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LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO TEMA 1: TEORIAS IMPLÍCITAS SOBRE O DESENVOLVIMENTO Docentes: Lina Morgado Angelina Costa © Universidade Aberta, 2009 Psicologia do Desenvolvimento

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LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

TEMA 1:

TEORIAS IMPLÍCITAS SOBRE O

DESENVOLVIMENTO

Docentes: Lina Morgado Angelina Costa

© Universidade Aberta, 2009 Psicologia do Desenvolvimento

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U. C. PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO, UNIVERSIDADE ABERTA

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Texto 1 :

As Grandes Questões sobre a Natureza Humana  Observado de outro planeta, o comportamento humano pareceria muito surpreendente. 

O Homem é uma das raras espécies animais que matam o seu semelhante de  forma deliberada. 

Mais  ainda,  nuns  casos  condena  o  crime  individual,  noutras  condecora  os  responsáveis  por 

homicídios  colectivos  ou  os  inventores  de  atrozes  máquinas  de  guerra.  Este  louco  absurdo 

persegue­o ao longo da História, desde a invenção do machado de pedra lascada até à construção 

de bombas  termonucleares, e resistiu a  todas as religiões e a  todas as  filosofias, mesmo às mais 

generosas. Mas  o Homem  também  pintou  a  Capela  Sistina,  compôs  a  Sagração  da  Primavera, 

descobriu o átomo. Que quimera  é  este Homem? Que novidade, que monstro, que  caos, que  ser 

contraditório,  que  prodígio!  Quem  será  este  Homo,  que  a  si  próprio  atribui,  sem  vergonha,  o 

epíteto de Sapiens? J.‐P. Changeaux, O Homem Neuronal, 1985 

Os humanos gostam mais de oferecer bombons aos filhos do que arrancar-lhes os dentes.

Assistem com muito mais agrado a desafios de ténis do que a cenas de tortura. Na maior parte dos

casos, o assassínio ou a vingança não são mais do que gestos desesperados. Os verdadeiros

sádicos, os assassinos e os carrascos, os que gozam cm o sofrimento, não estarão gravemente

doentes?

  Muitos animais são carnívoros. O leão devora antílopes e gazelas, o gato contenta-se com

ratos e pardais, o homem come carne e peixe, por vezes até crus, ou marisco vivo. Mas a

antropofagia, onde quer que seja declarada, continua a ser um acto excepcional, singularizado,

ritualizado e carregado de conotações simbólicas: a carne humana não é de uso normal em

nenhuma sociedade conhecida.

Por que razão somos assim tão relutantes com o sangue e a carne dos nossos congéneres e

não com a carne do talho? Sem dúvida porque mantemos com eles laços privilegiados. E também

porque nos reconhecemos como semelhantes, como membros de uma mesma espécie definida por

caracteres estáveis.

Os homens não são idênticos, mas assemelham-se muito. Que os nossos olhos sejam em

bico ou não, que a nossa epiderme seja clara ou escura, o que nos une prevalece sobre o que nos

separa: todos temos uma boca, dois olhos, um nariz, um queixo, duas mãos, cinco dedos em cada

mão, o que nos confere uma aparência tipicamente humana, distinta da fisionomia dos cavalos,

por exemplo. Mas se sentimos pena ou até repugnância face ao homem cujos membros foram

amputados ou face ao homem-elefante no cinema, não os julgamos menos homens por isso. Uma

figura de cera do museu Grévin pode suscitar espanto e admiração. Porém, jamais lhe dirigiremos

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a palavra. As semelhanças que nos unem não são, pois, unicamente físicas. Reconhecer no outro o

nosso semelhante é, também, reconhecer nele um certo número de caracteres psicológicos que,

pela mesma razão dos elementos-chave da nossa fisiologia, são comuns a todos os membros da

espécie e constituem a «natureza humana». Adaptado e J. Mehler e E. Dupoux, Nascer Humano, 1994 

Quem sou eu? 

Por um  lado,  sou um conjunto de  células  organizadas  em ossos  e  em músculos,  em 

pele  e  cabelo,  num  cérebro,  fígado  e  outros  órgãos.  Parte  daquilo  a  que  chamamos 

comportamento e processos mentais são actividades destas células especializadas e da sua 

capacidade de comunicar umas com as outras. Paremos de ler por um momento e sintamos o 

nosso pulso.  

Estamos vivos porque o nosso  coração bate e os nossos pulmões  respiram graças à 

actividade  das  células  do  nosso  cérebro. Mais  ainda,  foi  graças  às  capacidades  das  nossas 

células  se  dividirem  e  executarem  funções  específicas  que  evoluímos  de  uma  célula 

fertilizada para o ser complexo que somos hoje.  

Algumas  células  especializadas  tornam possível  outro  aspecto  do  comportamento  e 

dos  processos mentais:  a  capacidade  de  receber  informação  vinda  dos mundos  externo  e 

interno. Paremos de ler outra vez e olhemos para a esquerda e para a direita. As imagens que 

vemos, tal como aquilo que está  impresso na página, são resultado de um processo através 

do  qual  as  células  dos  nossos  olhos  convertem  a  luz  em  actividade  nervosa  que  chega  ao 

cérebro. Excepto quando existe alguma incapacidade, as células dos órgãos dos sentidos dão 

ao  nosso  cérebro  informação  que  nos  permite  não  só  ver  o mundo, mas  também  ouvi‐lo, 

cheirá‐lo, saboreá‐lo, senti‐lo. Mexemos um dedo. São células do nosso cérebro e do sistema 

motor  que  nos  permitem  mexer  os  dedos  como  fizemos  agora.  Tal  como  nos  permitem 

produzir padrões de comportamento a que chamamos andar, dançar ou falar.  

Então  somos  apenas  um  conjunto  de  células  que  recebe  passivamente  informação 

automaticamente  e  reage  a  ela?  Claro  que  somos  muito  mais  do  que  isso.  Também 

interpretamos  e  construímos  significados.  Mais  ainda,  podemos  pensar  e  tomar  decisões. 

Suponhamos que alguém está na nossa frente com uma faca. Reconhecemos a faca como um 

objecto perigoso e percebemos o  significado das palavras «Passa para  cá o dinheiro». Nós 

obedecemos. No entanto, se a pessoa sorri e diz «Parabéns!», provavelmente pensamos que 

a faca serve para cortar um bolo. A nossa decisão sobre o que fazer nestas duas situações é 

orientada  não  só  pelas  circunstâncias  do  momento,  mas  também  pela  capacidade  de 

aprendizagem  e memória.  Se  não  compreendemos  as  palavras  ou  não  nos  lembramos  da 

cara  das  pessoas  da  nossa  família,  ou  o  que  aprendemos  sobre  ladrões  e  aniversários, 

estamos perdidos. 

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Parece  que  somos  seres  completamente  racionais,  capazes  de  processar  friamente 

informação em qualquer situação. Mas, no caso da faca, teremos apenas o pensamento lógico 

a funcionar? Provavelmente não. Sentimos também emoções e sentimentos de medo ou de 

felicidade.  Somos  capazes  de  sentir  estes  e muitos  outros.  De  onde  vêm  as  emoções  e  os 

sentimentos  e  por  que  é  tão  difícil  geri‐los?  Podemos  colocar  as  mesmas  questões 

relativamente  aos  nossos  desejos  e  necessidades.  Talvez  alguns  de  nós  façam  trabalho 

voluntário, adorem ler, tenham dois empregos ou comam mais do que deviam. Mas por que 

razão nos comportamos desta forma? O que é que no nosso comportamento nos faz sentir e 

como  é  que  os  sentimentos  influenciam  o  nosso  comportamento?  Estas  são  outras 

dimensões do ser e reflectem outros aspectos do comportamento e dos processos mentais. 

Acima  de  tudo,  cada  um  de  nós  é  um  indivíduo,  de  muitas  formas  diferentes  de 

qualquer outro na Terra. Temos a nossa própria  identidade, capacidades, valores, atitudes, 

crenças  e  até  uma  série  de  problemas  de  um  tipo  ou  de  outro.  A  nossa  individualidade 

emerge  parcialmente de  um  conjunto  único de  características  herdadas dos  nossos  pais  e 

parcialmente  da  experiência  de  crescimento  numa  família  particular  e  numa  cultura 

específica.  As  diferenças  individuais  nos  comportamentos,  nos  processos  mentais  e  nos 

processos de desenvolvimento parecem um caleidoscópio. 

Finalmente,  porque  somos  indivíduos  num  mundo  social,  colocamo‐nos  a  questão 

«Quem  sou  eu?»  o  que  inclui  algo  sobre  como  e  onde  estamos  no  mundo.  Podemos 

mencionar o tamanho da nossa família, o papel que desempenhamos nas organizações a que 

pertencemos,  as  nossas  atitudes  face  ao  governo.  Nenhuma  definição  de  Homem  estará 

completa  sem  referência  à  forma  como  as  pessoas  pensam  e  se  relacionam  umas  com  as 

outras.  E  não  nos  admiremos.  As  grandes  realizações  humanas,  como  uma  sinfonia  ou  a 

conquista  do  espaço,  acontecem  quando  as  pessoas  trabalham  em  conjunto.  Todas  as 

grandes  tragédias,  do  Holocausto  ao  terrorismo,  acontecem  quando  os  preconceitos  e  os 

ódios voltam as pessoas umas contra as outras. Adaptado de D. Bernstein, Psychology, 2000 

Como todos os seres vivos, o homem recebe à partida um património de informações 

genéticas  que  lhe  confiam  todos  os  segredos  de  que  o  seu  organismo  precisa  para  se 

constituir,  desenvolver  e  lutar  para  sobreviver.  As  substâncias  complexas  que  vão  fazer 

parte  do  seu  ser,  os  subtis  mecanismos  reguladores  que  o  irão  estabilizar,  os  relógios 

internos que irão cadenciar o seu desenvolvimento são influenciadas pelo conjunto de genes 

que recebeu em partes iguais do pai e da mãe. 

Mas esses genes isolados são mudos, não se conseguem exprimir senão com a participação 

do meio. A complexidade dos seres humanos manifesta‐se numa certa liberdade de reacção 

que  dá  lugar  a  comportamentos  novos.  Torna‐se  possível  a  inovação.  Cada  ser  pode 

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beneficiar  da  sua  experiência  pessoal  para  se  comportar  mais  eficazmente  em  cada 

circunstância.  Quando  as  lições  desta  experiência  são  transmitidas  à  geração  seguinte,  foi 

ultrapassada  uma  etapa  decisiva.  O  indivíduo  procriado  beneficia  de  um  período  de 

aprendizagem junto dos ses progenitores. A transmissão de  informações desconhecidas do 

património genético foi assegurada e este foi acrescido de um património cultural. 

Na nossa espécie, a aprendizagem é mais decisiva e mais longa. Mais do que qualquer 

outro animal, somos incapazes de sobreviver sozinhos. Embora menos aptos do que outros 

animais,  beneficiamos  de  um  incomparável  privilégio,  o  poder  praticamente  ilimitado  de 

aprender. Esta capacidade extraordinária foi aproveitada para inserir uma terceira linha de 

informação.  Devido  à  linguagem  e  à  escrita,  o  homem  criou  uma  memória  exterior  a  si 

próprio e capaz de lhe sobreviver. Ela encerra o conjunto da experiência humana. Apesar de 

esquecidos  por  todos  os  homens  durante  séculos,  os  antepassados  longínquos, 

desaparecidos  há  muito  tempo,  podem  ainda  comunicar‐nos  as  suas  aprendizagens  se 

soubermos decifrar a sua escrita. Isto permite afirmar, segundo a expressão do filósofo Jean 

Paul Sartre, que cada homem é «feito de todos os homens». (…) 

 

Eu  não  sou  como  os  outros.  A  partir  de  um  bebé  inconsciente,  inacabado,  fomos, 

pouco a pouco fabricados por todos os contributos do mundo que nos rodeia. Lançando mão 

de  todos  os  recursos,  devorando  tudo,  desenvolvemo‐nos  sem  preocupações,  às  cegas, 

empanturrados de papas, conselhos, de bandas desenhadas, de afecto, de repreensões e de 

televisão. 

  Chega então uma idade em que olhamos para nós próprios: quem é este ser em que 

me transformei? O que é que ele vale? Examinamos o olhar dos outros que, muitas vezes, no 

trespassa  sem  nos  ver  (serei  tão  insignificante?),  ou  nos  chega  carregado  de  ironias  e 

desprezos (serei ridículo?). Vemo‐nos ao espelho. Serei belo? Serei inteligente? A resposta a 

estas duas perguntas lancinantes é diferentes dos outros. 

  Eu não sou como os outros  é  claro,  porque o meu património  genético,  fruto de uma 

dupla lotaria, é único; como única é a aventura que vivo. O que tenho em comum com todos 

os outros é o poder de, a partir do que recebi, participar na minha própria criação. 

  Mas é preciso que mo permitam 

  E para isso contribuíram os meus pais, cujo óvulo e espermatozóide continham todas 

as receitas de fabricação das substâncias que me constituem. 

  E a minha família, pelo alimento, pelo calor, pelo afecto, que me permitem crescer e 

estruturar‐me. 

  E  a  escola,  que  me  transmitiu  conhecimentos  lentamente  acumulados  pela 

Humanidade desde que esta procura conhecer‐se e conhecer o Universo. 

  E todos os que me amaram com o seu insubstituível amor. 

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  Mas  sou  eu  que  tenho  de  concluir  a  obra,  que  tenho  de  colocar  a  trave‐mestra. 

Esqueçam o modelo que gostariam que eu  fosse. Não sou obrigado  a  realizar o sonho que 

imaginaram  para  mim;  isso  seria  trair  a  minha  natureza  de  Homem.  Para  que  eu  seja 

verdadeiramente um Homem, devem oferecer‐me mais uma coisa: a liberdade de vir a ser o 

que escolhi. Adaptado de A. Jacquard, O Meu Primeiro Livro de Genética, 1984 

Texto 2 :

Diferentes Vertentes do Desenvolvimento Humano

A  Psicologia  do  Desenvolvimento  é  uma  das  áreas  de  estudo  e  de  intervenção  da 

psicologia e pretende, em termos gerais, responder à questão «O que é que muda em nós ao 

longo da vida?». Deste modo, a psicologia do desenvolvimento tem por objectivo estudar a 

génese e a evolução dos processos psicológicos ao longo do tempo, quer dizer, as mudanças 

que acontecem com a idade. 

Um bebé sorri para a mãe, uma criança de três anos compreende uma conversa, uma 

outra, de seis anos, brinca com os amigos e inventa as regras de um jogo. As crianças de oito 

e dez anos são capazes de memorizar a mesma lista de palavras, um adolescente consegue 

resolver uma equação matemática, uma pessoa de trinta anos faz opções sobre a sua carreira 

profissional,  outra,  de  quarenta  e  dois  resolve  um  problema  emocional  e  outra,  ainda,  de 

sessenta  decide  que  vai  reformar‐se.  Estes  são  exemplos  de  comportamentos  que 

observamos no nosso quotidiano e que nos dizem o que as pessoas são ou não são capazes 

de  fazer. Considera‐se que o desenvolvimento é o processo contínuo de mudança psíquica 

que ocorre ao longo da vida. Um processo contínuo, global e dotado de grande flexibilidade.  

Na  Psicologia  do  Desenvolvimento  estuda‐se  a  forma  como  nos  desenvolvemos  ao 

longo do ciclo de vida, da fecundação até à morte. Durante muito tempo considerou‐se que o 

desenvolvimento  terminava  na  idade  adulta.  O  período  da  infância,  em  especial,  atraía  a 

atenção dos investigadores e daqui surgiram muitas teorias a explicar o que é que acontece 

durante  esta  fase  de  vida.  Isto  explica‐se  pela  razão  de,  na  infância,  ocorrerem mudanças 

muito visíveis e acentuadas. 

Hoje em dia, a idade adulta e a velhice são alvos de tanta curiosidade como a infância 

ou a adolescência. As pessoas não param de se desenvolver quando atingem a idade adulta. 

Progressivamente,  foi‐se  abandonando a  ideia de  imutabilidade dos  adultos. As  alterações 

das  condições  de  vida,  especialmente  nas  sociedades  ocidentais,  reforçaram  este  facto. 

Pensemos,  por  exemplo,  que  os  jovens  são  inseridos  cada  vez  mais  tarde  no  mundo  do 

trabalho, na precariedade do estatuto profissional, no aumento de divórcios, nos casamentos 

posteriores.  Quer  dizer  que  surgem  continuamente  novas  exigências  de  adaptação  que 

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requerem o desempenho de novos papéis  sociais. Mudamos mesmo depois de  crescidos  e 

diferentes  fases  da  vida  implicam  diferentes  exigências  biológicas,  sociais  e  também 

psíquicas  que  é  importante  conhecer.  Por  isso, muitas  investigações  se  debruçam  sobre  o 

modo como respondemos a elas. 

Também as ideias sobre os mais velhos têm mudado, distanciando‐se de concepções 

associadas  à  degradação.  Factores  como  o  aumento  do  tempo  de  vida,  a  deterioração  de 

algumas capacidades e a evolução de outras, o entrar na reforma quando se está apto para 

um conjunto de tarefas e de relações permitem às pessoas manter capacidades de adaptação 

a  novas  situações  e  estarem  abertas  à  mudança  e  à  vida.  Por  exemplo,  a  densidade  de 

neurónios corticais começa a diminuir desde o nascimento, tal como a acuidade perceptiva 

que começamos a perder muito cedo. Por tudo isto é fácil perceber que nos desenvolvemos 

ao  longo  da  nossa  existência.  O  corpo  e  as  capacidades  físicas  evoluem,  a  vida  afectiva 

transforma‐se, o estatuto social muda. 

A  Psicologia  do  Desenvolvimento  centra‐se  nas  mudanças  ao  longo  da  vida.  Aqui, 

mudança significa alterações quantitativas e qualitativas, do gatinhar ao andar, do balbuciar 

ao falar, do raciocínio ilógico ao lógico, da infância à adolescência, à maturidade, à velhice, do 

nascimento à morte. Por isso, parece importante perceber como é que o comportamento e os 

processos mentais mudam  ao  longo  da  vida,  tendo  em  conta  factores  físicos  e  biológicos, 

cognitivos,  afectivos  e  sociais  que  influenciam  as  diversas  fases  de  crescimento  e  de 

desenvolvimento.  Como  estes  factores  não  actuam  isoladamente,  surgem  questões 

relativamente  à  interacção  entre  eles  e  ao  papel  que  cada  um  desempenha  no  processo 

global. Também os contextos, por exemplo o contexto histórico, socioeconómico, cultural ou 

étnico, em que as pessoas se desenvolvem permitem compreender melhor a sua evolução. 

Ao  longo  da  sua  história  de  mais  de  cem  anos,  têm  surgido  na  psicologia  do 

desenvolvimento  uma  série  de  modelos  teóricos  que  explicam  de  modo  diferente  o 

fenómeno  da  mudança  e  o  papel  destes  factores  no  processo  de  desenvolvimento.  Cada 

modelo  tem  explicações  próprias  e  enfatiza  diferentes  vertentes  do  desenvolvimento. 

Embora  algumas  destas  explicações  possam  parecer  contraditórias,  esta  diversidade  de 

ideias enriquece a compreensão que temos do ser humano e do seu desenvolvimento. 

Historicamente,  estas  diferentes  concepções  têm‐se  organizado  muitas  vezes  em 

dicotomias,  ou  seja,  em  ideias  que  se  situam  em  posições  extremas.  Outras  vezes  tem‐se 

tentado  ir  para  além  delas  e  integrá‐las  permitindo  uma  visão  mais  alargada.  Essas 

dicotomias  normalmente  estão  na  base  daquilo  que  as  pessoas  pensam  sobre  o 

comportamento  humano.  Podemos  referir  as  mais  importantes  através  de  uma  série  de 

questões.  Será  o  desenvolvimento  humano  consequência  de  factores  hereditários  ou  de 

factores  adquiridos?  O  desenvolvimento  é  um  processo  contínuo  ou  haverá  rupturas  que 

impliquem  descontinuidade?  O  desenvolvimento  dependerá  mais  de  factores  internos  da 

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pessoa  ou  de  factores  externos?  O  desenvolvimento  é  um  processo  que  implica  a 

estabilidade da pessoa ou mudança contínua? 

Há muitos  séculos  que  se  coloca  a  questão  da  origem  das  características  dos  seres 

humanos, do que os leva a ser e comportar‐se de determinada forma. Muitos investigadores 

e pensadores têm procurado responder a uma questão que pode variar de enunciado. O que 

é  que  nos  torna  humanos?  O  que  é  que  nos  leva  a  comportarmo‐nos  de  determinadas 

formas?  Como  se  explica  que  nos  comportemos  de modo  diferente  uns  dos  outros?  Para 

responder  a  estas  perguntas,  diferentes  autores  colocaram‐se  nos  pólos  extremos  da 

dicotomia: o pólo do inato, da hereditariedade, da natureza, e o pólo do adquirido, do meio, 

da educação. 

 

O Inato e o Adquirido 

O  pólo  inato  tem  estado  ligado  a  formas  de  ver  o  ser  humano  e  o  seu 

desenvolvimento como sendo determinado pelas suas características biológicas e corporais. 

Os defensores desta perspectiva defendem que há uma natureza em nós, no nosso corpo, nos 

nossos genes  (ou até na nossa evolução  filogenética), que é  responsável pelo que somos e 

pela forma como nos comportamos. 

O  comportamento  humano  seria,  fundamentalmente,  determinado  pela 

hereditariedade.  Seria  o  património  genético  herdado  dos  progenitores  que  definiria  a 

constituição  orgânica  e  psíquica  dos  indivíduos,  bem  como  o  seu  comportamento, 

desenvolvimento,  personalidade.  Essas  características  seriam,  portanto,  inatas,  isto  é, 

nasciam  connosco.  A  maturação  encarregar‐se‐ia  de  orientar  o  crescimento  biológico  do 

corpo  e  o  desenvolvimento  segundo  padrões  definidos  por  determinados  programas 

genéticos. 

No pólo adquirido, relativo à educação, à influência do meio ambiente, encontramos 

perspectivas  que  defendem  que  são  as  nossas  experiências  sociais  e  culturais  que 

determinam a nossa forma de ser. Nós seríamos produto do que aprendemos e os ambientes 

em  que  vivemos  modelariam  o  nosso  desenvolvimento.  Os  autores  que  defendem  este 

princípio procuram ligações entre determinados ambientes e os percursos de vida. A forma 

como somos educados e aquilo que  aprendemos são responsáveis pelo que somos e pelos 

comportamentos que manifestamos. 

Nas explicações que propõem, os autores favorecem as variáveis do ambiente (o que 

está presente no contexto, o conjunto de estímulos) e os conceitos de adquirido (o que passa 

a  fazer  parte  do  repertório  de  comportamentos  de  uma  pessoa,  o  que  é  aprendido  em 

determinada  situação)  e  de  socialização  (enquanto  conjunto  de  experiências  e 

aprendizagens, vividas socialmente, por exemplo com a família). 

Alguns  autores  procuram  integrar  elementos  desta  dicotomia,  como  é  o  caso  de 

Piaget  que  valoriza  quer  os  factores  maturativos,  quer  os  factores  socioculturais.  Piaget 

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defende uma posição que não é nem inatista, nem empirista: a pessoa tem um papel activo 

no seu desenvolvimento. Neste processo intervêm factores biológicos e factores relativos ao 

meio,  às  acções  sobre  o  meio  e  à  transmissão  social.  A  sua  concepção  interaccionista  e 

construtivista visa uma síntese possível entre os dois pólos. 

 

A Continuidade e a Descontinuidade   Cada um de nós  está  em permanente  reconstrução. À medida que  vivemos, 

que crescemos, que vamos agindo, que nos relacionamos com as outras pessoas, vamo‐nos 

transformando e vamo‐nos tornando quem somos, encontrando as nossa formas de pensar, 

de sentir e de agir. 

  A dicotomia entre continuidade e descontinuidade relaciona‐se com a forma 

como muitos  autores  vêm  e  explicam  as  transformações  que  as  pessoas  vão  sentindo.  As 

perspectivas  mais  centradas  na  continuidade  e  as  mais  centradas  na  descontinuidade 

produzem diferentes compreensões sobre as mudanças que ocorrem na vida de cada um. 

  Na sua definição mais elementar, a noção de continuidade diz respeito a algo 

que  continua  a  existir  de  modo  semelhante  ao  que  existia  antes.  Nesta  perspectiva,  a 

mudança  é  gradual.  A  noção  de  descontinuidade  aponta  o  aparecimento  de  algo  que  não 

existia antes, para uma mudança abrupta. A questão da continuidade/descontinuidade tem 

marcado a psicologia do desenvolvimento e diferentes modelos que a explicam as mudanças 

e transformações ao longo do tempo. 

  Muitos modelos mais centrados na continuidade tendem a ver as mudanças 

em  determinados  comportamentos  como  resultado  de  uma  mudança  quantitativa,  isto  é, 

como  uma  mudança  que  ocorre  através  da  acumulação  de  associações  a  estímulos.  Mais 

respostas  condicionadas  ou  mais  competências  adquiridas  aumentam  o  repertório  de 

comportamentos observados e modelados e, portanto, das diversas formas de agir. 

  Para  os  autores  que  defendem  a descontinuidade  as  acções  e  as  relações 

conduzem  ao  surgimento  de  possibilidades  de  agir,  sentir  e  pensar  de  modos  novos  e 

diferentes. A existência destas maneiras novas de compreender e de agir no mundo, de criar 

sentido  para  o  que  vai  acontecer,  torna  necessária  uma  reorganização  que  resolva  os 

conflitos entre as compreensões mais recentes e as mais antigas. Quando esta reorganização 

conduz a uma  lógica global de organização de  formas de pensar,  de  agir  e de  sentir nova, 

ocorrendo uma transição para o estádio de desenvolvimento seguinte. 

  As  teorias  mais  centradas  na  descontinuidade  tendem  a  ver  as 

transformações  como  envolvendo  momentos  de  reorganização.  As  novas  formas  de 

organização apresentam‐se como qualitativamente diferentes das  anteriores. As mudanças 

não são vistas como quantitativas, mas como qualitativas. Em vez de haver acumulação de 

respostas, há diferenciação e novidade nestas. Há  sempre um modo de organização global 

que não existia antes e que emerge. 

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  Para  explicar  o  desenvolvimento  humano  tanto  a  continuidade  como  a 

descontinuidade  são  importantes.  Mudamos  e  vamo‐nos  transformando  tanto  de  forma 

contínua como de forma descontínua. Experimentamos mudanças que se devem à integração 

de  novos  conhecimentos,  de  novas  respostas,  de  novos  comportamentos  e  competências, 

mudanças que se explicam pela continuidade e pela alteração quantitativa dos nossos modos 

de  pensar  e  de  agir.  Mas  isso  não  explica  como  é  que,  em  determinados  momentos,  as 

transformações vão para além do mais ou do mesmo. A diferenciação, as novas respostas e 

capacidades são devidas a reorganizações mais ou menos globais, são mudanças qualitativas 

que modificam a organização subjacente aos nossos modos de ser e de nos desenvolvermos. 

 

O Interno e o Externo 

  Ao longo da história da psicologia o interior tem aparecido ligado ao corpo e 

à sua biologia, isto é, ao que se passa dentro de nós. Por outro lado, relacionamos interior às 

cognições, às emoções e aos pensamentos que foram encarados, durante muito tempo, como 

algo  que  se  passa  dentro  de  nós,  frequentemente  como  algo  que  se  passa  no  interior  da 

nossa cabeça. 

  Ao exterior associam‐se o contexto e a situação, as relações de socialização, 

as influências da cultura. O exterior tem sido relacionado com os estímulos que nos afectam, 

com  os  acontecimentos,  com  as  condições  em  que  vivemos.  Pensar  que  o  que  somos,  em 

determinado momento, pode ser explicado apenas pelo que se passa no nosso interior é não 

compreender que o interior e o exterior existem num permanente diálogo, na interacção que 

a cada momento nós vivemos com o mundo que nos rodeia. Não só o nosso corpo dá forma 

ao nosso estar numa situação,  como os contextos moldam o nosso  corpo e o que se passa 

dentro dele. Basta pensarmos na plasticidade do nosso cérebro. 

  O  que  nós  pensamos  está  presente  nas  situações:  reflecte‐se,  transporta‐se 

para a forma como sentimos e nos relacionamos com as coisas e com o mundo. Mudamos os 

contextos onde existimos através do modo como existimos. Mas está também lá, e também 

em  nós,  o  que  os  outros  pensam,  as  palavras  que  usam,  os  sentidos  que  certas  acções 

adquirem, o que em certas situações aprendemos a fazer… sempre na relação em que o que 

sentimos e o que pensamos, o que sabemos e o modo como agimos estão dentro e  fora de 

nós em permanente reconstrução. 

 

 

A Estabilidade e a Mudança   Ao  falarmos  da  continuidade  e  da  descontinuidade  referimo‐nos 

frequentemente  à  mudança,  à  transformação,  quer  quantitativa,  quer  qualitativa  que 

acontece  em  nós  ao  longo  do  tempo.  As  pessoas mudam,  os  seus  corpos mudam,  as  suas 

formas de ser e de estar mudam ao longo do tempo. Sabemos que não fomos sempre aquilo 

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que  somos  hoje.  Ao  nosso  lado,  vemos  outras  pessoas  a  mudar.  Reconhecemos  que  a 

mudança faz parte de nós próprios. 

  Nem  só  a mudança  explica  o  desenvolvimento  que  vamos  experimentando. 

Todos sabemos que há coisas que nunca mudam. Há pessoas que conhecemos bem e, sobre 

elas,  prevemos  como  se  comportam  em  determinadas  situações,  o  que  tendem  a  pensar 

sobre  si  e  sobre  o  mundo.  Podemos  até  deparar‐nos  com momentos  em  que  nos  parece 

estranha a forma como agem por não ser típica delas. Portanto, reconhecemos estabilidade 

nos modos de ser.  

  Como  nos  ajuda  a  questão  da  estabilidade/mudança  a  compreender  o 

comportamento e desenvolvimento humanos? Se pensarmos em nós agora, há um ano atrás 

ou  há  dez  anos,  o  que  parece  mais  importante?  O  que  permaneceu  ou  o  que  mudou?  A 

dicotomia entre estabilidade e mudança refere‐se ao modo como diferentes autores  foram 

explicando  o  desenvolvimento  como  um  processo  que  tem  origem  em  elementos  de 

estabilidade ou de mudança. 

  Os  autores  que  mais  valorizaram  o  pólo  da mudança  foram  aqueles  que 

abordaram,  sobretudo,  o  comportamento  das  crianças  e  dos  adolescentes.  Foram 

influenciados nas suas concepções gerais pelo que se passa nestas fases da vida humana em 

que predomina a transformação e a mudança. Parecia que enquanto a mudança marcava a 

infância  e  a  adolescência,  a  estabilidade  era  a  principal  característica  do  adulto.  Mas 

sabemos  hoje  que  a  principal  característica  dos  seres  humanos  é  a  plasticidade  que  os 

acompanha ao  longo da vida  e que de modo algum  termina na adolescência. Tudo quanto 

sabemos acerca da plasticidade biológica, do modo como os seres humanos  interagem uns 

com os outros, como reorganizam as suas vidas, as suas concepções do mundo, a sua própria 

identidade reforçam a ideia de que a mudança nos acompanha ao longo da vida. 

  É  evidente que  estas  afirmações não  são  incompatíveis  com a  afirmação da 

estabilidade.  Reconhecemo‐nos  e  somos  reconhecidos  mesmo  quando  desempenhamos 

diferentes papéis,  quando nos movemos em contextos diferentes,  com o passar do  tempo. 

Esta ideia conduz‐nos ao conceito de identidade. A identidade representa uma continuidade, 

uma  fidelidade,  uma  consistência  e  coerência  no  modo  de  ser  e  estar.  Corresponde  às 

características pessoais, persistentes, dotadas de coerência  interna. Contudo, não podemos 

associar  a  estas  características  um  carácter  estático.  A  identidade  constrói‐se  ao  longo  da 

vida  e  é  um  processo  dinâmico  que  envolve  necessariamente  mudança.  Os  processos 

biológicos,  os  factores  sociais  e  as  experiências  pessoais  são  os  motores  das  mudanças 

inerentes a todos os processos de adaptação, portanto, de vida.  Adaptado de M. Monteiro e P. Ferreira, Ser Humano, 2.ª Parte, 2006

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Texto 3 :

As Consequências da Teoria de Darwin na Perspectiva sobre o Homem

Todos  os  seres  vivos  que  pululam  sobre  a  Terra  são  aparentados.  Retrocedendo 

bastante na minha genealogia, descubro que os meus antepassados são comuns a qualquer 

homem,  bem  como  a  qualquer mamífero,  a  qualquer  peixe,  a  qualquer  planta,  a  qualquer 

bactéria.  Claro  que  quanto mais  afastado  for  da  espécie  humana  a  espécie  a  que  o  outro 

pertence, mais atrás no passado é necessário retroceder para encontrar esses antepassados 

comuns, alguns milhões de anos para um orangotango, 60 ou 70 milhões para um coelho ou 

um  cavalo,  400  ou  500  milhões  para  um  peixe,  mais  de  um  milhar  de  anos  para  um 

invertebrado e 3 milhares de milhão para uma alga. 

O chimpanzé é, de longe, a espécie mais próxima da nossa. Alguns trabalhos recentes 

indicam que, depois da  separação destas duas espécies,  a  evolução do chimpanzé  foi mais 

rápida do que a do homem. Por outras palavras, o nosso antepassado comum estava mais 

próximo do homem actual do que do chimpanzé. Esta expressão demonstra como a famosa 

expressão  «o homem descende do macaco»,  falsamente  atribuída  a Darwin,  é  o oposto da 

realidade. De facto, homens e os macacos actuais descendem de um antepassado comum, o 

que é completamente diferente. Adaptado de A. Jacquard, O Meu Primeiro Livro de Genética, 1986 

Estamos em 1859. Sob o governo próspero e austero da rainha Vitória, formou‐se uma 

classe  burguesa  rica  que  a  si  mesma  impôs  normas  de  vida  resultantes  de  uma  moral 

fechada  e  preconceituosa.  A  Inglaterra  parecia  destinada  a  avançar  em  direcção  a  metas 

seguras e gloriosas, nas quais o progresso científico, fundado sobre a razão e iluminado pela 

religião  tradicional,  teria  dissipado  todas  as  dificuldades  e  contrariedades  que  afligiam  a 

sociedade. 

Um relâmpago inesperado, seguido de um verdadeiro temporal, vem de súbito abalar 

a  boa  sociedade  vitoriana,  aquela  onde  não  era  aconselhável  fazer  referências  às  pernas 

(nem  sequer  às  da  mesa),  onde  não  era  admitido  falar  de  negócios  ou  de  dinheiro  na 

presença de  senhoras. A 24 de Novembro, o  editor  londrino Murray publicava um  livro, A 

Origem das Espécies por meio da Selecção Natural, da autoria de um certo Charles Darwin. A 

tiragem  completa,  de  1250  exemplares,  esgotou‐se  num  dia.  Foi  um  sucesso  editorial 

verdadeiramente  espantoso,  tanto  mais  se  tivermos  em  conta  que  a  publicidade  estava 

apenas nos seus inícios, e que se tratava de um livro especializado, um calhamaço, e não de 

um texto de divulgação ou que seguisse uma moda. 

O que afirmava este senhor Darwin para tanto apaixonar os  leitores da Europa e do 

mundo e para, de repente, lhe dar tanta fama? As suas ideias eram realmente audazes e não 

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podiam  deixar  de  escandalizar  os  bem  pensantes  europeus.  Darwin  contradizia 

completamente a Bíblia, a narração da criação em seis dias, segundo a qual o mundo, o céu, a 

terra  e  os  seus  habitantes,  teriam  saído  das  mãos  de  Criador  tal  qual  os  vemos  hoje. 

Afirmava, pelo contrário, que a Terra tem uma  longa história de muitos milhões de anos e 

que  as  espécies  de  animais  e  de  plantas  que  vivem no  planeta  não  são  já  as mesmas  que 

foram produzidas no momento da criação, mas as descendentes das que viveram em épocas 

muito longínquas. A ideia central era a de que as espécies de animais e de plantas não são 

fixas  e  imutáveis,  não  se  repetem  sempre  iguais  a  si  mesmas,  mas  que  se  modificam 

lentamente no  tempo e através de  sucessivas  gerações,  isto  é,  evoluem. Daqui  a dizer que 

também o Homem descende de antepassados simiescos vai apenas um breve passo e Darwin 

já o deixa pressentir na Origem das Espécies. 

Para muitos, o livro de Darwin foi como uma autêntica luz no túnel. Nesse tempo, as 

ciências  naturais  limitavam‐se  a  recolher  e  a  acumular  datas  e  descrições.  Faltava  um  fio 

condutor que as unisse numa visão teórica global. Darwin trouxe essa visão. Encontravam‐se 

finalmente explicações, observações, constatações anteriormente isoladas e fragmentadas. À 

luz da nova teoria podiam compreender‐se as semelhanças e as diferenças entre numerosas 

formas de organismos vivos, a sucessão de animais e de plantas através das varias idades da 

Terra  e  dos  quais  tinham  sido  encontrados  traços  fósseis  de  presença  de  órgãos 

rudimentares que, numa certa fase do desenvolvimento de uma espécie, pareciam ter caído 

em desuso. Para  esclarecer determinados  factos  já não  era necessário  recorrer  a  espíritos 

vitais ou a entidades metafísicas fora da experiência sensível. 

Os bem pensantes, fiéis ao passado, não podiam deixar de se preocupar com as novas 

ideias.  Estavam  em  jogo  os  próprios  fundamentos da  sua moral,  da  sua  sociedade,  da  sua 

cultura. É certo que Darwin era um homem da alta sociedade, que vivia por meios próprios 

na sua bela casa de Kent. É certo que havia estudado e reflectido mais de vinte anos e que 

havia  sido  muito  prudente  nas  suas  afirmações.  É  certo,  também,  que  jamais  se  havia 

proclamado ateu. No entanto, a sua doutrina era perigosa, subversiva e, no que se referia à 

origens da humanidade,  verdadeiramente «indecente». Os homens preferem considerar‐se 

descendentes caídos em desgraça de seres divinos, a criaturas mais humildes e simples. 

Na virtuosa sociedade vitoriana, a teoria da origem do Homem a partir de símios viu‐

se refutada antes de mais por uma questão de gosto. O estadista Benjamin Disraeli declarou 

preferir, de longe, ter anjos em vez de símios por antepassados. O conformismo da burguesia 

da  época  está  bem patente  nesta  exclamação de  uma  senhora,  posta  num beco  sem  saída 

pelos argumentos de um defensor de Darwin: «Será talvez verdade que o Homem descende 

de símios, mas ao menos não o digamos, é melhor que tal não se saiba!». Adaptado de G.Montalenti, Charles Darwin 1982 

 

 

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Charles  Darwin  (1809‐1882)  nasceu  em  Shrewsbury,  na  Grã‐Bretanha  e  estudou 

Medicina  na  Universidade  de  Edimburgo.  Darwin  nunca  foi  um  aluno  brilhante  nem 

aplicado, apesar do seu interesse pela história natural, coleccionando conchas, minerais ou, 

por  exemplo, besouros. Tudo  indicava que  a  sua vida  seria  igual  à de qualquer  cavalheiro 

ocioso com fortuna. Com um avô, Eramus Darwin, com nome na ciência, e um primo, Francis 

Galton,  considerado  um  génio  desde  pequeno  e  que  se  viria  a  tornar  célebre  na  área  da 

psicologia, o pai, médico, preocupa‐se com aquele rapaz que poderia tornar‐se a desgraça da 

família. Manda‐o  estudar Medicina,  o  que  foi  uma  grande maçada  para o  jovem,  visto  que 

esta  não  o  interessava  nada.  Posteriormente,  envia‐o  para  Cambridge,  para  que  se  torne 

clérigo anglicano. Mas Darwin caçava, pescava, bebia e jogava às cartas com os seus amigos. 

Estava  há  três  anos  na  universidade  quando  recebe  um  convite  peculiar.  Dado  o  seu 

interesse pelas ciências naturais, foi‐lhe proposto embarcar como naturalista numa viagem à 

volta do mundo, no navio Beagle. Esta viagem, iniciada em 1831 e que durou cinco anos, iria 

mudar a sua vida.  Com os dados recolhidos sobre a grande variedade de espécies animais e 

vegetais de  ilhas do Pacífico, elaborou uma teoria da evolução que daria brado muito para 

além  dos  meios  científicos.  Darwin  acabou  por  se  tornar  um  cientista  do  seu  tempo, 

escrupuloso, prudente nas interpretações, pouco dado a discussões e à publicidade. 

Perguntas como «Por que razão estes seres estão tão bem adaptados ao meio?» ou «O 

que  fará  com  que  alguns  indivíduos  da  mesma  espécie  sobrevivam  e  outros  morram?» 

intrigavam Darwin.  O  trabalho  do  cientista  não  se  podia  limitar  a  descrever  a  plumagem 

brilhante do pavão ou as manchas coloridas do  lagarto. Eu tinha que perceber como é que 

estas características se relacionavam com a capacidade de sobrevivência. Com as perguntas 

certas e o material recolhido na viagem, Darwin organiza as suas ideias na obra A Origem das 

Espécies pela Selecção Natural, concluída em 1859, mais de vinte anos após a viagem. 

Darwin sustenta que a vida é um processo de adaptação permanente. Os organismos 

adaptam‐se ao meio com o objectivo de sobreviverem. Este processo implica uma luta pela 

existência  uma  vez  que  nascem  demasiados  indivíduos  face  aos  recursos  alimentares 

disponíveis. Esta luta, embora sendo mais severa entre indivíduos da mesma espécie, dá‐se 

também com indivíduos de outras espécies e com as próprias condições do habitat. 

Sem nada saber ainda de genes, Darwin intuía que as características dos progenitores 

eram,  de  alguma  forma,  transmitidas  às  gerações  seguintes.  Mas  que,  às  vezes,  as 

características alteravam‐se, por recombinação ou por mutação genética sabemos nós hoje, 

surgindo assim novas características. O destino dos indivíduos possuidores destas mudanças 

dependia do seu carácter adaptativo. 

Então,  se num certo meio os  indivíduos  com determinadas características  tendem a 

ter mais  sucesso,  por  exemplo na procura de  alimentos,  em afastar os  inimigos,  em atrair 

parceiros sexuais e sobreviverem até poderem reproduzir‐se, os seus genes tornam‐se cada 

vez mais comuns naquela população. Pelo contrário, os indivíduos cujas características não 

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são tão adaptativas, tendem a morrer antes de se reproduzirem, ou reproduzem‐se menos e 

os seus genes tendem a ser cada vez menos comuns ou tendem mesmo a extinguir‐se. Pode 

questionar‐se  se  estas  mudanças  são  graduais  ou  abruptas  e  se  a  competição  pela 

sobrevivência  é um mecanismo prioritário de mudança. Mas os  cientistas  estão de  acordo 

sobre  estes  processos  básicos  da  evolução.  Darwin  defendeu  que  as  plantas  e  os  animais 

evoluíram  ao  longo  de  milhares  e  milhares  de  anos,  acumulando  características  que  os 

tornaram mais capazes de sobreviver e de se reproduzirem. 

O princípio da selecção natural constitui o mecanismo mais  importante da evolução 

dos  organismos.  Tudo  se  passaria  à  semelhança  da  criação  de  animais.  Os  criadores 

seleccionam as vacas que dão mais leite, os carneiros que têm melhor lã ou os cavalos mais 

rápidos. Na Natureza, não existem estes criadores com este objectivo de melhoramento, mas 

na luta pela existência é a própria natureza que selecciona os melhores. 

Qualquer  indivíduo, na  sua  zona de  subsistência,  está em concorrência  com os  seus 

semelhantes  pela  comida  e  pelo  território.  Os  indivíduos  portadores  de  características 

vantajosas  são  os  sobreviventes.  São  os  mais  rápidos  na  corrida,  os  mais  resistentes  nas 

epidemias ou os mais sedutores no momento da procriação. Estas características são inatas 

e, sendo benéficas, vão ser transmitidas à descendência. 

A  Origem  das  Espécies  foi  recebida  pelos  cientistas  mais  progressistas  como  o 

conjunto de  ideias  científicas mais  importantes  do  século XIX,  comparável  ao princípio da 

gravidade  de Newton.  Para  os  conservadores,  especialmente  a  igreja,  como  uma desgraça 

para a humanidade, pelo que lançaram um vendaval de protestos. 

A  coisa  piorou  com  a  publicação  de  A Descendência do Homem  (1871),  em  que  se 

aplicavam  os  princípios  transformistas  ao  Homem  afirmando  a  sua  descendência  de  um 

indivíduo simiesco, antepassado comum a nós e aos macacos actuais. Ideia implícita na oba 

anterior, mas agora clara como água. Afinal, todos os seres vivos são nossos primos. 

Caíamos  do  mundo  dos  deuses  para  um  lugar,  ainda  que  cimeiro,  numa  escala 

evolutiva,  descobrindo  uma  parentela  que,  ao  que  parece,  nos  incomodou  bastante.  Este 

incómodo,  ao  que  parece,  continua  a  existir.  Nos  ainda  recentes  anos  90,  nos  EUA  e  em 

alguns países da América do Sul, discutia‐se a  legitimidade do  ensino da teoria de Darwin, 

nas escolas. 

Apesar  da  feroz  oposição  da  igreja,  a  teoria  de  Darwin  foi  rapidamente  aceite  pela 

comunidade científica. As concepções mecanicistas subjacentes à teoria estavam de acordo 

com  o  estilo  de  pensamento  da  Revolução  Industrial.  A  teoria  também  fez  sentido  à 

sociedade vitoriana, porque oferecia um modelo natural do  sistema económico capitalista. 

Na luta pela sobrevivência económica, tal como na Natureza, só o mais forte sobrevivia. 

Ao conceber a teoria da evolução e a ideia de continuidade entre o mundo animal e o 

mundo humano, configurando o ser humano como parte de um contínuo evolutivo, Darwin 

não imaginava a revolução que iria fazer em muitas áreas do conhecimento e, especialmente, 

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na  forma  de  olhar  e  de  pensar  o  Homem.  Entre  outros  escritos  importantes,  publica,  em 

1872, um estudo comparativo sobre o modo como os seres humanos e os animais expressam 

emoções,  A  Expressão  das  Emoções  nos  Homens  e  nos  Animais,  mostrando  que  havia 

semelhanças entre humanos e animais nas expressões de medo, de raiva e de prazer. 

Darwin  afirma  que  os  seres  vivos  se  adaptam  ao  meio  com  o  objectivo  de 

sobreviverem.  Como  existe  um  excesso  de  indivíduos  face  aos  recursos  alimentares 

disponíveis,  há  uma  luta  pela  existência.  Os  indivíduos  apresentam  diferenças  nas  suas 

características.  Algumas  dessas  diferenças  permitem  uma  melhor  adaptação  ao  meio  e, 

portanto, maiores possibilidades de sobrevivência. A selecção natural e o mecanismo geral 

da evolução, permitindo mudanças progressivas nas espécies. Opera permanentemente e de 

forma universal. Qualquer variação que se mostre adaptativa e seja seleccionada manifesta‐

se  nas  gerações  seguintes.  A  evolução  apresenta  um  carácter  mecanicista.  É  o  acaso  e  a 

selecção  natural  que  intervêm  na  mudança.  Os  organismos  vão‐se  «aperfeiçoando»  na 

relação  com  as  condições  físicas  e  ambientais.  Embora  não  tendo  feito  investigação 

directamente  no  campo  da  psicologia,  a  obra  de  Darwin  influenciou‐a  indelevelmente  tal 

como a nossa concepção de Homem. 

As principais ideias de Darwin são: 

1. Continuidade evolutiva dos seres vivos. Sendo o Homem produto da evolução, o 

comportamento humano e dos outros animais apresenta aspectos semelhantes. O estudo do 

comportamento animal tornou‐se útil para a compreensão do comportamento humano. 

2.  Ênfase  no  funcionamento  da mente.  Mais  importante  do  que  a  estrutura  da 

mente, é o modo como ela funciona. É percursor de um movimento de ideias em psicologia 

que se preocupa mais com as funções da consciência do que com a análise do seu conteúdo. 

3.  Foco nas diferenças  individuais.  Mostrando  a  existência  de  variações  entre  os 

membros  da  mesma  espécie,  desperta  interesse  para  a  forma  como  as  pessoas  se 

diferenciam umas das outras. 

4.  Ampliação  das  metodologias  de  investigação  utilizando  a  observação 

naturalista. Para estudar as emoções, por exemplo, recolheu dados sobre o comportamento 

emotivo  de  doentes  mentais  e  também  de  exploradores  que  fizeram  observações 

antropológicas  em  sociedades  tribais. Observou os  seus próprios  filhos,  fotografou grande 

variedade de indivíduos que reagiam emocionalmente ou actores que simulavam expressões 

específicas. 

 

 

 

 

 

 

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Texto 4 :

As Teorias do Senso Comum sobre o Desenvolvimento Humano

 

Numa  operação  stop,  o  polícia  de  trânsito  pediu  os  documentos  ao  condutor  e, 

simultaneamente, inquiriu‐o a propósito da sua profissão. O condutor, ligeiramente ansioso 

pelo incómodo da paragem forçada, respondeu. «Sou psicólogo». O polícia olhou‐o, esboçou 

um sorriso que  indicava alguma  ironia e  retorquiu: «Oh homem, psicólogos somos  todos!» 

Apesar da  ignorância deste hipotético agente de autoridade, a sua resposta demonstra um 

profundo  conhecimento  da  natureza  humana.  No  nosso  dia  a  dia  tomamos  decisões 

complexas em situações ambíguas, antecipamos o comportamento social dos indivíduos com 

quem interagimos e, frequentemente, tentamos induzir ou alterar o seu estado emocional. A 

nossa vida seria penosa se não possuíssemos capacidades para categorizar, prever, avaliar, 

fazer  inferências  e  criar  novas  soluções  para  as  questões  triviais  quotidianas.  Estas 

capacidades  encontram‐se  reflectidas  na  sabedoria  popular,  como,  por  exemplo,  «cesteiro 

que faz um cesto faz um cento». 

Adaptado de A. Baptista, O que é a Psicologia, 2002 

 

  As  teorias  do  senso  comum  assentam,  muitas  vezes,  em  estereótipos  e  em 

preconceitos, sendo inferidas a partir de comportamentos pessoais e colectivos, avaliados de 

modo acrítico, de acordo com crenças e tradições, sem outra preocupação que não seja a de 

resolver problemas do quotidiano. 

  Vejamos  alguns  ditados  populares  ou  afirmações  aceites  pela  generalidade  das 

pessoas.  «A  primeira  impressão  é  normalmente  verdadeira».  «Longe  da  vista,  longe  do 

coração». «As pessoas nunca são velhas de mais para aprender». «Burro velho não aprende 

ofício».  «Os  opostos  atraem‐se».  «Os  pássaros  da  mesma  plumagem  voam  juntos». 

«Apanham‐se moscas com mel e não com vinagre». «A ausência fortalece os sentimentos».  

  Os  adágios  expressam  informações  ambíguas.  E,  curiosamente,  uns  contradizem  os 

outros. Num estudo, verificou‐se que 72% dos indivíduos inquiridos consideravam que «os 

opostos  se  atraem».  A  psicologia  social  demonstrou  que  isto  não  é  mesmo  verdade.  As 

investigações sobre a atracção mostram que raramente somos atraídos por pessoas que são 

muito diferentes de nós. 

  No entanto, é este saber que orienta a nossa vida e regula as  interacções sociais. As 

nossas teorias implícitas sobre as pessoas e o mundo baseiam‐se num conhecimento que é 

empírico  e  ingénuo.  É  um  conhecimento  preso  às  aparências  e  subjectivo  uma  vez  que 

envolve  os  interesses,  as  emoções  e  os  valores  de  quem  observa.  Trata‐se  de  um 

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conhecimento  espontâneo,  fragmentado,  parcial  e  restrito,  do  qual  se  extraem 

generalizações imprecisas e ilegítimas. Estas generalizações da experiência quotidiana, sem 

qualquer grau de avaliação crítica, de sistematização e de verificação, vão‐se perpetuando ao 

longo do tempo nas diferentes comunidades e culturas. 

  Por  que  razão  é  importante  conhecermos  as  nossas  teorias  implícitas  sobre  o 

desenvolvimento humano? Porque elas modelam o modo como vemos o mundo e como nos 

relacionamos com os outros. Porque muitas vezes estão assentes numa sabedoria empírica e 

não científica que contradiz os dados da ciência.  

Termos  consciência  das  nossas  teorias  implícitas  permite‐nos  ter  uma  atitude 

reflexiva  e  crítica  face  às  nossas  concepções  de  ser  humano.  São  estas  concepções  do  ser 

humano que determinam as relações que temos connosco próprios e com os outros. Como o 

trabalho em educação, aos mais diversos níveis e com as mais diversas populações, implica 

sempre o estabelecimento de relações, parece importante que examinemos as nossas teorias 

e saibamos o que é que, na nossa prática, depende delas. 

 

 

Um exemplo da importância das teorias implícitas 

 

Para além dos  estudos  científicos  sobre  a  inteligência,  as  teorias explícitas, muitas 

outras  concepções  podem  agrupar‐se  em  teorias  implícitas.  As  teorias  implícitas  são 

construções mentais que qualquer  sujeito,  investigador ou  leigo, pode desenvolver acerca da 

inteligência e que podem ser explicitadas  (Faria  &  Fontaine,  1993).  Estas  perspectivas  são 

sobretudo intraculturais e descritivas, e embora, por vezes, se baseiem em teorias científicas, 

não resultam de análises ou de observações presumivelmente objectivas.  

  O objectivo principal das investigações em torno destas teorias é descobrir as formas 

e  os  conteúdos  das  concepções  informais  de  cada  um.  As  teorias  implícitas  veiculam  as 

representações das pessoas sobre a  inteligência pelo que poderão ser consideradas teorias 

de  significados.  Apesar  das  evidentes  e  inegáveis  diferenças,  poderemos  considerar  com 

Sternberg (1985) que existe uma relação dinâmica e desenvolvimentista subjacente aos dois 

paradigmas  dado  que  tudo  indica  que  frequentemente  as  teorias  implícitas  dos 

especialistas/investigadores potenciam e dão origem às suas teorias explícitas.  

  Para  além  da  importância  das  teorias  implícitas  como  percursoras  ou  pontos  de 

partida para as teorias explícitas convém reforçar que aquelas teorias se revestem de grande 

relevância  em  si  próprias  como  objecto  independente  de  estudo  na  medida  em  que  se 

apresentam como representações que as pessoas fazem de conceitos e de situações que são 

utilizadas  para  identificar,  avaliar  e  classificar  tanto  os  seus  próprios  comportamentos  e 

atitudes como os de outras pessoas.  

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Por exemplo, Mugny e Carugati  (1985;1989,  citados por Faria & Fontaine, 1993) na 

sequência de um estudo efectuado com pais e professores concluíram que o factor Teoria do 

Dom Natural se destacava nas concepções pessoais que ambos os grupos apresentavam na 

explicação  da  natureza  da  inteligência.  Na  base  desta  teoria  está  a  representação  da 

inteligência como  fenómeno desconhecido, como um dom  inato e hereditário determinado 

biologicamente  e  observável  em  diferentes  graus  de  sujeito  para  sujeito.  Desta  forma,  a 

atribuição  causal  externa  assumida  por  pais  e  professores  permite‐lhes  adoptar  um 

posicionamento de relativa distância, desresponsabilizando‐se das situações em que ocorre 

o  fracasso,  e  manter  uma  identidade  social  e  profissional  positiva.  A  organização  das 

representações dos professores sobre a  inteligência e o seu desenvolvimento afecta não só as 

relações  informais  que mantêm  com  os  alunos, mas  também  as  suas  estratégias  didácticas 

explícitas (Parsons et al. 1983; Snellman & Raty, 1992 referidos por Faria & Fontaine, 1993, 

p. 473). 

  Também  para  Doudin  e  Martin  (1999)  podemos  identificar  uma  concepção  inata 

(inteligência como dom natural e hereditário) por oposição a uma concepção construtivista e 

interaccionista (o sujeito desenvolve e constrói a sua inteligência através de um processo de 

interacções  que  estabelece  com  os  seus  educadores).  A  opção  por  uma  destas  vias 

influenciará  não  apenas  a  representação  que  o  professor  tem  da  inteligência  e  do  seu 

desenvolvimento, mas também o enquadramento pedagógico e as metodologias a adoptar. 

  Os  resultados  de muitos  estudos  indicam  que  as  concepções  ou  representações  de 

inteligência  se  revestem  de  um  forte  cariz  sociocultural.  A  multiplicidade  de  definições  e 

consequente  relativismo  que  as  caracterizam  permite  afirmar  que  o  significado  de 

inteligência varia em função das sociedades, dos grupos sociais e dos indivíduos.  

O relativismo e o pluralismo da definição de inteligência são complementados com a ideia de 

inteligência enquanto processo de adaptação social e de adequação às regras e normas que 

pressupõe  um  bom  ambiente  afectivo  e  relacional  na  escola.  A  este  nível,  os  professores 

identificam a  influência do  contexto  familiar. No  entanto,  talvez porque  confrontados  com 

dificuldades  e  dilemas  diários  que  não  conseguem  solucionar  ou  compreender  através  de 

representações e modelos científicos que constroem, os professores concebem a  influência 

familiar em contornos biológicos e herméticos,  logo não sendo passíveis de modificação ou 

de  controlo  através  das  práticas,  mecanismos  e  metodologias  adoptadas  na  escola.  Esta 

desresponsabilização,  novamente  centrada  em  atribuições  causais  externas,  iliba  os 

professores de qualquer intervenção ou responsabilidade nas situações de fracasso escolar, 

o que contribui para manter uma identidade profissional positiva. 

  A complexidade e contradições das representações dos professores podem constituir 

um forte indicador da cultura de escola que pontua ainda as nossas práticas. De facto, essas 

representações são simultaneamente influenciadas e influenciadoras das características que 

definem a escola. Podemos mesmo afirmar que as contradições patentes nas representações 

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dos  professores  existem  também  na  estrutura,  metodologias  e  princípios  do  Sistema 

Educativo,  o  que  nos  leva  a  considerar  que se vive actualmente uma distorção muito nítida 

nas relações entre meios e fins ou objectivos do ensino e da aprendizagem, sendo a avaliação 

do  rendimento  dos  alunos  considerada,  pela  importância  que  lhe  é  atribuída,  como  um 

verdadeiro, ou até exclusivo objectivo da prática pedagógica em vez de  ser percepcionada e 

vivida como um meio auxiliar ou um instrumento mediador de regulação, de aperfeiçoamento 

e de adequação das actividades de ensino e de aprendizagem relativamente aos objectivos de 

desenvolvimento global dos alunos (Abreu, 1991).  

  Quer  os  estilos  pedagógicos  e  interacções  escolares  como os  resultados  dos  alunos, 

são  influenciados  pela  concepção  que  os  professores  possuem  de  inteligência  e  das 

possibilidades  do  seu  desenvolvimento.  A  adopção  de  uma  perspectiva  inatista  ou  a 

preferência  por  estratégias  construtivistas  influencia  de  forma  determinante  as 

metodologias mobilizadas pelos professores (Doudin & Martin, 1999). 

  Os  docentes  que  partem  de  uma  concepção  que  visualiza  o  desenvolvimento  como 

uma  questão  de  maturação  fisiológica  e  que  perspectiva  o  ritmo  desse  desenvolvimento 

como  sendo  determinado  por  factores  naturais  e  inatos,  adoptam  mais  frequentemente 

estratégias transmissivas que exigem a sua retenção e evocação posteriores do que aqueles 

que defendem que os  alunos  constroem e desenvolvem a  sua  inteligência dimensionada  e 

situada  num  contexto  de  interacções  favoráveis,  em  especial  as  que  resultam  da  relação 

professor‐aluno.  Uma  representação  da  inteligência  como  processo  que  se  constrói  e 

desenvolve  favorece  também  a  tendência  para  utilizar  estilos  educativos  baseados  na 

problematização e em questões abertas orientadas para um significado, o que por seu turno 

conduz  ao  desenvolvimento  das  capacidades  de  representação  da  criança.  De  facto,  um 

posicionamento  construtivista  estimula  o  envolvimento  dos  docentes  na  procura  de 

estratégias de treino e de modificação da inteligência que, desta forma, se operacionalizam 

em processos de desenvolvimento  de estruturas que visam a  resolução de problemas. Por 

oposição, uma concepção inatista pressupõe um papel passivo do professor cristalizado na 

representação da inteligência como capacidade intelectual genérica imutável. 

  Um  outro  aspecto  referido  por  Doudin  e  Martin  (1999)  na  distinção  entre  as 

concepções  inatistas  e  construtivistas/interaccionistas  prende‐se  com  o  papel  do  erro  na 

aprendizagem e no desenvolvimento intelectual. Estes autores concluem então que o papel 

atribuído  aos  erros  influenciará  favorável  ou  desfavoravelmente  o  desenvolvimento  da 

criança, tanto no plano intelectual como no afectivo. A dimensão construtivista implica uma 

visão  desenvolvimentista  da  inteligência  pelo  que  tanto  a  criança  como  os  adultos 

desempenham um papel activo e dinâmico na sua construção. Assim, o erro não é assumido 

como  demonstração  de  incompetência  intrínseca mas  como  possibilidade  de  evolução  ou 

etapa  de  um  processo  de  desenvolvimento.  No  sentido  oposto  a  esta  perspectiva,  uma 

concepção inatista que concebe a inteligência como sendo imutável, confere aos professores, 

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alunos  e  pais  um  papel  passivo  acentuando  o  erro  como  sinónimo  ou  sintoma  de 

incapacidade definitiva. 

  A  relevância  e  a  interpretação  atribuída  aos  erros  desempenham  um  papel 

determinante  no  estilo  atribucional  (locus  de  controlo)  dos  alunos,  isto  é,  na  atribuição 

causal conferida aos sucessos e fracassos. 

  Pela importância dada não apenas aos aspectos construtivistas e interaccionistas mas 

também ao desenvolvimento das capacidades de auto‐monitorização e, consequentemente, 

ao  envolvimento  de  processos  e mecanismos motivacionais,  a metacognição  constitui  um 

enquadramento teórico e prático que permite aos professores optimizar o desenvolvimento 

das competências dos seus alunos (Doudin, Martin e Albanese 1999; Grangeat 1997, citados 

por Doudin e Martin, 1999). De  facto,  a metacognição,  conceito  introduzido por Flavell no 

início da década de 70 para definir o conhecimento sobre os próprios processos e produtos 

cognitivos,  confere  à  inteligência  um  carácter  multidimensional  abarcando  aspectos  tão 

díspares  como motivação,  emoções,  desânimo  aprendido  (Dweck,  1986)  e  auto‐regulação 

(Zimmerman, 1989). Neste sentido, o treino metacognitivo dá especial importância à noção 

de aluno como aprendiz activo, ou seja, que auto‐regula a sua própria aprendizagem. Assim, 

o  «bom  aluno»  deveria  saber  resolver  problemas,  avaliar  e  corrigir  o  seu  desempenho 

pessoal,  ou  seja,  usar  o  pensamento metacognitivo  na  sua  tripla  atribuição:  conhecimento 

acerca  dos  seus  próprios  processos  cognitivos  tomada  de  consciência  desses  processos  e 

controlo sobre os próprios processos mentais. 

  Ensinar os alunos a utilizar a metacognição ou técnicas de auto‐regulação auxilia‐os 

na  monitorização  das  suas  estratégias  de  aprendizagem.  Para  além  disso,  um  sistema  de 

crenças positivo  torna‐se necessário para que elas sejam eficazes assim como a motivação 

para  as  usar.  Crenças  atribucionais  externas  e  uma  baixa  auto‐estima  são  aspectos 

fundamentais  na  explicação  dos  comportamentos  metacognitivos  de  alunos  com  fracos 

resultados escolares. Estes alunos não conseguem fazer um uso eficaz de estratégias e não 

são suficientemente diligentes na mudança de estratégias de acordo com as características 

da  tarefa  (Carr,  Borkowsky  &  Maxwell,  1991).  De  acordo  com  Carr  et  al.,  as  deficiências 

apresentadas pelos alunos com insucesso escolar devem‐se, em parte, ao desenvolvimento 

de  crenças  motivacionais  e  estados  afectivos  inapropriados.  A  natureza  disfuncional  do 

sistema metacognitivo‐motivacional‐afectivo dos alunos com insucesso torna‐os estudantes 

desamparados,  isto  é,  com  crenças  de  estratégia,  perspectivas  e  objectivos  de  resultado 

inapropriados. 

  Por oposição a uma concepção  inatista, a perspectiva construtivista/  interaccionista 

implica  que  os  professores  desenvolvam  nos  seus  alunos  a  capacidade  de  aprender  a 

formular e seguir regras e procedimentos, a serem flexíveis na aplicação dessas técnicas e a 

auto‐monitorizar as suas aprendizagens e comportamento no sentido de os  tornar activos, 

eficazes, responsáveis e independentes. 

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  O desenvolvimento cognitivo é fruto de um desenvolvimento lento e gradual. Verifica‐

se  ainda  o  facto  de  muitos  adultos  não  manifestarem,  de  forma  sistemática,  uma  grande 

utilização  das  suas  capacidades  metacognitivas.  Coloca‐se,  assim,  em  questão  se  a  sua 

aquisição  será  uma  mera  e  natural  questão  de  desenvolvimento  ou,  antes,  se  está 

dependente de um processo de instrução. Na realidade, parece claro que a criança adquire 

competências metacognitivas  através  da  aprendizagem mediada  e  que  da  qualidade  desta 

depende a aquisição daquelas.  

  De  tudo  o  que  foi  até  aqui  referido,  conclui‐se  que  o  desenvolvimento  intelectual  é 

largamente  influenciado,  e  mesmo  determinado,  pelas  interacções  sociais  e,  em  especial, 

pelo sistema de relações e interacções que se estabelecem entre os sub‐sistemas professor e 

aluno. Desta evidência ressalta o  facto de ser necessário desenvolver determinados estilos 

comunicacionais  e  métodos  pedagógicos  que  promovam  a  autonomia  cognitiva  e 

metacognitiva  dos  alunos.  Assim,  uma  pedagogia  que  se  quer  eficaz  e  significativa  deverá 

preencher os seguintes critérios: 1) deverá ser construtivista,  isto é, assumir a ideia de que 

tanto  o  desenvolvimento  intelectual  como  as  aprendizagens  são  construídas  e  elaboradas 

pelos próprios sujeitos de aprendizagem; 2) deverá ser interactiva no sentido de facultar um 

contexto que estimule as interacções entre os alunos, entre estes e os professores e entre os 

alunos  e  o  objecto  de  conhecimento;  3)  deverá  desenvolver  e  promover  a motivação dos 

alunos para a aprendizagem e favorecer as suas percepções de competência e auto‐eficácia; 

4) deverá contemplar e estimular uma perspectiva metacognitiva que promova a reflexão e 

auto‐análise dos alunos, quer em relação aos conhecimentos que têm acerca do seu próprio 

funcionamento cognitivo quer sobre a adequação das estratégias e processos que utilizam na 

resolução de problemas (Martin, 1991, citado por Doudin & Martin, 1999).   

  Todo  este  enquadramento  teórico‐prático  inerente  à  concepção  construtivista/ 

interaccionista pressupõe a reconceptualização dos percursos formativos dos professores no 

sentido de  favorecer  não  apenas  uma  reflexão  e  análise  teórica  aprofundada  em  torno do 

conceito e desenvolvimento da inteligência, mas também uma reflexão pessoal sobre as suas 

próprias  concepções  e  representações. Doudin  e Martin  (1999) propõem que  se  inclua na 

formação dos futuros professores uma dimensão pedagógica que estimule comportamentos 

de  investigação  e  pesquisa  que  permitam:  a  apropriação  de  orientações  emanadas  de 

estudos na área das ciências humanas; utilizar nas suas práticas futuras os dados advindos 

de  trabalhos  de  investigação  na  área  da  educação;  apreender  e  integrar  a  pesquisa  e  a 

investigação  como  paradigmas  passíveis  de  serem  transferidos  para  os  domínios  de  uma 

prática  educativa  reflexiva;  adoptar  posicionamentos  críticos  e  auto‐críticos  face  à  forma 

como  normalmente  compreendem  e  representam  a  realidade;  modificar  a  representação 

que têm da própria actividade acentuando o papel da reflexão e da análise fundamentadas 

em enquadramentos teóricos. 

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  Trata‐se  de  promover  competências  de  reflexão  mobilizadas  em  função  de  uma 

dialéctica  interactiva  entre  teoria  e  prática  ou,  se  quisermos,  entre  teorias  implícitas  e 

teorias explícitas, no sentido de uma (re)construção profissional e pessoal permanente. 

Em síntese, os estudos que se integram na dimensão das teorias explícitas da inteligência são 

construções  teóricas  dos  investigadores  enquanto  as  teorias  implícitas  da  inteligência 

constituem as representações que qualquer pessoa pode desenvolver acerca da inteligência 

e passíveis de serem explicitadas. 

No  âmbito  da  teorias  implícitas  da  inteligência  observamos  que  as  representações  que  os 

professores  têm  de  inteligência  e  do  seu  desenvolvimento  irão  influenciar  favorável  ou 

desfavoravelmente  a  qualidade  das  interacções  pedagógicas,  quer  se  adopte  uma 

perspectiva  construtivista  ou  se  opte  por  uma  visão  inatista.  Um  enquadramento  inatista 

concebe a  inteligência  como algo de natural  e  imutável, pelo que o professor assume uma 

postura  passiva  relativamente  à  adopção  de  estratégias  com  vista  ao  desenvolvimento 

intelectual.  Pelo  contrário,  uma  concepção  construtivista  defende  que  a  inteligência  é 

(re)construída e modificável e que tanto a criança como o professor desempenham um papel 

activo no desenvolvimento intelectual. 

Embora os professores reconheçam a pluralidade e relativismo na definição de inteligência e 

admitam  a  influência  de  factores  de  ordem  social,  familiar  e  cultural  no  seu 

desenvolvimento,  e  talvez  porque  a  relação  pedagógica  seja  complexa,  imprevisível  e 

diversificada, tanto as diferenças intelectuais como as situações de fracasso são atribuídas a 

instâncias sociais ou naturais que não podem controlar ou manipular.  

A complexidade e a diversidade de perspectivas sobre a inteligência não existem apenas no 

contexto científico. Importa também reconhecer o papel e o significado das teorias implícitas 

de inteligência, isto é, as representações que as pessoas têm dos processos intelectuais em si 

próprias  e  nos  outros.  Estas  representações  ou  concepções  permitem  reconstruções  e 

comparações  com  as  teorias  explícitas  e  possibilitam  elucidar,  descrever  e  compreender 

determinadas práticas no contexto educativo. Adaptado de http://www.esenviseu.net/Recursos/Download/Tema_41/DesenvolvimentoIntelectual.htm 

 

 

1. Será a ciência apenas «senso comum organizado»?  Ninguém  duvida  seriamente  de  que  muitas  das  ciências  particulares  existentes  se 

desenvolveram a partir das necessidades práticas da vida quotidiana: a geometria a partir de 

problemas de medição dos campos, a mecânica a partir de problemas suscitados pelas artes 

arquitectónicas e militares, a biologia a partir de problemas da saúde humana e da criação 

de animais, a química a partir de problemas suscitados pelas indústrias de tintas e de metais, 

a economia a partir de problemas de gestão doméstica e de organização política, e assim por 

diante.  É  certo  que  existiram  outros  estímulos  para  o  desenvolvimento  das  ciências  para 

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além  daqueles  que  surgiram  dos  problemas  das  artes  práticas.  No  entanto,  estes  últimos 

tiveram, e ainda continuam a ter, um papel importante na história da investigação científica. 

Nestas circunstâncias, os comentadores da natureza da ciência que ficaram impressionados 

pela continuidade histórica entre as convicções do senso comum e as conclusões científicas, 

têm  proposto  por  vezes  que  se  diferencie  ambas  através  da  fórmula  que  nos  diz  que  as 

ciências são simplesmente senso comum «organizado» ou «classificado». 

Não  há  dúvida  de  que  as  ciências  são  corpos  organizados  de  conhecimento,  e  de  que  em 

todas  elas uma  classificação dos  seus materiais  em  tipos ou géneros  importantes  (como a 

classificação  dos  seres  vivos  em  espécies  na  biologia)  é  uma  tarefa  indispensável. Mesmo 

assim  é  claro  que  a  fórmula  proposta  não  exprime  adequadamente  as  diferenças 

características entre a ciência e o senso comum. Os apontamentos de um conferencista sobre 

as  suas  viagens  em  África  podem  estar  muito  bem  organizados  para  o  objectivo  de 

comunicar informação de uma maneira interessante e eficiente, sem que isso converta essa 

informação  naquilo  a  que  historicamente  se  tem  chamado  ciência.  Um  catálogo  de  um 

bibliotecário apresenta uma boa classificação de livros, mas ninguém que respeite um pouco 

o sentido histórico da palavra dirá que o catálogo é uma ciência. A dificuldade óbvia é a de 

que a fórmula proposta não especifica que tipo de classificação é característica das ciências. 

 

2. Explicações científicas 

Vamos então virar‐nos para esta questão. Uma característica notável de muita da informação 

que adquirimos ao longo da experiência comum é a de que, embora essa informação possa 

ser  suficientemente  precisa  dentro  de  certos  limites,  ela  raramente  é  acompanhada  por 

qualquer  explicação  que  nos  diga  por  que  se  deram  os  factos  alegados.  Deste  modo,  as 

sociedades que descobriram os usos da roda habitualmente não sabiam nada sobre forças de 

fricção, nem sobre as razões que fazem com que os bens colocados em veículos com rodas 

sejam  transportados  com  mais  facilidade  do  que  os  bens  arrastados  pelo  chão.  Muitas 

pessoas aprenderam que era aconselhável adubar os seus campos agrícolas, mas poucas se 

preocuparam com as razões para agir assim. As propriedades medicinais de plantas como a 

dedaleira  foram  reconhecidas  há  séculos,  embora  habitualmente  não  se  tenha  oferecido 

qualquer explicação das suas virtudes benéficas. Para além disso, quando o "senso comum" 

tenta  dar  explicações  para  os  seus  factos —  como quando  se  explica  o  valor  da dedaleira 

como  estimulante  cardíaco  através  da  semelhança  entre  a  forma  da  flor  e  a  do  coração 

humano — as explicações carecem frequentemente de testes sobre a sua relevância para os 

factos. 

É o desejo de explicações que sejam ao mesmo tempo sistemáticas e controláveis através de 

dados factuais que gera a ciência, e é a organização e classificação do conhecimento segundo 

princípios  explicativos  que  é  o  objectivo  próprio  das  ciências.  Mais  especificamente,  as 

ciências procuram descobrir e formular em termos gerais as condições sob as quais ocorrem 

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acontecimentos  de  vários  géneros,  sendo  as  proposições  sobre  essas  condições 

determinantes as explicações desses acontecimentos. Podem descobrir‐se relações regulares 

que  abrangem  vastos  domínios  de  factos,  de  tal  forma  que  com  a  ajuda  de  um  pequeno 

número de princípios explicativos pode mostrar‐se que um número indefinidamente grande 

de  proposições  sobre  esses  factos  constituem  um  corpo  de  conhecimento  logicamente 

unificado. Esta unificação assume por vezes a forma de um sistema dedutivo, como acontece 

na  geometria  demonstrativa  e  na  ciência  da  mecânica.  Deste  modo,  através  de  poucos 

princípios,  como  os  que  foram  formulados  por  Newton,  consegue‐se  mostrar  que 

proposições  sobre  o  movimento  da  Lua,  o  comportamento  das  marés,  os  percursos  de 

projécteis e a subida de  líquidos em tubos estreitos estão  intimamente relacionadas, e que 

todas essas proposições podem ser rigorosamente deduzidas a partir desses princípios em 

conjunção com várias informações sobre factos. 

Explicar,  estabelecer  alguma  relação  de  dependência  entre  proposições  que 

superficialmente  não  estão  relacionadas,  apresentar  sistematicamente  conexões  entre 

fragmentos  de  informação  aparentemente  heterogéneos,  são  características  próprias  da 

investigação científica. 

 

3. A indeterminação do senso comum 

Muitas  crenças  quotidianas  sobreviveram  a  séculos  de  experiência,  o  que  contrasta 

com  o  período  de  vida  relativamente  curto  a  que  estão  frequentemente  destinadas  as 

conclusões  avançadas  em  vários  ramos  da  ciência  moderna.  Uma  das  razões  deste  facto 

merece atenção. Consideremos um exemplo de uma crença do senso comum, como a de que 

a água solidifica quando é suficientemente arrefecida. 

Se pudermos  considerar  este  exemplo  como  típico,  podemos dizer  que  a  linguagem 

em que o senso comum está formulado e é transmitido pode exibir dois tipos importantes de 

indeterminação.  Em  primeiro  lugar,  os  termos  da  linguagem  comum  podem  ser  bastante 

vagos,  no  sentido  em  que  a  classe  das  coisas  designadas  por  um  termo  não  está  clara  e 

rigorosamente demarcada da  classe das  coisas  que  ele  não designa. Em  segundo  lugar,  os 

termos  da  linguagem  comum  podem  carecer  de  um  grau  de  especificidade  relevante.  Por 

esse motivo, as relações de dependência entre acontecimentos não estão formuladas de uma 

maneira determinada com precisão nas proposições que contêm esses termos. 

Devido  a  estas  características  da  linguagem  comum,  o  controlo  experimental  das 

crenças  do  senso  comum  é  frequentemente  difícil,  já  que  não  pode  traçar‐se  facilmente  a 

distinção entre os dados da observação que as confirmam e os que as refutam. Deste modo, a 

crença  de  que  «em  geral»  a  água  solidifica  quando  é  suficientemente  arrefecida  pode 

corresponder às necessidades das  pessoas cujo  interesse pelo  fenómeno do arrefecimento 

está circunscrito ao seu interesse em atingir os objectivos habituais da sua vida quotidiana, 

apesar  de  a  linguagem  utilizada  na  codificação  desta  crença  ser  vaga  e  carecer  de 

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especificidade. Essas pessoas podem por  isso não ver qualquer razão para modificar a sua 

crença,  mesmo  que  reconheçam  que  a  água  do  oceano  não  congela,  embora  a  sua 

temperatura  seja  sensivelmente  a  mesma  do  que  a  água  de  um  poço  quando  começa  a 

solidificar, ou que alguns líquidos têm de ser arrefecidos a um grau maior do que outros para 

mudarem para o estado sólido. Se  forem pressionadas para  justificar a sua crença perante 

estes  factos,  essas  pessoas  podem  talvez  excluir  arbitrariamente  os  oceanos  da  classe  de 

coisas  a  que  dão  o  nome  de  água,  ou,  como  alternativa,  podem  exprimir  uma  confiança 

renovada na sua crença, defendendo que seja qual for o grau de arrefecimento que possa ser 

necessário,  os  líquidos  classificados  como  água  acabam  por  solidificar  quando  são 

arrefecidos. 

 

4. A refutabilidade e instabilidade da ciência 

Na  sua  procura  de  explicações  sistemáticas,  as  ciências  devem  reduzir  a 

indeterminação  indicada  da  linguagem  comum  ao  remodelá‐la.  A  química  física,  por 

exemplo,  não  se  satisfaz  com a  generalização,  formulada de uma maneira  vaga,  segundo a 

qual a água solidifica quando é suficientemente arrefecida, já que o objectivo desta disciplina 

é o de explicar, entre outras coisas, por que a água e o leite que bebemos congelam a certas 

temperaturas, embora a essas temperaturas não aconteça o mesmo com a água do oceano. 

Para  atingir  este  objectivo,  a  química  física  deve  então  introduzir  distinções  claras  entre 

vários tipos de água e entre várias quantidades de arrefecimento. Várias técnicas reduzem a 

vagueza  e  aumentam a  especificidade das  expressões  linguísticas.  Para muitos propósitos, 

contar e medir são as técnicas mais eficientes, e talvez sejam também as mais conhecidas. Os 

poetas  podem  cantar  a  infinidade  de  estrelas  que  permanecem  no  céu  visível,  mas  o 

astrónomo quer especificar o seu número exacto. O artesão que trabalha com metais pode 

ficar satisfeito por saber que o  ferro é mais duro do que o chumbo, mas o  físico que quer 

explicar  este  facto  tem  de  ter  uma  medida  precisa  da  diferença  em  dureza.  Uma 

consequência  óbvia,  mas  importante,  da  precisão  assim  introduzida  é  a  de  que  as 

proposições se  tornam susceptíveis de ser  testadas pela experiência de uma maneira mais 

crítica  e  cuidada.  As  crenças  pré‐científicas  são  frequentemente  insusceptíveis  de  ser 

sujeitas  a  testes  experimentais  definidos,  simplesmente  porque  essas  crenças  são 

compatíveis  de  uma maneira  vaga  com  uma  classe  indeterminada  de  factos  que  não  são 

analisados.  As  proposições  científicas,  como  têm  de  estar  de  acordo  com  dados  da 

observação bem especificados, enfrentam riscos maiores de ser refutadas por esses dados. 

A maior  determinação  da  linguagem  científica  ajuda  a  esclarecer  o  facto  de muitas 

crenças  do  senso  comum  terem  uma  estabilidade,  que  se  prolonga  frequentemente  por 

muitos  séculos, que poucas  teorias  científicas possuem. É mais difícil  construir uma teoria 

que,  depois  de  confrontos  repetidos  com  os  resultados  de  observações  experimentais 

rigorosas, permanece inabalada, quando os critérios para o acordo que se deve obter entre 

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esses dados experimentais e as previsões derivadas da teoria são exigentes do que quando 

esses  critérios  são  vagos  e  não  se  exige  que  os  dados  experimentais  admissíveis  sejam 

estabelecidos por procedimentos cuidadosamente controlados. Na verdade, as ciências mais 

avançadas especificam quase sempre o grau com que as previsões derivadas de uma teoria 

se podem desviar dos resultados das experiências sem invalidar a teoria. Os  limites desses 

desvios  permissíveis  geralmente  são  bastante  reduzidos,  de  tal  modo  que  certas 

discrepâncias  entre  a  teoria  e  a  experiência  que  seriam  vistas  pelo  senso  comum  como 

insignificantes são frequentemente consideradas fatais para a adequação da teoria. 

Por outro lado, embora a maior determinação das proposições científicas as exponha 

a riscos de se descobrir que estão erradas maiores do que aqueles que enfrentam as crenças 

do  senso  comum  (enunciadas  com  menos  precisão),  as  primeiras  têm  uma  vantagem 

importante  sobre  as  segundas.  Elas  têm uma  capacidade maior  para  ser  incorporadas  em 

sistemas  de  explicação  amplos  e  claramente  articulados.  Quando  esses  sistemas  são 

adequadamente  confirmados  por  dados  experimentais,  revelam muitas  vezes  relações  de 

dependência surpreendentes entre muitos tipos de factos experimentalmente identificáveis, 

mas diferentes. 

 

5. Conclusões 

Nas  diferenças  entre  a  ciência  moderna  e  o  senso  comum  já  mencionadas,  está 

implícita a diferença  importante que deriva de uma estratégia deliberada da ciência que a 

leva a expor as suas propostas cognitivas ao confronto repetido com dados observacionais 

criticamente  comprovativos,  procurados  sob  condições  cuidadosamente  controladas.  Isto 

não significa, no entanto, que as crenças do senso comum sejam invariavelmente erradas, ou 

que não tenham quaisquer fundamentos em factos empiricamente verificáveis. Significa que, 

por uma questão de princípio estabelecido, as  crenças do senso  comum não são sujeitas a 

testes sistemáticos realizados à  luz de dados obtidos para determinar se essas crenças são 

fidedignas e qual é o alcance da sua validade. Significa também que os dados admitidos como 

relevantes  na  ciência  devem  ser  obtidos  através  de  procedimentos  instituídos  com  o 

objectivo de  eliminar  fontes  de  erro  conhecidas. Deste modo,  a  procura de  explicações na 

ciência  não  conseguiste  simplesmente  em  tentar  obter  «primeiros  princípios»  que  sejam 

plausíveis à primeira vista e que possam vagamente dar conta dos «factos» da experiência 

habitual.  Pelo  contrário,  essa  procura  consiste  em  tentar  obter  hipóteses  explicativas  que 

sejam  genuinamente  testáveis,  porque  se  exige  que  elas  tenham  consequências  lógicas 

suficientemente precisas para não serem compatíveis com quase todos os estados de coisas 

concebíveis. As hipóteses procuradas devem assim estar sujeitas à possibilidade de rejeição, 

que  dependerá  dos  resultados  dos  procedimentos  críticos,  inerentes  à  pesquisa  científica, 

destinados a determinar quais são os verdadeiros factos do mundo. E. Nagel, The Structure of Science, 1961