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Televisão Gabriela. A brasileira que levantou a saia de Portugal MARIA RAMOS SILVA [email protected] O remake da adaptação do romance de Jorge Amado ao ecrã, que sacudiu o país em 1977, estreia-se segunda-feira na SIC As labaredas do PREC eram cubos de gelo comparadas com a brasa que che- gava do outro lado do Atlântico. Uma reveladora subida a um telhado basta- va para roubar votos de atenção à esquer- da, ao centro e à direita. Bandeira da concertação, "Gabriela" deve ter sido o único assunto em que, por uma vez, todas as cores políticas se entenderam, por mais que pudesse servir de oportu- na arma de arremesso. "Que o primeiro ministro português [Mário Soares] confesse a um jornalis- ta do 'Sunday Times" que goste de ver a Gabriela, ainda vá. Agora, que o secre- tário-geral do PCP, esse modelo de rigi- dez de costumes, de não alienação de hábitos, de ocupação politicamente empe- nhada dos tempos livres, não perca um episódio da Gabriela é tema para as maio- res especulações jornalísticas". De pou- co serviu a rapidez do partido a desmen- tir 0 pretenso motivo da demora do líder. A suspeita estava lançada sobre Álvaro Cunhal, que certa terça-feira terá che- gado tarde e a más horas aos estúdios do Lumiar onde o esperavam para par- ticipar no programa "Mosaico". Momentos como este, registados no extinto semanário "O Jornal", integram o estudo "A revolução da Gabriela: o ano de 1977 em Portugal", que Isabel Ferin Cunha, professora da Universidade de Coimbra e investigadora do Centro de Investigação Media e Jornalismo, assi- nou no ano 2000, aquando das come- morações da chegada de Portugal ao Brasil. Uma tese que passou em revista o contexto político, social e cultural da época, bem como o destaque concedido à novela nas páginas dos diários e sema- nários, como o "Diário de Notícias", o "Diário de Lisboa", o "Expresso" e o refe- rido "O Jornal". "A 'Visita da Cornélia' (um concurso- reallity show) ea telenovela 'Gabriela, Cravo e Canela', alterarão o percurso da televisão em Portugal ao mesmo tempo que anteciparão e simbolizarão a emer- gência de uma nova sociedade e estilos de vida centrados no consumo e nos media", escreve a professora sobre o fenómeno de dimensões completamen- te novas em Portugal, que eliminou fron-

Televisão Gabriela. A brasileira que levantou saia de Portugal · nada pela TV Globo, acompanhada por um espectáculo de MPB (Música Popu-lar Brasileira) encabeçado por Vinícius

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Televisão

Gabriela. A brasileira quelevantou a saia de Portugal

MARIA RAMOS SILVA

[email protected]

O remake da adaptação do romance de Jorge Amado ao ecrã, que sacudiuo país em 1977, estreia-se segunda-feira na SIC

As labaredas do PREC eram cubos de

gelo comparadas com a brasa que che-

gava do outro lado do Atlântico. Umareveladora subida a um telhado basta-

va para roubar votos de atenção à esquer-da, ao centro e à direita. Bandeira da

concertação, "Gabriela" deve ter sido o

único assunto em que, por uma vez,todas as cores políticas se entenderam,

por mais que pudesse servir de oportu-na arma de arremesso.

"Que o primeiro ministro português[Mário Soares] confesse a um jornalis-ta do 'Sunday Times" que goste de vera Gabriela, ainda vá. Agora, que o secre-

tário-geral do PCP, esse modelo de rigi-dez de costumes, de não alienação de

hábitos, de ocupação politicamente empe-nhada dos tempos livres, não perca umepisódio da Gabriela é tema para as maio-

res especulações jornalísticas". De pou-co serviu a rapidez do partido a desmen-tir 0 pretenso motivo da demora do líder.

A suspeita estava lançada sobre Álvaro

Cunhal, que certa terça-feira terá che-

gado tarde e a más horas aos estúdiosdo Lumiar onde o esperavam para par-ticipar no programa "Mosaico".

Momentos como este, registados noextinto semanário "O Jornal", integramo estudo "A revolução da Gabriela: o anode 1977 em Portugal", que Isabel FerinCunha, professora da Universidade deCoimbra e investigadora do Centro de

Investigação Media e Jornalismo, assi-

nou no ano 2000, aquando das come-

morações da chegada de Portugal aoBrasil. Uma tese que passou em revistao contexto político, social e cultural da

época, bem como o destaque concedidoà novela nas páginas dos diários e sema-nários, como o "Diário de Notícias", o"Diário de Lisboa", o "Expresso" e o refe-rido "O Jornal".

"A 'Visita da Cornélia' (um concurso-

reallity show) e a telenovela 'Gabriela,Cravo e Canela', alterarão o percurso datelevisão em Portugal ao mesmo tempoque anteciparão e simbolizarão a emer-gência de uma nova sociedade e estilos

de vida centrados no consumo e nosmedia", escreve a professora sobre o

fenómeno de dimensões completamen-te novas em Portugal, que eliminou fron-

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teiras entre real e imaginário, a chama-da Gabrielomania.

"Foi um choque. Estávamos habitua-dos a um canal único, com informaçãopolítica, alguma oferta de cinema e entre-

tenimento europeu e do leste. Foi a pri-meira ficção seriada a ser exibida em

Portugal e num momento muito espe-cífico e quando o analfabetismo era ain-da grande. Não há memória de outroimpacto tão grande, politizado e comreacção masculina. Normalmente a fic-

ção seriada tem um tom muito maisfeminino" , descreve hoje a investigado-ra, que na altura se encontrava em SãoTomé e Príncipe e só durante as fériasem Portugal assistia a "Gabriela". Se

alguma dúvida sobre os conteúdos queaí vêm a partir da próxima semana pai-rasse no ar, desfaça-a de vez. De visitaao Brasil na última semana, Isabel FerinCunha teve oportunidade de confirmar

que esta nova versão da novela está "mui-to sexualizada".PEDRADA DE COR NO CINZENTO O uni-verso de coronéis, jagunços, prostitutase trambiqueiros que coloriam o hori-zonte da sociedade cacaueira conheceu

uma adaptação ao ecrã prévia à "Gabrie-la" que se estreou no Brasil em 1975. Foitransmitida em 1960, contava com o

desempenho de Paulo Autran como Tóni-co Bastos e de uma corista, Janete Vollu,como protagonista, mas pouco deu quefalar.

Em Portugal, só em 1977 os jantaresdeixaram de ser como sempre haviamsido depois da renascida "Gabriela", rea-lizada por Walter Avancini, ter chega-do à RTP, pela mão de Carlos Cruz. Enem a ausência de televisão em casa,numa época em que havia 150 apare-lhos por cada mil habitantes, travava o

encontro, cinco dias por semana, empleno horário nobre, com o charme deSônia Braga. Pelo contrário, os cafés e

associações recreativas enchiam-se de

espectadores numa fruição conjunta de

proporções incomparáveis. A música do

sotaque brasileiro contaminava o dis-curso de um país recém-saído de váriasdécadas de silenciadora ditadura. As

despedidas com reencontro agendadopara breve eram seladas pela expressão"inté", em vez de "até logo". Os cabelosdas senhoras replicavam os penteadosdas estrelas, numa clonagem da eman-cipada "Malvina", interpretada por Eli-sabeth Savalla, sinal de modernidade e

inconformismo. Para não falar do boomde leitura do romance de Jorge Amado,o mais vendido na edição da Feira doLivro de Lisboa de 1977. A própria Assem-

bleia da República, dizem, agilizava os

trabalhos para não comprometer o visio-

namento do seriado.35 anos depois da estreia bombástica

de "Gabriela" em Portugal, a 16 de Maiode 1977, Isabel Ferin Cunha prepara-separa comparar públicos e respectivosimpactos, através de uma análise em

cooperação com universidades brasilei-

ras. Um remake com caras novas e outras

repescadas da edição de 77, agora na

pele de outros personagens, as memó-rias baianas de Ilhéus, em 1925, voltamem tempos de crise, mas sem o apara-to que acompanhou a então a presençada novela nos media. "A campanha de

lançamento da telenovela 'Gabriela', nos

quatro jornais seleccionados, obedeceu

a timings publicitários, com um cartazde meia página anunciando a chegadada telenovela e vinculando-a a JorgeAmado, uma referência para grandenúmero de portugueses. A mesma cam-

panha envolveu press releases e umaapresentação pública - num Hotel de

Lisboa, feita por Raul Solnado, dos acto-

res e personagens principais - patroci-nada pela TV Globo, acompanhada porum espectáculo de MPB (Música Popu-lar Brasileira) encabeçado por Viníciusde Morais.

Ao longo de sete meses, entre Maio e

Novembro, a imprensa rendeu-se ao for-

mato, chegando a incorporá-lo da manei-ra mais conveniente. "Jornais ligadosao PC ou ao MES começaram a usar umjargão muito ligado à Gabriela e jornaisde referência como 'O Jornal' tinhampáginas e páginas, inclusive a primeira,sobre a novela", recorda a investigado-ra. No "Diário de Lisboa", a secção Canalda Crítica de Mário Castrim enfatizavae politizava os conteúdos de "Gabriela,Cravo e Canela". No semanário "O Jor-nal", na famosa secção do Tempo Livreassinada pela Guidinha (o escritor LuísSttau Monteiro), as referências a Gabrie-la eram intermediadas pela crítica sócio-

política e cultural. No "Expresso", narubrica televisão, a crítica surgia assi-

nada por Augusto de Carvalho, enquan-to que Kafarnaum, os cartoons de Antó-

nio, politizavam e tematizavam a tele-novela e na "Revista" se recomendavam

"estudos mais aprofundados" sobre o

fenómeno Gabriela em Portugal.

política EM BONS lençóis Resumindoa fórmula do enredo, a história de amorentre a bela, ingénua e analfabeta Gabrie-

la (interpretada por Sônia Braga, agoraJuliana Paes), que chega a Ilhéus fugi-da de umas maiores secas da históriado Nordeste, e o seu patrão de origemlibanesa, Seu Nacib (Armando Bógus,

hoje Humberto Martins), cruza-se como confronto, entre os poderosos e retró-

grados senhores da terra do cacau, lide-

rados pelo Coronel Ramiro Bastos (Pau-lo Gracindo, no remake é António Fagun-des) e os interesses emergentes dos

profissionais liberais, como o professorMundinho Falcão (José Wilfeer, revisto

por Mateus Solano).Com uma forte carga erótica, a obra

"Gabriela, Cravo e Canela", da autoriado escritor brasileiro Jorge Amado, publi-cada em 1958 e traduzida para mais de

trinta idiomas, tem no célebre Bataclã

um dos seus cenários mais recordados.A inovação introduzida por Jorge Ama-do ia mais além do destaque concedido

a uma apregoada casa de tolerânciacomandada por "Maria Machadão". O

autor apresentou uma senhora infiel("Sinazinha", interpretada por MaitêProença) como a vítima e não como avilã que merecia ser punida nessa idadécada de 20 alimentada pela defesa da

honra.Se o excesso de pele ao léu é uma cons-

tante na novela, o famoso cabaré conhe-

ce hoje uma realidade bem mais come-dida. Próximo do porto e do cais da anti-

ga feira de Ilhéus, ponto de maiormovimentação da cidade, o Bataclã repre-senta a história de Ilhéus do começo do

século XTX. Teve o seu apogeu entre 1926

e 1938, graças à frequência de boémios,coronéis, jagunços, marinheiros e inte-lectuais. Funcionava com salão e umcasino e oferecia dois espectáculos pornoite. Ali se apresentavam companhiasde dança do sul do país e até do exterior,

como grupos de tango argentino e de

cancan francês. Um bordel e um impor-tante ponto de decisões políticas e de

negócios que entrou em decadência com

a proibição do funcionamento de casi-

nos no Brasil. Chegados ao século XXI,continua de portas abertas, transforma-do em centro sócio-cultural e artísticoda Avenida 2 de Julho.

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oA telenovela, que se estreia segunda-feira,será exibida na sua primeira semana entre as

22h45 e as 23h15, remetendo "O Astro" para

o horário seguinte. Quando "O Astro" termi-

nar, "Gabriela" deverá assumir o horário após

"Dancin' Days"

AMADA BAÍA DE JORGE

A obra de Jorge Amado, amais traduzida do autor, foi

concluída em Petrópolis, Riode Janeiro, em 1958. A 1

a

edição foi lançada pelaLivraria Martins Editora, SãoPaulo. O sucesso foi tal queem Dezembro do mesmoano, alcançava a 6a edição.Em 1975, o livro chegaria à50 a

, e no final de 1999 jáatingia a 80 a

.

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Aos 33 anos, Juliana Paes sucedea Sônia Braga, então com 25, nopapel de protagonista em"Gabriela", com genérico cantadopor Gal CostaRENATA XAVIER

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Um bairrode luzes

vermelhasBOATE SEXUSAinda se lembra de -

"Roque Santeiro"? €m1985aSexuseracomandada por Matilde

(Ybná Magalhães), comas suas dançarinas

Ninon (Claudia Raia) e

Rosaly (ísis de Oliveira),

responsáveis pelaanimação dos homensda cidade de Asa

Branca.

CHÁCARA DO JATOBÁNa novela "Dona Beija"

(1986), a personagemtítulo (Maitê Proença) eraa famosa Cortesã dacidade mineira de Araxá.

CASA DA LUZ

VERMELHARegresso a JorgeAmado e a uma casa emSantana do Agreste,terra de "Tieta" (1989),liderada por ZuleikaCinderela.

GRÉMIO RECREATIVORESPLENDORINOBem-vindo a

Resplendor, cenário de

"Pedra sobre Pedra"

(1992) e de um espaçocapitaneado por

Adamastor e suas

moças.

UÍSQUERIACINCINATTIEm 2007, em "Duas

Caras" (2007), Alzira

(Flávia Alessandra)esmerava-se no polédance no bar-bordel

Uísqueria Cincinatti,controlado Jojô (WilsonSantos).

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