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1 Tematizando o futsal feminino nas aulas de Educação Física: quando as diferenças vão além da quadra Professor Thales Siqueira A foi desenvolvida entre os meses de julho e dezembro de 2018, com os estudantes do 4° e 5° ano da EMEIEF José Augusto Antunes do Amaral, localizada do bairro Parque Santa Clara na cidade de Guaratinguetá (SP). Cheguei repentinamente à escola no início do segundo semestre porque o professor efetivo precisou se ausentar. Não foi nada fácil definir o tema a ser estudado. As primeiras semanas na escola foram marcadas por alguns desafios e tensões que merecem ser comentados. Nos primeiros dias busquei dialogar com a turma, a fim de conhecer mais sobre a escola e como eram as aulas de Educação Física anteriormente à minha chegada, também conversei com eles sobre quais práticas corporais haviam estudado no semestre anterior e quais costumavam acessar fora da escola. Essa conversa norteou algumas de minhas decisões. Ouvi que as aulas de Educação Física do início do ano abordavam jogos e brincadeiras, capacidades físicas e momentos livres. Os estudantes também disseram que praticavam futsal e ginástica rítmica no projeto Mais Educação que acontecia na escola no contraturno, porém, o futsal era para meninos e ginástica rítmica para meninas. Alguns participavam da escolinha de futsal e futebol de campo Boa Bola. Além destes, havia alunos que frequentavam o projeto Salesiano Puríssimo, onde faziam aulas de futsal, pintura, recreação, ginástica rítmica e capoeira. Anotei todas essas informações e, no dia seguinte, dei uma volta pelo bairro. Conversei com alguns moradores e encontrei umas três quadras de futsal nas proximidades da escola. Não consegui encontrar o lugar do projeto Puríssimo e o projeto Boa Bola só funcionava em horários que eu não poderia comparecer. Na aula posterior, a partir das informações obtidas, iniciei uma conversa com os estudantes para selecionarmos o que iriamos estudar no 3° e 4° bimestres. Como o tempo que passaria com a turma naquela escola seria bem curto e não havia possibilidade de dar continuidade ao trabalhado no ano seguinte, optei por elencar os seguintes temas: futsal, ginástica rítmica e capoeira. Temas que, apareceram nas falas dos alunos e que os mesmos manifestaram muito entusiasmo durante as conversas. Houve muita confusão. A maioria dos meninos se interessou pelo futsal e algumas

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Tematizando o futsal feminino nas aulas de Educação Física: quando

as diferenças vão além da quadra

Professor Thales Siqueira

A foi desenvolvida entre os meses de julho e dezembro de 2018, com os

estudantes do 4° e 5° ano da EMEIEF José Augusto Antunes do Amaral, localizada do

bairro Parque Santa Clara na cidade de Guaratinguetá (SP). Cheguei repentinamente à

escola no início do segundo semestre porque o professor efetivo precisou se ausentar.

Não foi nada fácil definir o tema a ser estudado. As primeiras semanas na escola

foram marcadas por alguns desafios e tensões que merecem ser comentados. Nos

primeiros dias busquei dialogar com a turma, a fim de conhecer mais sobre a escola e

como eram as aulas de Educação Física anteriormente à minha chegada, também

conversei com eles sobre quais práticas corporais haviam estudado no semestre anterior

e quais costumavam acessar fora da escola. Essa conversa norteou algumas de minhas

decisões. Ouvi que as aulas de Educação Física do início do ano abordavam jogos e

brincadeiras, capacidades físicas e momentos livres. Os estudantes também disseram

que praticavam futsal e ginástica rítmica no projeto Mais Educação que acontecia na

escola no contraturno, porém, o futsal era para meninos e ginástica rítmica para

meninas.

Alguns participavam da escolinha de futsal e futebol de campo Boa Bola. Além

destes, havia alunos que frequentavam o projeto Salesiano Puríssimo, onde faziam aulas

de futsal, pintura, recreação, ginástica rítmica e capoeira. Anotei todas essas

informações e, no dia seguinte, dei uma volta pelo bairro. Conversei com alguns

moradores e encontrei umas três quadras de futsal nas proximidades da escola. Não

consegui encontrar o lugar do projeto Puríssimo e o projeto Boa Bola só funcionava em

horários que eu não poderia comparecer.

Na aula posterior, a partir das informações obtidas, iniciei uma conversa com os

estudantes para selecionarmos o que iriamos estudar no 3° e 4° bimestres. Como o

tempo que passaria com a turma naquela escola seria bem curto e não havia

possibilidade de dar continuidade ao trabalhado no ano seguinte, optei por elencar os

seguintes temas: futsal, ginástica rítmica e capoeira. Temas que, apareceram nas falas

dos alunos e que os mesmos manifestaram muito entusiasmo durante as conversas.

Houve muita confusão. A maioria dos meninos se interessou pelo futsal e algumas

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meninas também, inclusive duas meninas disseram que frequentavam a escolinha de

futsal e futebol junto com os meninos. O restante das meninas se interessou por

ginástica rítmica e apenas um menino se interessou por capoeira. Obviamente que

outros desejos foram manifestados e até questionados, todavia, o tempo era curto e eu,

de alguma forma, precisei direcioná-los de acordo com suas falas.

Decidimos juntos que iriamos estudar o futsal. A maioria concordou com a

decisão, exceto um aluno que resistiu e reclamou. Lembro-me do comentário do Lucas

em relação à insatisfação: gente, não precisa ficar bravo. Um dia a gente estuda uma

coisa e outro dia a gente estuda outra coisa. Todo mundo vai poder estudar o que gosta.

Recorri à gestão na intenção de ter acesso ao Projeto Político Pedagógico. A

ideia era articular os objetivos da Educação Física àqueles definidos pela escola. Foram

mais de três tentativas, todas sem sucesso. As gestoras alegavam que o documento

estava desatualizado e, mesmo insistindo, não tive acesso. Fiquei um pouco frustrado e

perdido, mas não desisti. Busquei subsídios na Matriz Curricular do Município1 na

intenção de fortalecer e justificar minhas intenções. O currículo oficial aloca o tema

futsal no 4° bimestre, mas não havia impedimento de abordá-lo no 3°.

A fim de conhecer um pouco as representações que meninos e meninas tinham

sobre o futsal, perguntei o que é. Os estudantes responderam: é um esporte para todos!

É um esporte coletivo! É um esporte criado para homens! É um futebol de quadra! É

uma forma de se divertir! É um esporte saudável! Na sequência, ouvi: Sor, que horas

vamos jogar? Vamos logo, Sor, tô ficando cansado de falar! Sor, quem vai dividir os

times? Vamos dividir a quadra? Atento, respondi: vocês podem jogar da forma que

1 A Matriz Curricular de Educação Física do Município de Guaratinguetá é um documento que norteia as

ações do professor. Foi construído em 2013 e estabelece objetivos gerais e específicos para cada ciclo. Os

conteúdos são organizados de acordo com os ciclos e tratados sob a perspectiva de habilidades e

competências.

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sabem. Peguei uma bola no armário, uns coletes e deixei que jogassem livremente. Foi

um caos total! Não dividiram times, todos corriam atrás da bola, era corre daqui e chuta

dali. Em menos de 10 minutos alguns alunos começaram a abandonar o jogo,

principalmente os menos hábeis e a maioria das meninas. Todos reclamaram.

Foto 1: Os que ficaram em quadra

Anotei a situação no caderno e deixei a partida fluir mais um pouco. Sugeri aos

que estavam de fora que pedissem pra entrar novamente, porém, ninguém quis entrar.

Encerrada a partida, voltamos à sala. Chegando lá, questionei: o que vocês acharam do

jogo? Metade da turma disse: foi tudo sem ordem. Só os que sabem jogar ficaram

jogando. Eles não estavam nem aí para nós. Os que permaneceram em quadra disseram:

Vocês não sabem jogar! As meninas são todas ruins! Só salva a Júlia e a Luana e, além

disso, não temos culpa se vocês não sabem jogar.

Expliquei que aula era para todos e que poderíamos encontrar soluções. Afinal,

eles tinham colocado nas conversas iniciais que o futsal era um esporte para todos.

Percebi que as falas iniciais de que o futsal é um esporte acessível a todos não pareciam

condizentes com as atitudes deles naquele momento. Então, comecei a pensar nos

fatores que poderiam tê-los influenciado a agir daquela forma. Lembrei-me da fala do

professor Marcos Ribeiro da Neves, em uma entrevista2 ele disse que nas aulas de

2 Em uma entrevista a rádio Imprensa Jovem, os professores Marcos Ribeiros das Neves e Jacqueline

Cristina Martins de Jesus membros do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Física Escolar da

USP, relataram suas experiências com o currículo cultural nas escolas municipais da cidade de São Paulo.

As falas de ambos me ajudaram a pensar melhor minhas ações em relação a Educação Física. Acessado

em - https://soundcloud.com/search?q=Educador%20nota%2010.

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Educação Física as relações de poder se manifestam a tomo momento e precisamos

estar atentos, afinal, quem tem o poder de narrar quem? Continuei conversando com a

turma e pedi que registrassem no caderno o que haviam achado da aula e se houve

dificuldades durante a vivência. Registrei o que aconteceu no meu caderno.

Chegando em casa retomei algumas anotações, fiz leituras e comecei a pensar

em alguns objetivos para o estudo do futsal. Nas primeiras aulas já havia identificado

alguns discursos pejorativos em relação aos menos habilidosos e ao modo como as

meninas jogam. Observei também que alguns estudantes não compreendiam as regras,

outros pareciam não gostar do futsal. A partir dessa análise e de algumas leituras de

textos e relatos de experiências com o tema, elenquei os seguintes objetivos:

• Vivenciar o futsal de diferentes maneiras

• Conhecer os elementos constitutivos do futsal

• Reconhecer e problematizar as diferenças de habilidade entre meninos e meninas

no futsal

• Desconstruir discursos preconceituosos em relação à mulher no futsal

Na aula seguinte, socializei as anotações e pontuamos os problemas que, na opinião

da turma, deveríamos resolver: regras confusas, não havia igualdade na participação,

não cabia todo mundo no mesmo espaço, ninguém tocava a bola, não havia coletes para

todo mundo.

Foto 2: Registro no caderno

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Questionei a turma em busca de soluções. Automaticamente os estudantes

disseram que uma forma de resolver os problemas seria estudar as regras. Perguntei se

alguém conhecia as regras. Dois alunos, Kauã e Lucas, disseram que sabiam algumas

que haviam aprendido no projeto Boa Bola. Começamos a anotá-las na lousa e no

caderno: linhas e demarcações da quadra, número de jogadores e divisão de times,

tempo de jogo, faltas, punições e fundamentos. Fomos comentando e tentando

esclarecer eventuais dúvidas, também assistimos a um vídeo que comentava as regras

básicas do futsal.3

Foto 3: Regras básicas

Para conhecer melhor as regras e os elementos constitutivos do futsal, na aula

seguinte trouxe um vídeo de uma partida futsal masculino4. Fomos assistindo e tentando

entender melhor a dinâmica do jogo e as regras básicas. Essa atividade não deu muito

certo, pois o vídeo era uma partida editada e priorizava os gols. Mesmo assim, fizemos

anotações sobre as roupas e equipamentos dos jogadores, posições, árbitros,

cronometristas e reservas. Após assistência do vídeo, fomos para quadra e jogamos no

formato “coletivo”. Os conflitos ainda aconteciam, mas as crianças já conseguiam se

organizar em times mistos, panelinhas e meninos contra meninas. Até eu tive que entrar

no time nesse dia.

Na aula seguinte, sugeri à turma que construíssem uma maquete da quadra de

futsal, disse que seria legal se tivesse as informações que havíamos discutido. Eles

poderiam construir da forma que achassem melhor. Na outra aula deveriam apresentar a

maquete para os colegas e explicar as regras básicas que aprenderam. Após essa

atividade, pedi que escrevessem o que tinham aprendido sobre as regras, para que

3 Futsal e suas regras – acessado em: https://www.youtube.com/watch?v=Ka_raAT_mMI 4 Melhores momentos do mito falcão – Brasil x Ilhas Salomão, melhores momentos – acessado em:

https://www.youtube.com/watch?v=j38e8vwe9Ug

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pudéssemos expô-las juntamente com as maquetes. Fizemos um cartaz e alocamos junto

com as maquetes que ficaram expostas por duas semanas no pátio da escola.

Observando a atividade da maquete e o textinho que os alunos fizeram, foi possível

verificar que haviam compreendido as regras básicas, como também conseguiram

identificar alguns elementos constitutivos do futsal.

Foto 4: Maquete

Na outra aula conversamos sobre a partida anterior. Insisti em perguntar aos

estudantes se jogar naquele formato estava dando certo. Alguns disseram que havia

melhorado um pouco, outros disseram que ainda estava difícil. Perguntei se alguém

tinha uma sugestão ou conhecia outra forma de jogar futsal. Todos se manifestaram e

alguns estudantes disseram: lá no Boa Bola a gente faz diferente. No projeto a gente

brinca de jogar bola. Na quadra perto de casa, a gente faz uns timinhos às vezes.

Aproveitando as colocações, sugeri à turma que anotasse no caderno as outras

formas de jogar bola ou jogar futsal, disse que na aula seguinte poderíamos

experimentá-las. Demos o nome de “brincadeiras de futsal e futebol”. Todas eram

diferentes do formato que havíamos jogado no início das aulas e também da partida que

havíamos assistido. No decorrer das aulas fizemos várias brincadeiras de futsal e

futebol: linha, tira-tira, chute ao gol, bobinho, timinho, travessão, artilheirinho e

toquinho.

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Foto 5: Brincadeiras de Futsal/bobinho

Foto 6: Brincadeiras de Futsal/Linha

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Foto7: Brincadeiras de futsal/chute ao gol

Foto 8: Toquinho

Outras brincadeiras surgiram nos comentários: pebolim, futebol de mesa,

futebol de botão e futebol de tampinha. Cogitamos a ideia de adaptá-los ao futsal, mas a

turma preferiu prosseguir com os trabalhos na quadra. Houve menos conflitos nesse dia,

tanto meninos quanto meninas participaram juntos. Conversamos ao final dessas

atividades e os estudantes comentaram que as brincadeiras de futsal e futebol geravam

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menos conflitos, disseram que eram mais fáceis de aprender. Nesse dia, os meninos

comentaram que as meninas se soltaram.

Ainda preocupado com as falas iniciais dos alunos em relação às meninas no

futsal, organizei uma atividade para que pudéssemos problematizá-las. Levei 2 vídeos

que mostravam um pouco da realidade de algumas meninas que jogam futsal em suas

escolas5. Em síntese, os vídeos falavam um pouco sobre o preconceito que as meninas

sofriam, sinalizava a falta de incentivo dos pais de meninas em relação aos esportes e

comentava que muitas meninas só têm seu direito reconhecido e legitimado entre os

meninos quando se destacam por sua habilidade com os pés. Após a assistência dos

vídeos, fizemos um debate tentando discutir se a realidade das meninas retratadas se

parecia com a das meninas da turma. Muitas se identificaram com os vídeos e

começaram a se posicionar dizendo que a escola também deveria abrir espaço no

contraturno para que meninas pudessem praticar futsal, disseram também que gostariam

de praticar com mais frequência, porém seus pais muitas vezes não as incentivam. Os

meninos reconheceram as falas das meninas e não se posicionaram contra. O sinal tocou

e tivemos que encerrar nossa discussão.

Saí dessa aula com a cabeça a mil. Chegando em casa entrei em contato com

uma conhecida ex-atleta de futsal feminino, a Márcia. Descrevi a situação e perguntei se

ela não poderia ir à escola bater um papo com a criançada e jogar com a turma. No dia

seguinte, todos ficaram muito empolgados ao saberem do convite e pedi que

elaborassem perguntas.

Chegou o dia em que a Márcia foi nos visitar. Durante o bate-papo ela contou

um pouco sobre sua história com o futsal, falou dos dramas que sofreu e como os

superou, comentou também sobre as ligas femininas de futsal e que o Brasil era dez

vezes campeão mundial no futsal feminino. Disse que existem poucos times de futsal na

região de Guaratinguetá e Lorena. Explanou a questão da falta de interesse das mídias

na divulgação do futsal e futebol feminino, chegou a comentar que em outros países, as

meninas começam a jogar desde cinco anos de idade. A professora regente da turma,

Adriene, estava conosco e perguntou à Marcia se havia diferença salarial entre homens e

mulheres no futsal. Márcia disse que sim e que a mulher chega a receber cinco vezes

5Menina de 12 anos supera o preconceito e se torna craque em meio aos meninos - acessado em:

https://www.youtube.com/watch?v=xz2D2A_8NYU - Geração Z: Meninas se torna craque em escolinha

de futebol no Barcelona - acessado em: https://www.youtube.com/watch?v=uViF82DcIRU

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menos que o homem. A turma se espantou com o fato. Continuamos a conversa e

muitas perguntas foram surgindo, tanto dos meninos quanto das meninas.

Foto 9: Conversa com a ex-atleta Márcia

Após conversarmos com a Márcia fomos para a quadra. Desde o início, a Márcia

enfatizou que todos deveriam se ajudar, deveriam incentivar os colegas independente do

nível de habilidade de cada um. Ela comentou que meninos e meninas poderiam mudar

o cenário das diferenças entre homens e mulheres no esporte. O que me chamou mais a

atenção é que no momento da prática Márcia separou meninos e meninas. Ou seja, o

discurso divergia da prática. Não quis interferir, continuei observando e ajudando.

Márcia fez atividades de deslocamento e controle de corpo, condução de bola e

finalização. O tempo era curto. Acho que ela fez o que pôde.

Foto 10: Exercícios de finalização

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Foto 12: Deslocamento Foto 13: Controle de Corpo

No encontro seguinte, conversei com os estudantes sobre o que acharam da

atividade. Os meninos ficaram surpresos com a quantidade de informações,

especialmente com a diferença salarial entre homens e mulheres. As meninas

comentaram que foi legal ver uma mulher falando de futsal, pois isso não é muito

comum no meio que elas vivem, disseram também que a visita de Marcia foi importante

para que os meninos pudessem respeitá-las mais. Além disso, conversamos sobre o

formato das atividades que Márcia propusera. Meninos e algumas meninas que

frequentam os treinamentos disseram que era um pouco parecido, mas que o professor

da escolinha deles não separa meninos de meninas. Os estudantes também comentaram

que vivenciar o futsal daquela forma também os ajudou a compreender como realizar

algumas técnicas da modalidade. Durante o bate papo com Márcia, pedi aos alunos que

anotassem as questões que mais chamaram atenção, pois na aula seguinte iríamos

comentar os assuntos registrados.

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Foto 11: Registro no caderno

Na outra aula pedi aos estudantes que socializassem suas anotações. Eles

pontuaram a diferença salarial entre homens e mulheres no futsal e futebol, a existência

de ligas femininas de futsal, os títulos da seleção feminina de futsal, alguns fatos

históricos e a desigualdade entre homens e mulheres em relação ao incentivo à prática

esportiva. Para dar conta de ampliar e aprofundar os temas que foram surgindo, pedi à

turma que se organizasse em grupos, perguntei se achavam importante pesquisar sobre

os temas que havíamos pontuado nas discussões, todos disseram que sim. Então, sugeri

que fizessem uma pesquisa individual na internet.

Entre feriados, conselhos de classe e datas comemorativas, fomos nos afastando,

o que dificultou o andamento da tematização e contato com os alunos. Após 4 semanas

sem aula voltamos ao assunto. Os estudantes trouxeram algumas reportagens para que

pudéssemos comentar e refletir. Tivemos uma boa discussão nesse dia. Comentavam

que era muito injusto a situação da mulher no futsal. Júlia disse: futsal nem é para todos,

professor. Se fosse, as meninas teriam mais chances. Manifestei-me: Júlia, nós podemos

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aos poucos mudar esse cenário, podemos começar aqui em nossa escola e assim por

diante. Nesse sentido, provoquei a turma dizendo: gente, o que vamos fazer com todas

essas informações? Muitos alunos disseram: vamos fazer um cartaz e contar para as

pessoas da escola o que descobrimos sobre o futsal feminino. Então, elaboramos alguns

cartazes com informações sobre o esporte e fixamos nas paredes da escola.

Foto 12: Reportagem

Foto 13: Provocações sobre a diferença salarial

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Os cartazes ficaram expostos no pátio por alguns dias. Devido ao tempo curto,

não foi possível fazer as discussões em torno da diferença salarial entre homens e

mulheres no futsal e futebol. Mas, fizemos o possível para dar conta.

O final do ano letivo se aproximava e a turma já se mostrava bem cansada. Já

estavam entrando em clima de festinhas nas salas assinaturas nas camisetas. Na escola

há cultura da formatura e eles iriam realizar uma viagem. Estavam bem ansiosos. Para

não desanimá-los com relação à tematização do futsal, realizamos muitos jogos com

meninos e meninas juntos novamente e não houve tantos conflitos como nas primeiras

vezes. Lucas perguntou se antes do final do ano poderiam jogar com o 4° ano.

Perguntou também se no dia os times não poderiam usar as vestimentas de futsal que

possuíam. Disse que sim, e que seria muito interessante se trouxessem, pois outros

colegas poderiam ver um uniforme de futsal. As meninas também toparam a ideia.

Algumas disseram que iriam pegar as roupas do pai ou do irmão emprestadas, outras

disseram que trariam as roupas que tinham em casa e que tentariam inventar um

uniforme. Júlia e Luana eram as únicas que possuíam uniformes de futsal. Fizemos o

convite ao 4° ano e todos acharam o máximo. Marcamos um dia para realizar o

amistoso e a professora da sala, que também gostava de futebol, disse que poderia nos

acompanhar. Interessante destacar que a possibilidade de interagir com a turma do 4°

ano causou certo rebuliço entre as turmas, uns demostraram entusiasmo, outros

demostraram desprezo, outros só pensavam em ganhar e teve gente, como o Pedro, que

estava em clima de final de Libertadores.

Pedi às turmas para que se organizassem em times, fizessem torcida e pensassem

em uma maneira que todos pudessem participar. Na data marcada, fizeram um jogo de

times mistos, meninos x meninas, meninos x meninos e meninas x meninas, cada turma

jogava um tempo de 15 minutos. Ficamos lá por 1h30, tanto a professor do 4° ano como

a do 5° ano cederam um tempinho a mais das suas aulas. Nem tudo foi um mar de rosas,

alguns alunos reclamaram muito por ter que esperar o outro time jogar, as meninas se

dispersaram em alguns momentos, mas até que fluiu e eles gostaram bastante.

Ao final das partidas, o 4° ano voltou para a sala e permaneceram em quadra

apenas os alunos do 5° ano e, nesse momento perguntei-lhes que acharam da atividade.

Muitos foram os comentários, vale destacar que a turma conseguiu organizar a partida

para todos pudessem participar ou, pelo menos, tentar participar. Os meninos

reconheceram o espaço das meninas dentro de quadra, os menos habilidosos se sentiram

mais à vontade, já os mais habilidosos fizeram sugestões para que os demais pudessem

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melhorar, disseram que foi bom poder jogar de diferentes formas, mas que, às vezes,

eles têm dificuldade de jogar com quem não sabe. Foi um dia muito importante tanto

para mim como para eles.

Caminhando para o fim da tematização, já sabíamos que teríamos mais dois ou

três encontros, então pensei em resgatar tudo aquilo que havíamos estudado e,

conversando com a turma, surgiu a ideia de elencar em tópicos o que havíamos

estudado durante o semestre.

Foto 14: Tópicos da conversa

André, Thalita, Jade, Júlia e Victor desenharam na lousa e fomos elencando os

tópicos que havíamos estudado durante o semestre, fomos comentando pouco a pouco

os assuntos, ora de maneira mais superficial, ora de maneira mais profunda. Tudo de

acordo com o que eles julgavam mais relevante e interessante. Por fim, pedi à turma

para que fizessem um texto explicando o que haviam aprendido durante a tematização

do futsal.

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Foto 15: Registro em caderno.

Os alunos escreveram e me entregaram. Infelizmente não consegui fazer a

leitura compartilhada, nem tampouco sugerir que trocassem os textos entre si. Pude

apenas fazer a leitura e refletir sobre o processo. Nos outros encontros já havia poucos

os alunos frequentando as aulas. O ano letivo estava quase no fim, consegui me

despedir de alguns e de outros não. Tudo caminhou bem!

Vale ressaltar que os registros ao longo do trabalho foram me orientando para

que eu pudesse chegar até aqui. Observar atentamente a relação que os alunos

estabeleceram como o tema e como isso foi se desenvolvendo nas atividades de ensino.

A partir de cada desenho, texto, foto e anotação, era possível refletir sobre os

efeitos que a proposta causava nos estudantes, bem como me ajudava a reorganizar a

rota que iriamos caminhar. Não foi uma tarefa fácil, mas aos poucos as coisas foram

tomando rumo e conseguimos concluir o trabalho. Não sei se da melhor maneira, mas

conseguimos. Esse relato foi uma das experiências que tive com a perspectiva cultural

da Educação Física, o fato de ser professor temporário naquela escola não impediu que

eu avançasse, pelo contrário, me impulsionou ainda mais e, percorrendo o caminho

atento aos sujeitos do processo, eu, professor, juntamente com os alunos, conseguimos

desenhar um cenário mais justo para Educação Física escolar.