Televisão e Realidade - Itania Gomes (livro)

Embed Size (px)

Citation preview

  • Televiso e Realidade

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    ReitorNaomar Monteiro de Almeida Filho

    Vice-ReitorFrancisco Jos Gomes Mesquita

    EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    DiretoraFlvia Goullart Mota Garcia Rosa

    Conselho Editorial

    Titularesngelo Szaniecki Perret Serpa

    Caiuby Alves da CostaCharbel Nin El-Hani

    Dante Eustachio Lucchesi RamacciottiMaria Vidal de Negreiros Camargo

    Jos Teixeira Cavalcante FilhoAlberto Brum Novaes

    SuplentesAntnio Fernando Guerreiro de Freitas

    Evelina de Carvalho S HoiselCleise Furtado Mendes

    Apoio financeiro: CAPES / CNPq

  • Itania Maria Mota Gomes(Organizao)

    SalvadorEdufba2009

    Televiso e Realidade

  • 2009, By Itania Maria Mota Gomes (org.)Direitos de edio cedidos EDUFBA.

    Feito o depsito legal.

    Projeto Grfico, Editorao Eletrnica e CapaRodrigo Oyarzbal Schlabitz

    RevisoFlvia Garcia Rosa

    NormalizaoNormaci Correia dos Santos

    Traduodos originais em francs: Michel Colin

    EDUFBARua Baro de Jeremoabo, s/n, Campus de Ondina,

    40170-115, Salvador-BA, BrasilTel/fax: (71) 3283-6164

    www.edufba.ufba.br | [email protected]

    Associao Brasileira deEditoras Universitrias

    Televiso e realidade / Itania Maria Mota Gomes (Organizao) . - Salvador : EDUFBA, 2009. 298 p.

    ISBN 978-85-232-0671-0

    1. Televiso. 2. Televiso - Programas. 3. Telejornalismo. 4. Verdade e falsidade. 5. Entretenimento. I . Gomes, Itana Maria Mota.

    CDD - 302.2345

    Siatemas de Bibliotecas UFBA

  • SUMRIO

    APRESENTAO | 9

    QUE SIGNIFICA FALAR DE REALIDADE PARA ATELEVISO? | 13

    Franois Jost

    UM FALSO NA TELEVISO? DA MENTIRA FRAUDE:o exemplo do documentrio Opration Lune | 31

    Marie-France Chambat-Houillon

    TELEVISO E DOCUMENTRIO: afinidades e desacertos |49

    Jos Francisco Serafim

    TELEJORNAIS: quem d o tom? | 61

    Elizabeth Bastos DuarteVanessa Curvello

    ELES ESTO SOLTA, MAS NS ESTAMOSCORRENDO ATRS: Jornalismo e entretenimento noCuste o Que Custar | 75

    Juliana Freire GutmannThiago Emanoel Ferreira dos SantosItania Maria Mota Gomes

    TELEJORNALISMO E AUTENTICAO DO REAL:estratgias, espaos e acontecimentos | 91

    Bruno Souza Leal

  • LGICAS DE PRODUO DO REAL NO TELEJORNAL:a incorporao do pblico como legitimador do conhecimentooferecido nos telenoticirios | 105

    Iluska Coutinho

    A LINGUAGEM DA PROMOO NO TELEJORNALISMO| 125

    Maria Llia Dias de Castro

    DRAMATIZAES DA POLTICA NA TELENOVELABRASILEIRA | 141

    Maria Helena WeberCarmen Jacob de Souza

    AUDIOESFERA POLTICA E VISIBILIDADE PBLICA:os atores polticos no Jornal Nacional | 175

    Wilson Gomes

    O POPULAR NA TV E A CHAVE DE LEITURA DOSGNEROS | 223

    Vera V. Frana

    ESSA TAL DE SOCIEDADE NO EXISTE...:o privado, o popular e o perito no talk show Casos de Famlia | 241

    Joo Freire FilhoMayka CastellanoIsabela Fraga

  • COMO A NOO DE GNERO TELEVISIVO COLABORANA INTERPRETAO DAS REPRESENTAES?Proposta metodolgica de anlise integrada | 267

    Simone Maria Rocha

    AUTORES | 293

  • 9APRESENTAO

    A importncia que a televiso assume no Brasil ainda no produziu, comoresultado, o desenvolvimento de mtodos de anlise adequados de seusprodutos. O mais frequente que a televiso seja tomada a partir de aborda-gens mais gerais, macroeconmicas, histricas ou sociais, e que o programatelevisivo, enquanto um produto cultural com certas especificidades, sejadeixado de lado. Na maior parte dos casos, os estudos que tomam a televi-so como seu objeto de investigao, ainda que considere seus produtos,tendem a se dispersar em direo a outros objetos de anlise, afastando-seda anlise dos programas efetivamente produzidos e veiculados. Tais estu-dos tm o mrito de reconhecer a televiso como objeto de interesse cientfi-co e de produzir conhecimento relevante sobre a televiso no Brasil, emespecial quanto ao seu carter histrico, social e econmico, mas a poucanfase nos produtos televisivos, tomados eles mesmos como objeto emprico,tem resultado numa certa fragilidade terica e metodolgica quando se tratade descrever, analisar, interpretar os modos de funcionamento, asespecificidades, as caractersticas do programa televisivo.

    Tendo em vista um cenrio marcado pela crescente hibridizao das pro-dues e gneros televisivos e pela implantao da televiso digital no Brasil,o Colquio Internacional Televiso e Realidade, realizado entre os dias 21 e24 de outubro de 2008, em Salvador, elegeu como tema geral as relaesentre televiso e realidade a TV como configuradora da realidade, comoexperincia de realidade na cultura contempornea, como meio que embaralhaas fronteiras entre realidade e fico, entre informao e entretenimento mas a partir de uma nfase na anlise de produtos, permitindo a interlocuosobre as metodologias de anlise e interpretao de produtos televisivos quese constroem na vinculao com o real.

  • 10

    O Colquio reuniu pesquisadores, docentes, profissionais e estudantespara compartilhar experincias de pesquisa sobre televiso e realidade e cri-ar um espao aberto interlocuo acadmica sobre os processos e produ-tos televisivos de abordagem do real, considerando os diferentes pontos devista que a anlise do tema atualiza. Reunindo mais de duzentos participan-tes, de diferentes universidades brasileiras e francesas, o Colquio possibili-tou o contato com os diversos percursos terico-metodolgicos adotados naanlise dos processos e produtos comunicativos televisivos. Desse modo, oColquio Internacional Televiso e Realidade contribuiu claramente para aqualidade do ensino e da pesquisa, na medida em que representou umaoportunidade de interlocuo qualificada entre pesquisadores, docentes ediscentes da rea da Comunicao. Alm disso, o Colquio ofereceu aosprofessores e alunos de todas as faculdades de Comunicao da Bahia (so18 cursos de Comunicao s na capital, Salvador, atualmente) o contatocom o que de melhor se tem produzido na pesquisa cientfica sobre as rela-es entre TV e realidade. Deste modo, o evento no s favoreceu a educa-o de qualidade, como fortaleceu a base cientfica na rea da Comunica-o/Cincias Sociais Aplicadas. O evento foi uma oportunidade para conso-lidar a interlocuo acadmica entre os pesquisadores participantes.

    Realizado pelo Programa de Ps-Graduao em Comunicao e CulturaContemporneas da Universidade Federal da Bahia, atravs do Grupo dePesquisa em Anlise de Telejornalismo, o Colquio foi constitudo por umconjunto de atividades, tais como painis temticos com participao de con-ferencistas nacionais e estrangeiros convidados; grupos de trabalho com cha-mada aberta comunidade cientfica; atelis metodolgicos (sesses de exi-bio de produtos televisivos seguida de discusso em torno das suas estra-tgias de construo); exibio de produtos televisivos brasileiros e estrangei-ros que se distinguem pelo tratamento que do realidade, por sua qualida-de, pelo seu valor histrico ou por serem objeto de anlise em algum dospainis temticos.

    Este livro rene os trabalhos apresentados nos painis temticos, pelosconferencistas convidados, e a conferncia de abertura do Colquio, realiza-da por Franois Jost, professor da Universit Sorbonne Nouvelle/Paris III ediretor do Centre dEtude des Images et des Sons Mdiatiques (CEISME).

  • 11

    Artigos apresentados nos grupos de trabalho continuam disposio dospesquisadores, atravs do site do evento: www.tverealidade.facom.ufba.br/

    A partir de perspectivas tericas e metodolgicas muito distintas e daanlise de produtos televisivos os mais diversos, os artigos aqui reunidosproblematizam as concepes a priori que circulam no nosso campo de estu-dos seja sobre o real seja sobre a televiso, recusam o carter essencialmenteevidente da relao entre TV e real e se perguntam sobre o que significa falarde realidade quando falamos em televiso Alguns eixos temticos aqui abor-dados so os gneros e formatos da produo televisiva sobre a realidade; asnarrativas sobre o real na TV; as vinculaes entre televiso, histria e me-mria; a construo do real pelo telejornalismo e as representaes do realna telefico. Em sua diversidade, eles certamente contribuem para dotar deconsistncia terica e metodolgica os procedimentos de anlise dos produ-tos televisivos.

    O Colquio e o livro que dele resulta seriam impossveis sem o apoio doPrograma de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura/UFBA, da Coor-denao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior/Capes, do Con-selho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) e daAlliance Franaise de Salvador. Nem evento nem publicao poderiam ter seconcretizado sem o apoio incondicional que recebi dos alunos que participa-vam do Grupo de Pesquisa em Anlise de Telejornalismo naquele momento.So eles: Fernanda Mauricio da Silva, Juliana Freire Gutmann, Jussara Pei-xoto Maia, Karina de Arajo Silva, Marlia Hughes Guerreiro Costa, MirellaFreitas Santos, Luana Santana Gomes, Ive Deonsio da Silva, Luciana AlvesRodas Vera, Thiago Emanoel Ferreira dos Santos e Valria Maria Vilas Bas.

    Itania Maria Mota Gomes

    Organizadora

  • 13O QUE SIGNIFICA FALAR DE REALIDADE PARA A TELEVISO?

    O QUE SIGNIFICA FALAR DE REALIDADE

    PARA A TELEVISO?

    Franois Jost

    Uma das teses do sistema conceitual que eu elaboro h uns quinze anos paraanalisar a televiso que todos os gneros televisivos podem ser interpretadosem funo de trs mundos: o mundo real, o mundo fictcio e o mundo ldico. Seos dois ltimos, os mais difceis de serem definidos, provocaram apenas algumasobservaes de contedo, pelo contrrio, o primeiro, o mais evidente em apa-rncia, suscita s vezes incompreenses da parte de meus leitores. Uma recor-rente e testemunha, no melhor dos casos, uma posio filosfica perfeitamenteidentificvel e, no pior, um desconhecimento do questionamento filosfico. Emsubstncia, a crtica que me feita a seguinte: voc diz que alguns gnerosesto ancorados no mundo real ou na realidade, mas a realidade no existe, elavaria conforme os pontos de vista. Levando a objeo a srio, minha exposiovisar responder questo colocada pelo seu ttulo. Isto em duas partes: umatentar definir como se deve colocar a questo da realidade para a televiso, asegunda a delimitar o que significam, para a televiso e os profissionais, as pro-messas das diferentes atitudes face ao mundo real.

    1 O que quer dizer realidade para a televiso

    Portanto, retomemos a questo da realidade onde a deixamos, partindodos argumentos de um crtico ferrenho da ideia de realidade, como John

  • 14 Franois Jost

    Hartley. Este o raciocnio que ele desenvolve num artigo j antigo, prvio publicao de Reading the News. (HARTLEY, 1982) Tudo est embasadonesta petio de princpio: a realidade is a human construct. A prova? Oque a fsica do sculo XX diz: the reality depends on how you look at it.(HARTLEY, 1982, p. 12) Sem nenhuma prudncia, o especialista das mdiasaplica ao mundo social o que depende do estudo da matria e reduz a ques-to epistemolgica da interao da ferramenta de medida e da realidademedida a uma simples questo de ponto de vista. Lembremos, de fato, que,conforme o princpio de incerteza de Heisenberg, impossvel medir simul-taneamente a posio e a velocidade de um objeto quntico, porque aoilumin-lo para observ-lo, faz-se variar a sua velocidade... Se se pode apli-car este princpio s transformaes que faz sofrer a intruso de uma cmerano mundo que ela filma, no se poderia, pelo contrrio, concluir pura esimplesmente um relativismo, do tipo de a cada um sua verdadepirandelliano, que negaria a existncia da realidade nem tampouco a idiade que apenas a relao real (a reality which consists no in things but inrelation within a system. Menos ainda que the world is realized in language(in both sens of the world made real and understood as such). (HARTLEY,1982, p. 13)

    Um dia o escritor francs Alain Robbe-Grillet, cujos romances pretendiamdesconstruir a realidade e mesmo zombar dela, foi vtima de um acidenteareo do qual ele escapou milagrosamente. Os jornalistas o entrevistaram eum deles zombou do Papa do Nouveau Roman, observando que, desta vez,o seu relato era particularmente lmpido, compreensvel, o que o levava aduvidar de sua sinceridade de romancista. Umberto Eco assumiu ento adefesa do escritor apresentando argumentos que poderiam ser opostos quelesque fundam seu raciocnio sobre a construo da realidade das pesquisas dafsica moderna. Eis o que diz o semilogo italiano:

    Ningum iria pretender que um especialista das geome-trias no euclidianas tivesse que recorrer geometriade Riemann para medir o seu quarto, se ele quer cons-truir nele um armrio embutido. (ECO, 1978, p. 56)

    e ele conclui:

  • 15O QUE SIGNIFICA FALAR DE REALIDADE PARA A TELEVISO?

    Quando se trata de interpretar um fato que surge dian-te de ns e que exige de ns uma resposta imediata ou quando se trata de descrev-lo registrando-o com aajuda de uma cmera de televiso as conveneshabituais so ainda as mais adequadas. (ECO, 1978,p. 56)

    Aproximar a realidade que veicula a televiso, que antes de tudo umarealidade reduzida ao visvel e, preciso insistir, uma realidade que remete fsica mecnica, aplicando-lhe um modelo da realidade proveniente do mo-delo quntico um erro epistemolgico maior. Podemos, claro, opor aomodelo jornalstico outras construes da realidade oriundas das cinciaseconmicas ou sociais, mas este modelo que vem do estudo da matria por certo inadaptado. Em segundo lugar, que as hipteses possam ser multi-plicadas para um mesmo fato no consiste em dizer que a realidade so-mente uma construo linguageira, mas que a verdade pelo contrrio ml-tipla. Esta confuso entre realidade e verdade constante. Mas, em certoscasos, ela pode se tornar chocante. Por exemplo, quando Baudrillard afirma,a propsito da primeira guerra com o Iraque, a guerra do Golfo no aconte-ceu. Se olharmos mais de perto, tal assero a consequncia direta daposio de Hartley: ela repousa sobre a constatao de que a televiso nomostrou a Guerra adequadamente e que, por conseguinte, ela no aconte-ceu... Assero mais facilmente proferida desde Saint-Germain-des-Prs quesob a chuva das bombas... A confuso entre o olhar sobre o mundo e omundo ele mesmo evoca aquela que Humberto Eco detectou entre o espa-o do relato romanesco e o espao experimentado na cotidianidade.

    Alm do erro epistemolgico, os defensores deste construtivismo a todocusto, que autonomiza a atividade linguageira do mundo no qual vivemosparecem ser vtimas de um desconhecimento. Eles no parecem estar cons-cientes do fato que reproduzem no interior do campo dos media studies oudos cultural studies uma posio velha como a filosofia, que est ancoradaquase nos pr-socrticos, o realismo, e que esta posio tem desde que afilosofia existe sua anttese o idealismo. Logo, por um lado, aqueles que,depois de Aristteles, fazem do ser uma entidade independente do conheci-mento que se pode ter dele; por outro lado, aqueles que consideram, comoBerkeley, que existe somente o que percebido (esse est percipi). possvel

  • 16 Franois Jost

    opor-se infinitamente defendendo uma tese ou outra, a ponto de consider-las como uma antinomia, ao exemplo destas quatro antinomias da Razopura, que circunscrevem, segundo Kant, o terreno em que os metafsicos seenfrentam em vo nos campos que no dependem do conhecimento (serque o mundo tem um comeo e um fim, ser que somos livres ou determina-dos etc.). Como sabemos, o mesmo Kant dar um fim a este enfrentamento,mostrando que s se passa da possibilidade do objeto sua existncia, dageometria fsica, submetendo o realismo emprico a um idealismotranscendental. Por isso no contraditrio sustentar finalmente que o mundoexiste e que ele s pode se transformar em objeto de saber estando submeti-do aos esquemas do pensamento. Considerar que a realidade no existeporque ela construda pela linguagem s pode levar a um idealismo prxi-mo do solipsismo.

    Para um filsofo das cincias como Karl Popper (Dicionrio Robert Culturel,p. 13), o realismo uma posio metafsica no demonstrvel, no refutvel,mas que necessria para a metodologia, ele regulador. Uma coisa saber o que a realidade, outra fazer uma experincia comum dela. Paravoltar a meu ponto de partida, a saber os medias studies, eu diria que oconstrutivismo puro confunde o que se pode esperar do trabalho conceituale a intuio primeira da realidade, que existe em todo ser humano de espritosadio. E ele esquece, alm disto, que existem outras formas de conceber arealidade do que o ngulo cognitivo: a realidade no somente um objetode conhecimento ou de saber, ela tambm um objeto de nossa apreensodo mundo. Sem cair num esquema psicanaltico, que no de minha com-petncia, eu no poderia esquecer que o sujeito humano est, para Freud,dilacerado entre o princpio de prazer e o princpio de realidade e que, nestettulo, Lacan pde considerar que o aparelho psquico, do qual partem maisou menos todos aqueles que vem no mundo uma construo, estruturadoconforme trs eixos: o real, o imaginrio e o simblico e que, para o psicana-lista o que define o real menos seu conhecimento que sua irrupo nanossa vida: aquilo com que eu me defronto.

    Alm desta falta de fundamento filosfico dos medias studies ou de suaignorncia (o que resulta na mesma coisa), preciso lhes dirigir outra crtica,provavelmente mais severa ainda: a de desconhecer o processo semnticoda referncia. Dizer que, para serem interpretados, certos documentos so

  • 17O QUE SIGNIFICA FALAR DE REALIDADE PARA A TELEVISO?

    remetidos ao mundo real no significa nem que se saiba o que o mundoreal, nem que exista uma nica percepo do mundo real. simplesmente adescrio de um fenmeno sobre o qual concordam tanto os semilogos detradio saussuriana quanto os semioticistas de tradio peirciana. Para estesltimos, entre os quais me situo de bom grado, o signo ou representamenremete a um objeto, real ou imaginrio, sem pr-julgar o que ele : oreferimento no vale por uma equivalncia. Pelo contrrio, visto que equiva-leria a descartar o corte semitico, que funda a prpria atividade dosemioticista. Em termos semiticos, descreverei uma reportagem da formaseguinte: enquanto representamen ele remete a um objeto que o aconteci-mento contado ou descrito e seu interpretante o mundo real (lembro que oprprio interpretante um signo e no o intrprete). Esta operao dereferimento se distingue daquele da fico, cujo interpretante um objetomental. Entre a realidade e a fico, como o mostrou adequadamente Searle,s existe uma diferena de estatuto lgico: os enunciados de realidade fazemreferncia seriamente, ao passo que os enunciados de fico fingem fazerreferncia. Por outro lado, que os enunciados srios remetem ao mundo realno diz nada sobre sua conformidade com o mundo, isto significa somenteque, na ocorrncia, eles tentam ajustar-se ao mundo, a sua direo de ajusta-mento vai do mundo para o discurso. Sem o referimento ao mundo real, asinformaes televisivas no se distinguiriam de um romance ou de uma tele-novela. Ora, identificar as primeiras aos segundos corresponde a um puroconfusionismo intelectual: se assisto s informaes, porque eu acredito,ou porque eu tenho esperana que se fala do mundo real, ou se voc prefe-rir, para evitar este termo, do mundo no qual eu vivo, que no aquele dosonho. Ser que isto significa que me dizem a verdade sobre este mundo?Podem me mentir, travestir os fatos, omitir alguns... no impede que mefalam da nica realidade que eu conhea, aquela na qual estou mergulhadoe que me aproxima, apesar dos conflitos, dos outros homens, simplesmenteporque ela humana.

    2 Como a fico remete ao real

    Tendo respondido vigorosamente queles que assimilam a referncia aomundo real em uma crena na verdade deste mundo, ou numa crena na

  • 18 Franois Jost

    conformidade dos documentos a este mundo, podemos ir mais adiante. E,para equilibrar as crticas, parece-me justo dirigir-me uma. A oposio entremundo real e mundo fictcio deixa pensar como acabamos de v-lo, queexiste uma ruptura radical entre os dois e que o mundo fictcio no fala darealidade. Esta vulgata, alis, comumente admitida nos usos sociais, queseparam nitidamente entre os gneros do real documentrios, reality show e as fices, tanto nos magazines de televiso como nos diversos festivaisou exposies. De fato, as coisas so um pouco mais complicadas, pois arealidade parece intrometer-se na fico de vrias maneiras.

    A primeira se encontra no nvel da globalidade da histria contada. Searlemostrou bem que, em todo romance, mesmo se seu estatuto lgico o situado lado do enunciado de realidade fingido, existem enunciados que fazemrealmente referncia, por exemplo, Paris uma cidade de 3,5 milhes dehabitantes ou as pessoas felizes no tm histria etc. Pode-se ir almdisto: alguns romances, alguns filmes ou certos seriados so fundados sobrehistrias verdadeiras ou se apiam sobre a vida de seu autor (as famosasauto-fices). Ser que se deve considerar ento que eles devem ser colo-cados do lado das asseres srias, que eles fazem referncia de verdade? Equal seria ento sua diferena com os documentos ancorados no mundoreal? A questo se coloca ainda mais para as fices televisivas porque sofilmadas, muitas vezes, em cenrios naturais e que, em alguns casos, elasfazem intervir, como certas telenovelas, pessoas reais e no personagens.Como escrevi muitas vezes, para traar uma fronteira entre a realidade e afico, no se poderia permanecer neste nvel do enunciado, do que repre-sentado ou contado, que, de um ponto de vista semntico no parecediscriminante. Se fico e realidade se opem mesmo quando a histria verdadeira ou que elementos fazem referncia seriamente realidade, por razo do sujeito de enunciao: as fices so desempenhadas por ato-res, por uns Eu-Origem fictcios e no Eu-Origem reais.

    O segundo nvel que permite problematizar a questo da relao da fic-o com a realidade semitica. Ele concerne relao do signo com o seuobjeto, sob a condio de considerar que este no o objeto representado,mas a fonte da imagem, o sujeito de enunciao que a produz e que eudesigno com o nome genrico de filmador. O prprio do cinema de fico reorganizar o mundo para a cmera, construir proflmico, como diziam os

  • 19O QUE SIGNIFICA FALAR DE REALIDADE PARA A TELEVISO?

    filmlogos, isto uma organizao do espao construdo. Ao passo que seconsidera que o documentarista s capta um mundo aflmico, isto ummundo que existe ou que existiria sem a cmera e sem que ele seja filmado.Neste sentido, pode-se sustentar que o cinema de fico essencialmenteicnico, contrariamente fotografia de reportagem, por exemplo, que valepela marca do mundo que ela capta. Esta concepo da fico como cone,ou seja, para Peirce, como signo de essncia, explica que a estticahollywoodiana clssica pousa um olhar desencarnado sobre o mundo, noqual a presena do cameraman totalmente ocultada. Como se sabe, deLars van Trier e o Dogma 95 s recentes produes hollywoodianas comoCloverfield ou Recorded, passando pelos filmes feitos por telefones celula-res, a esttica mudou. O que importa hoje , pelo contrrio, fazer sentir aoespectador que a imagem foi captada por um corpo, por um ser humanoengajado na realidade que ele filma e que, longe de ocultar-se, mostra suasubjetividade, seu ponto de vista, sua viso. Por causa disso, a realidade seintroduz no documento, no pelo estatuto lgico da histria contada, mas,uma vez mais, por seu eu-origem. No entanto, assim como a referncia realidade das informaes no se identifica com a verdade, esta marca doreal pode ser falsa ou mais exatamente fingida. Pouco importa: de novo ali, arealidade um interpretante das imagens. Hoje, esta maneira de filmar setornou um tipo de passagem obrigatria da credibilidade das fices ameri-canas e de todas as suas imitaes.

    Para responder crtica que me dirigi, precisarei logo o que precisoentender como a oposio entre o mundo real e o mundo fictcio. O que osdiferencia , em primeiro lugar, evidentemente, a diferena de estatuto doreferente, existencial no caso do mundo real, essncia no caso do mundofictcio. Em seguida, o estatuto do sujeito da enunciao. Enfim, a oposioentre o verdadeiro e o verossmil, que obedece a uma coerncia interna queo mundo no est obrigado a ter. Se eu colocar como fronteira o sujeito daenunciao e no o objeto da representao ou o enunciado, poderei evi-dentemente diferenciar as fices pelas diferentes atitudes que seu funciona-mento global e sua intriga denotam.

    Quanto ao mundo ldico, seria danoso fazer dele um mundo completa-mente separado do mundo real. O que nos diverte na cmera escondida que ela mescla o mundo preparado da fico, o proflmico, e o aflmico.

  • 20 Franois Jost

    Qualquer gag deste gnero repousa sobre o fato de que o espectador v apreparao de uma armadilha e que aquele que vai ser exposto toma asituao como um momento de sua realidade. O exemplo que tenho emmente vem da Litunia, onde escrevia esta conferncia: uma dentista fazuma mancha na blusa, a retira para se trocar e revela ali os seus seios aopaciente que, deitado na poltrona sob o motor, no acredita no que estvendo. Uma evidentemente uma atriz, o outro no; e deste quiproquque rimos.

    Do mundo da realidade ao mundo fictcio passando pelo mundo ldico, arealidade um tipo de horizonte sempre presente, mas o seu estatuto muda:de referente ou de objeto necessrio interpretao, ela desliza do estatutode modelo ou de ndice, no caso da fico, para aquele de ingrediente neces-srio, no caso do jogo.

    3 As promessas de realidade dos gneros

    Estas ltimas observaes so evidentemente muito sucintas, e elas me-receriam verdadeiros desenvolvimentos. Mas, como eu sei que este prprioColquio visa mais o primeiro mundo que descrevi, o mundo real, mesmose no devesse reduzir a ele a sua problemtica, tentarei nesta ltima parte,na sequncia do que acabo de dizer, descrever as diferentes promessas quepode fazer um programa que visa a realidade como, digamos, alvo principal.Nos limites desta exposio, s me interessarei pelas formas de relato querecorrem ao mesmo tempo s imagens e s palavras, deixando de lado aquelasque utilizam apenas as palavras (como as testemunhas de alguns talk-shows).

    Para compreender adequadamente o que vai se seguir, preciso manterem mente a diferena entre promessa ontolgica e promessa pragmtica.Para certos gneros, remeter realidade uma promessa constitutiva, nestesentido que uma expectativa ligada ao gnero intrinsecamente: se eu assis-to o telejornal, salvo gosto especificamente kitsch, para informar-me so-bre o mundo em que vivo. No , pelo contrrio, forosamente, o prprio deuma fico: uma fico, embora sempre pea emprestado elementos reali-dade, que ela parasita, como diz Eco, pode inventar um mundo diegticosem relao imediata com o nosso ( o caso da fico cientfica). Mas oscanais podem muito bem apresentar como documentrios programas que

  • 21O QUE SIGNIFICA FALAR DE REALIDADE PARA A TELEVISO?

    em realidade so fices ( o caso do docu-fico): esta atribuio de umrtulo a um programa dado, seja por intervenes dos produtores na im-prensa, seja por trailers, o que eu chamo de uma promessa pragmtica. Oato de nomeao tenta, neste caso, pesar sobre o uso de um programa pelostelespectadores. Cada uma destas promessas fundada sobre uma relaodo documento mais ou menos prximo ou mais ou menos fiel realidade, oque se define ao mesmo tempo pela construo de um enunciador e poruma figura antropomrfica que lhe associada. Eu entendo por enunciadoraqui, no o locutor, aquele que responsvel pela enunciao, mas aquelecujo ponto de vista adotado.1

    A primeira promessa a restituio. Ela se apia essencialmente sobrea natureza do dispositivo tcnico e, em primeiro lugar, ao vivo, que seriaontologicamente ligado realidade por razes semiticas: porque ele guardauma marca do real. O enunciador construdo , neste caso, a prpria realida-de. Neles se exprime mais perfeitamente o famoso topos da imagem quefala por si, que no precisa de comentrios, topos veculado muito alm domeio jornalstico. Pensemos nas cmeras de vigilncia, que servem de provapara se deter um ladro num supermercado, ou a arbitragem eletrnica, quetem fora de lei atualmente em certas competices. Em realidade, a suafora repousa sobre dois argumentos implcitos: a anulao da subjetividadehumana, substituda pela objetividade da... objetiva, e portanto, no final dascontas, a anulao do olhar. No o menor dos paradoxos que esta anula-o do olhar passe exatamente por aquilo que os anglo-saxes chamamwatching cameras. Para vigiar sem olhar, preciso evidentemente fazer es-quecer a fonte humana e fazer de tal maneira que as cmeras sejamdissociadas do olho. o caso, evidentemente, das cmeras automticas. Se atelerealidade pde convencer o pblico, pelo menos durante um momento,que ela era mais real que qualquer gnero antes dela, porque ela dava aver ao telespectador estas cmeras multidirecionais nos apartamentos de BigBrother, sem nunca sugerir o ser humano que as dirigia ou que olhava suasimagens, o que nenhum telejornal pode fazer, evidentemente, visto que eleno pode delimitar previamente o terreno dos acontecimentos. Alm disto, o

    1 Este sentido o de Oswald Ducrot: os enunciadores so [...] estes seres que supostamente se exprimematravs da enunciao, sem que para tanto lhes sejam atribudas palavras precisas (como quando seadota um ponto de vista que no o seu). (DUCROT, 1984, p. 204)

  • 22 Franois Jost

    dispositivo sustentado pela reiterada garantia de que os participantes doprograma esquecem a cmera.

    A verso jornalstica desta realidade dissociada do olho a cmera escon-dida, que comea a florescer nos programas de informao. Escondida numabolsa, a cmera filma imagens ligadas ao corpo do jornalista que explora omundo, mas ele no as v. Esta anulao do olhar aparece, no meio profissi-onal, como o mximo da objetividade, visto que a cmera toma, sozinha, asimagens e que as pessoas filmadas no sabem que so filmadas. O que valeesta promessa de realidade? Ou, para dizer as coisas de outra forma, o que arealidade se torna neste caso? Uma simples aparncia. Um fenmeno. Umareduo ao visvel.

    Seria apressado acreditar que a promessa de restituio s concerne osgneros que so relacionados por comodidade televiso do real. A cmerainvisvel, cmera escondida ou candid eye (um olho sem subjetividade), h dcadas o divertimento televisivo por excelncia antes de se tornar odivertimento do usurio dos avies. Ali de novo, o xito da promessa repou-sa sobre a crena do telespectador de que as imagens no sofreram nenhumtratamento a posteriori. Mas, pelo vis da promessa pragmtica, a restituiopode ainda estender seu territrio. Darei um nico exemplo. O telefilme fran-cs (mas co-produzido com o canal Discovery) LOdysse de lespce, apre-sentado ao pblico como um docu-fico. Este programa retrata, encenan-do atores habilmente maquiados e graas a numerosos efeitos especiais, ahistria da evoluo que leva ao homo sapiens. Embora o termo de ficofigure sobre o rtulo genrico, os produtores no hesitam em responderqueles que perguntam se os seus filhos podem utilizar este filme como fontede saber: tudo rotulado verdadeiro. Portanto, no se pede ao telespectadorpara acreditar, mas para aprender.

    Ora, trata-se de uma realidade preparada, representada, com resumosimaginados por um roteiro que o prprio Coppens confessa s vezes terriscado por grandes traos vermelhos. Mas, sobretudo, trata-se de um relatorepresentado por atores, por Eu-Origem fictcios. Eis o nico Rubicointransponvel pelos gneros do real: desde que eles recorrem a atores, qual-quer que seja a exatido dos fatos relatados, eles caem na fico. Na mesmalinha, os produtores foram depois at apresentar docu-realidade: um delesmostrava jovens fechados dentro de um pensionato, vivendo aparentemente

  • 23O QUE SIGNIFICA FALAR DE REALIDADE PARA A TELEVISO?

    como alunos dos anos 50, o que atestavam faixas de atualidade entrecortandoesta pseudo realidade (Le Pensionnat de Chavagnes, na M6).

    Muito mais geralmente ainda, muitos filmes histricos, docu-dramas oufilmes cuja publicidade afirma que eles so extrados de histrias verdadeirasse apresentam como restituies, quando no passam de reconstrues. Vol-tarei a isto.

    O segundo tipo de promessa o testemunho. Em vez de pretender objetividade da indicialidade pura, em vez de dar destaque capacidade dacmera a embalsamar o mundo, como o dizia Bazin, o jornalista aparececomo tal e se apresenta como uma testemunha ocular, testemunha cuja for-a argumentativa se concentra nesta mera frase: Estava ali. Na falta deimagens, na falta de ter podido captar o acontecimento no momento em queele se dava, o jornalista recorre confiana que se credita quele que viu. Nocaso da restituio, a verdade concedida reportagem estava ligada suanatureza semitica: a imagem eletrnica sendo uma impresso, um indcio,ela tinha um lao existencial com a realidade de onde ela tirava sua fora.Donde uma promessa de autenticidade. Agora, o signo no remete mais aum objeto que seria o mundo, o enunciador um sujeito humano, que estligado ao mundo pelo olhar. O testemunho repousa realmente ainda sobreum lao existencial, mas desta vez, ele no mais maqunico, mas antropide:a realidade no mais fundada sobre o visvel, mas sobre a sinceridade esobre a interioridade de uma memria que registrou os fatos.

    3 caso de figura: a reconstituio. Existem vrios tipos, cujas diferen-as repousam, por um lado, sobre o objeto s quais elas remetem o seu graude abstrao, e, para ser completo, do seu lugar entre o sensvel e o intelig-vel.

    preciso notar, em primeiro lugar, que enquanto tal, a reconstituio uma maneira de mimicar a realidade que no nasceu com a televiso, mascom a polcia. Para elucidar um crime, para compreender como ele foi co-metido, faz-se apresentar outra vez ao presumido culpado, os seus gestos nacena do crime, esperando que brote a verdade, como um tipo de lpso, ouque, pelo contrrio, contradies aparecero entre as confisses e a realida-de. mais ou menos com a mesma finalidade que aparecem nos realityshows, no comeo dos anos 90, os psicodramas. Em LAmour en danger(1991-1993), por exemplo, pede-se a um casal em crise para representar a

  • 24 Franois Jost

    sua prpria vida para as cmeras. Desta vez, o annimo filmado, instadoa representar em estdio cenas da sua intimidade. Expostos por este disposi-tivo, estas pessoas comuns se prestam de bom grado ao exerccio. Cada umfaz de conta que est vontade e finge esquecer que ele est sob o fogo daobjetiva. o reino do que chamo de fingimento.2 O casal finge reviver cenasda sua intimidade, faz como se no houvesse cmera. A pedido da psicana-lista, ele representa de novo, por exemplo, num espao reservado do est-dio, uma briga recorrente (Onde que voc colocou a pasta de dentes?).Estes psicodramas, submetidos ao olho aguado desta, apesar da sua apa-rente simulao, repousam sobre a ideia de que, representando de novo acena quotidiana, o casal vai nos revelar uma parte da verdade. Aqui, no mais a realidade na sua aparncia sensvel que visada pelo exerccio, mas arealidade dos comportamentos, que podem aparecer da mesma forma, pelomenos segundo os produtores, tanto num estdio quanto num banheiro.Simplesmente porque reconstituindo os comportamentos, d-se a ver a almae uma realidade psquica, que o enunciador suposto da cena. Evidente-mente, como todas as feintises, como todas as aes que se apresentamcomo verdadeiras, estas reconstituies so eminentemente constestveis.So somente promessas, preciso lembrar.

    A reconstituio pertence ao universo das provas jornalsticas. Na medidaem que o jornalista chega sempre aps os fatos, os telejornais ou os progra-mas recorrem frequentemente a isto. O que este modo de abordagem doreal visa a reconstruo de uma causalidade. No se trata mais de mostrar,como na restituio, mas de explicar o encadeamento dos fatos. Para conse-guir isto, o jornalista pode proceder de duas formas, que so correlatas comdois pontos de vista diferentes sobre a realidade reconstruda.

    a primeira tenta reconstituir o encadeamento dos fatos, recorrendo aarquivo, e ligando-os por uma voz over que cimenta os fragmentos, queintroduz uma lgica ali onde a montagem poderia ser uma simples sucessode momentos. a forma de proceder de alguns documentrios sobre umperodo da histria ou sobre uma das suas grandes figuras. Do lado dotelejornal, essa reconstruo da causalidade se faz muitas vezes com a ajuda

    2 Ver especificamente La Tlvision du quotidien e Seis lies sobre a televiso.

  • 25O QUE SIGNIFICA FALAR DE REALIDADE PARA A TELEVISO?

    de imagens de sntese, que mostram como o acontecimento, muitas vezesum acidente, se produziu. evidente que, nos dois casos, este olhar retros-pectivo supe um saber e mesmo, muitas vezes, uma oniscincia. O jornalis-ta se constri como um historiador que tem certezas. No primeiro caso, osarquivos desempenham o papel de prova das palavras proferidas pela voz;no segundo, a visualizao dos acontecimentos por imagens de sntese su-pe que se tenha retido uma hiptese sobre a causalidade dos fatos emdetrimento de todas as outras. Como mostrar a morte de Diana no tnel daponte de Alma sem decidir, por exemplo, se o acidente devido s motosdos paparazzi que a perseguiam ou embriaguez do seu motorista?3 Estemodo de reconstituio coloca ao mesmo tempo o acontecimento comoacabado e lana sobre ele um olhar em focalizao espectatorial, isto umolhar pelo qual ns sabemos mais que os prprios atores do acontecimentoou do drama.

    a esta maneira de fazer ope-se outra, que consiste, pelo contrrio, areconstruir o olhar de um dos atores da realidade e, portanto, a nos mostraratravs de sua vivncia. o caso, por exemplo, relativamente recorrente, dequando acontece uma agresso ou um estupro num trem de subrbio e que,para nos fazer sentir a situao, o jornalista percorre o vago com a cmerano ombro, como se ele fosse o prprio agressor. Esta reconstituio emocularizao interna primria, que passa pela construo de um persona-gem, recai na fico pelo nico fato de que a imagem no traduz a viso deum jornalista na realidade, mas a de uma instncia com a qual, por definio,eu no posso e eu no quero partilhar o olhar. Portanto, para mim umlimite a no transpor: logo que haja a construo de um olhar outro que noaquele do jornalista, se cai, como eu disse, na fico.

    Estas trs abordagens da realidade restituio, testemunho, reconstituio so, eu sublinho, apenas promessas e cabe ao semilogo, ou ao analista dateleviso, confrontar o programa a este ato promissivo. Sem aprofundar esteprocedimento que desenvolvi em outro lugar, limitar-me-ei a duas observa-es para sugerir em que sentido ela deve continuar.

    3 Este exemplo ilustrativo , em realidade, anacrnico pois a AFP introduiziu as imagens de sntese apseste acontecimento.

  • 26 Franois Jost

    Primeiro, sobre a restituio. Mais do que lanar em discursos a priori oque a realidade na era da fsica quntica, bem melhor julgar a promessacom o critrio da realidade da filmagem e do produto acabado. Deste pontode vista, no se pode colocar no mesmo saco as imagens tomadas por umacmera de vigilncia ou uma cmera escondida e uma filmagem de cena devida de casal para Confessions intimes. Pois inegvel que, se as primeirasso um ponto de vista sobre a realidade, escolhido e restrito, elas no dei-xam por isto de ser a impresso do visvel, enquanto as segundas, nestemesmo instante, ficam submetidas a um pseudo princpio de Heisenberg,visto que, querendo captar a realidade, ns a modificamos. Logo, a promes-sa de restituio no se sustenta e melhor falar de feintise flmica.

    Depois a reconstituio. No se pode tampouco tratar em p de igualda-de a pretenso de um jornalista a reconstruir a causalidade, maneira dohistoriador, e o fato de reconstitui-la construindo um olhar, ou pior, pedindoa um ator para representar um acontecimento aparentemente extrado doreal, como o faz Casos reais. O que que vemos neste programa transmitidos 10h30 da manh? Pequenos clipes mostrando pessoas que sentem dor decabea, de barriga ou que so nervosos sem explicaes: so simulaesbaseadas em fatos reais, como o indica uma meno escrita. E, no entanto,o telespectador incorreria em erro se no levasse a srio estas histrias repre-sentadas por atores que tomam a aparncia da realidade: eles so a prova,para os produtores do programa, de que estas pessoas so possudas pelodemnio. E o telespectador que se encontra em situaes semelhantes, isto, mais ou menos todo mundo (quem que nunca sente dor de cabea, debarriga, ou ento nunca fica nervoso?), convidado a libertar-se destes ma-les telefonando Igreja do Reino de Deus. Ainda mais que pessoas vmtestemunhar que elas foram salvas por Jesus. Se LOdysse de lespce apre-sentava o que da ordem do conhecimento no modo da fico, Casos reaisfaz como se as cenas representadas por atores fossem a verdade. No setrata mais de imitao ficcional, mas realmente, ali ainda, de feintise, que fazpassar reconstituies como sendo a realidade. Se Kant (1986, p. 24) podiaafirmar Tive que abolir o saber, para obter um lugar para a crena, estesprogramas fazem exatamente o contrrio: eles vertem o que do campo dacrena (ou do seu avesso, a suspenso da descrena) no campo do conhe-cimento.

  • 27O QUE SIGNIFICA FALAR DE REALIDADE PARA A TELEVISO?

    Volto ltima promessa quanto realidade: a inveno. Ela desapare-ceu da televiso de hoje. Uma excelente ilustrao -me fornecida por Paule,programa dos anos 70, pertencendo a um conjunto de seis programasintitulados La saga des Franais, provavelmente por ironia em relao a LaSaga des Forsythe que acabava de ser projetada de novo. O narrador contauma histria medida em que a conhece, ou pelo menos, ele faz de conta.4

    Eis o texto pelo qual ele comea:

    Ele escreve, ele jornalista ou talvez romancista. Eleprepara um trabalho sobre o hospital, uma srie deartigos; a menos que se trate de um romance. Ele esco-lheu Beauvais, talvez porque ele foi pensionrio no li-ceu ou porque um amigo, em conseqncia de um aci-dente de trnsito, foi hospitalizado ou por aquilo que onome da cidade evoca de certa vida de provncia. Ou,talvez, por todos estes motivos ao mesmo tempo. Elesaber por ela, alguns dias mais tarde, que ela religi-osa. Ser que por isto, pelas poucas palavras trocadas,que ele volta cada dia no servio? Ele olha Paula viver.Ele a inventa. Sua abordagem do hospital passa porela.5

    Em vez de restituir um percurso retilneo, o comentrio confessa a suaincerteza tanto sobre o mediador quanto sobre o seu mtodo, isto ,etimologicamente a sua caminhada, como testemunha a proliferao dosmodalizadores talvez, a menos e das hipteses ou... ou, o acaso dosencontros. Trata-se de uma pedagogia da suspeita, que, deliberadamente,d nfase caminhada, ao processo da investigao mais que ao seu resulta-do. Fazemos a aprendizagem do que falar do real quer dizer. Em vez deapresentar a montagem que a narrao como um processo de investigaoacabado, a investigao apresentada sob o aspecto do que est sendo

    4 Srie de seis programas propostos por Michel del Castillo. Paule, dir. Claude Ventura, colaborao:Antoine Dulaure, projeo segunda-feira 27 de junho de 1977 s 21h55 (aps la Tte et les jambes).

    5 Na sequncia da anlise, remete-se ou s imagens captadas durante o programa ou sua indexaotemporal.

  • 28 Franois Jost

    feito. Ela toma como objeto tanto a enunciao como o seu tema. As interro-gaes incidem em prioridade sobre os implcitos de qualquer mediao ver-bal entre eu-origem reais6 :

    a natureza do questionamento jornalstico (ele lhe faz perguntasde jornalista);

    a relao entrevistador/entrevistado (a maneira que ela tem deresponder o impede de lhe fazer outras perguntas mais pessoais sobrea escolha que ela faz da sua prpria vida);

    o contexto da filmagem (data pelos interttulos indicando os diasem que foram coletadas as imagens e descrito pela voz);

    a anlise dos dados (ele escuta o gravador), com suas dificuldadesinerentes de interpretao (uma Paule que no correspondeforosamente imagem que ele tem dela);

    o papel do tempo na compreenso do real (ele volta a pensar noque Paule lhe disse no caf...);

    a funo social do jornalista (como sempre nesta etapa do seutrabalho, ele experimenta este sentimento de liberdade um poucointil).

    No final, a enfermeira que lhe pergunta: Que realidade voc recons-truiu atravs das suas fantasias? ou Nas perguntas que voc me fez, eupude decodificar certas representaes sobre o hospital ou a religiosa [...].

    Compreende-se: embora ele fale inegavelmente de uma enfermeira eque ele nos ensine muito sobre o hospital, este documento poderia se cha-mar tambm a saga dos investigadores. O real visto como uma realidadesubjetiva, inventada a partir dos pedaos entrepercebidas do hospital. umtestemunho de lucidez sobre o que se pode esperar da restituio do real,que s pode ser uma representao, em todos os sentidos do termo, e sobrea postura cognitiva que escolhe o mediador: neste sentido, ele pensa o realmais do que o mostra.

    6 Deixo de lado outras interrogaes, apaixonantes, sobre a enunciao deste documento.

  • 29O QUE SIGNIFICA FALAR DE REALIDADE PARA A TELEVISO?

    No entanto, ali tambm, seria necessrio avaliar o que resta desta pro-messa no programa. Por mais que o narrador diga que ele inventa: ele estrealmente frente a uma realidade, da qual ele tem dificuldade a prestar con-ta, mas ele no cria nem os personagens nem o cenrio, nem mesmo omundo no qual estes evoluem. Em suma, ele muito menos ficcional do queele pensa.

    No final deste percurso, vemos talvez um pouco mais claro as mltiplasmaneiras como a televiso concebe a realidade.

    Em primeiro lugar, preciso afastar a ideia de que as promessas sobre arealidade so ontologicamente ligadas natureza dos mundos que servemcomo interpretantes para os gneros. Elas podem da mesma forma tocar omundo da fico. Certas fices pretendem restituir o mundo; certas repor-tagens preferem imaginar que inventam o real (Paule). Mesmo assim a oposi-o realidade-fico o primeiro interpretante dos documentos audiovisuais.De um lado, como no outro, faz-se referncia a dois tipos de mundo, que ahistria da filosofia nos ensinou a distinguir, o mundo sensvel e o mundointeligvel. Estes dois eixos nos permitem descrever a realidade visada pelaspromessas genricas no mapping da pgina seguinte:

    Eu no vou coment-lo com detalhes, visto que ele s faz esquematizar,no final das contas, tudo o que acabo de dizer. Limitar-me-ei a estas poucasglosas complementares.

    A restituio se ope reconstituio na medida em que ela visa emprimeiro lugar o sensvel, ao passo que a reconstituio supe umaconstruo inteligvel mais ou menos forte, mesmo quando elaemprega os meios do ponto de vista interno, da ocularizao internaprimria;

    O psicodrama se apresenta como uma reconstituio que se colocamais para o inteligvel que para o sensvel na medida em que arealidade visada invisvel: ela psicolgica;

    O testemunho, embora esteja fundado essencialmente sobre umarelao ocular com a realidade (sensvel), vai para o inteligvel namedida em que ele utiliza o relato, que, como o precisa Ricur, sempre uma explicao;

  • 30 Franois Jost

    As fices mereceriam um desenvolvimento especfico. Todas supema construo de um mundo mental, que, portanto, se situa do ladodo inteligvel. Mas certas fices fazem uma mmica do mundo, doseu cenrio, de suas pessoas, outras se situam deliberadamente nainveno de um mundo afastado do nosso.

    O pior dos erros epistemolgicos, tratando-se da realidade, de quererimpor a sua definio a priori e ir buscar no programa o que se tinha coloca-do ali. Para saber como a televiso trata a realidade, no h outro caminhoque a anlise dos programas, que nos dizem em que viso da realidade elesso fundados. Neste ponto, a semiologia vai ao encontro da dupla finalidadeque Barthes atribua ao estudo das mitologias: uma crtica ideolgica so-bre a linguagem da cultura dita de massa e a desmontagem semiolgicadesta linguagem.

    Referncias

    DUCROT, Oswald. Esquisse dune thorie polyphonique de lnonciation.In: ______. Le Dire et le dit. Paris: Minuit, 1984.

    ECO, Umberto. Sans titre. Obliques Robbe-Grillet, 1978. Direct. F. Jost.

    HARTLEY, John. Reading the news. In: ______. Understanding news.London: Methuen, 1982.

    JOST, Franois. Seis lies sobre a televiso. Porto Alegre: Sulina, 2004.

    ______. La tlvision du quotidien: entre ralit et fiction. Bruxelles: DeBoeck; Paris: INA, 2001.

    KANT, Immanuel. Critique de la Raison pure. Paris: PUF, 1986. (ColeoQuadrige). Prface la seconde dition.

    REY, Alain (Dir.). Dictionnaire culturel en langue franaise Paris: Le Robert,2007.

    SEARLE, John R. Sens et expression. Paris: Minuit, 1982.

  • 31UM FALSO NA TELEVISO? DA MENTIRA FRAUDE: o exemplo do documentrio Opration Lune

    UM FALSO NA TELEVISO?

    DA MENTIRA FRAUDE:

    o exemplo do documentrio Opration Lune.1

    Marie-France Chambat-Houillon

    Articular a televiso com a realidade para fazer deles um par de noesfundamentais para compreender o que est em jogo no campo miditico seimpe de forma evidente como se o nico desgnio da televiso fosse natu-ralmente o de apresentar o real. Mas o carter essencialmente evidente destarelao, que parece, a ponto de poder nos enganar, com uma exignciaquase ontolgica para a mdia, no andino, pois ele engaja concepes apriori ao mesmo tempo do real e da televiso. Porque este par antes ideo-lgico, convm desnaturaliz-lo, pois nada mais artificialmente construdodo que estas ligaes que se apresentam como sendo evidentes. No estariaaqui o que est em jogo na modernidade dos mitos atuais da forma como R.Barthes os encarava quando ele experimentava o mais das vezes um senti-mento de impacincia diante do natural com o qual a imprensa, a arte, osenso comum revestem sem cessar uma realidade []?. 2

    1 Este artigo uma verso ampliada e modificada de minha interveno no Colquio InternacionalTeleviso e Realidade, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil, outubro de 2008.

    2 Mythologies e Le mythe aujourdhui. Barthes (1993).

  • 32 Marie-France Chambat-Houillon

    1 Televiso e realidade

    Portanto, quais so as concepes a priori da televiso e da realidadeassim engajados por esta articulao terica? O campo do real na televisofoi explorado, entre outros, por F. Jost, que nos mostra, em La tlvision auquotidien, como em parte esta realidade se subsume sob a categoria dovisvel. A realidade televisiva o que deve poder ser visto pelos telespectadores.Seguindo esta trilha, S. Breton (2005, p. 18) observa que para otelespectador, o visvel anterior ao olhar.

    Quanto televiso, ela essencialmente avaliada, depois explicada sob oque eu batizei em outro lugar o paradigma miditico3 que consiste emconsider-la somente sob o ngulo de uma mdia, no sentido literal de inter-medirio. A televiso concebida como mdia s tem como desgnio relatar deforma fiel e autntica o real circunvizinho. De tal forma que o paradigmamiditico valoriza uma concepo da televiso como uma janela abertapara o mundo para retomar a expresso de Bazin dirigida ao cinema, queno pretende ento produzir outras significaes que aquelas j existentes narealidade.

    De fato, sob este paradigma miditico, a televiso deve ater-se, antes detudo, a prestar conta do real sob regimes enunciativos diferentes como infor-mar, debater, polemizar etc. por isso que se constri uma topologia axiolgicados programas considerados mais especificamente televisivos que outros,em primeiro lugar os magazines de informaes e de sociedade, em detri-mento de outros programas, como o entretenimento ou a fico, visto queestes no so representativos e s aderem a priori de forma distante ao pro-jeto miditico da televiso. Desde logo, a televiso se compreende como umregime de mediao e no de representao, em que o terceiro simblico seausenta, se dissipa.

    Se o cerceamento das funes televisivas por este paradigma miditico emblemtico desta ligao particular entre televiso e realidade, no entanto,ele deixa na sombra todo o resto da programao televisiva cuja intenoexplcita fundamental no de relatar o real, mas de divertir ou de contaruma histria. por isso que eu contesto o uso abusivo e exclusivo da expli-

    3 Conferncia Comment penser le comique partir des archives tlvisuelles?, jul. 2008, Pessac,Congresso Afeccav. A ser publicado.

  • 33UM FALSO NA TELEVISO? DA MENTIRA FRAUDE: o exemplo do documentrio Opration Lune

    cao miditica para compreender a televiso, pois ela reduz a compreensoda complexidade enunciativa dos programas a um nico critrio: suas quali-dades referenciais anunciadas. Ora, a fico tambm interroga com sua for-ma prpria a realidade. De maneira geral, no se deveria limitar a anlise daarticulao realidade/televiso aos nicos gneros abertamente referenciaiscujo emblema o jornal televisivo. Os laos entre realidade e televiso somuito mais mltiplos e diversos que o que deixa pensar a predominncia doparadigma miditico nos estudos sobre a televiso. Com as precaues devi-das situao que acabo de desenhar, portanto, vou me interessar peloprograma de William Karel apresentado como um documentrio OprationLune, projetado na quarta-feira 16 de outubro de 2002 no canal culturalfranco-alemo ARTE, cujo interesse consiste em tomar s avessas esta re-lao referencial preferencial.

    2 Um falso na televiso

    Este documentrio realiza uma investigao sobre a autenticidade otermo aquele que aparece no release do canal das imagens projetadas,pela NASA, ao resto do mundo, dos astronautas americanos dando seusprimeiros passos sobre a lua no dia 20 de julho de 1969. Ele levanta certonmero de questes explcitas, especificamente sobre os papeis do cineastaS. Kubrick e do sistema hollywoodiano na fabricao destas imagens doacontecimento lunar. Considerado como um verdadeiro-falso documentriopelo release inicial de 2002, logo somente como um falso documentrio(especialmente quando de sua nova projeo no dia 1 de abril de 2004, diada mentira na Frana), vou tentar esboar algumas pistas para compreendercomo o critrio do falso mobilizado num gnero audiovisual, odocumentrio, cuja primeira meta tida como dar conta do real. De fato, oobjetivo inicial perseguido por Karel de investigar a falsidade das ima-gens de Amstrong sobre a lua. O telespectador estaria lidando ento com umfalso documentrio porque ele fala seriamente veremos isto mais adiante de falsas imagens? um erro acreditar que uma enunciao, mesmoaudiovisual, possa ser falsa por motivo da natureza de seus enunciados.Qual a parte do falso em Opration Lune? Como que a relao com arealidade constitutiva do gnero documentrio mobilizada paradoxalmentena elaborao de um falso programa?

  • 34 Marie-France Chambat-Houillon

    Para comear, como definir o que falso? Um simples dicionrio usualnos mostra o caminho. falso o que no conforme com a verdade, com arealidade4. Esta definio trivial contribui para pensar dois antnimos aotermo falso: a verdade de um lado, a realidade do outro. Ora, realidade everdade no me parecem ser da mesma natureza, mesmo se repetidas vezesna televiso, e especificamente nas informaes, uma se confunde com aoutra, verdade e realidade se superpondo. Por outra parte, outro matiz aacrescentar, o falso, nos lembra Jeandillou (1994), pela etimologia, sugereuma ideia de mentira, de engodo, at de fraude, implicando por isso mesmouma inteno particular produo de um discurso falso. Assim, precisose dar ao trabalho de distinguir um falso discurso por ignorncia ou por faltade competncia do emissor, de um falso intencional resultado de uma menti-ra ou de uma contrafao. Como que na televiso a noo de falso partici-pa de um circuito indo da realidade verdade?

    3 O real construdo pragmaticamente

    Opration Lune um documentrio interessante na medida em que suafeitura relativamente clssica. Ele construdo usualmente a partir de umprocedimento cuja natureza a do inqurito, convocando habilmente, ao mesmotempo, imagens de arquivos, ilustraes e testemunhos verbais. O que entoanunciado como um falso documentrio se aparenta com um verdadeiro, va-lorizando um dispositivo de coleta das informaes relativamente comum. Aenunciao documentria aparece crvel tanto formalmente comotematicamente: o fato de que os astronautas tenham andado sobre a lua per-tence histria da humanidade e no tem o aspecto excntrico de um encon-tro do terceiro grau tpico maneira do documentrio sobre a autpsia filmadade um extraterrestre em Rosswell em 1947. Num primeiro tempo, os proces-sos documentrios empregados no entretm nenhuma ambiguidade semn-tica: eles permitem criar as condies de uma relao de crena no real daparte dos telespectadores. Respeitando as leis do gnero, os telespectadores,confiantes, aderem pelo menos no comeo, ao fato de que o que est em jogono documentrio falar de uma realidade considerada verdadeira.

    4 Dicionrio Hachette.

  • 35UM FALSO NA TELEVISO? DA MENTIRA FRAUDE: o exemplo do documentrio Opration Lune

    Alis, esta disposio espectatorial reforada pela programao emprimeira parte da noite deste filme pelo canal ARTE canal com umaimagem sria no mbito da coleo as quartas-feiras da histria. Nestehorrio so projetados regularmente documentrios que se voltam histori-camente sobre fatos majoritariamente contemporneos e, de certa forma,ele consagrado ao conhecimento da verdade histrica. Por costume, otelespectador modela sua relao com as imagens televisivas mobilizandoseu regime referencial; ele est na expectativa de que o canal lhe fale defatos reais atestados e passados e no de um relato fictcio inventado, nemum divertimento fantasista. Este o horizonte de expectativa elaboradopela programao deste canal neste momento de sua grade de programa-o. Este documentrio se beneficia de um horizonte de expectativa funda-do conjuntamente sobre a identidade do difusor, ARTE, e da sua polticade programao.

    Estas condies genricas e pragmticas constituem um contexto favor-vel para que o telespectador seja propenso a admitir a tese defendida porKarel no seu filme: a falsidade presumida das imagens lunares. O projetoinicial do documentrio de investigar o estatuto vericondicional destas ima-gens provenientes da realidade e numerosos so os telespectadores que, nomomento de assistir, chegam a duvidar da verdade das imagens da faanhalunar, inclusive os profissionais que tinham sido avisados desde o incio.5

    Uma das sutilezas de Opration Lune que o documentrio no invalidadiretamente o fato atestado de que homens tenham andado sobre a lua,evitando alimentar por isso mesmo, intencionalmente, as teorias do complque surgiram desde 1969 e que defendiam que os americanos nunca tinhamaterrissado no satlite terrestre. A fora e a distino do documentrio soexatamente de no soobrar pelo lado desagradvel do revisionismo hist-rico6, visto que relembramos que William Karel nunca perseguiu a meta de

    5 Numa entrevista, Karel conta que ele pensava que depois de 15 minutos os profissionais do canal,avisados de seu projeto, teriam compreendido a fraude, e no comeariam a duvidar como um telespectadordesavisado. Ora, foi somente perto do final do filme que alguns entenderam o estatuto do documentrioque eles estavam assistindo. (OPRATION... 2002)

    6 Este termo precisamente utilizado pelo autor no release. Seu uso trivial e no deve ser compreendidoaqui conforme o sentido cientfico construdo pela disciplina histria e sua evoluo no sculo XX.

  • 36 Marie-France Chambat-Houillon

    negar a presena de astronautas americanos no solo lunar.7 No documentrio,o comentrio nunca duvida da verdade destes atos, e para antecipar quais-quer observaes a respeito disto, o diretor clama em alto e bom som esteaspecto moral do seu trabalho no release. Ento, por que o documentrio julgado como um falso visto que a inteno do seu autor no de duvidar darealidade da faanha americana, nem mesmo da verdade histrica? Umaprimeira pista se encontra certamente na natureza daquilo que se constricomo o objeto real do discurso documentrio.

    4 O real entre fico e documentrio

    Usualmente, o documentrio se ope fico em razo de que esta lti-ma constri mundos inventados, sados do imaginrio de um criador.Etimologicamente fico vem de fingere que em latim significa moldar,avanando a ideia de uma construo, de uma fabricao, para no dizer deuma criao, do objeto do discurso ficcional. A contrario, o documentrioteria por finalidade dar conta da realidade, do mundo circunvizinho, com aideia difundida de que este real preexistiria s condies de filmagem dofilme. A despeito do fato de que a distncia entre os signos audiovisuais e oreal possa ser negocivel e mltipla conforme os tipos de documentriosacontece que a promessa de um documentrio de nos falar, de uma ma-neira ou de outra, do real. O real consiste no padro ontolgico destegnero.

    Ora, como objeto do discurso documentrio, o real de Opration Lune um real bem especfico. Ele no depende de uma feitura acontecimentalvisto que ele no se determina por aquilo que aconteceu realmente ou no no satlite lunar neste ms de julho de 1969. O real constitudo de ima-gens, isto , de uma representao miditica destes fatos. Assim, o real sobreo qual se interroga o documentrio no pertence categoria do factual, vistoque se trata de imagens j projetadas midiaticamente. Estas imagens tmuma existncia pblica atestada. Para parodiar um ttulo famoso de MichelFoucault, As Palavras e as Coisas, o objeto do real deste documentrio no

    7 A difuso deste documentrio foi precedida por um aviso de Alexandre Adler sobre o fato que esta tese no houve homens na lua- instrumentalizada por certos fanatismos religiosos.

  • 37UM FALSO NA TELEVISO? DA MENTIRA FRAUDE: o exemplo do documentrio Opration Lune

    est do lado das coisas, mas antes do lado das palavras, do lado dossignos. O referente do documentrio j semiotizado: de imagens televisivasque se trata. Este objeto no depende da ordem da natureza (catstrofenatural, faanha esportiva, faanha tcnica etc.), mas j o resultado deuma atividade humana de significao e de representao. A realidadeinterrogada pelo documentrio no reside no campo do que mostrado porestas imagens, mas antes nas condies da sua representao miditica.

    por isso que o referente deste documentrio se mantm numa dupladistncia com a realidade: em primeiro lugar so imagens de uma atualidadepassada que, num segundo tempo, sero interrogadas, muitos anos maistarde, no mbito de outro discurso, aquele deste filme dirigido por W. Karel.A primeira epifania miditica das imagens dos homens sobre a lua daordem da atualidade para a qual a relao referencial destes signos est nomximo, na medida em que as suas imagens pretensamente foram enviadasao vivo da lua.8 A segunda relao com o real que constri este documentriono visa mais os pequenos pulos dos homens sobre a lua, mas antes a formacomo as suas imagens foram fabricadas. Por um lado, inicialmente, o termoda relao referencial incide sobre a verdade do que mostra o enunciadovisual (a faanha lunar), por outro, o termo da segunda referncia dodocumentrio a autenticidade da sua enunciao.

    Com o encaixe desta dupla referncia, Opration Lune revela que aquiloque distingue a fico do documentrio permanece menos na natureza (oestatuto) do objeto do discurso em jogo (ser que este objeto construdo?ser que ele depende de um dado?), e reside antes na qualidade da relaoque amarra o discurso audiovisual com seu objeto: esta relao h de serreferencial, no sentido semitico. Assim, se o prprio da fico segundo DorritCohn (1999, p. 7) a sua capacidade de criar um universo fechado sobreele prprio, capacidade que eu qualificarei como intransitiva, parece que oque est em jogo no documentrio antes de ordem transitiva, na medida

    8 Parece, segundo o jornalista Olivier Bonnet em um comentrio de 29 de janeiro de 2007, que asimagens projetadas na televiso no eram as que estavam sendo aguardadas pelos tcnicos da Nasa,tamanha era sua pssima qualidade. De fato, no so imagens originais que os telespectadores pude-ram olhar em julho de 1969, mesmo se haviam sido anunciadas assim, mas uma cpia de cpia. O queo mundo viu uma coisa adulterada, a posteridade merece algo melhor se indigna S. Lebar, o engenhei-ro que elaborou a cmera lunar. (LA VIDEO..., [200 ?])

  • 38 Marie-France Chambat-Houillon

    em que os signos audiovisuais aparecem como o substituto do que eles re-presentam. Qualquer que seja o desenrolar dos processos de encenao,trata-se sempre de significar uma realidade fora da representaodocumentria, que esta realidade preexista ao discurso ou ento que ela sejamoldada por ele, maneira de um ponto de vista assumido sobre o mundo(por exemplo: o olhar de Depardon sobre a sociedade francesa, o ponto devista de Wiseman sobre as instituies americanas etc.)

    Esta dupla distncia com o real factual e com a verdade histrica queentretm o propsito deste documentrio contribui para criar um afastamen-to da realidade ao qual o telespectador pouco acostumado quando de suafrequentao miditica do mundo, visto que, para o pblico, o mundo apa-rece quase imediatamente na televiso em seguida a um mero gesto com ocontrole remoto. Complexificando o campo de referncia (do enunciado), odocumentrio interroga o inverso da transparncia televisiva, em outras pa-lavras, as condies reflexivas possveis dos discursos miditicos. Esta dife-rena repetida com o real, se ele no leva para a fico, impedido, entreoutros, pela especificidade da programao do documentrio, leva forosa-mente para outra coisa, que aparece sob a mscara, sob as afetaes dofalso.

    No so quaisquer imagens do acontecimento, mas as imagens miditicasque os telespectadores puderam ver na sua primeira difuso ao vivo, antesque elas se solidifiquem em imagens histricas, que compem o real inter-rogado deste filme. Desde o comeo, os seus usos valem para significar afactualidade do acontecimento que elas exibem. Como o diz o prprio W.Karel no release: Para a lua, se no houvesse imagens, no haveria aconte-cimento, o que uma variao mais recente das palavras de Baudrillard aguerra do golfo no aconteceu. Esta equao imagem/acontecimento pre-cisamente um dos efeitos da supremacia do paradigma miditico na circula-o das imagens do real, em que estas so completamente transparentesquilo que elas mostram para aqueles que as operam. Ora, o documentriovai investigar a permanncia do estatuto referencial destas imagens e suatransparncia por meio da dvida da autenticidade da sua enunciao. Final-mente, por capilaridade, o documentrio, tomando como objeto a autentici-dade da enunciao miditica, vai induzir no telespectador suspeitas sobre arealidade do fato histrico escrito. Este percurso interpretativo da dvida,

  • 39UM FALSO NA TELEVISO? DA MENTIRA FRAUDE: o exemplo do documentrio Opration Lune

    ainda que seja iniciado pelo documentrio a partir do estatuto autntico daenunciao visual, , entretanto, realizado pelos prprios telespectadores.De fato, como eu disse mais acima, nunca o documentrio questiona explicitae diretamente a faanha lunar. As suspeitas do documentrio tm a ver comas imagens mostradas (a enunciao) e no com os fatos enunciadosaudiovisualmente. Caminhada bem complexa que faz com que oquestionamento da representao do real desemboque numa operao dedvida do prprio real pelo pblico e no pelo autor. Quais so as suasetapas?

    5 Duplo gatilho do arquivo: da prova ao testemunho

    Num primeiro tempo, abraando o sentido comum, o documentrio di-funde as imagens da lua como imagens provenientes da lua. Em outras pala-vras, estas imagens funcionam como as marcas audiovisuais do fato cientfi-co, como arquivos.

    Para isto, o filme contextualiza os comeos do inqurito sobre estas ima-gens com outros arquivos cuja autenticidade aparece incontestvel por vri-os motivos: Kennedy numa tribuna poltica, imagens da Alemanha nazista,as de um campo de concentrao no identificado, etc. Estas imagens, en-quanto arquivos, servem para armar o cenrio histrico do sculo XX, infe-lizmente tristes esteretipos visuais da segunda guerra mundial e da guerrafria. Fundidas neste pano de fundo visual partilhado por todos e sobre o qualreina um consenso de existncia, as imagens da lua so corroboradas numprimeiro tempo na sua autenticidade. Seu questionamento, num segundotempo, ser ainda mais forte para o telespectador.

    Mas uma imagem no em si o arquivo do que ela mostra. De fato, seriaento impossvel ter usos muito diversos de uma mesma imagem. Por exem-plo, o emprego de um plano de inundao natural em um telejornal pode sermltiplo: seja para ilustrar condies meteorolgicas a vir, seja para comen-tar de forma genrica os estragos do homem na natureza ou, ento, ser aimagem de arquivo desta catstrofe especfica. Nos dois primeiros casos, estamesma imagem utilizada independentemente das qualidades de individuaodo que ela mostra, visto que se trata de uma representao icnica genricavalendo para todas as inundaes possveis. Este emprego mobiliza as fun-

  • 40 Marie-France Chambat-Houillon

    es de chamada da imagem. No ltimo caso, as imagens so a de umainundao particular (dimenso indicial das imagens) que acontece nummomento e num lugar precisos. A imagem, alm de convocar para o real,sugere a instalao de mecanismos de identificao do lugar e do tempopara situar o acontecimento.

    por causa disso que uma imagem no um arquivo, mas pode ser utiliza-da como tal. Assim o arquivo designa um uso comunicacional particular daimagem. Logo, o arquivo no uma qualidade, mas uma estratgiacomunicacional estabelecendo a prova da existncia do que mostram as ima-gens. Utilizar as imagens da lua com arquivos no meio de outros corrobora,ento, sua origem espacial e temporal, e participa do movimento de atestaodo fato de que homens andaram verdadeiramente na lua. A carga arquivsticadas imagens lunares apoiada fortemente no documentrio pela estratgia demontagem de outros arquivos entre os quais elas se inserem.

    Como que se interpreta uma imagem como um arquivo? No unica-mente porque ela mostra acontecimentos passados o destino comum dequase todas as imagens referenciais. Como eu j mostrei em outros lugares,as imagens utilizadas como arquivos aparecem para os telespectadores des-providas de qualquer intencionalidade enunciativa, de tal forma que estes sas interpretam medida da sua exibio de contedo. (CHAMBAT-HOUILLON, 2002, p. 184) Uma imagem de arquivo funciona como prova,colocando-se logo ao lado do objeto que ela mostra, se e somente se otelespectador a recebe privada de qualquer relao com uma enunciaosubjetiva, em outras palavras, se ele no projetar nenhuma presuno deintencionalidade sobre a sua produo. De fato, por definio, a prova esta-belece a verdade de uma coisa ou de um fato. Promovidas a arquivos, asimagens, portanto, entretm com aquilo que elas representam uma relaoassertiva, visto que uma assero consiste em colocar um enunciado aquivisual como verdadeiro. A realidade do acontecimento mostrado pelosarquivos visuais se transforma em verdade do mesmo. Pelo recurso prova -do arquivo que constri a recepo da imagem em torno de sua naturezade indcio e no de cone, a ligao entre realidade e verdade se torna operantena televiso.

    E, no entanto, aps ter reassegurado o estatuto de arquivo de imagens dalua, o documentrio vai tentar fazer vacilar esta ligao.

  • 41UM FALSO NA TELEVISO? DA MENTIRA FRAUDE: o exemplo do documentrio Opration Lune

    Em primeiro lugar, Karel modifica subrepticiamente a finalidade das ima-gens de arquivo, pois de prova, elas se tornam testemunho. Ora, se o sensocomum as amalgama demasiadamente, testemunhar e provar no so atosde discurso idnticos. Diferentemente da prova, inscrita no campo da objeti-vidade, o testemunho se relaciona sempre com um tema de enunciaosingular e bem distinto. Como o dizem Derrida e Stiegler (1996, p. 107): otestemunho, enquanto testemunho apresentado, enquanto atestao, con-siste sempre em discurso. Da prova ao testemunho, Karel desloca ento ocentro de gravidade das imagens da lua: da realidade dos referentes factuaispara suas condies de representao. A partir da, a dominncia da relaoreferencial, ossatura do arquivo, vacila, para apontar que as imagens da luapodem ser tambm representao, portanto, construes semnticas depen-dendo de uma atividade humana. Ora, o uso referencial miditico corrente,aquele que alimenta a transparncia miditica, est prestes a negligenciarque existe em todo discurso uma combinao entre referncia e reflexividadee que os signos audiovisuais, se eles remetem quilo que eles mostram,podem dar conta tambm ao mesmo tempo de sua enunciao.

    Esta inflexo feita s imagens de arquivos do mundo para o discurso,mesmo se ela no prejudica em nada as qualidades reais dos fatos mostra-dos, no entanto, abre aos telespectadores a possibilidade de pensar estasimagens como artefatos (o que elas so, por outra parte), enquanto que,como arquivo, imantadas pelos seus referentes, elas s eram recebidas comosuporte inflexvel da realidade e no como um sistema de representao.Uma vez diminuda a importncia da relao assertiva das imagens, nada mais fcil que fazer duvidar de seu carter indicial, lanando a suspeita sobrea sua contiguidade efetiva com os fatos mostrados. Para tanto, W. Karel ar-quiteta a hiptese de uma filmagem em estdio sobre o qual paira a sombrade S. Kubrick: so imagens da lua, mas que no vm deste lugar. A naturezaindicial destas imagens de arquivo atingida em benefcio de umareconstituio icnica dos acontecimentos lunares. A operao de dvida daautenticidade das imagens da lua encontra sua base no estabelecimento doseu corte semitico com o mundo.

    A partir da, ento, o telespectador est na encruzilhada de vrios cami-nhos interpretativos. Por um lado Karel um autor de documentrio reputa-do, cuja notoriedade permite tornar crvel esta suposio de falsas imagens,

  • 42 Marie-France Chambat-Houillon

    aumentando a adeso dos telespectadores a esta hiptese. Por outro, ima-gens de arquivos notrios, conhecidos por todos que atestam a existnciadeste acontecimento. Poder-se-ia pensar que a subjetividade do autor possaser o ponto fraco deste inqurito, no resistindo base objetiva da monta-gem de arquivo. Mas aqui, a subjetividade do autor funciona como um argu-mento de autoridade junto aos telespectadores. E se fosse verdade que estasimagens fossem falsas? Esta hiptese construda de vrias maneiras nodocumentrio.

    6 Trs procedimentos levando suspeita

    A anlise do documentrio mostra como trs estratagemas, entre outros,vm desestabilizar a veridicidade das imagens da lua.

    Questionamento da natureza das imagens de arquivos comodocumento. O documentrio define que uma imagem falsa umaimagem cujas circunstncias de filmagem no correspondem quelaspresumidas. por isso que o campo visual dos arquivos visuais escrutinado: o filme exibe detalhes que so investidos como tantosindcios de reconstituio, como um spot esquecido no campo, umatraduo das cores julgada improvvel, sombras incoerentes, umacmera comum no protegida das variaes de temperaturas do sololunar etc. Nesta construo, Karel recorreu a uma retrica de grandeplano ou de zoom nestas imagens, construindo artificialmente aimportncia de tal ou tal elemento, no mais das vezes andino.

    Suspeitas sobre o contedo analgico mostrado. A autenticidadedas imagens denunciada mobilizando o que parece depender deum saber sobre o real. O conhecimento da realidade representadapermitiria tambm frustrar uma falsa imagem considerada comofuncionando referencialmente. O documentrio relata diversos saberessobre o mundo: um saber cientfico, evocado por uma testemunhaconsiderada crvel, um engenheiro da Nasa, e um saber poltico,evocado por uma fonte identificada como um ex-agente do KGB.Sua presena no documentrio, por outro lado, motivada pelaexigncia de um ex-conselheiro de Nixon, Vernon Walters, que ordenaao investigador de ir ver os russos pois eles, somente eles, podemsaber diz ele.

  • 43UM FALSO NA TELEVISO? DA MENTIRA FRAUDE: o exemplo do documentrio Opration Lune

    De forma geral, as entrevistas com os cientistas e os homens polticosreais so palavras suficientemente gerais para que o comentrio possaretom-las por sua conta. Mas isto pode funcionar junto ao telespectadorapenas se este reconhece Rumsfeld e Kissinger9 por t-los visto emoutro momento nas atualidades. A identificao das pessoas histricascontamina com sua realidade o conjunto das testemunhas menosconhecidos, inclusive as falsas testemunhas, isto , as testemunhasinventadas para as necessidades do filme: aqueles fazendo o papel dasecretria de Nixon, Eve Kendall, ou do rabino, W. A. Koenisgberg.Esta contaminao real tal que, por exemplo, as palavras, entretantoexcntricas, do rabino, entremeadas de chistes e de referncias ldicas,passam despercebidas, na corrente do documentrio, assim como aintertextualidade cinematogrfica dos seus nomes.10

    Dvidas e contradies ligadas realidade pela criao de umencadeamento causal ad hoc, fundando a tese das falsas imagens para otelespectador. O documentrio retoma fatos da poca, que, primeiravista, nada tm a ver com a alunissagem dos astronautas, mas cuja nicameno no documentrio funciona como uma causa ou uma consequnciada fabricao das falsas imagens da lua. Como compreender que Nixonno tenha assistido ao lanamento do foguete Apolo 11? Talvez soubesseque mesmo se a misso fracassasse, imagens poderiam ser projetadas.Como se explica que Buzz Aldrin, ento heri nacional, tenha mergulhadono alcoolismo, se no fosse para esconder alguma coisa? Por que StanleyKubrick, pouco tempo depois da pretensa filmagem, escolheria viver comoermito no campo ingls? Etc. Estes fatos funcionam ainda melhor j queeles podem, por outro lado, ser verificados pelos prprios telespectadores,j que so asseres srias, no sentido de J. Searle. Esta ligao causalresulta ali de novo de uma construo espectatorial, o telespectadortransformando as suposies interrogativas do documentrio emarticulaes argumentativas afirmativas.

    9 Henry Kissinger (1969-73: Conselho de Segurana Nacional. 1973-75: Secretrio de Estado sob osPresidentes Nixon e Ford. Prmio Nobel da Paz depois do cessar-fogo obtido no Vietn), Richard Helms(1962-72, Subdiretor da C.I.A. sob o Presidente Kennedy. Diretor da CIA sob o Presidente Nixon),Christiane Kubrick (Viva de Stanley Kubrick), Farouk ElBaz (Engenheiro da NASA), Alexander Haig(1969-73: Chefe do Estado Major sob o Presidente Nixon), D. H. Rumsfeld (Conselheiro pessoal deNixon), Buzz Aldrin (Astronauta, Misso Apolo 11), Lois Aldrin (esposa de B.Aldrin) etc.

    10 W.A Koenigsberg o verdadeiro nome patronmico de Woody Allen. Eve Kendall o da herona deHitchcock em Intriga internacional.

  • 44 Marie-France Chambat-Houillon

    7 Rumo pardia: divulgao da fraude

    Mas, ao lado destes trs processos partilhando o mesmo objetivo de de-nncia do estatuto autntico das imagens lunares, o documentrio desenvol-ve outra voz, no sentido de outro ponto de vista. Esta, pouco presente noincio do documentrio, deixa-se ouvir cada vez mais forte durante a segun-da metade do filme. Assim acontece com legendas incongruentes de partici-pantes vietnamitas, de quem no se sabe mais verdadeiramente como elesintervm no relato, de tal forma sua irrupo inesperada. Testemunho disto tambm a falsa dublagem sonora das palavras proferidas por Amstrongno momento da alunissagem, que aparecem completamente deslocadas emrelao com o carter histrico do momento: piada a respeito da cantina,confidncia sobre sua amante etc., cujo teor divertiria, mas tambmconsternaria, os engenheiros de Houston. O que o telespectador pode apre-ciar pelo jogo de uma montagem criando as condies de reaction-shotcom, por exemplo, um plano de um tcnico na sala de controle rindo porcausa do pretenso humor de Amstrong.

    Se a realidade emanando das falsas imagens construdas sobre a transpa-rncia dos signos audiovisuais e dos testemunhos de pessoas notrias exis-tentes11 semantiza referencialmente o conjunto do documentrio, no entan-to, ela deixa lugar perto do fim para certa atitude pardica. A pardia operadesviando imagens por meio de uma substituio da trilha sonora original ouda adjuno de novas falas (legendas incongruentes, por exemplo).12

    Etimologicamente, a pardia um contracanto, a voz do ao-lado. Ela real-mente pardica, esta segunda voz que se eleva do filme, destacando-se pou-co a pouco da investigao sria inicial para entreme-la de ambiguidades.Alis, esta voz divertida e cmica, inexistente no incio do filme, no entradiretamente em dissonncia com a hiptese das falsas imagens, ela no arefuta frontalmente, mas sobretudo solapa sua credibilidade, revelando asua absurdidade.

    11 Testemunhos que se revelaro igualmente falsificados visto que eles no foram realizados para OprationLune, mas so extrados de outro filme, Les Hommes de la Maison-Blanche. O documentrio, intencio-nalmente, silencia sobre a origem das imagens dos participantes histricos para melhor descontextualiz-las.

    12 Jost (2008) mostra que estes dois procedimentos so os pilares da pardia audiovisual.

  • 45UM FALSO NA TELEVISO? DA MENTIRA FRAUDE: o exemplo do documentrio Opration Lune

    assim que no meio do filme inverte-se sua tonalidade (DUARTE,2004, p. 119) do srio para o ldico. De fato, na sua segunda parte, odocumentrio multiplica os indcios pardicos, as falas excntricas das falsastestemunhas, as aluses cinematogrficas etc. O documentrio acelera derepente: ele no responde mais a uma nica estratgia sria de revelao,prpria do procedimento documentrio, mas prope nveis de leituras dife-rentes engavetando-se uns nos outros, expressando assim os aspectospolifnico e ldico do filme. No incio, uma nica pista interpretativa eracolocada pelo filme: o telespectador a ela aderia ou no conforme o estadode suas crenas. Mas, para mostrar o carter artificial de sua construo,Karel vai aumentar no somente quantitativamente o nmero de informa-es reveladas, mas tambm qualitativamente, visto que elas se tornam cadavez mais fantasistas, precipitando o documentrio para o divertimento. Nodecorrer do documentrio, a referncia ao real se torna imprecisa atravs deprticas intertextuais que se multiplicam, revelando-se a duplicidade. Nosomente havia, no incio, falsas imagens da lua, mas o documentrio eleprprio um falso inqurito sobre este objeto cujo carter duvidoso marca-do por indcios pardicos. Eles so sinais destinados aos telespectadores paraalert-los sobre o estado da sua crena em relao s imagens.

    Se a fraude se divulga no prprio comentrio, o fato que os telespectadoresno a percebem, tal a forma como a denncia da verdade das imagenslunares da primeira parte se apia sobre fortes condies pragmticas da cren-a no real dos telespectadores.13 Se esta falsificao no percebida, odocumentrio ento uma mentira, admitindo que a mentira seja uma atitudeque consiste em persuadir o outro (ou si prprio) de que uma coisa possa serfalsa. Neste tipo de pensamento, Opration lune seria ento um falsodocumentrio, pois construdo sobre um embuste. Mas disto resultaria umam compreenso das intenes do autor. De fato, uma mentira, enquanto atode linguagem, s pode ser identificado relacionado s intenes deste. Ora,Karel no deseja questionar estas imagens especficas da lua como o indicamos indcios do embuste efetivamente presentes no seu filme. Estas imagens dalua so apenas um pretexto para mostrar a plasticidade da interpretao das

    13 Neste sentido, Opration Lune realmente da ordem do documentiroso enquanto brincadeiraaudiovisual. Em ingls se diz mockymentary.

  • 46 Marie-France Chambat-Houillon

    imagens miditicas em geral. O objeto do documentrio, portanto, no aqueleque ele pretendia ser no incio. Alm da lucidez intertextual interna ao progra-ma, a fraude se desconstri explicitamente tambm em outros lugares, emtorno do filme, com, de uma parte, a difuso de um making-off divertidomostrando o avesso da filmagem durante os crditos finais e, por outro lado, acriao de um site, hospedado pelo canal ARTE, organizando um jogo paradiferenciar os verdadeiros elementos dos falsos.

    assim que aquilo que poderia aparecer como uma mentira em um pri-meiro tempo, para o telespectador engolido pela habilidade de Karel emcolocar as condies da referencialidade das imagens, revela-se antes ser daordem da astcia, no sentido grego de mtis. A astcia no deve ser confun-dida com a trapaa, mas joga e contorna as regras respeitando-as ao exem-plo de Karel que se diverte em manipular comentrios e imagens fundando-se sobre a sua polissemia.

    8 Concluso

    Opration lune mostra o quanto em mediao referencial a crtica darepresentao se dissolve no questionamento da realidade, quando de fatoesta no est em jogo intencionalmente. Ativando o sistema das crenasapegado ao gnero documentrio, os telespectadores no hesitam em desli-zar da veridicidade das imagens realidade dos fatos com a ajuda cmplice,evidentemente, dos dispositivos presentes no filme.

    Opration lune antes, na sua primeira parte, uma mentira j que elequer fazer os telespectadores acreditarem que as imagens da lua no soautnticas. Mas este embuste se dilui no decorrer do documentrio: oenunciador geral do documentrio toma mais distncia em relao ao que olocutor enquanto voz over que comenta enuncia, tentando provar afalsidade das imagens. No final, o enunciador se dissocia disto afundando-sena distncia enunciativa aberta pelo humor, pela intertextualidade e pelosprocedimentos pardicos. por isso que o fim do documentrio se maquiaem mascarada e fraude pardica, mudando de horizonte, deixando as pro-messas de real para voltar-se s do ldico.14 Se do ponto de vista da inteno

    14 [...] pois o objetivo principal era de divertir, de fazer um filme divertido, declara Karel no release.

  • 47UM FALSO NA TELEVISO? DA MENTIRA FRAUDE: o exemplo do documentrio Opration Lune

    autorial esta mudana no decorrer do filme assumida, no se tem certezade que ela seja percebida por todos os telespectadores.

    Parece que o que est em jogo neste documentrio realmente pregar ofalso para dizer o verdadeiro, declarar que poderia haver falsas imagens dalua para abrir os olhos dos observadores das mdias sobre o poder das ima-gens de forma geral e de sua relao complexa com o real. De fato, mistificaralgum inici-lo a.15 No se trata de enganar o telespectador para zombardele, mas antes para lhe fazer partilhar a sua percepo. Alis, astcia econselho no tm a mesma origem grega de mtis? Este documentrio faz deuma reflexo sobre os critrios do falso um momento de conhecimento doverdadeiro, criando as condies de uma crtica do olhar e das mdias.

    Referncias

    BARTHES, Roland. uvres compltes. Seuil: Paris, 1993.

    BRETON, Stphane. Tlvision. Paris: Hachette littrature, 2005.

    BAUDRILLARD, Jean. La guerre du golfe na pas eu lieu. Galile: Paris,1991.

    CHAMBAT-HOUILLON, Marie-France. Cartographie des termes citation,extrait et archive et leurs usages dans le discours tlvisuel. In:BERTINMAGHIT, Jean-Pierre et al. (Org.). Discours audiovisuals etmutations culturelles. Paris: LHarmattan, 2002. p. 133-155.

    ______. Comment penser le comique partir des archives tlvisuelles.2009. No prelo.

    COHN, Dorrit. Le propre de la fiction. Seuil: Paris, 1999.

    DERRIDA, Jacques; STIEGLER, Bernard. Echographies de la tlvision.Galile: Ina-Paris, 1996.

    DUARTE, Elisabeth Bastos. Televiso, ensaios metodolgicos. Porto Alegre:Sulina, 2004.

    15 Esta desconcertante etimologia revelada por Jeandillou (1994)

  • 48 Marie-France Chambat-Houillon

    JEANDILLOU, Jean-Franois. Esthtique de la mystification. Paris: Minuit,1994.

    JOST, Franois. La tlvision du quotidien. Paris: Ina deBoeck, 2001.

    ______. Peut-on tre drle linsu du public?. Humoresques, Paris: MSH,n. 28, p. 17-28, 2008. d. de M.-F. Chambat-Houillon et C. Giordano.

    Fontes

    OPERATION Lune. Direo de William Karel. Paris: Point du jour / Ina,2002. 1 DVD.

    LA VIDEO de lHomme sur la lune perdue par la NASA! Disponvel em:.

  • 49TELEVISO E DOCUMENTRIO: afinidades e desacertos

    TELEVISO E DOCUMENTRIO:

    afinidades e desacertos

    Jos Francisco Serafim

    Este texto se prope a abordar a questo do cinema documentrio e suapresena, ou melhor, ausncia em um dos meios miditicos de maior impor-tncia no mundo contemporneo: a televiso. importante observar essarelao, cinema e televiso, de um ponto de vista inicialmente diacrnico eposteriormente sincrnico: primeiro surge o cinema e mais tarde a televiso;certamente esta ltima teve muito a aprender com a indstria cinematogrfi-ca, mas muito rapidamente busca tornar-se independente, atravs de umalinguagem e estilo prprios. Observa-se tambm que, no seu incio, a televi-so se apropriar dos formatos j existentes no rdio, teatro e cinema, atra-vs da fico e do documentrio, que so os dois grandes gneros cinemato-grficos.

    O cinema surge no final do sculo XIX e j se estabelece como o grandemeio de representao da realidade. Os primeiros filmes dos irmos Lumire,como tambm os de Thomas Edison, podem ser considerados como protti-pos do que viria a se configurar o cinema documentrio. Eram, inicialmente,filmes curtos, com du