infância e à

juventude.

Em seus capítulos, artigos e parágrafos, o ECA discorre sobre os direitos

básicos da criança e do adolescente, afirmando seu valor intrínseco como ser

humano,e sobre as condições necessárias ao seu desenvolvimento físico, mental,

social, moral e espiritual,bem comosobre a necessidade de atenção e de respeito

à criança e ao adolescente. De acordo com o estatuto,

5LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990.

35

A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral [...], assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (LEI 8.069,1990, Art.3º).

Sobre os adolescentes que cometem ato infracional, O ECA dispõe de uma

legislação especial voltada para eles, uma vez que “são penalmente inimputáveis

os menores de dezoito anos”(LEI 8.069,1990, Art.104) e, por assim ser, ficam

sujeitos às normas estabelecidas por uma legislação especial.

Desse modo, a responsabilização de adolescentes por prática de infração

acontece por meio da aplicação de medidas socioeducativas que não visam(ou

não deveriam visar) apenas àpunição pelo ato,mas se pautam, sobretudo, na

busca de ressocialização desses jovens por meio da reeducação,dando-lhesapoio

educativo, material e psicológico, para o conhecimento da ilicitude de seus atos e

compreensão da importância do convívio harmônico em sociedade.

De acordo com o ECA, “considera-se ato infracional a conduta descrita

como crime ou contravenção penal”(LEI 8.069,1990, Art.103). Ainda segundo o

documento, no Artigo 112, as medidas socioeducativas passíveis de ser aplicadas

nesses casos podem ser:

I - advertência;II - obrigação de reparar o dano;III - prestação de serviços à comunidade;IV - liberdade assistida;V - inserção em regime de semiliberdade;VI - internação em estabelecimento educacional.

Quando a medida socioeducativa ocorre em regime de privação de

liberdade, isto é, por meio de internação, ela deve acontecer em estabelecimento

educacional e pode durar até, no máximo, três anos. A internação destina-se a

adolescentes que praticaram atos infracionais graves, que descumpriram medidas

anteriormente impostas ou reincidiram em outras infrações graves.

Buscando normatizar e operacionalizar o uso de medidas

socioeducativas,foi aprovado, em 2006, o projeto de lei que criou o Sistema

Nacional de Atendimento Socieducativo (SINASE)6, pela resolução nº119 do

6LEI Nº 12.594, DE 18 DE JANEIRO DE 2012.

36

Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), após

um longo período de debates e de construção coletiva, envolvendo

representantes de entidades especializadas na área, em conjunto com os

operadores do Sistema de Garantias de Direitos. Porém, somente em 18 de

janeiro de 2012, é que o SINASE foi sancionado pela Presidenta da República,

por meio da Lei Federal 12.594, “tendo como premissa básica a necessidade de

se constituir parâmetros mais objetivos e procedimentos mais justos que evitem

ou limitem a discricionariedade” (SINASE, 2006, p.13). Assim, o SINASE

“regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente

que pratique ato infracional” (LEI nº 12.594, 2012, Art.1º). SINASE, portanto, é

O conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que envolvem a execução de medidas socioeducativas, incluindo-se nele, por adesão, os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos os planos, políticas e programas específicos de atendimento a adolescente em conflito com a lei. (LEI 12.594, Art. 1º, § 1º, 2012).

De acordo a Lei 12.594 (2012), as medidas socioeducativas têm por

objetivo

I - a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação;II - a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento; eIII - a desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições da sentença como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos, observados os limites previstos em lei. (LEI 12.594, 2012, Art. 1º, § 2º,).

Para que essas medidas socioeducativas sejam aplicadas, foram criadas

as unidades de socioeducação que dispõem (ou deveriam dispor) de um plano de

atendimento voltado para a recuperação dos jovens que praticam ato

infracional,tendo uma finalidade educativa.Estes planos são regulamentados pelo

SINASE, segundo o qual

§ 3o Entendem-se por programa de atendimento a organização e o funcionamento, por unidade, das condições necessárias para o cumprimento das medidas socioeducativas.

37

§ 4o Entende-se por unidade a base física necessária para a organização e o funcionamento de programa de atendimento.§ 5o Entendem-se por entidade de atendimento a pessoa jurídica de direito público ou privado que instala e mantém a unidade e os recursos humanos e materiais necessários ao desenvolvimento de programas de atendimento. (LEI 12.594, Art. 1º, § 3º, § 4o, § 5o, 2012).

De acordo com o SINASE, compete aos estados as funçõesde formular,

instituir, coordenar e manter o Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo,

respeitando as diretrizes fixadas pela União, bem como elaborar o Plano Estadual

de Atendimento Socioeducativo de acordo com o Plano Nacional e desenvolver e

manter programas para a execução das medidas socioeducativas de

semiliberdade e internação. Já, aos municípios,competem as mesmas funções,

porém, destinadas às medidas socioeducativas em meio aberto, sempre

respeitando as diretrizes fixadas pela União e pelo respectivo Estado.

Deve-se salientar que as unidades de socioeducação existiam

anteriormente sob o respaldo da Lei nº 6.697, de 19797, o Código de Menores,

porém somente com a instituição do ECA é que se formularam diretrizes objetivas

para o funcionamento destes centros. Finalmente, em 2012, a Lei Federal nº

12.594 foi instauradacom o fim específico de normatizar os centros de

atendimento ao adolescente que pratica ato infracionale a aplicação das medidas

socioeducativas.

Tanto o ECA quanto o SINASE buscam assegurar o respeito e a

integridade do adolescente que pratique ato infracional:

O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. (LEI nº 8.069,1990, Art.17).

Apesar das garantias asseguradas pela doutrina da proteção integral, a

efetivação das medidas socioeducativas encontra uma série de obstáculos,

devido ao baixo número de recursos destinados à aplicação das medidas e o

caráter repressivo que impera nas ações. De acordo com o SINASE (2006),

7Lei N º 6.697, de 10 de outubro de 1979 que dispunha sobre assistência, proteção e vigilância a menores até dezoito anos de idade, que se encontrassem em situação irregular.

38

As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados de Liberdade estabelecem o princípio - ratificado pelo ECA (artigos 94 e 124) - que o espaço físico das Unidades de privação de liberdade deve assegurar os requisitos de saúde e dignidade humana. Entretanto, 71% (setenta e um por cento) das direções das entidades e/ou programas de atendimento socioeducativo de internação pesquisadas em 2002 (Rocha, 2002) afirmaram que o ambiente físico dessas Unidades não é adequado às necessidades da proposta pedagógica estabelecida pelo ECA. As inadequações variavam desde a inexistência de espaços para atividades esportivas e de convivência, até as péssimas condições de manutenção e limpeza. Outras Unidades, porém, mesmo dispondo de equipamentos para atividades coletivas, não eram utilizadas. Muitas Unidades funcionavam em prédios adaptados e algumas eram antigas prisões. Várias dessas se encontravam com problemas de superlotação com registro de até cinco adolescentes em quartos que possuíam capacidade individual e os quartos coletivos abrigavam até o dobro de sua capacidade (ROCHA, 2002, p.70-71) - (SINASE, 2006, p. 20).

Fatores como estes têm dificultado a efetivação das medidas e influenciado

o seu resultado; como consequência, o contingente de adolescentes que praticam

contravenção penal tem aumentado e, então, o sistema penal surge como opção

para conter esses números.

Esse quadro contribui para que vários efeitos de sentido permeiem a

memória social quanto à relação entre a criminalidade e a adolescência. Os

estereótipos mais comuns estão ligados aos qualificativos de ‘criminoso’ e

‘bandido’ e esses sentidos se encontram naturalizados, sendo retomados por

meio de paráfrases.Porém, não se pode esquecer que opresente e o passado

mostram que a problemática da criminalidade na adolescência se relaciona com a

repressão e o abandono que cercam a infância: principalmente a infância pobre.

O ECAsurgiu em substituiçãoaosCódigos de Menores de 19278 e de

1979.Segundo Sartório (2007), a vigência do Código de Menores correspondeuà

etapa tutelar e vigorou por 63 anos, da aprovação do primeiro Código de

Menores, 1927, terminando com a aprovação do Estatuto da Criança e do

Adolescente, em 1990e se caracterizava“por concentrar no juiz de menores o

poder de decidir o que era melhor para a criança, não existindo o devido processo

legal”(SARTÓRIO, 2007, p.40). O Código de Menores ainda “destacava a nítida

8DECRETO Nº 17.943-A DE 12 DE OUTUBRO DE 1927 quedispunha sobre assistência e proteção a menores de idade.

39

criminalização da infância pobre, caracterizada como ‘abandonada’ e

‘delinquente’” (POLETO, 2012, p.04).

O Código de Menores dava uma atenção tutelar, protetiva

eassistencialistaaos menores carentes e abandonados,entretanto, os menores

infratores que eram identificados como perigosos recebiam um atendimento

repressor (nada está muito distante do que acontece hoje, portanto).

Desse modo, diferenciavam-se as crianças que eram denominadas

como“crianças em perigo”e“crianças perigosas”. Assim, os discursos populares no

tocante à questão da infância oscilavam “entre a defesa da criança e a defesa da

sociedade contra a criança que se torna uma ameaça ‘à ordem pública’” (RIZZINI,

1995, p. 111). Todavia, Rizzini (2005) reitera que, mesmo no discurso de proteção

à infância, estava embutida a proposta de defesa da própria sociedade, uma vez

que o aumento do contingente de crianças e adolescentes vivendo em situações

extremas poderia instaurar a desordem, o que era um elemento complicador para

os avanços das relações capitalistas em curso.

Mesmo com a aprovação do novo Código de Menores, em 1979,

predominou“o caráter repressivo da legislação anterior, o que repercutiu numa

prática também punitiva e repressiva por parte das instituições de atendimento à

criança e ao adolescente” (SARTÓRIO, 2007, p.29), pois a nova legislação

estabelecia a situação irregular9 de crianças e adolescentes. Como as crianças de

famílias financeiramente elevadas não se encaixavam na situação irregular, o

atendimento jurídico-policial ordenado pela legislação destinava-se às classes

pauperizadas: “Na situaçãoirregular o foco concentrava-se no menor, deixando-

se de considerar as deficiênciasdas políticas sociais” (SARTÓRIO, 2007, p. 29

grifo do autor).

9Considerava-se em situação irregular, para os efeitos da Lei no 6.697, o menor: I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III - em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI - autor de infração penal.

40

Assim, “a infância pobre, caracterizada como abandonada e delinqüente,

foi nitidamente criminalizada neste período” e“o termo ‘menor’ foi sendo

popularizado e incorporado na linguagem comum, para além do círculo jurídico”

(RIZZINI, 2000, p. 41). Além do mais, “as classes populares passaram a ser vistas

como perigosas [...] associando-se a imagem do adolescente pobre à da

delinqüência, como marginais em potencial” (SARTÓRIO, 2007, p.36).

Assim, pode-se afirmar que a exclusão e a segregação cercaram a imagem

da criança pobre no Brasil desde o início do século, o que possibilitou uma

contínua (re)produção de discursos condenatórios pautados na crença da

periculosidade do jovem pobre, crença construída socialmente e reproduzida

historicamente.

Sobre a denominação ‘menor’, Njaine e Minayo (2002) reiteram que

Essa adjetivação-substantivada que vem sendo usada desde os tempos de absoluto desprezo do Estado – materializado no Código de Menores – pelos meninos e adolescentes pobres, abandonados, vivendo nas ruas ou autores de infrações, continua a marcar a linguagem de classe de todos os meios de comunicação social do país. Tratar um adolescente como “menor” significa negar a história dele como pessoa e subsumir o “sujeito de direitos” proclamado no ECA, que a sociedade adultocêntricateima em não reconhecer(NJAINE; MINAYO, 2002, p. 290).

Logo, os efeitos de sentido pejorativos produzidos pelo termo ‘menor’são

resquícios da antiga legislação bem como das práticas que envolviam a infância

pobre e abandonada durante o período que precede a criação do ECA: “os termos

criança e menor representam duas categorias que pertencem a uma mesma

faixa etária, mas [...] não pertencem à mesma classe social(SARTÓRIO, 2007, p

35 - grifo do autor). Conforme afirma Rizzini (2004),

O atendimento institucional sofreu mudanças significativas na história recente, particularmente no período que sucedeu a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069 de 13 de julho de 1990). No entanto [...], muitos de seus desdobramentos são ainda marcados por idéias e práticas do passado (RIZZINI, 2004, p. 13).

Fernandes (1998) ressalta que o Código de Menores teve importância, mas

destaca que esse categorizou parte da infância e juventude como abandonada

41

edelinquente, ratificando o caráter discriminatório. O código ainda “inaugurou a

culturamenorista, conservadora, com práticas perversas de intervenção jurídica

nesta área,além dos estigmas com que foram tratados esses sujeitos sociais”

(SARTÓRIO, 2007, p.27).

Nesse sentido, o ECA representa um avanço na legislação,já que assegura

os direitos da criança e do adolescente como prioridade. Entretanto, para Silva

(2005),ele “se esgota no limite de sua demanda, sob o jugo do antagonismo

capital e trabalho, não tendo por apoio um projeto revolucionário de sociedade”

(SILVA, 2005, p. 36).

Apesar dos avanços trazidos pelo Estatuto sobre os direitos da criança e

do adolescente, a opinião pública, seguida de grande parte dos aparelhos de

imprensa, defende a redução da maioridade penal para 16 anos, mais uma vez

penalizando crianças e adolescentes,desconsiderando as circunstâncias sociais e

a falta do Estado para com eles, a partir de uma visão amparada em paradigmas

consolidados ao longo da história que os responsabiliza, assim como outrora, em

detrimento do estudo do contexto social em que vivem.

É bem no sentido punitivo e descontextualizado que o projeto de Lei (PL

171/1993)10 que visa à redução da maioridade penal para 16 anos vem, há anos,

tramitando na câmara de deputados. Segundo dados do site da câmara, o PL

171/1993 que altera a redação do art. 228 da Constituição Federal e reduz a

imputabilidade penal para 16 anos foi apresentado pela primeira vez em 1993,

pelo ex-deputado Benedito Domingos, do PP do Distrito Federal, e, após anos de

tramitação, foi aprovado em 2 de julho de 2015, após uma série de manobras,

debates e protestos. Atualmente, segue em curso ao lado de inúmeros outros

projetos que possuem a mesma finalidade.

Nesse desvão, milhares de adolescentes vivem diariamente entre a

margem e a cadeia, sobrevivendo em meio a uma sociedade que os exclui, uma

legislação que os subjuga e um estado que os ignora como consequência de um

modelo de sociedade capitalista que “se rege por um processo de gestão

neoliberal, o qual não está circunscrito à esfera econômica”

(RIZZINI;ZAMORA;KLEIN, 2008, p. 14).

10Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14493

42

No contexto brasileiro, a periculosidade permeia a imagem dos

adolescentes, em especial daqueles que são oriundos de classes pobres e não

brancos. Ligadas a esta visão,estão a exclusão e amarginalização.

Como resultado, apesar do caráter garantista do ECA, as práticas relativas

aos adolescentes que praticam ato infracional são marcadas pela estigmatização

e pela repressão: “o que está colocado como imperativo da Lei demora emmudar

as práticas repressivas já introjetadas por considerável parte do corpo social, de

ondenão podemos excluir o próprio Judiciário” (RIZZINI et al., 2008, p.9).

A ordem do discurso jornalístico, com seu sistema de exclusões e limites, marcada por um tipo de relação com a

verdade e com a informação (ou melhor, com a verdade-da-informação), está relacionada por um lado com a ilusão

43

referencial da linguagem e, por outro, com seu próprio processo histórico de constituição.

Bethania Mariani

3. VEJA: uma prática discursiva

Os grandes veículos midiáticos brasileiros vêm, há décadas,

‘apresentando’ e ‘representando’ a realidade sob a ideologia da informação e

atuando supostamente sob os pilares da informatividade, da neutralidade e da

imparcialidade:“a imprensa tanto pode lançar direções de sentidos a partir do

relato de determinado fato como pode perceber tendências de opinião ainda

tênues e dar-lhes visibilidade, tornando-as eventos-noticias” (MARIANI, 1996,

p.62).

Dessa maneira, a ‘realidade’ construída pelo Discurso Jornalístico, ao qual

a revista Veja está subordinada, atinge o imaginário social e contribui para a

construção de interpretações acerca de acontecimentos e sobre a ênfase que é

dada a cada acontecimento. Conforme destacam Soares e Silva (2008),

Como aparelho privado de hegemonia, os órgãos de imprensa propõem permanentemente interpretações sobre a realidade que acabam contribuindo para que os leitores formulem suas visões de mundo. Essas formas de pensar influenciam nos comportamentos políticos e sociais dos sujeitos históricos (SOARES; SILVA, 2008, p.70).

Deve-se ressaltar que, para a AD, o discurso é determinado pela posição

dos sujeitos, sendo afetado pelas suas condições de produção. Logo, o DJ não

foge à regra e aquilo que o discurso jornalístico intitula como ‘verdade’ nada mais

é do que o discurso construído a partir dos elementos históricos e ideológicos que

afetaram seu processo de (re)produção.

ODJpossui a capacidade de incorporar e mediar os discursos de vários

sujeitos em diferentes processos sociais; logo, nele, entrecruzam-se interesses de

jornalistas, empresários da comunicação, patrocinadores e outros que, de alguma

maneira, fazem parte da construção da ‘informação’.Portanto, é importante pensar

que, para além das edições veiculadas pela mídia, existem sujeitos afetados pela

44

história e pela ideologia, atuando de acordo com as convicções que determinam

as formações ideológicas e discursivas de que são suporte.

Mariani (1996) define o DJ como um “discurso sobre”,em que o enunciador

produz um efeito de distanciamento daquilo que fala, podendo, assim, emitir

juízos de valores sobre determinada questão ou assunto.Para a autora, “Os

discursos sobre são discursos que atuam na institucionalização dos sentidos,

portanto, no efeito de linearidade e homogeneidade da memória” (MARIANI,

1996, p. 64) e levam o enunciador a se colocar no papel de autoridade sobre

aquilo que fala. Dessa maneira, a ‘informatividade’ serve como pano de fundo

para a legitimação de certas convicções que são instauradas a partir da

construção de verdades e padrões.

Keller (2001) aproxima a cultura da mídia ao discurso político no que se

refere ao estabelecimento de hegemonias geralmente de grupos sociais

específicos que buscam um consenso social para legitimar seus interesses:

A cultura da mídia, assim como os discursos políticos, ajuda a estabelecer a hegemonia de determinados grupos e projetos políticos. Produz representações que tentam induzir anuência a certas posições políticas, levando os membros da sociedade a ver em certas ideologias 'o modo como as coisas são'. [...] Os textos culturais populares naturalizam essas posições e, assim, ajudam a mobilizar o consentimento às posições políticas hegemônicas (KELLNER, 2001, p. 81).

Deve-se, pois, pensar no DJ como não sendo imune a interesses ou

tomadas de posicionamento; pelo contrário, o DJ reproduz os valores de um

veículo de imprensa e eles representam as posições ideológicas assentadas

sobre formações ideológicas de uma estrutura social e de relações de classes.

Frise-se, ainda, que,em face do seu caráter de produção hegemônica,a

mídia é um Aparelho Ideológico de Estado que produz ‘Informação’,pois, para

Althusser (1985), um AIE é “um certo número de realidades que apresentam-se

ao observador imediato sob forma de instituições distintas e especializadas”

(ALTHUSSER, 1985, p. 68) e tem por finalidade a reprodução das relações de

produção, isto é, das relações de exploração capitalistas.

Conforme explica Mariani (1996),

45

Em outras palavras, a noção de informação no jornalismo também precisa ser avaliada como decorrência das leis que constituem a idéia de liberdade presente na instituição imprensa. Observando a ‘comunicação referencial’ por este ângulo comunicar/informar/noticiar (na imprensa) são atos resultantes de um controle exterior, vindo do Estado e do sistema jurídico por um lado, e, por outro, de umcontrole internalizado na própria atividade jornalística (MARIANI, 1996, p. 79).

Desse modo, desmistifica-se o caráter informativo e imparcial dos veículos

de comunicação e se acrescentaque a mídia é suporte de uma ideologia, sendo

atravessada por uma FD no seio de uma formação ideológica e produzsentidos a

partir do que ditar a FD pela qual é interpelada.

Neste sentido, pensar em veículo midiático brasileiro de representatividade

leva a refletir sobre a revista Veja. Seus números expressivos de venda a

tornamrepresentativa nacionalmente e seus posicionamentos, ligados a

acontecimentos de âmbito nacional, são significativos.

Veja é uma das revistas pertencentes à editora Abril. Foi fundada por Victor

Civita, um ítalo-norte-americano naturalizado brasileiro. As suas publicações são

semanais e, atualmente, destaca-se por sua representatividade nacional, sendo a

revista mais vendida no país com uma tiragem superior a um milhão de cópias. A

revista teve sua primeira edição em 11 de setembro de 1968, o que significa mais

de quatro décadas de publicação. Veja trata de temas de abrangência nacional e

global, entretanto, discussões de cunho político e ideológico são os de maior

destaque dentro do semanário.

A criação da revista em 1968 foi resultado de longo período de

planejamento quanto à formulação de uma revista no Brasil que seguisse os

moldes da revista americana Time.Roberto Civita, filho de Victor Civita, dono da

editora Abril, estudou nos Estados Unidos, trabalhou como estagiário na Times

Inc. e lá se preparoupara a construção de uma revista que seguisse o padrão da

Time. Após seu regresso ao Brasil, iniciou um trabalho de seleção e treinamento

de profissionais que integrasse o quadro daVeja.Inicialmente, 250 pessoas foram

classificadas para trabalhar.

Apesar do sucesso atual de publicações, os primeiros anos daVeja foram

marcados por prejuízos devido ao baixo número de vendas. Nessa época, o Brasil

passava pelo período de regime militar o que culminou em complicações ainda

46

maiores para a revista que passou a ter suas edições analisadas pela censura

após a publicação do número 15,intitulada Ato Institucional Número Cinco. O

número foi recolhido das bancas pelo regime.A revista só começou a ter sucesso

a partir de 1975, quando implementou o processo de assinaturas; a partir daí,

alcançou o equilíbrio entre despesas e lucros.

Já no início, Veja se configurava como expressiva em termos de

abordagem política. Seu início nos anos 60 foi marcado por tendências

esquerdistas; entretanto, a partir dos anos 90, passou a se alinhar,

gradativamente, a ideias associadas ao liberalismo11 econômico e às políticas de

direita. Ao longo de sua história, a revista tem trabalhado ativamente para

direcionar os rumos da política sendo porta voz de acontecimentos, como, por

exemplo, o processo de impeachment que ocorreu com o ex-presidente Fernando

Collor de Melo.

Destaca-se, assim, o caráter determinante do semanário em

transformações no cenário político brasileiro e sua atuação no sentido de

hegemonizar os ideais neoliberais com que ela compactua.Em seu estudo sobre a

Veja, Silva (2005) conclui que a revista não é apenas adepta dos partidos

neoliberais de direita, mas “age como partido político, na acepção gramsciana do

termo” (SILVA, 2005, p. 632).

Assim como ocorre com os demais partidos políticos, existe para Veja um projeto e um programa de ação que são estabelecidos em conjunto com outros grupos. A revista assume o papel de Estado Maior de um projeto discutido no âmbito do Fórum Nacional, entidadevinculada ao Instituto de Altos Estudos, coordenado pelo ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso. Dele fazem parte remanescentes de vários grupos de organização da direita que se articularam em torno de um projeto, vinculados ao complexo IPES/IBAD/ESG e posteriormente ao Movimento Democrático Brasileiro. Eles foram a base intelectual do projeto econômico posto em prática pela ditadura militar (SILVA, 2005, p.633).

11Para este trabalho, o conceito de neoliberalismo será entendido a partir de Silva (2008) como “um processo, que vem sendo construído ao longo das últimas décadas, levando a modificações na gestão política, na reestruturação produtiva, na linguagem ideológica e na imposição de uma cultura única. Ele se baseia em uma acelerada internacionalização da economia, na financeirização do capital, na desregulamentação de direitos sociais e no desmantelamento da organização dos trabalhadores” (SILVA, 20008, p. 25).

47

Daí parte o caráter político atribuído a Veja.Todavia, a revista não assume

essa posição abertamente, colocando-se como defensora dos interesses coletivos

nacionais e, apesar de seu apoio a determinados partidos políticos ou candidatos

específicos, “seria um erro definir Veja como governista, pois o apoio aos

governos que ela oferece está em relação direta com o cumprimento de

determinadas condições por ela estabelecidas” (SILVA, 2005, p.637).

A autora ainda destaca que a revista possui um projeto pedagógico voltado

à consolidação de ideais capitalistas e combate aquilo que seria vinculado a

ideias esquerdistas como os movimentos sociais, industriais e de trabalhadores:

É aqui onde Veja tem uma ação mais transparente, ou seja, na consolidação de uma visão de mundo, tanto no que diz respeito à própria história vivida, como também na inserção dos seus leitores como seres políticos, agentes em posição específica no mundo do trabalho, o que requer padrões comportamentais de forma mais ampla (SILVA, 2005, p.35).

Dessa maneira, pode-se afirmar que o que a revista busca é a consonância

entre os interesses particulares do seu projeto e os rumos governamentais de

uma política brasileira que caminhe em direção à ordem neoliberal; logo “uma

revista como Veja é um instrumento da luta de classes, na medida em que nela se

constroem embates ideológicos vivos, ou seja, aqueles que dizem respeito ao

desenvolvimento histórico” (SILVA, 2005, p.36).

A produção do ‘sujeito Veja’ é outro fator que Silva (2005) destaca como

sendo estratégico para ocultar o projeto político e pedagógico que envolve toda a

revista. Intitulando-se como mera transmissora da realidade, Veja institui e

cristaliza sentidos que corroboram com a ideologia que interpela todo o projeto

Veja.

Veja busca uma homogeneidade em torno de si, criando um “sujeito” como forma de negar os conflitos que porta. Esse sujeito aparece como homogêneo, e envolve tudo o que for publicado pelos seus jornalistas e editores. O editorial é o lugar preferencial de criação deVeja, ocultando os interesses que encerra. Esse “sujeito” incorpora o que já definiu como função da imprensa no geral, mas estabelece suas especificidades. No editorial, o editor deve sumir e dar lugar a Veja (SILVA, 2005, p. 91, grifo do autor).

48

A criminalidade é uma questão que reiteradamente ganha destaque nas

seções de Veja e a redução da maioridade penal é debatida com frequência tanto

pela revista quanto pelos leitores que têm espaço reservado para tecer

comentários e opiniões na Seção do leitor. A questão da violência praticada por

menores vem à tona sempre que um crime que envolve adolescentes ganha

repercussão. A revista, então, propõe a debater o tema se apresentando como

coerente e competente, como se pode verificar na SD abaixo, retirada da matéria

Justiça só para maiores,da edição de número 2430:

SD02: VEJA se propõe a abordar o problema nesta matéria de maneira corajosa, racional e baseada em fatos – justamente o que tem faltado no debate nacional sobre a diminuição da maioridade penal.

Entretanto, deve-se problematizar a suposta coragem e, principalmente, a

assumida racionalidade que o semanário afirma possuir, pois, conforme afirma

Mariani (1996), “nada é neutro nem transparente em termos da prática discursiva”

(MARIANI, 1996, p. 72). Isto significa que o trabalho de análise discursiva busca

desvendar os fios ideológicos sobre o qual se assentam os discursos e aquilo que

é assumido pela Veja como corajoso e racional, nada mais é do que aquilo que

ela opta por mostrar e, ao mesmo tempo, por ocultar. E, uma vez que a aparência

de evidência que constitui osentido e o sujeito é o efeito ideológico

elementar,cabe ao trabalho de análise desvendar como essas evidências operam

nas práticas discursivas.Para tanto, faz-se necessário consideraros processos

históricos e ideológicos que constituem cada sujeito, fator que também diz

respeito à mídia e à Veja, no caso deste estudo.

Deve-se considerar, portanto, a natureza institucional e ideológica da

revista Veja e problematizar a sua suposta racionalidade e coragem, já que não é

preciso muita coragem para dizer o que se diz aos convertidos e nem se pode

afirmar que seja racional aquilo que é tributário de um lugar/posição social:

Isto quer dizer que no discurso jornalístico, como tal, já se tem uma memória da própria instituição da imprensa agindo na produção das notícias. Memória que atua como um ‘'filtro’ na significação das notícias e, conseqüentemente, no modo como o mundo é significado (MARIANI, 1996, p.72).

49

Para a autora, deve-se considerar a historicidade constitutiva do processo

de produção da instituição nos discursos institucionais e como eles são

realizados, pois “não é porque há normas institucionaisorganizando o dizer que a

prática discursiva pode ser reduzida apenas a um espelho detais normas”

(MARIANI, 1996, p. 72).

Este trabalho entende a revista Veja como um ‘aparelho’suporte de uma

prática discursiva,atravessado por processos históricos e ideológicos de natureza

política. Está-se pensando em um veículo midiático que enuncia sob condições de

produção determinadas em um contexto ideológico específico marcado por

aspectos históricos que se materializamem uma prática discursiva, o que será

mostrado nas próximas seções de análise.

50

O desejo de vingança é um anseio de desfazer o que aconteceu de mau, e de retornar a um passado miticamente

bom. Punindo quem nos feriu, ele reequilibra o que foi perturbado na balança das coisas e restaura uma ordem que pensamos recordar, mas que, na verdade, fantasiamos. Já a

busca da justiça está voltada para o futuro. Ela exige, pois, que esqueçamos. Não há justiça sem esquecimento.

Esquecimento quer dizer também anistia.

Renato Janine Ribeiro

4.LUGAR DE BANDIDO É NA CADEIA: Veja e a redução da maioridade penal

A cultura ‘menorista’, instaurada e massificada durante a vigência do

código de menores, segue, ainda, discursivizada e (re)produzindo sentidos no

cenário atual, quando se trata de adolescentes que cometem ato infracional. Por

meio de paráfrases discursivas, o ACAI continua sendo significadopor um

processo em que sentidos são retomados e sustentam um efeito de negatividade.

Atrelada a este efeito de sentido,repete-se enfaticamente a defesa de puniçãoque

atua sobre as consequências da criminalidade e não sobre as causas, práticaque

vigorou durante toda a vigência do código e se mantém ao longo dos anos.

O DJ, por se tratar de menores infratores, possui um papel importante

nesse processo de manutenção, pois ele contribui para a cristalização de

sentidos, assentando sua prática discursiva sobre um já dito constitutivo a partir

do qual os enunciados são re(formulados). Assim, “a parte que cabe ao discurso

jornalístico é seu assujeitamento a um já dito, embora os jornais se julguem livres

para informar” (MARIANI, 1996, p. 120).

Mesmo além da mídia,as denominações relativas ao ACAI vêm carregadas

de um sentido que é sempre negativo. Em termos discursivos, denominações

como ‘menor’, ‘infrator’, ‘trombadinha’, ‘delinquente’, ‘pivete’ surgem sob a forma

de pré-construídos, isto é, de um dizer já posto que, embora reelaborado por meio

de novos enunciados, produz o mesmo efeito de sentido.

Segundo Pêcheux (1995), o pré-construído é

uma construção anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é construído pelo enunciado [...] O efeito de pré-construído em sua forma pura é a colocação de uma existência singular e a verdade universal que afeta as asserções que incidem

51

sobre essa singularidade (PÊCHEUX, 1995, p.99).

Predominantemente, os sentidos produzidos pelas denominações relativas

aoACAI estão atrelados à ideia de ‘bandido’ e de um sujeito cuja identidade e

modo de agir já estão significados ideologicamente, isto é, eles possuem uma

imagem fixada, já que o lugar de bandido está previamente assinalado no

imaginário social, o que redunda no discurso da redução da maioridade penal no

cenário atual.

Nesta parte do estudo, aborda-se a discussão sobre a redução da

maioridade penal como alternativa para a diminuição da criminalidade na

adolescência conforme a revista Veja. Aqui, foramanalisadas SDs retiradas da

matéria O dever de reagir, publicada na edição nº 2318, veiculada pela revista

em 24 de abril 2013. Busca-se, com isso, sobretudo, analisar a prática discursiva

da revista sobre o ACAI e revelar que o discurso da redução da maioridade penal

sustenta a defesa da punição.

De início, apresenta-se abaixo a matéria na íntegra, destacando-se que as

SDs analisadas na sequência aparecem em destaque e foram escolhidas na

medida em que vêm ao encontro do objetivo de trabalho proposto nas indagações

inicias daseção.

52

SD03: Nas sociedades primitivas, a única forma de punir um assassino era pela vingança.

Nesta SD, Veja retoma a forma de punição utilizada pelas sociedades

medievais como forma de reação contra um ato praticado: a vingança. Para o

dicionário de Língua Portuguesa Michaelis12,‘vingança’ significa: 1 - Ação ou efeito

de vingar-se. 2 - Ato lesivo praticado em nome próprio ou alheio, contra uma

pessoa, para vingar-se de dano ou ofensa por ela causada; desforço, desforra,

represália, revanche, vendeta, vindita. 3 - Qualquer castigo ou punição.

A referência à ‘vingança’ utilizada pela revista, já no início da matéria, é

justificada na sequência, quando ela apresenta uma conexão entre ‘vingança’ e

‘justiça’.

SD04: A vingança era também indistinta, o que quer dizer que ninguém se importava em dar ao crime uma punição proporcional a sua gravidade. Tal conta não existia. Hoje existe.

Ao assumir que, no passado, “a vingança era indistinta” e, portanto, hoje

12 Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/busca?id=Xp78X. Acesso em 14 mar. 2017.

53

não é mais, pode-se inferir que o efeito de sentido de ‘justiça’ defendido pela Veja está ligado à vingança e à punição, isto é, na matriz de sentidos da FD em que a

revista se inscreve, ‘vingança’ é sinônimo de ‘justiça’, o que coaduna com o título:

O dever de reagir. Sendo o sentido de ‘justiça’, para Veja, próximo ou

equivalente a ‘vingança’, esta remete à reação, ou seja, algo que se torna

praticamente uma obrigação. O termo ‘dever’, por sua vez, está ligado à memória

discursiva, haja vista que cria o efeito de obrigatoriedade e produz sentido a partir

do discurso jurídico em que o termo expressa o conjunto de regras que deve,

obrigatoriamente, ser seguidas por cada sujeito pertencente a uma organização

jurídico-social. Logo, os sentidos estabelecidos por ‘dever’ são acionados a partir

da memória discursiva que remete a dizeres prévios e mobiliza sentidos

institucionalizados pela FD em que o termo se inscreve. Desse modo, o uso

aciona sentidos que remetem à ideia de responsabilidade e de obrigatoriedade de

aceite do modelo de sociedade atual, com sua ordem jurídica de direitos e

deveres. Dito de outro modo, o ‘dever’ de que a revista trata, atrelado à ‘vingança’

medieval, impõe que se faça uma imbricação entre ambos e se perceba que Veja defende a necessidade de revanche contra o ACAI, pois

O discurso jurídico impõe uma grande divisão ao postular o que pode ser dito e, consequentemente, tornar-se material de memória. O discurso jornalístico, atuando no interior desta divisão, não apenas reforça e faz circular os sentidos permitidos pela lei, como também promove a fixação de uma memória da ordem ocidental cristã (MARIANI, 1996, p. 88)

A discussão instaurada por Veja a partir da referência ao emprego da

vingança nas sociedades primitivas abre as portas para o questionamento da

revista sobre a validade dos efeitos da instituição jurídica, conforme se pode ver

na SD abaixo:

SD05: Pode se dar a isso o nome de justiça?

Pode-se inferir de imediato que, para a revista, o questionamento retórico

aponta para a discordância sobre três anos estarem ajustados para a punição de

um crime de morte para o roubo de um celular, pois, neste caso, não haveria a

vingança propalada de início sobre a proporção adequada entre uma infração e a

54

sua punição.

Mobilizam-se, aqui, as noções de certo e errado, que são estabelecidas, no

modelo de sociedade atual, a partir do ordenamento jurídico brasileiro e de suas

leis. Esses conhecimentos se fazem presentes na memória discursiva, em que os

sentidos significam e são ressignificados. Pelo menos três são as FDs

mobilizadas por meiodestas noções. A FD da justiça (FD1), ligada à formação

ideológica jurídica que representa o aparelho ideológico judiciário, aFD do ACAI

(FD2), compreendida como a violação da lei e em oposição ao sistema jurídico, e

a FD na qual a Veja se inscreve (FD3), que sustenta a tese da punição como

forma de, supostamente, reduzir a criminalidade por meio do endurecimento da

legislação voltada para os ACAI.

Na matéria, evidencia-se que a revista Veja se inscreve parcialmente na

FD1, pois concorda que os ACAI devam passar pelo ‘crivo da justiça’, todavia,

assume o sentido de justiça como punição e não como correção. O efeito de

sentido sustentado por Veja para justiça carrega uma memória discursiva do

termo enquanto instituição punitiva e severa e, nesta perspectiva, confronta e se

afasta da FD1, na medida em que ela propõe medidas socioeducativasem caso

de prática de ato infracional e uma legislação especial voltada para os ACAI em

detrimento do sistema penal comum, embora a prática da punição esteja

embutida na proposta13, ainda que paralelamente.

Neste sentido, pode-se afirmar que a Veja se inscreve em outra FD, que

será considerada neste trabalho como estando pautada na punição cada vez mais

precoce (FD3). Sendo assim, Veja apaga outros efeitos de sentidos de ‘justiça’

que não signifiquem vingança e revanche, como, por exemplo, ‘ressocialização’ e

‘criação de condições sociais que possam minimizar a existência do ACAI’. Este

apagamento de outros sentidos é causado pelo esquecimento nº1, “processo pelo

qual uma sequência discursiva concreta é produzida, ou reconhecida como sendo

um sentido para um sujeito” (PÊCHEUX; FUCHS, 2014 p.166).

Retomando o conceito de formações imaginárias proposto por Pêcheux, é

possível fazer derivar algumas implicações implícitas do discurso da Veja.

13Entendem-se por medidas socioeducativas as previstas no art. 112 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), as quais têm por objetivos: I - a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação; (LEI Nº 12.594, 2012, Art.1º: § 2º)

55

Considere-se, para tanto, a imagem que a revista produz de si mesma: ela seria

um veículo de comunicação que se acha comprometido com a ética, que defende

a aplicação da lei e atua sob a forma do que prevê o ordenamento

jurídico.Entretanto,

Outro aspecto dessa relação entre o discurso jurídico e sua força na constituição do discurso jornalístico vincula-se ao fato de que este último incorpora o texto da lei, 'torcendo' o sentido impositivo ali colocado: a imagem que a instituição jornalística produz de si mesma é a da isenção, fruto da necessidade de preservar a ética. Com isso ela se acredita estar informando, embora o fato de agir dentro da lei nada mais seja do que manter-se ajustada ao modelo de sujeito então predominante (MARIANI, 1996, p.88).

Desse modo, o que se tem é um discurso que caminha, parcialmente, ao

encontro da FD jurídica, que defende a aplicação prática das atitudes

determinadas pela esfera jurídica e que colabora para a manutenção das

instâncias de poder da ideologia dominante que impera sob a forma dos

aparelhos ideológicos do estado. Mas se deve perceber que, ao defender a

redução da maioridade penal sem refletir sobre o que ocasiona o surgimento do

ACAI, Veja faz com que o ataque seja feito às consequências do problema e não

às suas causas e reforça ainda mais a aplicação da vingança e da revanche com

que a matéria é aberta.

Para Mariani (1996), há um consenso instaurado ideologicamente sobre o

que é o Bem e o Mal. Para a autora, o Bem representa o campo da estabilização

e da permanência, e o Mal representa o campo do Outro, do que pode vir a

desestabilizar o modelo do “Mesmo”. Nesse sentido, o DJ permanentemente

evoca um modelo imaginário de sociedade e de sujeito de direito (acirrando-o no

caso da revista em estudo). Assim, a instituição jornalística, por sua constituição

histórica, acredita instaurar um compromisso com a defesa do bem pressuposto e

reproduz, discursivamente, o “Mesmo” nas suas diferentes formulações,

rejeitando o Outro.

O discurso jornalístico, em seu relato cotidiano, se encontra atravessado por uma memória desses Direitos Humanos, por um já-dito sobre o Bem que se constitui em um já-ouvido no campo dos leitores, o que engendra um efeito de reconhecimento, ou consenso intersubjetivo[...]. Estar no campo do Mesmo é estar partilhando, simbolicamente, os valores do Bem. Ou melhor, é considerar

56

‘evidentes’ e ‘naturais’ os sentidos que se alinham na sustentação /legitimidade do sujeito de direito ou dessa ética dos direitos do homem (MARIANI, 1996, p.91).

É esta crença ideológica geral, baseada no senso comum, que justifica a

inscrição parcial da revista na FD1, porque o DJ (e também o da Veja) atua para

a manutenção dos sentidos do Mesmo e, raramente ou nunca, coloca em

circulação sentidos que rompam com a estabilidade e promovam o deslocamento.

O que se observa no caso em estudo, e este é um ponto relevante, é que o

quadro, ao contrário de sofrer alterações, é ainda mais recrudescido, pois se trata

de aplicar a ‘vingança’ a pessoas cada vez mais novas.

Deve-se destacar que, embora, hoje, o discurso jurídico14 tenha uma

legislação especial voltada para os ACAI, os sentidos que permeiam a memória e

as práticas relacionadas a eles ainda estão intimamente ligadas ao caráter

repressivo e punitivo que vigorava nas legislações passadas. Logo, a FD3 em que

Veja se inscreve reproduz o sentido de ‘justiça’ apresentado no código de

menores, já ultrapassado. Assim, apesar das mudanças na legislação, não houve

uma ruptura com os processos de significação que fizesse intervir novos sentidos.

O processo por meio do qual Veja se inscreve na FD3 pleiteada é

apagado, o que pode causar uma impressão de originalidade sobre o discurso da

revista, que, no limite, renega outros sentidos possíveis para justiça, ancora-se

num discurso já existente e de longa duração e contesta determinados

posicionamentos, como se pode ver nas SDs abaixo:

SD06: Os defensores da manutenção desse patamar se apoiam em três argumentos principais: antes dos 18 anos, os jovens ainda não estão plenamente conscientes dos seus atos; a idade penal no Brasil é a mesma desde 1940, e mudá-la agora, sob a influência de mais um crime bárbaro, seria ceder à emoção; baixar esse limite não diminuiria a criminalidade.

Nesta sequência,há um confronto entre FDs: pelo menos, entre a FD3 e a

que entende que a punição deve ser relativizada e não tratada de forma genérica

e abstrata, ou seja, entre a FD3, em que a revista se inscreve, e a FD que

assume outro sentido para ‘justiça’, como é o caso da ressocialização. A matriz

14 Discurso jurídico é entendido neste trabalho sob a forma do ordenamento jurídico vigente, ou seja, as leis.

57

de sentido que sustenta a constituição do discurso de Veja interdita enunciados

que disponibilizem construções positivas sobre o ACAI, porque o sentido

pejorativo já está dado no seio desta FD. Logo, o discurso da revista contradiz

enunciados que tragam à tona outros sentidos sobre a justiça e sobre o ACAI:

Assim, se na instituição jornalística em função de sua constituição histórica, se espelha a imagem do sujeito de direito, ou melhor, um compromisso com a defesa do Bem, é de se esperar que se encontre a impossibilidade de uma absorção do dizer do outro (MARIANI, 1996, p. 92).

Para contestar o primeiro argumento dos defensores da não redução da

maioridade penal,como se pode perceber na SD03, Veja busca se apoiar no

discurso de especialistas:

SD07: A levar em conta o primeiro argumento, o psicanalista ContardoCalligaris, em sua coluna na folha de S. Paulo, lembrou que o Brasil teria de elevar a maioridade penal para 25 anos, já que é só nessa fase que o córtex pré-frontal, a parte do cérebro responsável pela tomada de decisões, está plenamente desenvolvido.

Ao se valer do entrecruzamento interdiscursivo com outros campos do

saber, Veja busca cientificizar o seu e minimiza sua parcialidade jornalística; além

do mais, o discurso de um psicanalista representa a voz de autoridade, pois ele,

para a sociedade, é o ‘discurso verdadeiro’. De acordo com Foucault (1979),

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as tendências e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 1979, p. 12).

Ao fundamentar seu discurso por meio de opiniões de‘especialistas’, Veja busca se colocar ao lado da ‘verdade’; seus argumentos, então, seriam validados

e condizentes com a realidade, enquanto os argumentos contrários passariam a

ser inverossímeis e não condizentes com ela. Ou seja, Veja está inserida em uma

FD e, assim, é levada “a deixar de fora de seu discurso elementos que possam

58

trazer à tona outras formações ideológicas” (TAVARES, 2006, p. 194). Conforme

Mariani (1996),

[...] é como discurso dessa verdade, ligado, portanto, a instâncias de poder, produzindo determinados sentidos para os acontecimentos, com um modo de funcionamento específico e com mecanismos enunciativos próprios, que o discurso jornalístico constrói sua identidade, leva a crer na literalidade de seus relatos e contribui para a disseminação de certas interpretações (MARIANI, 1996, p. 89).

Na materialidade discursiva que vem a seguir, Veja desqualifica o

argumento utilizado peloECA,conforme se verifica na SD abaixo:

SD08: A maturidade é relativa aos olhos da lei. Os mesmos jovens inimputáveis por serem menores de 18 anos têm discernimento para tomar decisões como escolher o presidente da república (16 anos) e manter relações sexuais com um adulto, sem que isso seja considerado estupro presumido (14 anos).

Nesta sequência, como se pode perceber, com vistas a convencer do

acerto do seu ponto de vista, Veja contrapõe a ‘irresponsabilidade’ do ACAI sobre

determinados atos com uma idade a situações em que os adolescentes têm

responsabilidades similares a de um adulto, com outra, como o direito ao voto e a

manter relações sexuais por livre vontade. Constrói-se, assim, um processo de

descredibilização da FD1 e do ‘menor’, a partir da criação de um perfil

maquiavélico, isto é, ele seria um sujeito que se aproveita de sua inimputabilidade

para cometer crimes; essa forma de raciocínio reforça a defesa da existência do

menor bandido e a redução da maioridade penal como solução plausível.

Por outro lado, a revista faz uma crítica à noção de maturidade concebida

pela lei; neste sentido, verifica-se que os sentidos que emergem do

termo‘maturidade’ na FD em que Veja se inscreve associam-se a

responsabilização, o que, no limite, culmina em punição. Não há espaço para a

emergência de outros sentidos nessa FD. Apaga-se, assim, no discurso da Veja,

o dito que assinala as nãocondições sociais em que se encontram os ACAI e as

lacunas deixadas pelo sistema capitalista que os margeia e os subjuga. Dessa

maneira, percebe-se que

os processos de enunciação consistem em uma série de

59

determinações sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco e que tem por característica colocar o ‘dito’ e em consequência rejeitar o ‘não dito’ (POSSENTI, 2011 p.376).

De acordo com Oliveira (2015), ao se rebelar contra a ordem, o ACAI

esbarra nos direitos e nos deveres estabelecidos pela ordem jurídica imposta pelo

estado, afirmando, além disso, que a formação atual capitalista não absorve

aqueles que vivem à margem, ou seja, “a forma-histórica do sujeito moderno é a

forma capitalista caracterizada como sujeito jurídico, com seus direitos e deveres

e sua livre circulação social” (ORLANDI, 2010b, p. 632).

No modelo atual capitalista, em que a ideologia jurídica é o núcleo da

formação social, estabelecem-se direitos e deveres para os indivíduos sociais,

que precisam encontrar um lugar na estrutura criada pelo capitalismo e, quando

não o fazem, a segregação os atinge: “vivemos em uma formação social

capitalista, na qual há outros dispositivos que fazem parte; existem outras

ideologias, outras economias” (OLIVEIRA, 2015, p. 197)

Eis o confronto entre o que Orlandi (2010b) denomina como simbólico e

político:

Assombrados pelo não sentido, esses sujeitos vivem em cheio o sem-sentido, balançados de um lado para o outro na sua insignificância para uma sociedade em que estão condenados à extinção. Sem lugar na sociedade e na história, pois é essa sua realidade. Se os sentidos são múltiplos e incertos, eles não se sustentam numa racionalidade do Estado ou numa lógica do social, mas na falta de lugar (ORLANDI, 2010b, p. 636).

A seguir, Veja contesta o segundo argumento que, de acordo com ela, é

sustentado pelos defensores da manutenção da maioridade penal aos 18 anos. O

semanário afirma que

SD09: alterações na legislação impulsionadas pela indignação não são necessariamente ruins,

Considerando que

SD10: o aumento do tempo necessário para que um preso por crime hediondo passe do regime fechado para outro mais leve só foi implantado por causa da reação da sociedade ao assassinato brutal do menino João Hélio, no Rio, em 2007.

60

Nestas sequências, pode-se perceber que, para Veja, o aumento do tempo

de reclusão é um aspecto positivo. Destaque-se, ainda, que o uso da palavra

“necessariamente” não ocorre aleatoriamente, mas que é um mecanismo

acionado para funcionar como argumento de que as mudanças na legislação, que

as torne mais severa, podem ser boas. Conforme a revista, essas mudanças

deveriam priorizar a rigorosidade das punições e, ainda que sejam ocasionadas

pelo calor das emoções, são vistas com bons olhos pelo semanário, pois os

enunciados são disponibilizados pela FD da punição. Desse modo, o sentido dos

enunciados “é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no

processo sócio-histórico no qual palavras, expressões ou proposições são

produzidas” (PÊCHEUX, 1995, p.160).

Na SD10, Veja se dirige à sociedade ao rememorar uma mudança na lei

ocasionada pelo clamor social. A revista afirma que a sociedade tem o poder de

alcançar mudanças, como é o seu desejo, por exemplo, da redução da

maioridade penal. Mais uma vez, percebe-se o trabalho da memória discursiva

que faz emergir o sentido instaurado com o título O dever de reagir. Reiterando

uma vez mais: a revista sugere o dever de a sociedade reagir à impunidade em

que, pressupostamente, encontram-se os ACAI, silenciando as condições sociais

em que eles se fazem e defendendo o ataque às consequências de um sistema

social injusto e não às causas que ele proporciona para que a marginalidade

aconteça; em última instância, ela protege o sistema em que se acha inserida e

protege aqueles que a financiam.

Percebe-se, neste sentido, a interdiscursividade que atravessa o discurso

de Veja. Os sentidos que emergem da FD3, em que o semanário se inscreve, vão

ao encontro da punição como remédio e não há espaço para o debate sobre o

que leva ao alto índice de criminalidade na adolescência, como as péssimas

condições em que nasce e se desenvolve a grande maioria destas crianças; eles

são marginais porque estão à margem.

É preciso, portanto, analisar o discurso de Veja a partir das condições de

produção que o determinam. Conforme indica a literatura corrente, o

posicionamento adotado pela Veja é de direita e seus leitores são, em grande

maioria, oriundas da classe média e alta, o que coloca em cena a questão social

dos ACAI, que surge como ‘ameaça’ à elite, embora se saiba que a violência não

61

ocorra apenas nas esferas menos privilegiados da sociedade. Defende-se, pois,

que o que está em jogo é mais do que uma mera mudança de lei e a punição de

um grupo de pessoas específicas, pois são os interesses de uma determinada

classe que estão sendo defendidos. Desse modo, a Veja coloca-se a serviço da

proteção de um parcela da sociedade contra a criança perigosa. Para

Rizzini(2008), este é um discurso ambíguo, “onde a criança deve ser protegida,

mas também contida, a fim de que não cause danos à sociedade” (RIZZINI, 2008,

p. 28); reitere-se, não à sociedade como um todo, mas à parte dela.

Por consequência, pode-se defender que a Veja e seus leitores partilham

de uma memória sobre um objeto discursivo, pautados em “um já dito sobre o

Bem que se constitui em um já-ouvido no campo dos leitores, o que engendra um

efeito de reconhecimento, ou consenso intersubjetivo” (MARIANI, 1996, p.90). Em

resumo, a memória que atravessa o discurso da revista é partilhada pelos leitores

e ambos ‘pactuaram’ que o menor criminoso deve ser contido para que não cause

prejuízo (em todos os sentidos, mas preponderantemente em temos econômicos)

a outros ‘João Vitors’. Além do mais,

as instituições precisam garantir para os sujeitos que se inscrevem nelas, que eles compartilhem uma mesma realidade, que tenham, portanto uma mesma memória. Com essa memória em comum, os gestos de interpretação podem ser homogeneizados no presente. Isso garante o controle (FLORES, 2015, p. 115).

Sobre ao terceiro argumento contra a redução da maioridade penal, Veja afirma:

SD11:É verdade que não há estudos que comprovem uma relação direta entre a redução da maioridade penal e a diminuição da criminalidade e a criminalidade.

Nesta sequência, Veja parece reconhecer que não há relação direta entre

a idade penal e os índices de criminalidade, mas ainda assim defende a redução

da maioridade penal, pois, “como o discurso jornalístico de referência atua na

manutenção e/ ou absorção dos sentidos no campo do Mesmo, dificilmente irá

colocar em circulação sentidos que rompam com a estabilidade da ‘lógica’

ocidental” (MARIANI, 1996, p.93), o que significa dizer que, por meio da

discursividade, a revista Veja opera para a manutenção dos sentidos, ora

62

provocando a retomada, ora ocasionando diferenças na própria repetição.

Na sequência, Veja afirma:

SD12: mas a manutenção do atual patamar aumenta o número de jovens instrumentalizáveis por bandidos mais velhos.

A SD acima parece (mas só parece) apresentar uma contradição no

discurso da revista, já que o semanário afirma que esses adolescentes possuem

maturidade suficiente para assumir seus atos e, aqui, eles se tornam

“instrumentalizáveis”, isto é, passíveis de serem usados por adultos na prática de

crimes. O termo ainda sugere uma ironia devido a sua natureza técnica comercial,

que mostra o crime como um mercado e o ACAI como massa de manobra fácil

por parte dos adultos, fator que parece manter a contradição, já que a revista

prega o caráter maquiavélico destes jovens, reafirmando sua maturidade. No

fundo, produzem-se dois efeitos de sentido: um de autonomia e de capacidade de

discernir o que acontece e, então, o crime é uma escolha; outro de dependência e

de influência dos demais sobre o comportamento. No fim, quer seja por uma via

ou por outra, o adolescente que comete ato infracional deve ser imputável.

Em resumo, o que se vê é a sustentação do discurso de que os ACAI são

bandidos e da defesa da punição para eles; ora por meio da afirmação de que são

conscientes de seus atos e, portanto, devem ser responsáveis por eles, ora por

meioda tese da intimidação e do aliciamento; então, deve-se punir para reprimir.

O que se mantêm intacto são os sentidos que apontam para o castigo, porque

eles provêm da FD da punição, que não disponibiliza sentidos que permitam

outras construções. A análise até aqui permite mostrar, pois, o posicionamento da

Veja sobre a redução da maioridade penal e perceber que

[...] o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva (FOUCAULT, 2008, p. 54)

Na sequência da matéria, Veja destaca que:

SD13: O número de menores em instituições de correção triplicou em uma década:de 7.600, em 2002, passou para 22.000, em 2011.

63

Essa explosão foi impulsionada principalmente por infratores internados por tráfico de drogas.

Como vem sendo recorrente no discurso da Veja,há um

silenciamentosobre o papel do estado na criação de políticas de prevenção à

entrada de crianças e adolescentes na criminalidade, dando condições de

permanência na escola e assistência a famílias que vivem à margem, em extrema

pobreza e violência. O discurso da revista silencia as nãocondições de os jovens

estarem em outro lugar, bem como a culpa do estado pela falta de atuação junto

aos adolescentes. De acordo com SINASE (2006),

O Levantamento estatístico da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (Murad, 2004) identificou que existiam no Brasil cerca de 39.578 adolescentes no sistema socioeducativo (SINASE, 2006, p. 18).

Destes,

12,7% (doze vírgula sete por cento) viviam em famílias que não possuíam renda mensal; 66% (sessenta e seis por cento) em famílias com renda mensal de até dois salários mínimos (SINASE, 2006, p. 19)

Percebe-se, pois, que a questão social contribui diretamente com a prática

de ato infracional e que as condições em que são aplicadas as medidas

socioeducativas, isto é, a precariedade dos centros de socioeducação em que são

aplicadas as medidas de internação e de semiliberdade, bem como “o modelo

punitivo que impera no atendimento de adolescentes aumentou o número de

internos e incentivou a reincidência” (RIZZINI, 2008, p.13); mas, reitera-se: a Veja silencia sobre isso e, ao fazê-lo, é conivente com as causas que geram os

problemas que ela denuncia e pretende atacar nas consequências.

Além disso,deve-se destacar que

A grande maioria (mais de 70%) dos atos infracionais são contra o patrimônio, demonstrando que os casos de adolescentes infratores que poderiam ser considerados perigosos e autores de homicídios são minoritários (ALVES, 2007, apud RIZZINI, 2008, p. 11).

Esses dados quebram o mito da periculosidade do ACAI. Crimes contra o

patrimônio e o tráfico de drogas, conforme apontado pela própria revista, são as

64

maiores incidências entre estes jovens, fator que aponta para a questão social

como problema preponderante na busca da redução da criminalidade na

adolescência, uma busca que deve ser, sobretudo, para garantir a todos os

jovens uma vida fora da criminalidade, por meio de oportunidades que lhes sejam

asseguradas. Nesse mesmo sentido, Faleiros (2004) afirma que

O internamento não tem servido nem para recuperar nem para punir, pois aumenta a vinculação do interno com o próprio crime organizado e o mantém sem projeto. A violência da privação de liberdade mostra que o processo de aprisionamento é também um processo de criminalização, onde a violência e o crime são praticados cotidianamente (FALEIROS, 2004, p. 87).

Todavia, o discurso punitivo propalado pela Veja (re)produz sentidos que

incorporam o imaginário dos leitores, criando um efeito ilusivo de verdade, de

modo que as teses expostas parecem se tornar incontestáveis. Como já dito,

discute-se a consequência e as formas de punição e silenciam-se as causas.

Assim, os sentidos sobre o ACAI são reproduzidos e são reformulados na medida

em que são disseminados e cristalizados pela mídia, cuja produção dos menores

como sujeitos anormais, perigosos e possuidores de mau caráter desencadeiam a

segregação e a estigmatização como consequência.

A tese final de Veja é a de que ‘justiça’deve ser praticada, pois

SD14: a proporcionalidade entre a ofensa e a punição é uma conquista da civilização – e compõe o que chamamos de justiça.

Percebe-se, novamente, que a revista se posiciona a favor da punição por

meio do ataque à consequência e um estado de coisa que é silenciado. Neste

caso, a interdiscursividade atravessa o discurso, acionando os já ditos sobre a

transgressão da lei, justiça, punição/castigo e os (re)configurando a partir de

determinada FD. Conforme Mariani (1996),

O cotidiano e a história, apresentados de modo fragmentado nas diversas seções do jornal, ganham sentido ao serem ‘conectados’ interdiscursivamente a um ‘já-lá’dos assuntos em pauta. E essa interdiscursividade pode ser reconstruída através da análise dos processos parafrásticos presentes na cadeia intertextual que vai se construindo ao longo do tempo (MARIANI, 1996, p. 64).

No final da matéria,Veja afirma que o Brasil deve reagir por Victor

65

Deppman:

SD15: Victor Deppman não avançou contra o seu assassino nem relutou em entregar-lhe seu celular. Morreu mesmo assim.

Nesta SD, destaca-se o contraste entre os termos utilizados para se referir

aos dois adolescentes. Conforme já assinalado na parte de análise da linha fina

desta matéria (capítulo teórico), a referência ao adolescente que foi assassinado

por meio do seu nome próprio produz um efeito de reforço da sua identidade; em

contrapartida, o outro jovem é denominado apenas como ‘assassino’. A escolha

do termo silencia construções como‘adolescente’ e ‘jovem’ ou o uso das inicias do

nome do ACAI. Atrelados a esta escolha, estão os efeitos gerados no seio da FD3

em que Veja se inscreve sobre os adolescentes que cometem ato infracional,

sentidos que apontam para a criminalidade/criminalização e, consequentemente,

como visto até aqui, para a Veja, a punição deve ser a reação contra a

criminalidade.

A matéria ainda afirma que

SD16: O Brasil tem o dever de reagir por ele.

Pode-se inferir que o efeito de sentido do termo‘reagir’ está relacionado à

mudança na legislação defendida por Veja, isto é, a redução da maioridade penal.

‘Reagir’, aqui, significa apoiar a mudança na legislação para que adolescentes

sejam punidos como adultos. O que possibilita a irrupção deste sentido em

detrimento de outro é a inscrição da revista em uma FD que considera o ACAI

bandido. As CPS do discurso de Veja são cruciais para compreender por que

produz esse discurso, pois diz o que diz a partir da ideologia que a atravessa.

Conforme afirma Silva (2009), Veja está inserida em uma FI neoliberal, o

que a torna um meio de comunicação voltado à classe média brasileira e justifica

a defesa da redução da maioridade penal, já que esta é uma tese que tem

aceitação nesta classe. Ademais, a matéria em questão faz referência a um crime

que teve como vítima um adolescente de classe média, que gerou grande

repercussão e reacendeu o debate sobre maioridade penal.

Nesse sentido, o que se observa no decorrer do discurso é o cruzamento e

o confronto entre FDs. De um lado, a FD em que Veja se inscreve e, de outro, a

66

FD dos defensores da maioridade penal aos 18 anos, cujos pontos de vista são

criticados pela revista. Observa-se, ainda, que Veja se inscreve parcialmente na

FD jurídica, entretanto, os sentidos acionados para ‘justiça’ são sinônimos de

punição.

Em meio à construção de “evidências”, a Veja constitui o discurso e o

sentido que ela sustenta pode variar ao passar para outra FD por meio da

interdiscursividade, visto que “o sentido não existe em si, mas é determinado

pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que

as palavras são produzidas” (ORLANDI, 2010, p 42).Mas ela silencia e parece

desconhecer completamente a existência destes outros; ou melhor, ela fala

exatamente contra eles.

O discurso que permeia a matéria parte, portanto, da presunção de

impunidade do ACAI. Pode-se dizer, assim, que a Veja deixa transparecer uma

concepção dura de ‘justiça’, fortemente influenciada pelo modelo de formação

social capitalista que abarca os que têm um lugar determinado nesta estrutura e

marginalizam os que não se encaixam ou se voltam contra este modelo

segregador e predatório.

Há um silêncio conivente e cúmplice que obtém o efeito de desviar a culpa

do Estado pelos altos índices de criminalidade na adolescência para os jovens,

silenciando problemas relativos às condições de subsistência em que vive a

maioria dosACAI.

Embora aVeja se coloque numa posição de preocupação com os índices

alarmantes da criminalidade juvenil, no fim, o fio que rege a ‘sua’ FD é o

atendimento aos interesses da classe média e a sua segurança, já que ela se

sente ameaçada ao sair às ruas, pois não se pode esquecer que osACAI (na sua

grande maioria) são oriundos da classe baixa e entram para criminalidade como

forma de subsistência. Mascarados estes interesses, é preciso garantir que a

sociedade compartilhe de uma mesma memória, ou seja, compartilhe a FD da

revista, para que se instaurem os mesmos sentidos e se possibilitem as mesmas

construções.

Por isso entendemos que noticiar, no discurso jornalístico, é tornar os acontecimentos visíveis de modo a impedir a circulação de sentidos indesejáveis, ou seja, determinar um sentido, cujo modo de produção pode ser variável conforme cada jornal, mas que

67

estará sempre submetido às injunções das relações de poder vigentes e predominantes (MARIANI, 1996, p.89)

A problemática parece simples de resolver a partir da perspectiva desta

FD, já que bastaria transferir osACAI para prisões e condenar os novos

‘criminosos’, para, assim, restaurar a ordem na sociedade. A questão é: a ordem

de quem e para quem? Qual ordem? Mais uma vez, a instância econômica volta a

sobredeterminar a discussão, excluindo os que não fazem parte da ordem em

benefício dos que importam à ordem.

Mobilizam-se, assim, sentidos, que, até aqui, são mantidos e reiterados,

tornando raros novos sentidos, bem como rarefazendo o aparecimento de

acontecimentos. Em Veja, como se constata, não há deslocamento: o discurso de

proteção à sociedade contra a criança perigosa, que vigora desde a antiga

legislação voltada para crianças e adolescentes, segue produzindo efeitos e se

reestruturando a partir de novos enunciados e, neste caso, sendo reforçado pela

defesa de uma diminuição ainda maior da idade deimputabilidade penal.

68

O fato de que a língua seja indiferente à divisão de classes e a sua luta, não quer dizer que as classes sejam

indiferentes à língua.

ÉtienneBalibar

5. PARA A IMPUNIDADE, A CADEIA: Veja e o reforço de paráfrases

É por meioda materialidade discursiva que a ideologia se manifesta; é nela

que se assentam os processos de significação de um objeto do discurso. É sob

esta perspectiva que as materialidades discursivas usadas para a análise nesta

seção foramobservadas, buscando identificar o processo por meio do qual a Veja se coloca como veículo de sentido sujeito e interpreta o mundo de um modo

estabelecido, filiando-se a posições ditadas pelas FDs com as quais se identifica.

Conforme Orlandi (2010), “um discurso aponta para outros que o

sustentam assim como para dizeres futuros. Todo discurso é visto como um

estado de um processo discursivo mais amplo, contínuo” (ORLANDI, 2010, p. 39).

É nessa perspectiva que esta seção de análise foi conduzida, buscando

compreender os efeitos ideológicos que permeiam o processo discursivo da Veja sobre os ACAI e a levam o produzir diferentes formulações do mesmo sentido.

O discurso da redução da maioridade penal sustentado pela Veja, conforme demonstrado na seção anterior, não é um acontecimento isolado ou um

ponto de vista singular de um editor, presente apenas em uma matéria; ele é

repetido e é reiterado a partir de diferentes construções que são regidas pela

mesma FD e produzem os mesmos efeitos de sentido.Neste caso, a imagem que

se sustenta sobre o ACAI e sobre a punição pode ser também visualizado nas

materialidades discursivas que serão apresentadas neste capítulo.

Nesta parte da pesquisa, trabalha-se com a análise dos títulos, linhas finas

e sequências discursivas de cincomatérias da revista Veja, publicadas no período

de abril de 2015 a janeiro de 2016 com a temática ‘criminalidade na

adolescência’.

Com o objetivo de didatização e de organização, apresenta-se abaixo uma

tabela contendo o número da edição em que cada matéria foi publicada, a data de

sua publicação, o título e a linha fina de cada matéria e, na sequência, propõem-

se algumas reflexões.

69

Data Edição Título e Linha fina Linha fina17/06/2015 2430 JUSTIÇA SÓ

PARA MAIORESOs jovens que participaram do estupro coletivo no Piauí que terminou na morte de uma jovem ficarão, no máximo, três anos internados. Isso é justo?

24/06/2015 2431 PELO FIM DA IMPUNIDADE

Pela primeira vez, uma proposta para mudar a lei brasileira para menores infratores, uma das mais lenientes do mundo, avança no congresso

22/07/2015 2435 EM TRÊS ANOS, NAS RUAS

Os menores condenados pelo estupro de quatro meninas no Piauí, uma das quais morreu, voltaram a matar. Desta vez, a vítima foi o cúmplice que delatou o grupo. Pelos dois crimes bárbaros, os adolescentes ficarão não mais do que três anos numa casa de correção, de onde sairão com a ficha limpa. É o que diz a lei. Mas agora ela pode mudar.

30/12/2015 2458 A DOIS ANOS DA LIBERDADE

(Sem linha fina)

13/01/2016 2460 PARA ELES, COMPENSOU

Estudo do Ministério Público acompanhou por um ano 1.000 infratores saídos da Fundação Casa e concluiu que os menores reincidem mais vezes e mais rápido que os maiores

Já de início, pode-se perceber que os títulos e as linhas finas apontam para

efeitos de sentido que são mobilizados com as materialidades discursivas e

assinalam para construções negativas sobre os ACAI, o que é recorrente na FD

que constitui a Veja.Um dos exemplos é o do título abaixo:

SD17: JUSTIÇA SÓ PARA MAIORES (VEJA, 2015, Ed.2430).

Nesta sequência, Veja sugere que a ‘justiça’ só acontece para maiores de

idade, isto é, os menores de idade estão imunes a ela, somente em virtude da

idade que possuem. Conhecendo os efeitos de sentido de ‘justiça’ de que a

revista é suporte, pode-se inferir de imediato que a matéria, outra vez, irá

instaurar uma polêmica sobre a ‘ineficácia’ da lei, que não pune menores de

idade, pois há como se defender que, para a Veja, ‘justiça’ significa ‘punição’; o

princípio fundamental desta crença está ancorada no antigo ditame do “olho por

olho, dente por dente”. Esse posicionamento discursivo fica ainda mais evidente

na linha fina da matéria:

70

SD18: Os jovens que participaram do estupro coletivo no Piauí que terminou na morte de uma jovem ficarão, no máximo, três anos internados. Isso é justo? (VEJA, 2015, Ed.2430).

Percebe-se o ataque recorrente da Veja ao tempo máximo estabelecido

pela legislação para que um ACAI fique internado, isto é, três anos. O que se vê

aqui é uma paráfrase da linha fina analisada na parte teórica do trabalho, pois ela

reafirma os efeitos de sentido originados a partir da FD da punição, que defende

que três anos é um tempo de reclusão curto e desproporcional ao ato praticado

pelos ACAI e entende que a redução da maioridade penal é uma forma eficaz de

reduzir a criminalidade. Todavia, se, na análise não surpreende verificar a

repetição do discurso da punição materializado sob a defesa da redução da

maioridade penal e da negativização dos ACAI, para o leitor, nem sempre essa

repetição fica clara ao ler as reportagens em separado, pois,

Do ponto de vista da Análise do Discurso, a mera repetição já significa diferentemente, pois introduz uma modificação no processo discursivo. Quando digo a mesma coisa duas vezes, há um efeito de sentido que não me permite identificar a segunda à primeira vez. (ORLANDI, 1981, p.14)

Além do mais,

No funcionamento jornalístico [...], fica apagado para o sujeito-leitor o processo de construção da notícia. A produção de sentidos, que se processa a partir de um trabalho no plano da língua, seja no plano das operações sintáticas descritas, seja pelo conjunto da memória mobilizada lexicalmente, não é perceptível para o sujeito envolvido historicamente. Assim, essa prática discursiva impõe a imagem de uma ‘leitura literal’, realizada com sentidos transparentes capazes de captar os fatos em sua 'essência' (MARIANI, 1996, p.69).

Esse apagamento acontece por meio do processo de assujeitamento

ideológico, que provoca a ilusão de literalidade e de dominância da língua e dos

sentidos, que afetam tanto o produtor da notícia quanto o leitor.

Na SD18, com Isso é justo?, aVejamanifesta uma suposta

inquietaçãofrenteao que seria uma iniquidade oportunizada pela impunidade dos

ACAI; reitere-se, fato devido, conforme a revista, tão somente a um fator numérico

de contagem de tempo cronológico de vida. Mas, conhecendo o funcionamento

71

discursivo da revista, pode-se inferir que a ‘aflição’ da Veja a partir da questão

retórica final tem o objetivo de comover o leitor e levá-lo a compartilhar o mesmo

posicionamento discursivo da revista sobre a questão dos ACAI. Dito de outro

modo: a pergunta já traz em si a resposta desejada pela revista e pode servir para

induzir o leitor a aderir à mirada valorativa que é defendida pelo periódico, em

face da defesa de quem ela é porta-voz.

A discussão instaurada no corpo da matéria ratifica a regularidade

discursiva da FD da punição mostrada no decorrer deste trabalho. A SD abaixo

permite perceber os obstáculos colocados pela revista para a efetivação doECA:

ela contribui para a falta de apoio social e de adesão a práticas que o incorporem

efetivamente.

SD19: Os quatro adolescentes serão encaminhados a centros de correção, onde ficarão internados por um prazo máximo de três anos e de onde sairão como réus primários. É o que determina no Brasil o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – um dos mais lenientes conjuntos de leis do mundo destinados a lidar com menores infratores (VEJA, 2015, Ed.2430).

Percebe-se que o que ‘aborrece’ a Veja é asuposta ‘leniência’ do ECA,

que, de acordo com ela, lida com adolescentes com o intuito de recuperação e

não unicamente de punição.Na SD, a revista acusa a lei de ser uma das mais

brandas do mundo no tocante à questão da criminalidade na adolescência;

todavia, deve-se ressaltar que esta perspectiva de ‘leniência’ é adotada a partir

das condições de produção do discurso da Veja, isto é, ela se sustenta num efeito

de sentido de justiça a partir de uma memória discursiva sobre a lei e o modo

como ela opera, considerando que a trajetória jurídica a que o ACAI foi submetido

ao longo da história sempre foi marcada pela repressão.

Na SD abaixo, aVeja, retoricamente, constrói perguntas que buscam criar

um efeito de distanciamento da questão e se colocar numa aparente posição de

imparcialidade e de descomprometido engajamento (mas as perguntas são só

retóricas, porque as respostas já estão previstas):

SD20: O adulto vai pegar trinta anos de cadeia. Os menores, três anos, sendo que uma ínfima parcela deles cumpre todo período de reclusão. Isso é certo? É errado? Tem certo e errado nessa questão? Essas são as perguntas certas a fazer quando um país é abalado todos os dias por histórias de crimes violentos e cruéis

72

cometidos por menores de idade? (VEJA, 2015, Ed.2430).

Como dito, a retórica tecida pela Veja já traz as respostas subjacentes ao

próprio texto; as questões servem apenas para maquiar a parcialidade que vem

sendo evidenciada no decorrer do trabalho a partir das análises, pois, nesta SD,

quando a revista afirma que uma pequena parcela de ‘menores’ envolvidos em

ato infracional cumpre o período completo de reclusão, fica pressuposto que a

maioria permanece, portanto, impune, o que não deveria acontecer, de acordo

com a revista. Além do mais, os adjetivos associados aos “crimes” servem para

ratificar o suposto caráter perverso que vem sendo defendido pelo semanário em

relação ao ACAI. Quando Veja lança mão dos questionamentos, na verdade, seu

posicionamento está estabelecido, mas o leitor nem sempre o percebe e se deixa

levar pelos sentidos (re)produzidos na matéria e defendidos por meio do que a

revista considera notícia. Assim, Veja procura se mostrar fora de uma FD, como

se não fosse atravessada por condicionantes de ordem ideológica (mesmo que

sejam inconscientes).

Emseguida, Veja se empenha em afirmar que a suposta ‘impunidade’ é

maior na prática, visto que, de acordo com ela, “raramente um menor infrator

cumpre o prazo máximo” (VEJA, 2015, edição 2430, p.44), referindo-se ao

período de internamento, conforme se pode ver abaixo:

SD21: Um levantamento do Ministério Público Estadual de São Paulo, que analisou os casos de 1552 jovens internados na Fundação Casa de agosto do ano passado ao fim de maio deste ano, descobriu que apenas oito deles ficaram mais de dois anos na instituição. Nove em cada dez jovens criminosos não passam nem um ano internados (VEJA, 2015, Ed.2430).

Como se percebe, gera-se um efeito de sentido negativo acerca destes

dadosdo Ministério Público (MP). Veja traz esses dados para discussão com o

intuito de reforçar a tese de que a punição não ocorre, pois a justiça e a lei não

seriam eficazes. Entretanto, de acordo com o Art.121 daLei nº 8.069,

A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”. Além do mais “as medidas socioeducativas de liberdade assistida, de semiliberdade e de internação deverão ser reavaliadas no máximo a cada 6

73

(seis) meses(LEI Nº 12.594, Art. 42, grifo nosso).

Segundo o previsto, a continuidade da internação deve ser avaliada a cada

seis meses e pautada em pareceres de profissionais que acompanham os

adolescentes e seu progresso na recuperação. Logo, a informação apontada pelo

MP na SD acima poderia gerar um efeito de sentido positivo, que revela o bom

andamento e o progresso das medidas socioeducativas, já que boa parte dos

adolescentes alcança o direito à liberdade precocemente. Porém, visualiza-se

que, embora saiba dos estudos levantados pelo MP, Veja desconhece ou ignora

as disposições do ECA e do SINASE sobre a modalidade da internação para

medidas socioeducativas, tornando-se mais um obstáculo para o ECA.

Embora as medidas preconizadas pelo Estatuto estejam sendo implementadas pelo poder judiciário, houve pouca modificação no que se refere aos equipamentos sociais que dariam suporte às ações determinadas pelo Estatuto. Agravando esse fato, encontra-se a frágil atuação de muitos Conselhos de Defesa e Tutelares, instâncias de proteção também previstas pelo ECA. Assim, o estado real de precariedade do cumprimento das medidas socioeducativas contribui para o quadro atual de questionamento, discriminação e, por vezes, de rejeição por parte de vários segmentos da sociedade, às propostas constitucionais de direitos das crianças e dos adolescentes (NJAINE; MINAYO, 2002, p.288).

A partir do exposto, é possível compreender que a prática discursiva da

revista Veja atua na repercussão e na homogeneização das ideologias e práticas

da ordem dominante da sociedade e que, em seu funcionamento discursivo, os

enunciados são regulados pela FD da punição, da mesma forma que os sentidos,

gerados no interior desta FD, apontam sempre para a criminalização do ACAI e

nunca para a sua remissão. Conforme se verifica abaixo,

SD22: De agosto para cá, o período compreendido pelo estudo do MP, ao menos 108 pessoas foram assassinadas, estupradas ou seqüestradas por adolescentes, que, no máximo em breve, estarão de volta às ruas. E desfrutando o mesmo status de cidadão honesto que os familiares de suas vítimas, dado que a lei impede qualquer registro criminal no caso de menores de 18 anos (VEJA, 2015, Ed.2430).

Pode-se percebe que, de acordo com a Veja, ser um cidadão honesto

significa não ter histórico criminal e, devido ao fato de que a lei proíbe registro

74

criminal de menores de idade, os adolescentes podem usufruir do que a revista

considera como benefício. O efeito de sentido que se produz é de que esses

adolescentes são criminosos e, como tal, deveriam ser condenados à cadeia e

marcados para se diferenciarem dos “cidadãos honestos”.

O efeito de periculosidade é criado ao sugerir que esses adolescentes

“desfrutarão do status de cidadão honesto”, traço que é atribuído ao ACAI pela

revista em todas as reportagens. Essa característica de agente perigoso apaga

qualquer reconhecimento de subjetividade e emotividade, bem como de toda a

história que constitui o menor, que é apagada no discurso da Veja; ela não trata

das causas que o levaram à criminalidade; não aborda a falta do estado, a

omissão da sociedade e a invisibilidade a que ele está sujeito.

Em nenhuma matéria se falou de suas famílias, como se esses jovens compusessem um grupo alienado, sem raízes, sem relações primárias, sem sentimentos e afetos, a não ser a agressividade, o ódio e a raiva que os tornam anti-sociais. Com o olhar da sociedade do ‘bem’, as matérias projetam a idéia de que eles geram uma desordem social incontrolável e um caos social irremediável, em confronto com um poder público fraco, leniente, não suficientemente repressivo, enfatizando o esfacelamento da lei e da justiça (NJAINE; MINAYO, 2002, p.291).

A discussão sobre o estado é levantada somente com relação à suposta

“leniência”; em nenhum momento aborda-se a sua omissão para com esses

jovens. Os problemas a que esses jovens estão sujeitos desde muito cedo, bem

como a violência que sofrem por parte da polícia e da sociedade, tanto física

quanto verbal, também não são discutidas.

A redução da maioridade penal é elencada como solução, mesmo sem

base científica, já que a própria Veja afirma (em outro momento, discutido no

capítulo anterior) que não há estudos que comprovem a ligação direta entre a

redução da maioridade penal e a diminuição da criminalidade na adolescência. A

punição se sobrepõe à prevenção, porque, demagogicamente, ela é mais aceita

dentro da comunidade discursiva da Veja e também por se tratar de uma prática

que vem sendo reproduzida contínua e historicamentepelas elites em detrimento

das classes subalternas.

Na sequência da matéria, Veja afirma:

75

SD23: A discussão em torno da proposta de redução da maioridade penal virou um embate ideológico. Quem defende mudanças no estatuto é logo qualificado de ‘direitista’ ou ‘fascista’. Está obvio que, do jeito que estão, as coisas não podem ficar (VEJA, 2015, Ed.2430).

Nesta SD, é possível visualizar a formação imaginária projetada por Veja sobre a imagem que a população em geral, isto é, os leitores e não leitores,

fazem de seu lugar discursivo, ao assinalar que “Quem defende mudanças no

estatuto é qualificado de “direitista” ou “fascista”’. Percebe-se que a revista,

embora não ratifique, identifica o posicionamento que ocupa frente ao debate

sobre a redução da maioridade penal. E a Veja não nega este lugar; apenas

ressalta que, “do jeito que estão, as coisas não podem ficar”. Nesse momento, a

revista sugere que uma mudança deve acontecer. Deixando transparecer uma

preocupação com os índices da criminalidade, ela apresenta os problemas como

se estivesse preocupada e comprometida em resolvê-los, mas a sua abordagem

se limita a uma análise de pouca profundidade, que silencia fatores importantes

de caráter econômico e ideológico. Além do mais, conforme vem se

demonstrando, a revista defende a redução da maioridade penal e outras

mudanças que endureçam a legislação como fator punitivo sobreposto ao

preventivo, o que desdiz o suposto ‘comprometimento’ da revista.

Ao afirmar que “a discussão em torno da proposta de redução da

maioridade penal virou um embate ideológico”, Veja pretende se colocar fora da

ideologia, afastando a discussão de si e a atribuindo apenas às pessoas que

defendem que a redução da maioridade penal não deve acontecer. Assim, ela

parece estar isenta de posicionamento, como se estivesse fora de uma FD e do

ideológico. Contudo, esse é um efeito da própria ideologia, ocasionado pelo

esquecimento de número 1,que provoca a impressão de que o indivíduo está na

fonte e é a origem dos dizeres e dos sentidos, ocultando a maneira como o sujeito

é afetado pela ideologia.

O título da matéria seguinte, carregado de um ingrediente indutor de

comoção, traz a seguinte expressão exclamativa:

SD24: PELO FIM DA IMPUNIDADE (VEJA, 2015, Ed.2431).

Nesta SD, tem-se novamente um processo parafrástico atravessando o

76

discurso da Veja, que retomaa tese da redução da maioridade penal, já que

acabar com a impunidade, para ela, significa reduzir a idade penal e estender o

sistema prisional comum para os menores de idade. Observa-se, ainda, que a

revista silencia completamente a questão da aplicação de medidas

socioeducativas, pregando a impunidade dos ACAI,apesar do fato de que a

maioria dos centros de socioeducação se parece com presídios tradicionais e que

“a segurança, o processo de socialização e o desenvolvimento das

potencialidades dos adolescentes comparecem [...] nos discursos oficiais, mas

pouco se evidenciam na aplicação e execução das medidas sócio-educativas”, o

que, para Wacquant (apud COSTA, 2005), constitui um paradoxo, já que

[...] pretende remediar com ‘mais estado’ policial e penitenciário o ‘menos estado’ econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto no Primeiro como no Segundo Mundo (WACQUANT apud COSTA, 2005, p. 65).

A linha fina que segue o título afirma que,

SD25: Pela primeira vez, uma proposta para mudar a lei brasileira para menores infratores, uma das mais lenientes do mundo, avança no congresso (VEJA, 2015, Ed.2431).

Nesta SD, que complementa o título Pelo fim da impunidade, como se vê,

o fim da impunidade está relacionado ao avanço de um projeto de lei que visa

endurecer a legislação para adolescentes que cometerem ato infracional, por

meio de uma forma de punição mais severa. Ressalte-se que, neste caso, o

projeto não aborda a redução da maioridade penal especificamente, mas sim o

endurecimento da legislação para menores de idade, isto é: trata-se de

fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva, à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir (FOUCAULT, 1987, p. 70).

Pode-se perceber, ainda, um tom de comemoração na SD 25, já que a

mudança, defendida pela revista, caminha ao encontro da concretização do que

ela defende. Esse funcionamento discursivo, já assinalado, provém da FD da

77

punição,na qual as posições filiadas já institucionalizaram a imagem do ACAI e

assinalaram seu lugar: em última instância, a cadeia.

Na SD abaixo, Veja reafirma a suposta leniência da legislação brasileira

para com menores infratores, tese defendida também no corpo da reportagem

conforme se pode ver abaixo:

SD26: Na semana passada, VEJA trouxe um levantamento que mostra que a legislação brasileira para menores é uma das mais lenientes do mundo (VEJA, 2015, Ed.2431).

Novamente, tem-se um silêncio omisso sobre as carências sociais que

assolam o Brasil com altos índicesde desigualdade social e políticas quase

nulasde prevenção à criminalidade. Essa parece ser uma questão desconhecida,

desconsiderada ou pouco importante para a revista e revela a sua parcialidade, já

que ela traz, para as discussões relacionadas à criminalidade juvenil, números,

índices e pesquisas (quando eles servem para reforçar o seu ponto de vista.

Conforme afirma Silva (2005),

A realidade social que produz a desigualdade jamais é analisada por Veja, que se limitaa constatar sua existência. Dois são, portanto, os movimentos principais da revista – difundir omedo, o que corresponde a demandar mais e mais repressão (punição), e definir quem são aspessoas que merecem proteção (socialmente seletiva) (SILVA, 2005, p. 510).

Seu posicionamento está, portanto, ligado a interesses econômicos,o que a

leva a discursivizar, isto é, a colocar em pauta os ‘problemas’ que atingem apenas

as instâncias que a interessam e que a financiam: “A revista assume -

implicitamente - que os crimes corriqueiros, de botequim, crimes pobres, pouco

importam, pois não estão nas suas páginas, ou ainda, não estão nas suas

páginas porque pouco importam” (SILVA, 2005, p. 510).

A materialidade do discurso (o texto) traz diversas paráfrases que retêm os

efeitos de sentido de que o ACAI é bandido e criminoso e ela difunde um caráter

perverso sobre eles, conforme pode ser visualizado na SD abaixo:

SD27: Quando furtou o notebook I.V.I., já estava bem distante da imagem de menor inconseqüente, levado pela ingenuidade a cometer um delito (VEJA, 2015, Ed.2431).

78

Percebe-se que a Veja busca romper com a inocência da infância e afastar

o adolescente da ingenuidade. A periculosidade, de certo modo, é tratada como

maldade inata, como se os adolescentes já nascessem para a vida criminosa e,

portanto, pudessem ser equiparados a adultos no fator de punição por seus

atos.Essa equiparação do adolescente ao adulto, no que concerne ao nível de

responsabilização pelos atos que produz, serve de apoio para a defesa da

redução da maioridade penal.

As causas dos crimes, como o roubo de notebook (citado na SD 27), não

são questionadas e debatidas pela Veja, nem mesmo citadas, visto que não

configuram um fato jornalístico relevante para o semanário ou residem na sombra

daquilo que não deve ser dito. A forma sensacionalista com que a imagem do

ACAI é veiculada e os contextos psicossociais e socioeconômicos em que esse

jovem está inserido aparecem naturalizados.

Na SD a seguir, a revista aponta novamente para a questão do não

cumprimento integral do período máximo de internação:

SD28: O caso dele ilustra bem o que os críticos do atual sistema apontam:mesmo a pena de três anos de internação raramente é cumprida (VEJA, 2015, Ed.2431).

Nesta SD, a revista faz menção “aos críticos do atual sistema”, como se

não fizesse parte do conjunto e como se representasse uma opinião isenta; mas

as análises demonstram que, mais do que se posicionar frente à defesa da

redução da maioridade penal, a Veja tem instaurado uma campanha em prol do

projeto. Logo, “a idéia colocada no ECA, de privação de liberdade como medida

socioeducativa é substituída, conotativamente, pela de encarceramento de

criminosos” (NJAINE; MINAYO, 2002, p. 291). O ECA é claramente ignorado e o

ACAI é tratado pejorativamente como criminoso que se esconde atrás de uma

legislação que o protege.

Esse processo discursivo é regulado pela FD em que a revista se inscreve,

o que significa que a Veja, entendida como uma unidade, enuncia de acordo com

aquilo que lhe é permitido pela FD, pois estar em uma FD significa ter sido

interpelado por ela, constituído por ela, não existindo possibilidade de escolha. A

inscrição em determinada FD apaga a possibilidade de outros sentidos que não

sejam originados nela e por ela, o que leva os sujeitos a rejeitarem outros

79

sentidos para um mesmo objeto discursivo, sentidos oriundos de outra FD. Como

pode se ver na SD abaixo:

SD29: O governo Dilma Rousseff é contrário à redução da maioridade. Desde maio, o Palácio do Planalto vinha tentando derrubar a proposta da comissão [...] Para isso recorreu ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que no começo da semana apresentou um estudo para tentar mostrar que o ECA seria mais rigoroso do que se pensa – tese que não encontra respaldo na realidade (VEJA, 2015, Ed.2431, grifo nosso).

A SD mostra que a revista renega os dados apresentados pelo Ipea sobre

a rigorosidade do ECA, isso porque os sentidos para o termo partem de FDs

distintas. Para a Veja,a rigorosidade está associada a castigo e, para ela, o ECA

não permite punir com rigorosidade. Desse modo, tem-se o confronto entre duas

FDs que partem de perspectivas diferentes sobre rigorosidade e também sobre

como tratar os adolescentes envolvidos na criminalidade.

Outro fato que merece destaque é a “realidade” retratada pelaVeja.

Estudos e dados oficiais mostram a precariedade das instituições destinadas à

socioeducação. Em vários destes locais, as práticas chegam a ser desumanas;

esta é a realidade de diversos jovens que vivem privados de liberdade. Todavia,

esta é uma realidade não abordada pela revista, que se limita a retratar a

legislação na teoria, silenciando as práticas vividas dentro destes centros.

Neste sentido, não se pode deixar de relacionar a prática discursiva da

Veja às condições de produção que envolvem as particularidades do discurso

jornalístico como esfera que trabalha na manutenção dos sentidos no campo da

sua estabilização, como demonstrado na parte teórica deste trabalho. Além disso,

há que se destacar o papel da mídia na manutenção da ideologia dominante,

configurando-se como um aparelho ideológico do estado:

O funcionamento da instância ideológica deve ser concebido como “determinado em última instância” pela instância econômica, na medida em que aparece como uma das condições (não econômicas) da reprodução da base econômica, mais especificamente das relações de produção inerentes a esta base econômica. A modalidade particular do funcionamento da instância ideológica quanto à reprodução das relações de produção consiste no que se convencionou chamar interpelação, ou o assujeitamento ideológico como sujeito ideológico, de tal modo que cada um seja conduzido, sem se dar conta, e tendo a

80

impressão de estar exercendo a sua livre vontade, a ocupar o seu lugar em uma ou em outra das duas classes sociais antagônicas do modo de produção (ou naquela categoria, camada ou fração de classe ligada a uma delas) (PÊCHEUX;FUCHS, 2014, p.162, grifo do autor).

Como se tem procurado demonstrar, língua e ideologia mantêm uma

estreita relação. Toda manifestação discursiva carrega uma carga social que

aponta para as condições sócio-históricas que a constituem:“Nenhum enunciado

pode,então, ser considerado neutro, pois, se desligado da base material e

ideológica que lhedá origem, anula-se a possibilidade de ele produzir efeitos de

sentido” (ORSATTO, 2009, p.148).

A edição número 2435 traz uma matéria cujo título é:

SD30: EM TRÊS ANOS, NAS RUAS (VEJA, 2015, Ed.2435).

O efeito de sentido desencadeado pelo termo ‘ruas’aponta para o efeito de

liberdade e poderia produzir um sentido positivo sobre o retorno do ACAI à

sociedade; entretanto, este dito efetivamente se relaciona a outro sentido, cujo

significado remete aestar solto para cometer novos crimes e que, como ato falho,

denuncia a vida dura vivida pela maioriados adolescentes que entram na

criminalidade. Orlandi (2010), em um estudo sobre a violência e a delinquência,

afirma que uma das formas ideológicas que regem o imaginário citadino é o fato

de que a solidariedade e a reciprocidade cedem lugar à rivalidade, o que culmina

na marginalização, isto é, na colocação à margem. A autora afirma que esses

sujeitos não são sustentados nem na racionalidade do estado, nem na lógica da

pertença social, mas por meio da falta de um lugar, tanto na família quanto nos

diversos grupos sociais. Nesse sentido,

O discurso jurídico aparece aí como uma importante fonte de legitimação dessas práticas que afetam a juventude pobre, por fazer crer que se as injustiças acontecem é porque a lei não foi cumprida. Quando, na verdade, a lei não passa de uma maneira de silenciar, para os que estão de fora, os que berram dentro dos muros (BUDÓ, 2013, p. 33).

O que se tem percebido até aqui é que o discurso da Veja aciona efeitos

de sentido que, embora não se saiba a origem, ratificam, o tempo todo, a

81

marginalização dos adolescentes que cometem ato infracional, pregando, na

medida do possível, que a penalização seja ainda mais severa.

O enunciado que compõe a linha fina que segue o título analisado

anteriormente apresenta um deslizamento em relação à produção de um efeito de

sentido, já que o menor que anteriormente foi designado como assassino, agora,

após a sua morte, é uma ‘vítima’:

SD31: Os menores condenados pelo estupro de quatro meninas no Piauí, uma das quais morreu, voltaram a matar. Desta vez, a vítima foi o cúmplice que delatou o grupo. Pelos dois crimes bárbaros, os adolescentes ficarão não mais do que três anos numa casa de correção, de onde sairão com a ficha limpa. É o que diz a lei. Mas agora ela pode mudar (VEJA, 2015, Ed.2435, grifo nosso).

Ao utilizar ‘casa de correção’, Vejaparece pretender criar um efeito de

eufemismo e de visada positiva sobre a prisão juvenil e levar a inferir um

resultado positivo do modo de internamento destinado ao ACAI; porém, deve-se

ressaltar que o crime de que trata o enunciado aconteceu exatamente nesta casa

de correção, o que contradiz o princípio discursivo de que esses centros são

locais amenos e de que, no limite, servem para não punir, o que deveria

acontecer, conforme a tese central de correção assumida pela revista.

O recurso ao adjetivo ‘bárbaro’, para caracterizar o substantivo ‘crime’,

também não ocorre aleatoriamente, já que se percebe que ele busca reforçar o

suposto caráter maquiavélico que é atribuído aos ACAI e ratificar o perfil de

‘menor bandido’ defendido pela revista.

Nesse sentido, entende-se que a Vejaestá submetida a um princípio de

regularidade discursiva, cujo funcionamento se caracteriza, sobretudo, pela

presença de paráfrases de efeitos negativos e que apontam para a defesa de

criminalização do ACAI. Em termos de processo discursivo, há uma mesma

direção de sentidos que retorna sempre, sob a aparência de modificações,

reiterando que os adolescentes que cometem ato infracional são bandidos e

devem, portanto, ser segregados: esta segregação vem em forma de prisão. E

assim, nesse retorno, o silêncio em torno deoutros sentidos parao ACAI reitera o

efeito de literalidade do sentido, embora

o sentido (seja) sempre dividido, tendo uma direção que se especifica na história, pelo mecanismo ideológico de sua

82

constituição; há simbolização das relações de força, de poder, que se estabelecem na divisão própria à sociedade capitalista. Ligam-se aí três noções: o político, o histórico (o Outro, a memória, o interdiscurso) e o ideológico (ORLANDI, 2013, p.06).

Percebe-se, ainda na mesma SD, o descontentamento de Veja com o fato

de que, após o cumprimento das medidas socioeducativas, o ACAI tenha o

histórico penal apagado, com isso, não podendo ser identificado ou segregado.

Esta postura é defendida também no corpo da reportagem, conforme pode se ver

na SD abaixo:

SD32: Agora, esse segundo assassinato não acrescentará um único dia de internação ao tempo já previsto. Em 2018, os três assassinos estarão de volta às ruas, usufruindo o status de réu primário como o mais reto dos cidadãos, já que o ECA proíbe qualquer registro criminal no caso de infratores menores de 18 anos (VEJA, 2015, Ed.2435).

Na reportagem em questão, Veja deixa transparecer um suposto desejo de

‘justiça’ pela morte de um dos adolescentes, ocasionada pelo restante do grupo.

Porém, na edição 2430, a matéria Justiça só para maiores trata dos mesmos

adolescentes e, conforme analisado, em momento algum, a revista demonstra

sensibilidade ou preocupação com o destino dos adolescentes, pelo contrário,

lhes atribui um caráter perigoso e perverso. Nesse sentido, é possível inferir que,

efetivamente, o que mobiliza o discurso da Veja é a busca pela punição, conforme

deixa clara a SD abaixo:

SD33: A lei brasileira é uma das mais lenientes do mundo quando se trata de punir adolescentes criminosos (VEJA, 2015, Ed.2435, grifo nosso)

De acordo com Gomide (1990), a narrativa jornalística, em particular a de

estilo policialesco, tem sido um dos setores responsáveis frente à opinião pública

pela construção da imagem de crianças e adolescentes associados a animais,

como seres de natureza perversa, nocivos à sociedade, sujeitos sem recuperação

ou desumanos, com agressividade incontrolada, fator que atua na produção de

sentidos negativos e uma memória institucionalizada. Ela contribui para um

processo de dominaçãosociopolítica que, na sua hegemonia, torna a maturidade

do ACAI precoce e cerceia o seu desenvolvimento integral.

83

Percebe-se, a partir disso, que, para a revista, não há redenção; sendo

praticada a infração penal, os adolescentes deverão carregar para sempre a

‘marca’ da segregação que os distinguirá dentre os outros cidadãos, pois

Se ontem, os adolescentes eram penalizados por estarem em situação irregular, hoje são penalizados e tidos como fracassados por não conseguirem se incluir na sociedade de consumo; se antes as falhas das políticas sociais eram desconsideradas quando da estereotipação do adolescente como irregular, hoje as políticas neoliberais deixam o espaço de socialização dos adolescentes aberto para a atuação do tráfico de drogas; se antes os adolescentes eram tidos como vagabundos, hoje são vistos e tratados como de alta periculosidade e criminosos (SARTÓRIO, 2007, p.90, grifo do autor).

Os processos sociais que constituem a criminalidade juvenil têm sido

historicamente silenciados no DJ e também no da Veja, mas, em contrapartida, os

já-ditos negativos são reiterados e atuam não apenas retrospectivamente, mas

também reverberando o futuro, numa espécie de prevenção por parte da

sociedade: “Faltam históricos [...] que contribuam para explicar os motivos da

violência, e também não há um foco nas soluções, [...] raramente é cobrada a

presença do Poder Público e denunciada a ausência de políticas públicas”

(SALES, 2004, p.187-189).

Na sequência da matéria, é possível perceber que o semanário traz o

discurso do MP para ratificar sua posição:

SD34: Promotores da Infância e da Juventude afirmam que, além de estender a pena para determinados delitos, é fundamental estabelecer um tempo mínimo de internação para os autores desses crimes (VEJA, 2015, Ed.2435).

Para Maingueneau (2005), “o discurso ‘filtra’ a aparição, no campo da

palavra, de uma população distinta” (MAINGUENEAU, 2005, p. 137, o que

significa que, ao trazer outros discursos, há uma seleção por parte da FD da Veja de modo que os sentidos não sejam conflitantes, ou seja, deve haver condições

para que esses discursos outros nela se inscrevam e sejam chamados a se

inscrever. Além do mais, ao colocar em cena outras vozes discursivas que

compactuem com seu posicionamento, no caso em questão, um parecer de peso,

a revista reforça sua tese de endurecimento da legislação e mantém sua

84

legitimidade.

No que se refere às deficiências relativas à estrutura e ao sistema que

culminaram no episódio da morte do adolescente, Veja se limita a citá-los:

SD35: A superlotação dos estabelecimentos destinados a abrigar infratores e seu despreparo para recebê-los – no caso da morte de Gleison, o fato de ele estar no mesmo quarto que os comparsas que delatou configura ‘um erro de procedimento básico e gritante’, como afirma o promotor Cezário Cavalcante – são só algumas das muitas falhas a ser corrigidas antes de se por em prática qualquer mudança na lei (VEJA, 2015, Ed.2435).

Nesta reportagem, pela primeira vez, a revista faz menção às falhas

dasinstituições de ressocialização e a necessidade de correção dessas. Mas ela é

citada de modo geral e sem a problematização necessária. Além do mais, a crítica

denuncia as deficiências com o intuito de que sejam corrigidas para uma melhor

punição:“o projeto pedagógico que, pela sua total inconsistência transformadora,

acaba por criar, recriar e reforçaros papéis de delinqüentes, não encontra espaço

político-informacional”(NJAINE; MINAYO2002, p. 294).

Por fim, a revista afirma que

SD36: Os entraves, mesmo sendo muitos e complexos, não podem servir de argumento para que se perpetue a impunidade (VEJA, 2015, Ed.2435).

No enunciado acima, as carências do sistema são tratadas como

“entraves”, isto é, obstruções que dificultam a aplicação das punições, mas se

silencia o fato de que elas culminaram na morte de um dos jovens que estava sob

a responsabilidade do sistema judiciário. O fato de ele ter sido colocado na

mesma cela que os outros adolescentes, após ter confessado a culpa do grupo

todo, é tratado pelo MP e também pela Veja como um “erro básico e gritante” e,

por fim, como entrave que dificulta a punição. Desse modo, percebe-se o trabalho

da FD em que a Veja se inscreve, direcionando sentidos e o efeito da ideologia,

ocasionando a ilusão de transparência da linguagem, como se as teses

apresentadas fossem evidências; desse modo, enunciados ideológicos aparecem

como verdadeiros e lógicos, quando, na verdade, são oriundos da inscrição da

Veja em determinada FD.

No título seguinte,Veja apresenta o enunciado seguinte:

85

SD37: A DOIS ANOS DA LIBERDADE (VEJA, 2015, Ed.2458).

É possível identificar o tom acusatório usado pela revista na construção da

SD, já que coloca a liberdade como uma concretização próxima e,a partir das

análises realizadas, tem se identificado o descontentamento daVeja sobre

conceber a liberdade ‘apressada’ a qualquer ACAI; pelo contrário, para ela,

quanto maior e mais dura a pena, maior é a aceitação. Nesse sentido, o efeito de

sentido pretendido pela Veja é o da indução à revolta, já que a liberdade

representa o oposto do que prega a FD em que a revista se inscreve.

Percebe-se, portanto que a revista se afasta da FD jurídica e a coloca em

xeque, apesar de compactuar com as noções de certo e errado e direitos e

deveres impostas pelo discurso jurídico e impetradas pelo aparelho ideológico da

justiça. Esse distanciamento se deve ao fato de que os sentidos de justiça para o

ECAnão pertencem à mesma matriz de sentidos da Veja, o que leva a revista a

contestar e a confrontar esses sentidos com o intuito de ‘consertar’ a legislação, o

que culmina na defesa da redução da maioridade penal.

A construção da suposta ‘indignação’ por parte da Veja segue no curto

texto da reportagem que está presente na edição especial de final de ano e traz

apenas os assuntos destaques do ano:

SD38: O crime de Castelo do Piauí (PI) já tinha elementos suficientes para abalar o país: sua crueldade extraordinária, o sofrimento impingido às vítimas e até a situação, tristemente prosaica, que levou uma delas à morte [...] Em julho, dois meses depois de terem sido presos, três dos criminosos de Castelo do Piauí (PI) mataram a pancadas o quarto comparsa, que havia delatado o grupo. Pela morte da menina e do colega de cela, os jovens passarão no máximo mais dois anos e seis meses internados – e sairão como réus primários (VEJA, 2015, Ed.2458, grifo nosso)

A construção da ‘comoção’ é visível no trecho acima e permite ratificar o

comportamento discursivo da revista que mantém, por meio de paráfrases, o

mesmo dizer negativo sobre o ACAI, difundindo um perfil perigoso e perverso que

reverbera o estigma de menor bandido enfrentado historicamente pela infância

pobre e pelo ACAI.

A banalização da imagem do ACAI surge sob a forma de diferentes pré-

86

construídos, muitas vezes sarcásticos e pejorativos, que apontam para uma só

direção: a criminalização e a necessidade de exílio social destes sujeitos. A outra

história, a da segregação, por sua vez, não é contada:

De um lado, pois, impera o discurso da verdade e da lei; e, do outro, a todos os que se batem contra a ordem, restam a desqualificação ou a redução ao silêncio. Afinal, eles não devem ter o direito à palavra, porque são delinqüentes. Daí por que, muitas vezes, precisam dizer com atos (incêndios de carros, rebeliões, destruição de unidades de internação, etc.) a sua revolta. Constroem formas diferentes de acessar o discurso e somente assim aquilo que pensam e precisam pode penetrar, como conjunto de enunciados, numa determinada sistematicidade e desencadear efeitos regulares de poder (SALES, 2004, p.185).

Na sequência, a edição 2460 traz, como título de uma matéria sobre os

ACAI, a seguinte afirmativa:

SD39: PARA ELES, COMPENSOU (VEJA, 2015, Ed.2460).

Nesta SD, aVejabusca criar um efeito de distanciamento em relação ao

ditado popular que afirma que ‘o crime não compensa’, fazendo uso da memória

e do senso comum; interdiscursivamente, a revista contrapõe os dois discursos

para criticar a impunidade e defender que ela acabe, já que, no caso, o crime

compensou porque ficaram impunes. É importante destacar que a construção

destes enunciados “não se trata de uma seleção paradigmática, em termos de

língua, mas de assumir uma posição discursiva” (POSSENTI, 2011, p.376), pois

“qualquer enunciação supõe uma posição” (POSSENTI, 2011, p.372); isso quer

dizer que as escolhas parafrásticas de Veja se assentam sobre uma ideologia

dominante que a leva assumir determinada atitude discursiva.

Nesse sentido, toda tomada de palavra por parte da Veja dirige-se a

defender sua posição discursiva e buscar ‘justificar’ suas convicções por meio de

argumentos, dados e estudos, e sem constatar seu assujeitamento àposição

ideológica que a constitui, conforme pode se observar na sequência abaixo:

SD40: Estudo do Ministério Público acompanhou por um ano 1.000 infratores saídos da Fundação Casa e concluiu que os menores reincidem mais vezes e mais rápido que os maiores (VEJA, 2015, Ed.2460).

87

A revista traz, para o discurso, dados que reforçam seu ponto de vista. No

enunciado, ela se vale de um estudo realizado pelo Ministério Público buscando

comprovar a tese de que a reincidência está relacionada à inimputabilidade do

ACAI, conforme ficou claro a partir da análise do título da matéria a que a linha

fina está ligada. Em suma, o efeito de sentido que se cria a partir do enunciado é

que os adolescentes devem ser mais temidos que os adultos na prática de

crimes, já que “reincidem mais vezes e mais rápido que os maiores”. Para a

Veja,devem ser punidospara vingar a prática do crime e paradesencorajar os que

não cometeram o delito, a fim de bloquear a ocasião e a repetição.

Budó (2013), em um estudo sobre a interferência do discurso político e

midiático sobre o ato infracional na produção de políticas destinadas à criança e

ao adolescente, conclui que, no Brasil, preponderam as políticas repressivas em

detrimento das sociais e que, por detrás de um discurso protetivo, vigora uma

série de práticas punitivas que, somadas a uma enraizada ideologia menorista,

culminam na difusão de uma política penal cada vez mais acirrada.

Nesse sentido, a autora afirma que

os discursos político e midiático, ao interagirem na (re)producao do pensamento hegemônico sobre o adolescente, o ato infracional e as medidas socioeducativas, também auxiliam na reprodução material das relações de desigualdade social tão características do Brasil contemporâneo. Definem quem devem ser os perseguidos, por quais atos e com quais consequências: jovens pobres não brancos das periferias, por crimes de rua ocorridos em locais geograficamente privilegiados das cidades, com a consequência de punição através da exclusão social com a privação longa de liberdade (BUDÓ, 2013, p.420).

Em linhas gerais, o estudo realizado por Budó (2013) demonstra uma forte

predominância da adoção de posturas estatais repressivas em detrimento de

posturas voltadas ao bem-estar social, que configura a intervenção mínima de um

Estado social e a máxima de um Estado penal. Nesse sentido, ao silenciar

determinadas questões nas matérias, a Veja legitima as práticas de repressão

sobre o ACAI, além de ratificá-las em seu próprio discurso, o que permite

perceber a formação ideológica neoliberal, caracterizada, sobretudo, pela

manutenção de um estado forte com interferência mínima em questões de cunho

social, materializando-se no discurso do semanário, conforme pode se verificar na

SD abaixo, retirada do texto da matéria:

88

SD41: A iniciativa do MP parte de uma lacuna deixada pelo estado – que não tem nenhum plano de acompanhamento dos egressos da Fundação Casa, uma exigência prevista no ECA (VEJA, 2015, Ed.2460).

Nesta SD, a Veja apresenta uma ‘crítica’ ao estado por não apresentar um

plano de acompanhamento para os adolescentes que deixam a Fundação Casa;

entretanto, a ponderação se refere ao fato de não ser possível precisar os

números de reincidência destes jovens. Nesse sentido, a ‘preocupação’ da Veja está relacionada ao melhor controle dos adolescentes e não com seu bem estar;

nesse caso, a falha é apontada como lacuna do estado, algo a ser corrigido, com

foco na melhor punição.

Neste contexto, é possível relacionar as práticas relacionadas ao ACAI e a

aplicação das medidas socioeducativas, sobremaneira, as privativas de liberdade,

com a destruição deliberada do Estado social e a hipertrofia súbita do Estado

penal dos últimos anos, apontados por Wacquant (2003) como desenvolvimentos

complementares e concomitantes. Para ele, ambos acabaram participando do

estabelecimento de um novo governo da miséria, no qual a privação de liberdade

ocupa uma posição central. Ele é denominado pelo autor como Estado centauro,

uma cabeça liberal sobre um corpo autoritário, que aplica a doutrina do

laissezfaire, laissezpasser, ao tratar das causas das desigualdades sociais, mas

se revela paternalista e punitivo quando se trata de assumir as consequências

(WACQUANT, 2003).

A SD abaixo revela os efeitos de sentido estipulados sobre a lei a partir da

FD de que a Veja é suporte:

SD42: O estudo revelou que os menores que atingiram a maioridade nesse período - ficando, portanto, sujeitos às mesmas penas que bandidos adultos - reincidiram muito menos no crime do que aqueles que, por não terem 18 anos de idade, permaneceram protegidos dos rigores da lei pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (VEJA, 2015, Ed.2460).

Na SD acima, produzem-se dois efeitos de sentido. O primeiro deles é

ocasionado pelo uso da sentença “bandidos adultos”. Sugere-se, a partir disso,

que há duas classificações de ‘bandidos’, cuja separação se dá pela maneira

como são julgados. Nesse contexto, há bandidos adolescentes e adultos, mas de

89

modo generalizado são todos ‘bandidos’.O recurso a termos pejorativos para se

referir ao ACAI reforça o menosprezo, a ideia de nãosujeito e de grupo informe

difundido na sociedade. “Além disso, ao colocarem a palavra ‘menores’ como

sujeito indefinido das frases, os títulos enunciam [...] a condição de oposição entre

esses meninos e os adolescentes não-infratores, assinalando a inferioridade dos

primeiros”(NJAINE; MINAYO, 2002, p.292).

O segundo efeito de sentido gerado a partir da SD é o de que o ECA não é

lei. Nas linhas finais da sequência, a revista afirma que o ECA protege “dos

rigores da lei”, distanciando-o de sua especificidade de lei e sugerindo que o

estatuto serve para perpetuar a impunidade. O dito apoia-se em uma memória

discursiva de lei como finalidade de repressão e de dominação, assim como o

termo ‘justiça’, discutido no capítulo anterior. Logo, nessa matriz de sentidos, as

leis servem para punir, não para recuperar ou ressocializar indivíduos; desse

modo, ao elencar uma doutrina de proteção, o ECA conflitua com os sentidos já

instaurados e instituídos na memória discursiva sobre a lei.

Na sequência do texto, a revista volta a incorporar o discurso do MP:

SD43: ‘A pesquisa indica que a pena mais severa que acompanha a maioridade penal pode funcionar como um frio para o cometimento de crimes’, diz a promotora (VEJA, 2015, Ed.2460).

Percebe-se que a Veja considera o estudo realizado pelo MP como válido

e o inclui, aliás, na discussão em prol do endurecimento da legislação voltada

para adolescentes. Porém, deve-se ressaltar que, em outra matéria, a revista

desabona um estudo realizado pelo Ipea proposto pelo Governo Federal para

mostrar que o ECA é, de fato, rigoroso. A partir disso, é possivel identificar um

quadro de regularidades no discurso da Veja, de maneira que opiniões, estudos e

dados que desabonem a imagem do ACAI e defendam a redução da maioridade

penal ou o endurecimento da legislação são trazidos e validados pelo semanário,

mas posições que sustentem outros sentidos são repelidos.

Em resumo, o que se vê a partir da análiseé a ênfase da FD em que Veja se inscreve na defesa da punição, apontando uma direção de sentidos que

criminaliza o ACAI e o relega à prisão, por vingança ou por ‘proteção’ dos

interesses de uma parcela da sociedade. De todo modo, a prática discursiva da

90

revista coloca em discussão apenas um sentido para solução da criminalidade

juvenil, por uma via de mão dupla: punir para vingar ou punir para remediar.

Desse modo, a partir das posições que vêm sendo sustentadas pelaVeja, fica claro que o sentido não é neutro nem natural, mas “determinado pelas

posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as

palavras, expressões e proposições são produzidas” (PÊCHEUX, 1995, p.160).

Além do mais, percebe-se o trabalho da ideologia dominante legitimada pelo

discurso da Veja operando sob o AEI da informação em conjunto com o ARE da

justiça que atua coercitivamente sob o pretexto do bem comum, pois “a língua da

ideologia jurídica permite conduzir a luta de classes sob a aparência da paz

social” (PÊCHEUX, 1990, p. 11).

Na conclusão da matéria, percebe-se um tom de descontentamento no

enunciado da Veja pelo nãoavanço no congresso de duas propostas que previam

o endurecimento da legislação para adolescentes que viessem a cometer ato

infracional:

SD44: No ano passado, o congresso desengavetou uma proposta de redução da maioridade penal que estava parada desde 1993 e colocou em discussão uma modificação no ECA que ampliaria o tempo de internação dos menores infratores que houvessem cometido delitos violentos [...] Mais uma vez, no entanto, as duas propostas terminaram o ano esquecidas (VEJA, 2015, Ed.2460).

A insatisfação da Veja com a falta de andamento das propostas pode estar

relacionada a seu esforço particular na aprovação dos projetos, já que, durante o

ano de 2015, conforme demonstrado a partir da análise das matérias, a revista foi

protagonista de discussões envolvendo a defesa da redução da maioridade penal

e se enpenhou em mobilizar a opinião pública para que isso repercurtisse no

congresso; logo, é possível compreender o seu desapontamento em relação a

essa situação.

Essa postura demonstra o assujeitamento da revista à FD que a interpela,

pois ela é chamada a compartilhar aquilo que está socialmente posto em uma

forma de ler o mundo que a precede. Portanto, o discurso da punição não está

restrito a ou foi originado na Veja; ela apenas o reproduz por meio dos diferentes

enunciados demonstrados no decorrer deste trabalho.

No discurso da revista, cuja origem se desconhece, não se discute a

91

responsabilidade do estado ou as condições sociais dos sujeitos autores da

prática infracional, ou seja, não se vislumbram políticas de prevenção. Os motivos

para que estas questões sejam silenciadas podem ser relacionados a questões

ideológicas e econômicas, uma vez que, instauradaessa discussão, a

responsabilidade do ACAI e sua perversão seriam colocados em xeque, ao passo

que a sua culpabilidade minimizada, o que não é pertinente para o discurso da

revista.Além disso, romper-se-ia com a sua lógica, isto é, a memória do ‘menor

bandido’ disponibilizada a partir da memória discursiva que permite que a Veja reverbere, de diferentes formas, o mesmo dizer.

Como se demonstrou na análise até aqui, há uma paráfrase constante

negativa sobre o ACAI no discurso da Veja que se sustenta na FD da punição. A

inimputabilidade penal dos menores de idade é constantemente atacada e

apontada como razão da criminalidade juvenil pela revista; então, como ‘solução’

para o problema, a Vejadefendea redução da maioridade penal. A causa e a

culpa da criminalidade juvenil é atribuída ao caráter ‘perverso’ do ACAI e a

‘certeza de sua impunidade’. Assim, silenciam-se a falta do estado em termos de

políticas de assistência social para a prevenção à criminalidade e para evitar a

reincidência daqueles que passaram, e foram afetados, pelo mundo do crime.

Diante do exposto, não se pode deixar de relacionar a prática discursiva da

revista com a criminalização da infância pobre e marginalizada, processo

discursivo que, embora não se possa precisar a origem, tem se mantido

historicamente e, no caso do ACAI, imposto a uma identidade permeada de

estigmas, sem efetuar uma leitura crítica da realidade social.Acrescente-se a isso

o fato de que o discurso jornalístico e, portanto, o da Veja, atuam na manutenção

dos sentidos nesse campo e, assim sendo, dificilmente ou nunca colocam em

circulação sentidos que desfaçam essa lógica.

92

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para se compreender as práticas hegemônicas que imperam em

determinado momento histórico, é fundamental conhecer seu processo de

constituição. A análise de discurso entende que as formações ideológicas se

materializam por meioda linguagem e assim interpelam os indivíduos em sujeitos

clivados, esses sujeitos, por sua vez, enunciam a partir dessas posições

ideológicas que o dominam. Dessa maneira, a língua constituia possibilidade de

discurso em que diversos dizeres são colocados em relação, mas, no fim,

recebem seu sentido da base ideológica afetada pela história. Nenhum enunciado

pode, então, ser considerado neutro, nem sertomado de maneira isolada de suas

condições de produção, pois é a partir da relação com a exterioridade que o

processo discursivo se constitui.

A partir dessa perspectiva, o objetivo inicial deste trabalho foi o de analisar

para compreender a prática discursiva da revista Veja sobre adolescentes que

praticam ato infracional, considerando que a Veja configura-se como órgão

midiático e, portanto, seu discurso carrega traços do discurso jornalístico próprios

de sua constituição enquanto instituição.

Nesse sentido, esse trabalho de análise procurou não apenasapontar

evidências no discurso da Veja, mas, sobretudo, trabalhar com o processo de

produção das evidências identificando as marcas do ideológico que determinam o

curso de cada discurso, pois “as notícias jornalísticas se reinscrevem, sob o efeito

ideológico da evidência, da obviedade, na direção de sentidos

desejada/determinada politicamente pela formação discursiva hegemônica”

(MARIANI, 1996, p. 237)

Observando a relação entre língua e exterioridade e ainda recusando a

concepção de linguagem como mero instrumento de comunicação, foi possível

elucidar que a prática discursiva da revista Veja se regulamenta a partir da FD da

punição que dita os sentidos e rege as construções sobre adolescentes que

cometem ato infracional, o que permite a construção de enunciados negativizados

sobre eles e a reverberação de uma memória instaurada historicamente de menor

bandido que segue cristalizada por meio de paráfrases discursivas.

93

O trabalho de análise desta dissertação buscou compreender, de maneira

geral, como se articula a prática discursiva da Veja sobre a questão da

criminalidade juvenil, a partir da análise discursiva damatéria O dever de reagir da edição nº 2318 (no primeiro capítulo) e da análise dos títulos, linhas finas e

sequências discursivas de cinco reportagens das edições nº 2430, 2431, 2435,

2458 e 2460 (no segundo capítulo).

A análise das sequências, nos dois capítulos, permitiu identificar a

paráfrase constante, organizada sob a forma de diferentes enunciados, de que a

punição é a solução para a criminalidade juvenil e deve ser materializada sob a

forma da redução da maioridade penal e o endurecimento da legislação voltada

para menores de idade, tese para a qual Veja advoga reiteradamente.

Em alguns casos, a revista afirma que a punição deve ser aplicada com o

intuito de vingança e, em outros casos, como prevenção à criminalidade juvenil,

todavia, por uma maneira ou por outra,Veja defende a punição.

Tornou-se possível ainda identificar os valores que orientam a produção

discursiva da revista, dentre eles destaca-se a adoção de concepções

ultrapassadas de justiça, marcadas por práticas severas de punição, a denúncia e

o frequente ataque às consequências da criminalidade juvenil. Além disso, um

silêncio conivente às causas do problema, a criação de uma imagem perversa e

maquiavélica dos ACAI que ‘justifica’ a tese de punição e de redução da

maioridade penal e, por fim, a questão que rege toda produção discursiva da

revista: o modelo de gestão neoliberal que defende interesses capitalistas e

protege quem se encaixa nesse modelo de sociedade, excluindo os que estão à

margem dele como os ACAI.

Nesse sentido, cabe dizer que Veja articula seu discurso de modo a

defender os interesses de uma parcela da sociedade: a elite brasileira que a

financia, para tanto, coloca em circulação uma realidade à parte, isto é, traz para

suas matérias discussões acerca de crimes cometidos por menores de idade,

enquanto a violência da qual os ACAI são vítimas é silenciada.

Ainda, foi possível concluir que o discurso jornalístico, e também o da Veja,

contribuem na produção e na cristalização de ‘verdades’ que estão sempre

ligadas aos sistemas de poder, isto é, “a prática discursiva jornalística permitea

institucionalização social de certos sentidos, remetendo 'ao que todo mundo

94

sabe'(uma verdade local) e ao silenciamento de outros sentidos, resultado de uma

política do silêncio (MARIANI, 1996, p.38). Conforme afirma Foucault (1979), o

discurso serve também para legitimar as instâncias de poder, isto é, o discurso é

o lugar onde o poder é exercido, nesse sentido, pode-se relacionar o lugar da

mídia, e o da Veja, como lugar de poder que produz um discurso veiculado como

‘válido’ e ‘verdadeiro’ e assim tem poder de homogeneizar sentidos.

Desse modo, entender as práticas discursivas e, sobretudo, o processo de

construção e de reprodução dos discursos hegemônicos sobre o crime e o ato

infracional, é um passo fundamental na elaboração edifusão de um discurso

alternativo, contra-hegemônico, e na construção de um olhar generoso sobre os

ACAI no que tange às suas trajetórias de risco, de sofrimento e de descaso social.

Como se procurou demonstrar, não é possível escapar dos efeitos

ideológicos, a ideologia age reproduzindo no discurso e,por meio dele, as

relações sociais que cercam os indivíduos, desse modo, o discurso da Veja de

punição e de repressão é uma paráfrase construída historicamente sob os moldes

do modelo de estado capitalista que margeia os que, por (falta de) condições, não

se encaixam nesse sistema, e, assim, precisam ser excluídos e segregados para

que não instaurem a desordem e o caos, afinal, não são importantes,já que não

fazem parte do sistema. Então, a solução aparece como encarceramento, tese

defendida veemente pela revista Veja no decorrer desta dissertação.

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