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odo ser humano tem desejos. Desde criança, somos a- costumados à idéia de que não pode- mos ter tudo que queremos e que devemos extrair o prazer das pequenas conquistas do cotidi- ano. Essa noção perpassa os anos e, quando vemos, já somos tão reféns das nossas ocupações que (re)descobrir o prazer parece quase impossível. É o momento em que a noção de que o tempo é infalível torna-se senso comum, e poucas pessoas são capazes de buscar novas alternativas para não deixar que a vida perca seu sentido. Nesse contexto, a ter- ceira idade poderia ser vista como a menos propícia para se traçar novos rumos. Porém, se percebe que, cada vez mais, os idosos encontram formas para fugir do futuro que as outras pes- soas, mais do que a vida, lhes impõem. Tradicionalmente, existem lo- cais mais procurados por essa faixa etária. Ciente disso, a equipe da Eclética foi a dois lugares difer- entes, ao Centro e à Zona Sul do Rio de Janeiro. O teatro Carlos Gomes e o cinema Espaço Uni- banco, famosos pela alta freqüên- cia de idosos, foram os destinos escolhidos. Nossa re p o rtagem con- versou com três pessoas que, já na terceira idade, continuam tendo histórias tristes, felizes, planos, re s- ignações, senso de humor, dias bons ou ruins e notou que, ainda que as limitações do corpo re s t r i n- jam, os desejos permanecem. Para atendê-los, os idosos subvertem a idéia de tempo, pois, apesar de lhes restar, teoricamente, menos tempo de vida, são eles que mais tempo têm para se dedicar à vida. No cinema com Lia e Isaac Lia Lipman cruza o saguão do Estação Unibanco com passos firmes. Está sozinha, encami- nhando-se com uma xícara de café em mãos para uma das mesas do cinema de Botafogo. A professora primária aposentada, de 74 anos, é solícita ao pedido de entrevista. Mas adverte: “Meu filho, você vai ter que falar alto e ter paciência. Minha audição não é mais a mesma e minha g a rganta está ruim, vou falar bem baixinho”. A fragilidade pintada por Lia não se confirma. Em poucos mi- nutos de conversa, a mulher apresenta-se firme, falando alto e escutando com clareza. Conta dos filmes (vê, ao menos, dois por semana), de suas pinturas e dos cursos de línguas. “Fui casada por 35 anos. Me separei já com a idade avançada. Depois que fiquei sozinha, tive que procurar coisas para me le- vantar”, diz Lia, para logo de- pois, em meio a risos, corrigir-se. “Mas não sou infeliz assim. Não sinto a falta de um companheiro. Fico pensando, será que gostaria de alguém dentro de casa, alguém que eu tivesse que servir cafezinho, servir jantar, vendo se está tudo bem com ele? Não estou mais para isso não, não aceito não. Quero viver sozinha”. O marido de Lia ainda a procu- ra. O motivo do afastamento? A mulher parece não se sentir à vontade para revelar. Separados há alguns anos (a professora não consegue precisar), os dois vêem- se toda semana. Com muitos a- migos no passado, Lia explica que o marido hoje está sozinho, isolado: “Ele realmente me pro- cura muito. Não tem mais com quem conversar, bater um papo, contar as coisas dele. Me liga todo dia, pelo menos de manhã para me dar bom dia. Ficamos assim, ficamos só na amizade”. Assim, com carinho e resigna- ção, Lia vai descrevendo o ex- companheiro. Fala dos quatro fi- lhos, das viagens e do caso que teve logo após a separação, “um romance bom, mas só porque era BRUNO MAIA, MARCELO CALDAS, NATHALIA LAVIGNE E THIAGO CAMELO Tem tempo Com muito prazer 69 Quando o prazer não tem idade T

Tem tempo - puc-riodigital.com.puc-rio.brpuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/18 - tem tempo.pdf · O teatro Carlos Gomes e o cinema Espaço Uni- ... texto, apresentando-o como “um

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odo ser humanotem desejos. Desdecriança, somos a-costumados à idéiade que não pode-

mos ter tudo que queremos e quedevemos extrair o prazer daspequenas conquistas do cotidi-ano. Essa noção perpassa os anose, quando vemos, já somos tãoreféns das nossas ocupações que( re)descobrir o prazer pare c equase impossível. É o momentoem que a noção de que o tempo éinfalível torna-se senso comum, epoucas pessoas são capazes debuscar novas alternativas paranão deixar que a vida perca seusentido. Nesse contexto, a ter-ceira idade poderia ser vistacomo a menos propícia para setraçar novos rumos. Porém, sepercebe que, cada vez mais, osidosos encontram formas parafugir do futuro que as outras pes-soas, mais do que a vida, lhesimpõem.

Tradicionalmente, existem lo-cais mais procurados por essafaixa etária. Ciente disso, a equipeda E c l é t i c a foi a dois lugares difer-entes, ao Centro e à Zona Sul doRio de Janeiro. O teatro CarlosGomes e o cinema Espaço Uni-banco, famosos pela alta fre q ü ê n-cia de idosos, foram os destinosescolhidos. Nossa re p o rtagem con-

versou com três pessoas que, já nat e rceira idade, continuam tendohistórias tristes, felizes, planos, re s-ignações, senso de humor, diasbons ou ruins e notou que, aindaque as limitações do corpo re s t r i n-jam, os desejos permanecem. Paraatendê-los, os idosos subvertem aidéia de tempo, pois, apesar delhes restar, teoricamente, menostempo de vida, são eles que maistempo têm para se dedicar àvida.

No cinema com Lia e IsaacLia Lipman cruza o saguão do

Estação Unibanco com passosf i rmes. Está sozinha, encami-nhando-se com uma xícara decafé em mãos para uma dasmesas do cinema de Botafogo. Aprofessora primária aposentada,de 74 anos, é solícita ao pedidode entrevista. Mas adverte: “Meufilho, você vai ter que falar alto eter paciência. Minha audiçãonão é mais a mesma e minhag a rganta está ruim, vou falarbem baixinho”.

A fragilidade pintada por Lianão se confirma. Em poucos mi-nutos de conversa, a mulherapresenta-se firme, falando alto eescutando com clareza. Contados filmes (vê, ao menos, dois porsemana), de suas pinturas e doscursos de línguas.

“Fui casada por 35 anos. Meseparei já com a idade avançada.Depois que fiquei sozinha, tiveque procurar coisas para me le-vantar”, diz Lia, para logo de-pois, em meio a risos, corrigir-se.“Mas não sou infeliz assim. Nãosinto a falta de um companheiro.Fico pensando, será que gostariade alguém dentro de casa,alguém que eu tivesse que servircafezinho, servir jantar, vendo seestá tudo bem com ele? Nãoestou mais para isso não, nãoaceito não. Quero viver sozinha”.

O marido de Lia ainda a procu-ra. O motivo do afastamento? Amulher parece não se sentir àvontade para revelar. Separadoshá alguns anos (a professora nãoconsegue precisar), os dois vêem-se toda semana. Com muitos a-migos no passado, Lia explicaque o marido hoje está sozinho,isolado: “Ele realmente me pro-cura muito. Não tem mais comquem conversar, bater um papo,contar as coisas dele. Me ligatodo dia, pelo menos de manhãpara me dar bom dia. Ficamosassim, ficamos só na amizade”.

Assim, com carinho e resigna-ção, Lia vai descrevendo o ex-companheiro. Fala dos quatro fi-lhos, das viagens e do caso queteve logo após a separação, “umromance bom, mas só porque era

BRUNO MAIA, MARCELO CALDAS, NATHALIA LAVIGNE E THIAGO CAMELO

Tem tempo

Com muito prazer69

Quando o prazer não tem idade

T

novidade”. É, porém, quando dis-c o rre sobre seus planos, seus pro-jetos, que Lia exacerba a sere-nidade que a maioria das suasfrases anteriores já carre g a v a .

“Plano, não tenho nenhum. Sóv i v e r. Viver já é um grandeplano, você não acha?”, pergun-ta a professora, afirmando nempensar que terá 80 anos empouco tempo. “O meu futuro ficapara Deus. Eu tento me cuidar,faço hidroginástica e fisioterapia.Cuido do meu corpo, é o queposso fazer”.

Quando não está no cinema,estudando línguas, pintando oucuidando do corpo, Lia gosta dever TV e escutar música. Temmuitas amigas. Inclusive, para odia seguinte, já está marc a d asessão de cinema com uma delas.

“Mas para hoje, você não vaiacreditar, estou esperando o meuex-marido”, confessa ruborizadaa professora.

Ao chegar, Isaac Lipman nãose assusta com o jovem conver-sando com a sua ex-mulher. Comcumprimento de mãos firm e ,a p resenta-se e olha para Lia,como quem quisesse entender oque se passa.

“Ele está fazendo uma entre-vista comigo. Quer saber com quetenho prazer, se tenho algumplano, o que espero da vida”, Liaa p ressa-se em explicar. Depois,p e rgunta para o homem: “Vo c êquer falar também?”

Isaac, 75 anos, funcionário apo-sentado do Banco Central, judeude nascimento, mas praticantehá apenas quatro anos, comproblema de audição que o obri-ga ao uso de aparelho de cor-reção em um dos ouvidos, aman-

te das viagens, das pinturas, doslivros e do cinema, não se furta aresponder de imediato: “Meumaior sonho é casar com elanovamente”.

As atenções voltam-se para Lia.Ela não parece surpresa, apenasri. Isaac corta o silêncio entre g a n-do uma carta à ex-mulher, dandoa entender que aquilo era assun-to deles e de mais ninguém. ComIssac à mesa, o encontro passou aser um monólogo do homems o b re a vida e, é claro, sobre Lia.

“Você sabia que há pessoas queexistem e outras que vivem? Vocêsabia disso? A faculdade lhe ensi-nou isso?”, indaga Issac, rindo erespondendo sua própria pergun-ta. “A vida ensina, meu filho”.

O homem continua a pre g a rsuas lições. Leciona que tambémexistem os criativos e os empurr a-dos: a mulher, a criativa, incentiva-va a ele, o empurrado, a apro v e i t a rum pouco mais a vida. “Eu estouem casa sem nada para fazer. Elame telefona e diz: vamos ao cine-ma às 16:30h no Unibanco”, expli-ca Isaac, pedindo então licençapara ir comprar o ingresso.

Lia já leu a carta. Está pensati-va. Finalmente, decide mostrar otexto, apresentando-o como “um

dos motivos da separação”. Es-crito por uma menina de trezeanos, filha de uma amante deIsaac, o papel é uma declaraçãode amor escancarada a quem aadolescente chama de pai.

“Isaac teve esse caso a 15 anos.A mulher tinha uma filha dedois. Como ela era muito pobre,Isaac resolveu assumir a criança.É, ele tem o coração muito bom”,conta a mulher, revelando nosolhos, pela primeira vez, umtraço de tristeza. “Eu ainda fiqueicom ele depois disso. Mas, nosanos seguintes, ele teve aindamais amantes. Tive que me sepa-rar”.

O homem volta. Pergunta a Liaa b e rtamente sobre a carta. Amulher faz-se desinteressada. Nomomento em que se pre p a r apara retomar o monólogo, Isaaccede a uma pergunta: se ama amenina que lhe escreveu a carta.

“Eu gosto só dela”, diz, apon-tando com a cabeça para Lia, masse retifica. “Bom, eu gosto sim damenina, porém, tenho um sonhomaior: que a Lia goste dela”.

A mulher interrompe o ex-marido, afirmando que a ques-tão já foi respondida. Pergunta sehá mais alguma pergunta. Existesim, e essa é delicada de se tocar:sexo. Lia, no entanto, não rubo-riza como outrora.

“O sexo foi muito bom no nossocasamento. Isaac era um cava-l h e i ro, mesmo depois da velhice,nunca deixou de ser paciente.Hoje, não faço mais, mas antes denos separarmos...”, conta Lia,omitindo o final da frase.

Isaac completa, lembrando-seda época da separação, data es-quecida pela mulher:

Janeiro/Junho 200470

“Plano não tenhonenhum. Só viver.

Viver já é um grandeplano, você não

acha?”

“É, há seis anos ainda fazía-mos...” O homem também nãofala a frase até o fim, mas todos jáestão rindo.

Lia pede desculpa. Está na horada sessão. Os dois andam próxi-mos (mas não de mãos dadas)em direção à fila. Para o fim desemana, já está combinado oteatro. Pretendem também via-jar. Juntos.

No teatro com CleoniceCleonice Marques, 76 anos,

num sábado à noite, está... adi-vinhem: esperando as amigas pa-ra saírem juntas. Vão se encon-trar para, como está na moda sed i z e r, fazer um “pro g r a m i n h abásico”. Saem em grupo.

“Noite de sábado é para saircom as amigas”, afirm a ,enquanto se aproximam maisduas senhoras, as tais amigas.Uma delas prefere ficar longe dacâmera fotográfica e da re-portagem. Quer saber do que setrata, mas demonstra uma certainsegurança. Talvez pelo senti-mento de exposição da fragili-dade física, ou pela mera rejeiçãoà presença de estranhos em meioao grupo tão unido há anos, elasimplesmente prefere se manterfora de foco. Apesar disso, pedepara ver a carteirinha que com-p rova que o re p ó rter é mesmo umre p ó rter e que não vai usar aque-las fotos para outro fim. Até onome do editor da revista quers a b e r.

“Ela foi jornalista a vida toda”,aponta Cleonice para a amiga, asenhora que não quer falar. Ditoisso, aquela desconfiança todaparece estar explicada.

P rovas apresentadas. Mas a op-

ção de não participar da re p o r-tagem permanece. Tudo bem, con-tinuemos com a atenciosa Cleo-nice, que demonstra estar mais àvontade com a situação.

Muito simpática, conta quenão perde a chance de estar numdos teatros da cidade. Admi-radora antiga das artes, diz-seapaixonada em especial peloteatro. Não à toa, marcou com asamigas de assistirem a badaladaÓpera do malandro, de Chico Bu-arque.

A peça é longa, mais de trêshoras de duração. Porém, nadaque tire ou mesmo abale o ânimode Cleonice. No intervalo da peça,ela sai sozinha para “olhar o mo-vimento”. As amigas, demons-trando menos disposição, per-manecem em seus lugares. Aentusiasmada espectadora, não.O b s e rva em silêncio o zanzar daspessoas. Só fala o necessário.

“Ei, menino, me ajuda a desceressa escada”, convoca o funcio-nário do teatro. As limitações físi-cas, naturais da idade, pare c e mcontrastar com a empolgação damente. Precisa apoiar-se nos cor-rimãos do agitado Te a t ro CarlosGomes para se l o c o m o v e r. Anda,c i rcula em meio ao burburinho. Osinal toca. Respeitosa, encaminha-se de volta ao seu assento e nãoentende o que classifica de ”faltade educação do pessoal maisn o v o ”:

“Quando o primeiro sinal toca,

Com muito prazer 71

Cleonice sorri na platéia de a Ópera do malandro

As limitações físicas,naturais da idade,

parecem contrastarcom a empolgação

da mente

Bruno Maia

é para que todos voltem ao seulugar”, ensina. “Eu já estava vol-tando, ainda tinha gente saindo.A peça vai recomeçar e aindatem um monte de gente lá fora”.

Nossa equipe a aborda nova-mente e pergunta se ela gostou daprimeira metade da peça. Cleo-nice demonstra ser uma críticadas mais severas: “Musicais nãofazem muito meu gênero não.Não é meu estilo preferido. Masé... é uma peça boazinha”. Umcerto desdém flutua com a afir-mação. “Pre f i ro os clássicos”,completa, mas sem perder o sor-riso no fim da frase.

Começa o segundo ato. Maisuma hora de união das amigas.No fim, elas se levantam ligeiras,nem esperam terminar a longasalva de palmas. Querem fugir dotumulto que se formaria nasescadas do teatro em poucos se-gundos. A re p o rtagem tenta al-cançá-las. Já na calçada, a últimap e rgunta: “gostou, Cleonice?”

“Ah, sim! Muito boa, muito boamesmo a peça.”

Tentamos saber o porquê de tãob rusca mudança de opinião de-pois do segundo ato. Mas já era

t a rde, as três amigas já estavamno táxi. A noite parecia estar ape-nas começando. E o tempo pare-cia ser muito precioso para sep e rd e r.

No bingo com GuidoQuem passa pela rua Volun-

tários da Pátria, em Botafogo,não consegue deixar de notar oletreiro vermelho que caracterizao bingo Casas Lotéricas Voluntá-rios da Pátria, ainda que semcuriosidade para ver o que sepassa lá dentro. Com a nossaequipe nunca foi diferente, mas,dessa vez, tínhamos a tarefa deentrar e encontrar um idoso quepudesse participar da matéria –trabalho facilitado pelo empre-gado que estava na porta: “Acasa abre à uma hora, mas obingo só começa às cinco.Pessoas de idade você vai encon-trar qualquer dia, mas o movi-mento bom mesmo é no fim desemana”.

Munidos da informação, volta-mos lá em um sábado à noite.Dia chuvoso, primeiro fim desemana do mês. Mais apropria-do, impossível.

A primeira impressão não é

muito confortável. O lugar não éexatamente o que se costuma clas-sificar como aconchegante, a-bordar alguém naquela situaçãonão seria nada fácil. Os queestavam jogando não esboçavamnenhum interesse em conversar –e os que saíam muito menos,sempre com uma expressão insa-tisfeita, de quem esvazia todo obolso sem levar um tostão.

Foi então que um senhor sen-tou-se ao lado da nossa re p ó rt e r,pediu uma cerveja e se pôs a falar.Falou do jogo, dos netos, da vida,falou de tudo o que estava napauta para a matéria sem que elativesse perguntado nada.“Você éj o rnalista? Então anota aí: pes-soas na terceira idade são malhumoradas e impacientes”.

O senhor, de 60 anos, chama-va-se Guido Arcoverde. “É ita-liano o nome, por isso que souum velho mais animado do queos daqui”. Nem precisava dizer.Um grupo de senhoras, sentadoem uma mesa no café do bingo,recusou-se a colaborar com aequipe, mostrando-se de saída ecom pressa. Não trocou mais doque algumas palavras, limitan-do-se a responder que estava aliapenas para “passar o tempo”.Guido, ao contrário, parecia con-firmar a impressão de que idososadoram conversar.

Logo na primeira jogada, Guidofez bingo e garantiu R$ 66 para aspróximas. Tinha dinheiro de so-bra para continuar a conversa porum bom tempo. “Eu venho aquisó no fim de semana e só jogocom o dinheiro que eu ganho. Jávi gente sair daqui desesperadap o rque gastou tudo o que tinha.Eu não faço questão de ir embora

“A pessoa quando éjovem tem muito

mais opção de diversão. Hoje, tive

que descobrir outrascoisas que me

dessem prazer”

Janeiro/Junho 200472

Quino

com dinheiro, mas tambémenquanto estou ganhando eu vougastando”, explica ele, sorr i n d oem seguida, o olhar atento a todaa movimentação da casa.

Dono de uma empresa de ma-terial de construção, Guido ga-rante que, durante a semana, é“um cara família”. Porém, quan-do chega sexta-feira, não temnem mais discussão em casa: amulher já sabe que ele não vaichegar tão cedo.“Eu gosto muitode sair à noite, tomar uma cerve-ja, mas minha mulher não gostade sair nem de beber. Vivo ten-tando tirar ela de casa, mas nãotem jeito”.

A conversa flui, e Guido ani-ma-se a tal ponto que suspende ap a rtida. Os funcionários insis-tem, mas ele pede mais umacerveja e se põe a falar de novo,ainda sem que nenhuma pergun-ta fosse feita. “Não tenho ne-nhum vício, jogo apenas para medistrair um pouco. Não sou comoas pessoas que sentam aqui tododia e só fazem isso da vida”.

Distração ou não, Guido che-gou dizendo que tinha que bus-car o neto e só ia jogar vinte mi-nutos. Já se passava quase umahora e ele ainda continuava porlá. Outro funcionário aproxima-se e pergunta se ele tem certezaque não vai voltar a jogar naque-la rodada. “Agora não, estoubatendo papo com a jornalistaaqui”, brinca ele.

Os jogadores ao lado, concen-trados, começam a re c l a m a r. Gui-do dá de ombros, bate na mão denossa re p ó rter e fala mais alto, emtom provocativo: “Eu disse quevelho é rabugento, não disse?”

Definitivamente, Guido não ti-

nha o perfil de um típico fre-qüentador do local. De qualquerforma, ele também estava ali,apostando seu dinheiro assim co-mo outros. A pergunta principal,então, podia ser feita: por quetanta gente joga bingo na ter-ceira idade?

“A pessoa quando é jovem temmuito mais opção de diversão doque nós. O que eu mais gostavade fazer na vida era jogar futebol.Hoje não posso mais, tive quedescobrir outras coisas que medessem prazer”, fala Guido, emtom sério.

Há seis anos, ele sofreu um aci-dente de carro que quase o deixouparalítico. Hoje, ele faz quasetudo, apesar de ter dois parafusosnas costas e não poder mexer opescoço. “Fiquei três meses nohospital sem saber se ia podervoltar a andar e fazer sexo nor-malmente. Mas graças a Deus

não deixei de fazer nenhum dosdois”, fala ele, com naturalidade.

Depois da terceira cerveja, Gui-do já apresentava a repórter co-mo filha para os funcionários dacasa. Rindo a maior parte dotempo, só se emocionou quandoquestionado sobre a sua família.“Tenho dois filhos de verdade edois emprestados. Os netos agoratambém viraram filhos empres-tados”, afirma o italiano. Seusolhos enchem d’água, e o que erauma entrevista vira uma conver-sa informal e amigável, com di-reito a despedida emocionada.

A pergunta final acabou nãosendo feita, mas não era precisofazê-la para concluir o que im-p o rtava saber. O prazer, paraGuido, não era o jogo. Sentar emqualquer lugar, jogar conversafora e tomar quantas cervejas odinheiro desse, já era o bastantepara ele.

Com muito prazer 73

Quino