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CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico
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Tema – Atenção Primária à Saúde: fundamentos e processo
Projeto Pós-graduação
Curso Saúde Pública com Ênfase na Saúde da Família
Disciplina Processo de trabalho em Saúde da Família
Professor Rodrigo Cechelero Bagatelli
Introdução
Todas as formas de organização dos sistemas de saúde são
estruturadas com base em princípios que regem as ações em saúde, desde a
gestão até a “ponta”. Nesse tema abordaremos os princípios e filosofias que
fundamentam a APS e os sistemas de saúde baseados nela.
(Vídeo disponível no material on-line)
Problematização
Uma cena ocorre em um pronto-socorro do seu município. Já era quase
meia noite e houve uma demora de três horas para o paciente ser atendido. O
paciente é uma criança de seis anos e a mãe uma jovem trabalhadora.
Dr. João, “A senhora não precisa se preocupar, seu filho não tem nada”.
Mãe do menor atendido, “Mas doutor... ele teve febre de madrugada e
só agora melhorou”.
Dr. João, “É apenas uma virose, deve melhorar em alguns dias”.
Mãe do menor atendido, “Mas... pelo menos daria pra dar um antibiótico,
né?!”
Dr. João, “É uma virose, ele só precisa descansar e tomar bastante
líquido”.
Mãe do menor atendido, “E se ele tiver febre de novo? A creche não
deixa eu levar”.
Dr. João, “Isso não é problema meu, a senhora deve arranjar alguém
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para ficar com ele, infelizmente não posso fazer nada”.
A jovem mãe sai do consultório pesando em como resolver o “nada” do
filho. Quais elementos seriam importantes de serem revistos na postura do
profissional e dos sistemas? Você não precisa responder agora! Realize seus
estudos sobre este tema e escolha a melhor alternativa para a sua situação
mais adiante.
(Vídeo disponível no material on-line)
APS: fundamentos e processo
A definição mais conhecida de APS é a de Barbara Starfield, uma das
maiores autoridades no assunto. O livro “Atenção Primária: equilíbrio entre
necessidades de saúde, serviços e tecnologia” (disponível on-line -
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_primaria_p1.pdf) é uma
referência internacional do assunto.
A definição de APS descrita é baseada na Declaração de Alma Ata
sobre os cuidados primários:
“A atenção primária é aquele nível de um sistema de serviço de saúde que oferece a entrada no sistema para todas as novas necessidades e problemas, fornece atenção sobre a pessoa (não direcionada para a enfermidade) no decorrer do tempo, fornece atenção para todas as condições, exceto as muito incomuns ou raras, e coordena ou integra a atenção fornecida em algum outro lugar ou por terceiros” (STARFIELD, 2002, p. 28).
A autora reúne diversos estudos sobre a organização dos sistemas de
saúde e as características que seriam necessárias para que um sistema de
saúde pudesse ser organizado dentro do conceito. Para isso, ela coloca
atributos essenciais, que são os atributos estruturantes do conceito e os
derivados, que colocam o contexto de ação desses. Cada um desses
elementos será tratado a seguir.
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Acesso
O acesso como atributo, possui muitas facetas relacionadas à estrutura
do sistema. O acesso pode ser entendido como a porta de entrada do
sistema, o primeiro contato da pessoa com a Saúde (instituição), e, para isso,
ela deve estar acessível à pessoa no momento necessário e de maneira
oportuna. Essa acessibilidade só pode ser conseguida se o serviço estiver
geograficamente próximo.
Esse elemento pode ser traduzido também, seguindo a lógica física do
acesso, pela acessibilidade estrutural dos equipamentos de saúde. Desse
modo, é preocupação legítima do sistema prover locais que permitam a
adaptação às diferentes necessidades das pessoas. Unidades de Saúde com
rampas para deficientes são um exemplo típico disso. Já as barreiras típicas
são as Unidades de Saúde construídas em casas adaptadas ou locais em que
não é oferecida uma estrutura que favoreça o acolhimento adequado das
pessoas.
Essa provisão só é possível quando se tem uma organização do
território. O território é essencial para o acesso, pois sem uma população
adscrita, o equipamento pode ser insuficiente para a pressão assistencial ou
um desperdício de dinheiro público. O território também auxilia a equipe a estar
Atr
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os Gestão participativa
Baseado na família
Baseado na Comunidade
Atr
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Acesso
Longitudinalidade
Integralidade
Coordenação
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mais próxima da comunidade atendida e organiza as necessidades de uma
região já que a oferta de serviço se torna contextualizada, apoiando-se nos
outros itens do acesso que iremos abordar em seguida.
O acesso estrutural não é somente físico (recursos humanos), mas
também está relacionado com a lógica da oferta dos recursos envolvidos. Um
ponto muito pouco abordado até os últimos anos é a questão do horário de
funcionamento das Unidades de Saúde e o acesso ao profissional responsável
pelo cuidado. É comum no SUS as pessoas estarem habituadas a serem
atendidas apenas em horários restritos (comercial).
Porém existe também um aspecto mais subjetivo do acesso, que faz
parte da competência cultural e do acesso relacional. Para ilustrar isso,
citamos o caso dos “consultórios de rua”, em que os moradores de rua, que
são uma parcela da população em altíssima vulnerabilidade e que têm
características peculiares na sua forma de viver, precisam de uma atenção
diferenciada. Existem espaços que eles não entram, certos regimes de
tratamento não tem como serem seguidos por eles e é comum a alta
rotatividade de pessoas na região.
O acolhimento deles e a capacidade de compreender sua forma de
enxergar a vida auxiliam os profissionais de saúde na estruturação dos
atendimentos e também a ter uma atitude condizente com a realidade deles,
criando menos expectativas e assim diminuindo as frustrações no cuidado
dessa população. A competência cultural qualifica o acesso das pessoas na
“porta de entrada”, na medida em que contextualiza o equipamento com a
realidade local.
Um dos pontos, não menos essencial que os anteriores, é o acesso
econômico. É essencial permitir que qualquer pessoa de qualquer condição
tenha direito de ser assistida quando enferma. Isso implica em uma
reorganização da sociedade para prover financeiramente um sistema público
de qualidade.
(Vídeo disponível no material on-line)
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Longitudinalidade
Talvez um dos atributos que mais impacta na qualidade da atenção à
saúde e também na redução de custos é a longitudinalidade ou continuidade
dos cuidados. Não basta que se tenha acesso a um profissional de saúde na
hora que mais se precisa, pois qualquer serviço de pronto-atendimento pode
oferecer isso. Uma APS de qualidade busca prover cuidados contextualizados
e contínuos, oferecidos por um profissional que já conhece o indivíduo, já o
atendeu outras vezes ou atendeu algum dos seus familiares.
A continuidade do cuidado faz com que se estabeleça um vínculo
adequado com a pessoa. O vínculo é uma das prerrogativas de maior impacto
na atenção das pessoas, pois favorece inúmeros aspectos do relacionamento
profissional de saúde com o paciente, aumentando: a capacidade dele de
perceber nuances em relação ao contexto do adoecimento; a empatia quanto
ao sofrimento e possibilitando ao profissional a construção de uma relação
afetiva mais sólida, pois ele se torna uma referência para a pessoa, a família e
a comunidade.
No caso dos problemas agudos, a continuidade assegura que em outra
oportunidade de contato, o profissional estará já com alguma bagagem de
conhecimento sobre a pessoa e seu contexto, o que facilita a agilidade do
atendimento e também a adesão da pessoa ao tratamento/regime orientado.
Um dentista que em um dia executa um procedimento de tratamento de cárie
em uma mãe, será o mesmo que fará as orientações de higiene para o filho e
poderá ser o mesmo que fará a abordagem de uma leucoplasia bucal na avó
que usa prótese dentária.
Além de se tornar referência para essa família, aumentando a confiança
das pessoas atendidas, é provável que algumas informações subjetivas sobre
as condições de vida, crenças e hábitos familiares auxiliem o dentista a lidar
com outras queixas agudas que essas pessoas tenham em encontros futuros.
(Vídeo disponível no material on-line)
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Integralidade
Os vários sistemas de saúde públicos que existiam até a década de
1970 mantinham uma separação ou diferenciação na oferta de serviços e no
Brasil havia uma clara separação entre serviços que realizavam as medidas
preventivas e outros as curativas. A integralidade envolve o princípio de que as
ações em saúde estejam inter-relacionadas.
A APS no conceito de integralidade é parte do sistema e não “o
sistema”. Apesar de ser parte, ela é estruturante do sistema e como veremos a
seguir, é quem coordena toda a integralidade da atenção. Uma pessoa deve
ser atendida dentro do seu nível de complexidade, dependendo do seu
problema. Mesmo assim, o primeiro contato deve ser feito na APS para que ela
seja encaminhada para os outros setores da saúde adequadamente e continue
recebendo o cuidado mesmo após ter sido atendida em outros locais que não a
APS.
É verdade que a APS não consegue atender tudo (estudos mostram que
a resolutividade da APS gira em torno de 85 a 90% das queixas das pessoas).
Para ser resolutiva em 100%, ela deveria contar com o sistema inteiro. É um
erro pensar que a APS deveria realizar tudo, pois isso geraria problemas
gerenciais imensos e faria com que as pessoas não tivessem um atendimento
apropriado quando precisarem de tecnologias de ponta.
(Vídeo disponível no material on-line)
Coordenação
A coordenação pode ser analisada com 3 perspectivas: responsabilidade
na continuidade da atenção, fluxo de encaminhamento e comunicação.
A responsabilidade na continuidade é a prerrogativa de que é na APS
que o cuidado continuado é prestado. Aqui é verdade o ditado de “quem tem
muitos donos não tem nenhum”. A equipe da APS é a responsável por
organizar todas as medidas de saúde tomadas em relação ao paciente. Não é
ela quem toma as medidas em todas as situações, mas é dela que parte a
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iniciativa de registrar, acompanhar e se necessário intervir solicitando
esclarecimentos ou até mesmo sugerindo mudanças nas intervenções dos
pacientes sob sua responsabilidade.
A característica de fluxo de encaminhamento que a coordenação
possui é entendida na medida em que as pessoas entram pela “porta de
entrada” e são encaminhadas para os outros pontos de atenção. A
coordenação desse encaminhamento é feita pela APS, que é o centro decisório
das condutas relacionadas ao paciente. Pelo conhecimento do contexto (da
comunidade e do sistema de saúde) e por ser referência de uma comunidade,
os profissionais da APS abarcam uma gama de informações que ajudam no
processo decisório qualificado.
É interessante observar que a determinação dos fluxos de
encaminhamento é um processo gerencial vital para o funcionamento do
sistema. A gestão do sistema é feita por profissionais da gestão e por políticos,
que desenham a rede de ofertas baseando-se em informações prévias sobre a
realidade de uma determinada população. No entanto, é na APS que se produz
informações sobre a necessidade de adaptações a serem feitas e também é
nela que o processo decidido na gestão é executado.
A comunicação é vital na coordenação. Essa característica faz com que
o sistema precise avançar na coleta, registro e divulgação da informação. Essa
informação pode partir de dados epidemiológicos e do resultado das ações em
saúde de uma comunidade, mas também é a comunicação de informações
produzidas nos outros âmbitos da atenção. A APS, por ser a coordenadora,
deve receber todas as informações necessárias para prestar o cuidado
longitudinal e integral dos pacientes. Talvez um dos principais problemas que
ainda desafiam os sistemas de saúde é o problema da contra referência.
Tradicionalmente, um Médico de Família e Comunidade ou um
generalista encaminha o paciente para outro ponto da atenção, por exemplo,
um neurologista. Pela perspectiva biomédica, a informação do neurologista é
de pouca importância para a APS e assim, praticamente nada é devolvido para
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o colega que encaminhou. Assim, o generalista não recebe informações
adequadas do paciente e segue-se a dúvida. A comunicação tem sido de
apenas uma via (referência) enquanto a contrarreferência tem sido desprezada.
O paciente é prejudicado, pois na maioria das vezes não recebeu
informações de qualidade que possam ser devolvidas oralmente à APS e a
partir daí fragmenta-se o cuidado. Nessa perspectiva, o especialista é o
detentor do conhecimento e não presta contas aos outros “níveis” de atenção.
Quando a APS se torna a coordenadora da atenção, é imprescindível que ela
receba todas as informações relacionadas aos pacientes sob sua
responsabilidade. Assim, o cuidado deixa de ser fragmentado e passa a ser
integral.
(Vídeo disponível no material on-line)
Atributo derivado: foco na família
Os atributos derivados são aqueles que resultam dos atributos
essenciais e dão forma ao sistema baseado na APS. O foco na família a
privilegia na atenção, mas em outro momento abordaremos a questão das
famílias nas políticas de saúde pública e alguns conceitos necessários para
aprofundarmos o tema. Agora é importante destacar algumas características
que esse atributo derivado abrange.
É na família que temos a produção e reprodução de valores, conceitos e
é onde cristaliza-se a cosmovisão dos indivíduos, que é a maneira de enxergar
o mundo e interpretá-lo. Assim, o processo saúde/doença é construído dentro
do ambiente familiar.
A família é o centro de suporte do indivíduo e, muitas vezes, o centro de
conflito, ao mesmo tempo em que é o espaço social no qual as doenças são
cuidadas e tratadas e é também o espaço social onde os problemas e doenças
são reproduzidos. Seguindo uma linha de desencadeantes etiológicos, é na
família que temos a herança genética dos indivíduos e sua repercussão em
relação aos riscos e proteções aos agravos na saúde.
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É também na família que ocorre a transmissão de doenças
infectocontagiosas e é lá que se aprende a lidar com elas. Veja o exemplo da
epidemia de H1N1, em que as famílias adotaram medidas de higiene para
evitar o contágio do vírus colocando álcool na entrada das casas para que
todos lavassem as mãos ao chegar em casa.
Além desse viés biologicista, é na família que se reproduz os
condicionantes ambientais. Famílias pobres com moradias precárias, sem
saneamento e com problemas de vulnerabilidade social têm tendência a
apresentarem doenças típicas, relacionadas ao ambiente. Uma mulher que
mora com seus 5 filhos em um barraco sem banheiro e é casada com o quinto
marido (que não é pai das crianças) apresenta muitas vulnerabilidades que
demandam estratégias mais amplas do que simplesmente o fornecimento de
vermífugos, medicações para tratamento de escabiose/pediculose e
antidepressivos.
É também na família que os determinantes sociais são construídos,
adaptados e reproduzidos. A cultura tem a sua maior representação dentro do
sistema familiar e é elaborada em um processo dialógico de influências e
resistências. Ainda diz, em algumas linhas mais positivistas, que a família
apenas reproduz a cultura local, mas isso não tem se demonstrado verdadeiro.
Ao mesmo tempo em que aparentemente ela assume os valores da
sociedade, ela também resiste e os modifica de acordo com seus interesses e
necessidades. Um caso típico é quando os profissionais de saúde se deparam
com famílias de culturas diferentes da sua e têm que adaptar abordagens ou
intervenções.
Um exemplo sempre citado em relação à bioética é a das Testemunhas
de Jeová, que possuem uma forma peculiar de entender a vida e resistem ao
contexto cultural geral em relação à transfusão de sangue. Podem existir
questões bem menos dramáticas e que acontecem na família de todo mundo:
fazer ou não a vacinação para gripe (todos fazem? Os números indicam que
até nos profissionais de saúde existe uma impressão negativa à vacinação, em
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alguns casos resultante de teorias conspiratórias criadas no ambiente familiar).
Outro exemplo: tomar ou não medicações que aliviam a dor? Essa questão não
é hegemônica nem dentro das famílias, mas sofre a influência dela.
Apesar de não haver um determinismo familiar, ou seja, a família não
determina a concepção/comportamento do indivíduo, existe sim uma influência
que imprime com mais ou menos intensidade o comportamento dos indivíduos
frente a um agravo. Ao conhecer bem a família, o profissional de saúde ganha
mais precisão nas orientações e consegue compartilhar melhor o cuidado. Ao
desconhecê-la, mesmo que amparado nas melhores das intenções e
informações técnicas, há um risco de não ser bem compreendido nem efetivo.
(Vídeo disponível no material on-line)
Atributo derivado: orientação comunitária
Para oferecer os serviços apontados nos atributos essenciais, o serviço
de APS e o sistema devem estar próximos da realidade local, otimizando e
qualificando as ações em saúde.
Na Reforma Sanitária Brasileira, nos documentos iniciais sobre a APS e
em todos os sistemas de saúde que buscam se alinhar com a APS, a presença
da participação popular é uma constante. Se verificarmos o movimento
intelectual e científico da APS internacionalmente, percebe-se que a
necessidade de criar formas participativas na gestão dos sistemas de saúde é
uma prerrogativa de sucesso.
Seguindo essa linha de raciocínio, com a participação das pessoas na
gerência dos serviços prestados a elas, a qualidade seria melhor e também
existiria um efeito de retroalimentação, com a melhora da autoestima e
autonomia dos cidadãos em relação a sua saúde. O combate às iniquidades
sociais e o estímulo à oferta de serviços integrais é estimulado quando se incluí
as pessoas ativamente no processo decisório do sistema de saúde.
Além disso, para que o serviço ofereça uma relação integral com as
pessoas e famílias, ele deve estar próximo a essas pessoas, tanto
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geograficamente quanto subjetivamente, na forma de acolhimento afetivo e
cultural.
A Regionalização prevista pelo SUS e a Orientação Comunitária se
interseccionam na logística de equipamentos. Os serviços devem ser ofertados
de maneira que os profissionais e o sistema sejam intimamente influenciados
pela realidade da comunidade. A participação política da comunidade se
traduziria no conceito de Controle Social do SUS, no qual a comunidade
encontra um foro privilegiado de participação ativa na regulação dos serviços
de saúde e na formulação das políticas de saúde.
Não somente nessas duas perspectivas, mas também para um
planejamento adequado dos equipamentos de saúde e dos serviços prestados,
informações de qualidade sobre a morbidade da população são essenciais
tanto para a distribuição equitativa desses equipamentos (Unidades de Saúde,
Hospitais, Laboratórios, Centros de Especialidade etc.) quanto para a oferta de
serviços especiais que possam se enquadrar nas necessidades
epidemiológicas da região (serviços de diagnóstico rápido, tratamento de
malária na região amazônica e consultórios de rua nos centros urbanos são um
exemplo).
(Vídeo disponível no material on-line)
Atributo derivado: competência cultural
A cultura é percebida enquanto fenômeno de expressão de um povo,
comunidade e indivíduo. Ela é construída a partir das relações pessoais e as
pessoas são construídas por influência dela em um movimento dialógico. A
expressão das crenças e arranjos sociais acarreta em diferentes formas de
perceber o processo saúde/doença e diferentes maneiras de lidar com ele.
A Competência Cultural é um atributo fundamental tanto na organização
do sistema quanto na oferta de serviços prestados por um equipamento. O
conceito de Competência Cultural, originalmente relacionado com o estudo do
exótico e do choque cultural que ocorre entre o cuidador (médico, por exemplo)
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e o cuidado (paciente) quando vêm de culturas diferentes (interculturalidade),
foi adaptado para qualificar a atenção em saúde ao se contrapor à prática
assistencial fundamentada em relações verticais, ou seja, de superioridade de
uma cultura em relação à outra.
Isso é mais evidente quando relativizamos o saber médico com outros
saberes. Se entendermos que o saber dos profissionais de saúde é equivalente
(apesar de diferente) ao saber das pessoas, certos aspectos da relação
interpessoal ganham importância, como a abertura para a compreensão das
diferentes concepções de saúde/doença que as pessoas têm e também na
negociação de tratamentos ou intervenções.
Um esquema criado por Targa (2012) resume a ideia dos elementos da
Competência Cultural (regra mnemônica da “QULTURA”):
Qualificar a escuta.
Usuário no centro do processo (sua família e comunidade).
Levantar a importância de cada atuante-chave.
Tabelar ou mapear atuantes (atores sociais + não humanos)
envolvidos.
Unir resultados em um pacto terapêutico.
Reorganizar o coletivo (atuantes saem, entram ou são ressignificados)
conforme o pacto.
Avaliação conjunta e adequação do plano.
A escuta deve respeitar e identificar as diferenças entre os indivíduos
participantes do encontro (enfermeiro e paciente, por exemplo). O usuário no
centro do processo faz com que sejam colocadas as alternativas possíveis para
uma proposta (pacto terapêutico) de intervenção, mas que ela consiga unir os
dois saberes nos pontos mais importantes. Para que sejam conhecidos os
atuantes do processo (aqui os não humanos se referem às crenças ou práticas
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espirituais, por exemplo), deve-se medir também a importância de cada um
deles no processo (muitas vezes eles nem são reconhecidos pelo próprio
paciente como fatores de proteção ou de prejuízo à saúde).
A Competência Cultural só pode ser executada por serviços
regionalizados e que sejam referência de uma comunidade. É com o tempo,
sensibilidade e bom senso que o serviço e os profissionais de saúde adquirem
essa bagagem que é tão preciosa nos resultados de cunho qualitativo
(satisfação, aderência aos tratamentos) quanto nos resultados quantitativos
(melhora nos desfechos em saúde, otimização das intervenções etc.).
A renovação da APS nas Américas
É importante destacar, agora, uma definição construída para a realidade
das Américas. A reação ao movimento pela APS internacionalmente e pela
Reforma Sanitária Brasileira foi desigual, como já comentado. Países com
baixo nível de organização social tiveram distorções na implantação dos
sistemas de saúde e acabaram por encontrar barreiras estruturais e políticas
para a implementação adequada dos princípios originais da APS.
Por isso nesses últimos anos, tanto no Brasil como internacionalmente,
surgiram movimentos que buscaram reforçar a potência transformadora da
APS. Em 2005, a OPAS/OMS lançou um documento para a América Latina
detalhando e ampliando a definição de APS.
(Vídeo disponível no material on-line)
Ao centro são apresentados os valores, que devem refletir a essência
das organizações sociais. Eles são a âncora moral das políticas e programas
de interesse público. O direito à saúde é a garantia de que saúde não é um
bem de consumo e deve ser prioridade nas políticas de organização social.
Porém, essas políticas devem considerar a questão da qualidade da
assistência para que isso seja garantido não apenas quantitativamente.
A solidariedade é o esforço comum da sociedade para que todos
trabalhem em prol do bem coletivo. Essa solidariedade implica na cooperação
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de todas as instituições sociais para que os objetivos na área da saúde sejam
atingidos. É um elemento central porque sem esse preceito, não é possível que
uma sociedade consiga atingir níveis satisfatórios de organização.
O exemplo que podemos citar é o dos EUA, no qual a solidariedade
aparece apenas no âmbito pessoal e não é fundamental para a organização
social. Com isso, as políticas de saúde pública não conseguem espaço por não
serem amparadas pela cultura do povo e consequentemente das instituições. A
ideia é de que cada um deve ser responsável por garantir a sua própria
assistência.
A equidade é resultante da tensão provocada no sistema para que
sejam corrigidas as iniquidades sociais. Não é a tentativa de igualar as
pessoas, mas tratar de forma justa os problemas sociais que uma nação
enfrenta. Assim, a prioridade de investimentos leva em consideração questões
sociais e econômicas do país. A correção das distorções na oferta e acesso
aos serviços de saúde é crônica na América Latina e em outros países, por
isso ganha esse tratamento.
Um exemplo típico da execução desse princípio é o que percebemos
acontecendo cada vez mais na implantação das Unidades de Saúde: as
unidades novas e maiores são colocadas em locais de maior vulnerabilidade
social. Isso pode ser interpretado ainda como se fosse a APS seletiva, porém,
parte do pressuposto que o acesso é universal e logo deverá ser expandido a
todas as pessoas.
Imagine a força política que a APS atingiria se oferecesse também um
serviço de qualidade para as pessoas de classe média? O financiamento do
SUS não ganharia mais força política? Não haveria mais captação de recursos
para as camadas mais pobres?
Os princípios da APS são a ponte entre os valores e os elementos
estruturais do sistema. A receptividade às necessidades de saúde das
pessoas é um princípio que defende a integralidade da atenção. Essa
integralidade se refere à capacidade do sistema em responder às demandas da
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população em todos os níveis de complexidade de forma contextualizada. Ela
respeita tanto as preferências das pessoas quanto as suas necessidades.
O princípio cuidados orientados à qualidade assume, de forma clara,
que ser seletivo ou apenas quantitativo não é suficiente para que a APS seja
estabelecida. É necessário oferecer um serviço que esteja à altura das
aspirações das pessoas, mas também de acordo com as melhores evidências
científicas.
A responsabilização governamental vai de encontro à ideologia do
Estado mínimo e da não responsabilização dos governos em relação à saúde
das pessoas. É a garantia de que os cidadãos tenham seus direitos
preservados. É necessário criar mecanismos de gestão, informação e controle
social para que isso seja amparado.
A justiça social é o princípio que assegura a equidade da aplicação dos
recursos enfrentando os determinantes sociais do processo saúde/doença. Ele
ampara todas as ações que são produzidas com esse intuito. Ao colocar esse
princípio na base dos processos de decisão, temos a garantia de que áreas
como educação e equipamentos sociais serão postas em pauta para promover
a saúde.
Para que a APS não seja apenas um programa instável, é necessário
garantir a sustentabilidade. Ela só é conseguida se houver financiamento
adequado, planejamento estratégico das ações e uma estrutura política
adequada, com legislação e aparato político adequado. São medidas de longo
prazo que sustentam a sobrevivência do sistema.
A participação permite com que as pessoas sejam ativas na eleição das
prioridades e no controle das políticas de saúde. A autodeterminação e
autoconfiança são ganhas à medida que as pessoas têm acesso e poder
decisório. É um conceito semelhante ao do controle social do SUS.
A promoção da saúde só pode ser conseguida através da participação
efetiva de todos os setores da sociedade. Sendo um princípio da promoção, a
intersetorialidade é o meio pelo qual o planejamento e a execução das
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políticas de saúde são adequados e sustentados.
Alguns elementos (centrais na composição do conceito, porém
representados na periferia dos círculos) compõem a estrutura do sistema, tem
caráter executivo e delineiam as prioridades e ações que devem ser realizadas
para que haja a APS.
Um sistema só pode ser equitativo se tiver cobertura e acesso
universal. A atenção à saúde não pode ser restrita em seus serviços, devendo
ser abrangente e integrada. A atenção apropriada é baseada no contexto da
população (baseado na família e na comunidade) e não em lógicas
academicistas ou burocráticas.
A ideia é que ela deve servir à população. A participação popular
envolve a necessidade da criação de mecanismos de participação ativa.
Cabe aqui uma crítica aos modelos implantados nos países da América Latina
em geral e em especial no Brasil, em que a participação popular sempre
encontra dificuldades burocráticas quando não sofrem com manobras políticas
para neutralizar ou manipular a participação. É a própria população que deve
também garantir esse elemento em um “espírito de autodeterminação e
autoconfiança” como previsto na Alma Ata.
Contra as barreiras burocráticas, devem ser fomentados nas instituições
de saúde processos de organização e gerenciamentos otimizados. O direito
universal e de qualidade prescinde políticas e programas pró-equidade, pois
sem isso, não há sustentabilidade nem legitimação social. Uma atenção
apropriada e que dê mais ênfase à promoção e prevenção com ações
intersetoriais, é exigida que para chegar-se a níveis adequados de saúde . As
pessoas devem, desse modo, ter a APS como primeiro atendimento ou
entrada no sistema de saúde.
A qualidade desse acesso é totalmente dependente de recursos
humanos apropriados, como equipes completas e bem preparadas. Isso
impulsionará também a educação médica e dos profissionais de saúde, a
política nacional de educação e a transformação dos currículos de formação
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em saúde que já vinham recebendo modificações para contemplar as
necessidades do SUS. A sustentabilidade do sistema indica que não é com
grandes despesas que se conseguirá um bom sistema, mas a racionalização
lógica dos gastos deve contemplar o equilíbrio entre as necessidades e as
riquezas do país (recursos adequados e sustentáveis).
A legitimidade da APS como estratégia de organização do sistema de
saúde brasileiro pode ser observada com a definição do Departamento de
Atenção Básica sobre APS:
“A ATENÇÃO BÁSICA caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde...” (DAB, 2012).
Revendo a problematização
Agora que você estudou os fundamentos e processos das APSs,
escolha uma entre as alternativas a seguir, sugeridas para solucionar o
problema apresentado pelo professor Rodrigo no início deste material.
a. Melhorar o acesso
b. Longitudinalidade
c. Competência Cultural
Feedbacks:
a. Muito bem! Se você pensou nisso, provavelmente lembrou que a APS
deveria oferecer acesso para essa jovem trabalhadora e seu filho. Se
a Unidade estivesse aberta até um horário estendido e também
oferecesse consultas suficientes para o dia, ela não precisaria ir ao
Pronto-Socorro para resolver seu problema.
b. Essa é uma aposta interessante. Se a mãe pudesse levar o filho em
um médico que já o conhecesse e soubesse da situação dela e do
filho, talvez o vínculo fosse melhor e assim a qualidade da consulta
também. Quem sabe isso geraria uma responsabilização e respostas
do tipo “isso não é problema meu” se tornariam uma exceção.
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c. Excelente opção! Aqui fica evidente que você lembrou-se dos
conceitos de saúde e doença. Mesmo em um pronto-socorro, é
possível explorar esse elemento que é a concepção da pessoa sobre
o problema, ou a cultura do local. Hoje em dia dizer que é virose ou
“não é nada” é um desrespeito às pessoas. É necessário considerar o
que aquela mãe entende do problema e dar uma informação alinhada
com suas necessidades para resolver a sua ansiedade. Isso gera
acolhimento.
Síntese
Neste tema buscou-se estender o seu entendimento sobre a APS para
além de sua definição, compreendendo alguns elementos essenciais e outros
derivados que compõem esse cuidado.
Como elementos essenciais foram citados o acesso, a longitudinalidade,
a integralidade e a coordenação. Sem esses a APS perde sua função
conceitual e prática, impedindo que a atenção chegue a toda comunidade de
forma fácil, compreensiva e com qualidade.
Já os atributos derivados, citados, estão ligados ao foco na comunidade
e na família, além da competência cultural, necessária para evitar a
marginalização de certos grupos. Por fim, abordamos como as APSs estão
buscando se modernizar nas Américas.
(Vídeo disponível no material on-line)
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política
Nacional de Atenção Básica/Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à
Saúde. DAB. Brasília: Ministério da Saúde, 2012.
BRASIL. Ministério da Saúde. Diretrizes operacionais para os pactos pela
vida, em defesa do SUS e de gestão/Ministério da Saúde, Coordenação de
CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico
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Apoio à Gestão Descentralizada. Brasília: Editora do Ministério da Saúde,
2006.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento
de Atenção Básica. Política nacional de atenção básica/Ministério da Saúde,
Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção à Saúde. Brasília:
Ministério da Saúde, 2006.
DUNCAN, B. B. et al. Medicina Ambulatorial. 4ª Edição. Porto Alegre: Artmed,
2013.
GUSSO, G.; LOPES, J. M. C. Tratado de Medicina de Família e
Comunidade. 1ª Edição. Porto Alegre: Artmed, 2012.
HELMAN, C. G. Introdução: a abrangência da antropologia médica. In:
Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artmed. 2009.
MCWHINNEY, I. R.; FREEMAN, T. Manual de Medicina de Família e
Comunidade. Porto Alegre: Artmed, 2010.
STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde,
serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde, 2002.
TARGA, L. V. Mobilizando coletivos e construindo competências culturais
no cuidado à saúde: estudo antropológico da política brasileira de Atenção
Primária à Saúde. 2010. 236 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2010.
Atividades
Qual seriam os atributos que promovem a formação de vínculos entre
usuários do sistema de saúde e profissionais?
a. Integralidade e longitudinalidade.
b. Coordenação e integralidade.
c. Acesso e longitudinalidade.
d. Acesso e integralidade.
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O foco na família está baseado em alguns conceitos importantes para que
seja incluído como atributo derivado da APS. Qual dessas afirmações não
representa esse conceito ou não se adequa a ele?
a. A família tem uma carga genética que deve receber sua devida
importância.
b. É na família que os laços de apoio estão, mas também é onde se
produzem diversas doenças.
c. A família é formadora de opinião e pode influenciar a forma da pessoa
enfrentar seus problemas de saúde.
d. É na família que se tem a produção e a reprodução de valores que
importam para o sistema de saúde (planejamento e qualidade de
ações).
A coordenação dos cuidados deve ser feita a partir da APS, porém alguns
cuidados devem ser tomados, por exemplo:
a. A coordenação só pode ser feita se a doença pertencer ao escopo da
APS. Os casos mais complexos devem ser coordenados no nível
correto de atenção.
b. A APS pode ser a coordenadora dos pacientes, mas não pode
assumir a coordenação do sistema de saúde como um todo.
c. A APS é um sistema único e engloba a atenção secundária e
terciária.
d. A integração de todo o sistema é feita pela coordenação da APS.
A APS renovada foi um documento importante para a América Latina.
Dentre as afirmações a seguir, qual não se encaixa nesse documento?
a. O sistema deve trazer melhorias qualitativas e não somente
quantitativas na prestação de serviços e na assistência. Isso é
estritamente relacionado com o “direito à saúde”.
b. A solidariedade é componente importante dos valores assumidos,
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sem ela a nação não conseguirá atingir os outros objetivos.
c. Não é essencial que o Estado participe da organização e
financiamento dos sistemas, já que a maioria dos países tem
investimentos e equipamentos privados prestando esses serviços à
população.
d. O sistema só pode ser equitativo se der cobertura universal à
população.
A competência cultural é um atributo de extrema importância em cenários
de tanta diversidade como no Brasil. Dentre as afirmativas, qual é a que
melhor define a competência cultural?
a. Ter competência cultural é deixar-se influenciar pela cultura do outro
para poder atendê-lo melhor.
b. Competência cultural é a habilidade de lidar com diversas formas de
enxergar o mundo (cosmovisão), buscando a melhor negociação para
as ações em saúde.
c. Competência cultural é mudar a sua cosmovisão para atender o outro.
d. Competência cultural é estabelecer um vínculo forte com as pessoas
para que elas passem a confiar no profissional de saúde e não
apenas nas suas referências tradicionais/culturais (pajé etc.).