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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. III Nº 6 JANEIRO/2012 Cláudia Falluh Balduino Ferreira 123 TEMPO E FILOSOFIA NO ROMANCE PEDRO PÁRAMO, DE JUÁN RULFO Cláudia Falluh Balduino Ferreira 1 http://lattes.cnpq.br/8587078187455906 RESUMO – Considerando que a questão filosófica expressa pela composição narrativa visa às relações e as tensões entre o tempo da narrativa e o da vida, e que várias disciplinas são convocadas a este amplo debate, o presente artigo quer ilustrar ao modo como se dão a aliança entre os processos mnemônicos e de anamnese e a experiência do tempo no romance do escritor mexicano Ruan Rulfo, empregando as noções filosóficas de anamnese conforme Platão e a questão do temporal segundo Paul Ricoeur. PALAVRAS-CHAVE – Tempo, narrativa, filosofia. ABSTRACT – Whereas the philosophical question of narrative composition aims to express the relations and tensions between narrative time and life, and that various disciplines are called to this broad debate, this paper tries to illustrate the alliance between the mnemonic processes and the experience of the time in the novel of the Mexican writer Ruan Rulfo, employing the philosophical notions according to Plato and the question of time according to Paul Ricoeur. KEYWORDS – Time, narrative, philosophy. 1) A crítica literária entre a autonomia e a integração. Não existe comentário crítico que se exima de privilegiar uma lógica que remete às expansões do fenômeno literário e suas ramificações com as outras ciências do Homem, no dizer de Roman Jakobson (JAKOBSON, 1976). 1 A autora é doutora em Teoria Literária e professora de literaturas francesa e árabe na Universidade de Brasília.

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VOL. III Nº 6 JANEIRO/2012

Cláudia Falluh Balduino Ferreira

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TEMPO E FILOSOFIA NO ROMANCE PEDRO PÁRAMO, DE JUÁN RULFO

Cláudia Falluh Balduino Ferreira1

http://lattes.cnpq.br/8587078187455906

RESUMO – Considerando que a questão filosófica expressa pela composição narrativa visa às

relações e as tensões entre o tempo da narrativa e o da vida, e que várias disciplinas são convocadas a

este amplo debate, o presente artigo quer ilustrar ao modo como se dão a aliança entre os processos

mnemônicos e de anamnese e a experiência do tempo no romance do escritor mexicano Ruan Rulfo,

empregando as noções filosóficas de anamnese conforme Platão e a questão do temporal segundo

Paul Ricoeur.

PALAVRAS-CHAVE – Tempo, narrativa, filosofia.

ABSTRACT – Whereas the philosophical question of narrative composition aims to express the

relations and tensions between narrative time and life, and that various disciplines are called to this

broad debate, this paper tries to illustrate the alliance between the mnemonic processes and the

experience of the time in the novel of the Mexican writer Ruan Rulfo, employing the philosophical

notions according to Plato and the question of time according to Paul Ricoeur.

KEYWORDS – Time, narrative, philosophy.

1) A crítica literária entre a autonomia e a integração.

Não existe comentário crítico que se exima de privilegiar uma lógica que remete às expansões

do fenômeno literário e suas ramificações com as outras ciências do Homem, no dizer de Roman

Jakobson (JAKOBSON, 1976).

1 A autora é doutora em Teoria Literária e professora de literaturas francesa e árabe na Universidade de Brasília.

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Se estas expansões críticas são conexões, e estas, por sua vez, são veios que levam à generosa

e heterogênea fonte das hermenêuticas, é em proveito da literatura e apenas dela, que o crítico

encontra, gera e consolida o alargamento substancial de seu plano de evolução.

Acreditamos que a necessidade de adequar e combinar operações críticas devidamente aliadas

e alinhadas com as possibilidades de exame que certas obras literárias oferecem, não são senão um

privilegiado panorama que as mesmas exibem de suas quase infinitas abordagens, emanações dos

sentidos estratégicos do Texto.

As noções de autonomia e integração, relativos à abordagem crítica, constituem dois

caminhos dos estudos exegéticos. A autonomia, em si, resguarda os postulados hermenêuticos,

privilegiando as suas estruturas genéticas e organizacionais. A integração, além de enfatizar a função

crítica, sem exacerbá-la, expande seu sentido de aliança e cria a noção interdisciplinar, posto que para

o crítico moderno seja difícil restringir-se a seu objeto tradicional, sem que num momento, breve que

fosse, arriscasse a cair numa espécie de isolamento nocivo e, - senão estéril -, no mínimo monótono.

Desta maneira, todo procedimento investigativo termina por ser o catalizador de um

fenômeno maior: a criação de vertentes sociológicas, históricas, políticas, linguísticas, antropológicas,

entre outras, que, longe de privilegiar tendências sazonais deste ou daquele discurso hermenêutico,

exploram, revelando e indicando as variantes latentes do sentido textual. O que Michael Riffaterre

denomina Les profondeurs du texte2. (RIFATERRE, 1979, p. 50)

Amparados neste raciocínio passaremos à exposição da formulação da nossa intenção de

investigação.

Se toda abordagem não pode oferecer a revelação da totalidade dos conteúdos estratégicos de

sentido de uma obra, as alianças entre alguns modos exegéticos pertencentes a linhas diferentes,

porém complementares, como a abordagem estruturalista e antropológica, por exemplo, entre tantas

outras combinações, são, contudo, eficazes na explicação da matéria literária. Assim, cumpre-nos

expor dos meios operacionais que pretendemos aplicar à análise de um fragmento do romance Pedro

Páramo, do escritor mexicano Juan Rulfo.

Este romance em 2012 ainda figura no cimo da produção literária mexicana e

indubitavelmente, da literatura mundial.

2 As complexidades do texto.

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A crítica e todos os estudos científico-literários que perpassam os estonteantes mundos

contidos nas místicas cidades rulfianas de Comala e Media-Luna, (porque não há um, mas vários

pueblos textuais) experimentam inspirados por tal narrativa, a possibilidade de transcender certo

irracionalismo pedagógico e afastar a especulação crítica de redundância estéril, em favor da

observação e da observância que deve buscar o estatuto de um novo sistema narrativo que Rulfo

criou através destes páramos transcendentes.

Nossa reflexão quer aproximar da compreensão das arcadas estruturais de Pedro Páramo como

lugar onde repousam as temáticas. Estas últimas serão tratadas do ponto de vista de certos aspectos

filosóficos que se entremearão com a reflexão sobre o tempo na diegese.

Esta malha interpretativa usará alguns conceitos de tempo, desenvolvidos por Paul Ricoeur.

A riqueza da expansão interpretativa nos leva querer a consolidar um sentido que brota da

arte, encontrando-a, ainda que como algo que esteja aprisionado, como o sentido próprio da

libertação.

Ars libera, ainda que Ars poética.

Seja por que caminho crítico for.

2) Tempo: das estruturas gramaticais ao Universo do Trespasse.

Los muertos no tienen tiempo ni espacio.

No se mueven en el tiempo ni en el espacio.

Entonces así como aparecen, se desvanecen.

(RULFO, 1973, p. 6 e 7)3

Queremos começar nossa reflexão à maneira kantiana, expondo uma proposta radicalmente

oposta à tese que defenderemos para com ela constituir uma antinomia. E o faremos expondo este

argumento de Juán Rulfo que, por sua força lógica, anularia toda e qualquer argumentação de cunho

simbólico que pudéssemos querer demonstrar estar contida em sua narrativa.

3 Os mortos não têm tempo nem espaço. Não se movem no tempo tampouco no espaço. Então assim como aparecem, desaparecem.

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Porém, preferimos colocar num primeiro momento este confronto antinômico entre

parênteses, para desenvolvermos a fórmula nominal deste item, e assim, ao final, conseguirmos

transformar o argumento refutativo do mestre de Jalisco a nosso favor.

Isso porque é preciso haver um objeto de estudo, ainda que este seja fundamentado –

particípio que também se perde nas brumas de Contla, Luvina e Talpa – em um mundo do não ser,

em um mundo onde o ser não existe. E se não há existência do ser, não há o logo cartesiano.

Cessariam aqui as extensões? Não, posto que todos os personagens de Comala pensam, apesar de não

existirem fisicamente. Pela presença dessa lógica às avessas, refratária, auto gerativa, partenogênica e

que ainda assim é lógica - colocamos o argumento rulfiano entre parênteses. E justificamos da

seguinte forma: se o autor pode trabalhar com o que não é mais, e apresenta-lo como pertencente a

um fazer artístico literário, através do qual realmente existe, o crítico, por sua vez, também pode agir

como se o que não é não existisse realmente, em favor do seu argumento. Razão da presença das

aspas, justificativa dos parênteses, sepulcros etéreos, suspensos como urnas funerárias no topo da

pirâmide asteca da hipótese narrativa de Rulfo.

Os processos de organização temporal de uma narrativa como Pedro Páramo não podem ser

explicados por concepções narratológicas sem sentido transcendente. E a estrutura transcendente

não deve nos surpreender neste romance, ainda que o simbolismo da transcendência seja paradoxal,

de alguma maneira. As tensões entre o tempo e a narrativa são marcadas pela presença de certos

verbos designando as operações mentais das vozes que promovem a atualidade da história.

Os verbos são o elemento privilegiado num primeiro plano da escrita para expressar a

ruptura do processo temporal de narrativas outras, diferentes do gênero que Rulfo inaugura cujo

caráter espectral comove e abala as intenções críticas que possibilitam da apreciação da expansão do

tempo da narrativa. Eles promovem, num segundo plano, a penetração no “outro mundo”, no

mundo suprassensível que constitui, nesta narrativa, o reino dos mortos.

Dirigindo-nos primeiramente ao plano gramatical, em seguida, ao plano semântico das

operações que apresentaremos, o verbo será o moto que realizará a ‘passagem difícil’, o ‘fio da

navalha’ por onde caminha o desavisado leitor, irmão e cúmplice de ninguém. É através da ‘porta

estreita’ do verbo que ele é conduzido para o lado oposto sugerido pela narrativa. É quando ele cai

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do ‘outro lado do espelho’, onde habita então a verdadeira extensão e realidade temporal das

personagens.

Tais cenas que representam passagens, rupturas e percepção de um novo plano, expressam a

necessidade de transcender a camada primeira, constituída pela presença de uma ordem gramatical

que se revelará como um plano falso.

O trecho em que a personagem Suzana San Juan, uma menina que desce a um fosso escuro,

amarrada pela cintura por uma corda sustentada pelo pai que a instrui, e que o faz em busca de

objetos preciosos, pode representar a metáfora da mudança dos planos temporais que estamos

privilegiando. A menina não encontra apoio para os pés na medida em que desce, e a voz do pai

dizendo ‘desce mais, Suzana’, são micro representações intra-diegéticas do plano que representa a

descida do leitor, o penetrar na escura narrativa. Esse modo de descensus ad inferos é a trajetória do

leitor de Pedro Páramo, aquele que cria o que é lido, e não raro de quem tenta analisar, realizando

um tipo de milagre de tato, que deve ser o trabalho do crítico. E esta descida é necessária a fim de

aprender o que se quer conhecer.

– Desça Susana, e me diga o que está vendo.

Estava pendurada naquela corda que machucava sua cintura, sangrava as suas

mãos, mas que não queria soltar: era como se fosse o único fio que a unia ao

mundo lá de fora.

– Não vejo nada, papai.

– Procura bem, Susana. Faz por encontrar alguma coisa.

E a iluminou com sua lamparina.

– Não vejo nada, papai.

– Vou descer você mais, Avisa quando chegar no chão.

Ela desceu e desceu balançando, ondulando na profundeza, com seus pés

bamboleando “não encontro onde pôr os pés”.

– Mais para baixo, Susana, Mais para baixo. Diga se esta vendo alguma coisa.

E quando encontrou apoio permaneceu ali, calada, porque emudeceu de

medo.

A lamparina circulara e a luz passava ao largo junto dela. (RULFO, 2005, p.131)

No nosso entender, este é um dos quadros mais impressionantes e arrebatadores deste

romance; cena cujo espanto desolador e tenebroso é o ponto fulcral desta narrativa. Sem querer

transportar para momentos muito distantes do romance moderno, nem comparando em termos

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genéticos, equiparamos este momento da narrativa ao Nœud, ou o Nó das tragédias clássicas. Essa

sombria especulação subterrânea, por entre a matéria decomposta a se desfazer em pó, este não

encontrar apoio entre um mundo de sombras e esfacelamento é a marca da trajetória do leitor pelos

subterrâneos da narrativa rulfiana.

Queremos reforçar que a leitura de Pedro Páramo deve abolir a polaridade que caracteriza as

narrativas tradicionais, onde há um espaço e um tempo que se correspondem entre si e que podem

estar a apenas um plano acima do tempo e espaço do leitor. Não intencionalmente, porque o leitor

ainda nada sabe. Não há intencionalidade no ato de perceber os mundos límbicos ou atemporais

desta narrativa que possam conduzir o leitor a este ou aquele cuidado. Entra-se inocente, para em

seguida ser tomado de surpresa, qual Susana San Juan, quando não precipitado no vazio surdo do

terceiro plano diegético, plano este onde os personagens dormem, rememoram, voltam das sombras

para as sombras, na tentativa de recuperar uma história.

O leitor que quiser se transportar para os planos de Comala deve fazê-lo no intervalo dos

jogos verbais, ou seja, naquilo que faz do verbo um elemento unidimensional e o separa da

materialidade do real. E essa passagem é instantânea. Daí o pasmo das descobertas deste universo

aonde vem se instalar o leitor. Universo do trespasse.

De fato, o território onde Rulfo situa a trama se define pela ocorrência de um pretérito

imperfeito – além de insólito – e que por sua vez define a existência da história. Paul Ricoeur ressalta

que um dos sintomas que mostram a transição de um plano real para o plano fictício é a perda do

significado de “passado” do pretérito épico, e acrescenta outros, todos ligados ao jogo verbal a

transcender:

Outros sintomas se seguem: por exemplo, discordância entre advérbios temporais e tempos verbais, que seriam inaceitáveis em asserções de realidade; poderíamos ler num texto de ficção “Morgen war Weihnachten”; ou ainda: “And, of course, he was coming to her party tonight. A junção de um advérbio que marque o futuro a um imperfeito prova que o imperfeito perdeu sua função gramatical. (RICOEUR, 1984)

Assim, se a narrativa num sentido universal das produções literárias, sofre um trânsito

promovido pela leitura, em Pedro Páramo, esses aspectos não manifestos primeiramente na

existência deste espaço textual, distinguem-se das narrativas anteriores, por ser a narrativa do não-

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tempo, ou da ausência do tempo, ou por estar fora do tempo. A narrativa é livre de um travamento

histórico no sentido da continuidade temporal, onde não existe mais a dicotomia tempo real e tempo

da narrativa, mais um terceiro tempo. Ilustrando essa situação paradoxal obtida pela abolição dos

planos temporais, o pensamento rulfiano utiliza imagens cuja própria estrutura inclui a contradição e

consequentemente a negação dos circuitos temporais comuns.

Então alguém tocou meus ombros. – O que é que o senhor está fazendo aqui? – Vim procurar... – e já ia dizer quem quando parei – vim buscar meu pai. – E por que não entra? Entrei. Era uma casa com metade do teto derrubado. As telhas no chão. O teto no chão. E na outra metade um homem e uma mulher. – Vocês não estão mortos? – perguntei a eles. E a mulher sorriu. O homem me olhou seriamente.4 (RULFO, 2005, p.40)

Ou

– Da senhora eu só vim saber pelo arrieiro que me trouxe até aqui, um tal de Abundio. – O bondoso Abundio. (...) Quer dizer que ele recomendou a você que viesse me ver? (....................................................................................................................................) – Mas esse de quem estou falando ouvia muito bem. – Não deve ser ele, Além do mais, Abundio já morreu. Quer dizer, não pode ser ele. (RULFO, 2005, p.41)

Todas essas cenas expressam de que forma transcender os planos temporais são importantes

para, através do passado, seja distinto o presente desta narrativa. É fundamental considerar os

movimentos temporais num contexto mais abrangente de planos e interferências destes entre si para

que se consuma a percepção do sentido em Pedro Páramo.

3) Tempo e Anamnese. Os diálogos temporais entre Hypnos e Tânatos.

“A recordação é para aqueles que esqueceram”

(PLOTINO, 1970, p. 4).

4 Grifo nosso.

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No tópico antecedente lançamos mão de uma noção filosófica desenvolvida por Kant para

formular um sentido de direção e uma estruturação dos nossos argumentos referentes ao de Rulfo,

qual seja, uma narrativa versando sobre o que não há mais. Quisemos estabelecer através dos passes

antinômicos, um paralelo que viesse servir à nossa reflexão, gerando um campo de possibilidades de

estudos do fenômeno narrativo que viemos de expor.

No tópico presente, quereremos nos servir de outro veio filosófico, para a exposição de mais

um aspecto da questão temporal. Não em seus trânsitos gramaticais, uma vez que julgamos que estes

já estejam resolvidos, mas sim nas relações do tempo e memória, e mais profundamente, entre tempo

e os processos de rememoração ou de anamnese, prática constante nos personagens de Pedro

Páramo. Para isso recuaremos até Platão.

Assim, se a discussão do primeiro tópico foi um meio, esta que agora empreendemos

contribuirá para que ascendamos aos fins últimos da noção temporal.

Na Grécia antiga, havia duas valorizações da memória. A primeira delas se referia aos eventos

primordiais (cosmogonia, teogonia, genealogia) e o segundo, à memória das existências anteriores, ou

seja, de eventos históricos e pessoais vividas pela alma em outras encarnações. Ambas estavam

ligadas à expressão temporal que derivava da formulação destes valores.

Para os gregos existia uma diferença entre memória (mneme) e recordação (anamnese). Em

Platão, que desenvolve esse conceito em Fedro, uma memória perfeita é superior à faculdade de

rememorar. E conclui: “Para aqueles que esqueceram, a rememoração é uma virtude; mas os

perfeitos não perdem jamais a visão da verdade e não têm necessidade de rememorar”. (PLATÃO,

1970, p. 250)

Ao passar para o mundo dos mortos, as almas deviam se eximir de beber da fonte do Letes,

fonte do esquecimento e do mal, para que ao reencarnarem mantivessem claras todas as verdades

que foram partes de sua existência precedente. E mais: a lembrança de suas existências anteriores

deveria capacitá-los a descobrir sua própria história, dispersa através de suas inumeráveis

encarnações, unificando-a. A anamnese é o processo de unificação de fragmentos de história sem

qualquer relação entre si, formando uma cadeia onde o começo se liga ao fim.

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Platão utilizará essa ideia referente ao esquecimento e à memória, transformando-as a fim de

articulá-las em seu sistema filosófico.

Para Platão, aprender é, no fim das contas rememorar. Entre duas existências terrestres, a alma contempla as Ideia s: ela compartilha do conhecimento puro e perfeito. Mas ao reencarnar, a alma bebe da fonte do Letes e esquece o conhecimento obtido por meio da contemplação direta das ideias... (ELIADE, 1998, p.111)

Qual poderia ser a relação entre este aspecto um tanto quanto obscuro e profundo do

pensamento grego, aproveitado pelo sistema filosófico de Platão, brevemente exposta aqui, e uma

narrativa literária do século XX, portanto separada por centenas de anos destes conceitos?

Talvez a ligação seja justamente a singularidade de ambas, e a distância no tempo constitua

um elo a mais a possibilitar a união de duas originalidades.

Ora, é sabido que os extratos semânticos dos romances modernos podem estar em

alinhamento com diversas outras disciplinas. E esta foi a formulação primeira justificativa de nosso

proceder neste trabalho, qual seja: possibilitar a extensão das ramagens textuais, de forma que

possam se encontrar com as ramificações de outras ciências do conhecimento. E a filosofia nos

agrada sobremodo. Além do mais, acreditamos que são formulações como esta platônica, as mais

adequadas entre tantas outras à verificação de obra tão singular como Pedro Páramo.

Passemos à explicação da interpenetração deste ramo da filosofia em que se trabalha o

conceito de anamnese, e a narrativa do romance citado.

Os personagens de Pedro Páramo encontram-se todos num estado ou de sono, ou de torpor.

Assim imersos, formulam seu estatuto através do processo de anamnese, que vem ao seu encontro

em favor da composição na narrativa.

No plano em que existem, estão esquecidos de uma vida, que rememoram e revivem a cada

passo, a cada fragmento.

No caso, se no mundo grego as almas reencarnadas traziam a consciência de outras vidas,

para a vida, em Pedro Páramo a anamnese se dá às avessas, ou seja: os mortos trazem para o mundo

dos mortos a recordação da vida. Mas esta recordação não é assumida enquanto tal. Suzana San Juan

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e Eduviges são personagens que não se recordam do que viveram, mas como mortos que são

repetem a vida nos espaços post mortem como um eco fátuo.

Para Platão, viver inteligentemente, ou seja, aprender e compreender o verdadeiro, o belo e o bom, é antes de tudo recordar-se de uma existência desencarnada, puramente espiritual. O “esquecimento desta condição não é necessariamente um “pecado”, mas uma consequ ência do processo da reencarnação. É notável que para ele, o “esquecimento” não faz parte integrante da morte, mas ao contrário é relacionado com a vida, a reencarnação. É ao voltar à vida terrestre que a alma “esquece” as ideia s. Não um esquecimento das existências anteriores – mas do esquecimento das verdades transpessoais eternas que são as ideia s. (ELIADE, 1999, p. 111)

Em Pedro Páramo, a anamnese existe no sentido inverso.

Os personagens não recuperam a recordação dos eventos vividos e que fazem parte de sua

existência precedente, mas vivem as verdades das estruturas do vivido, que não supõem, mas repetem

automaticamente. Estão transitando inconscientes no próprio mundo de Letes, do qual não saem, no

qual penam, em colóquios bizarros, com a memória do vivido.

Em consequ ência, o tempo é colocado entre parênteses nesta plataforma morosa e

redundante, onde não há o contrário, o dicotômico, tão próprio ao humano, mas sim o reverso, a

contra-prova, a radiografia dos ex-estados humanos, ou o inumano. A ideia exumada estendendo-se

sobre o vivido; os pensamentos são desfeitos em sombras, e chocalham como ossos sem consciência

do que foram, e sem saber que não são mais, acreditando-se cinzentamente vivos. São os habitantes

de tristes pueblos-necrópolis, onde abundam os in pace bene domit, ecoam os domit in somno pacis, os in pace

domini dormias, enfim onde ricocheteiam pelos quatro cantos de Comala e Media Luna, as fórmulas da

epigrafia funerária.

Mas os personagens não conseguem ouvir.

Estão todos sob o domínio dos gêmeos Hypnos e Tânatos, e não raro buscam o sono em

vários fragmentos.

Sono que muitas vezes é interrompido pelos sons e pelos rumores.

Sons que repercutem no intramuros da necrópole as águas de libação dos murmúrios rituais.

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Conclusão

O contraste entre a eternidade e o tempo não se limita nem se circunscreve. Ele é o motor

das tensões narrativas, sobretudo naquelas de tipo shandiano, onde o herói ainda não nasceu, mas já

é uma voz narrativa, ou nas de tipo machadiano, - às quais se alinham a esta narrativa rulfiana em

análise -, em que os heróis são uma voz póstuma.

Nesta narrativa em que os personagens estão estabelecidos no horizonte da eternidade

estável, as vozes se expandem com toda fluidez seus efeitos sobre a narrativa, aproximando-se no

espaço do não-ser, ou da dissemblance. Está assim marcada a diferença ontológica que separa as vozes

que se acreditam vivas, estando, porém, mortas, do estatuto desejado. Como seres de certa forma

transcendentes porque neles está ausente a experiência material que os animaria, os personagens se

instalam em um presente sem fim, perpétuo em relação à existência de seres que desejariam ser, cuja

contingência se manifesta nas vicissitudes do tempo, tempo que é o suporte de uma elegia onde a

narrativa se inclui.

É ainda neste mesmo horizonte de eternidade que todas as expressões vocais dos

personagens ganham sentido, indiferentes a esta mutação que afeta seu estatuto ontológico, tomando

posse tanto dos recursos metafóricos (de extensão) e metonímicos (de contração) na confecção de

um texto em que as categorias temporais se incumbem de torna-los “seres” que vivem a

temporalidade como “agonia”, governados por uma sombria opacidade, e por uma obscuridade só

resolvida pelo estatuto que lhes é conferido pela voz, e na narrativa.

A temporalidade articulada no texto de Pedro Páramo, aliado às noções filosóficas expostas

consistem, portanto, no único recurso capaz de conceder aos manes-personagens uma experiência vocal

através da eternidade do verbo, capacitando-os a recuperar uma autonomia que é própria do

presente, onde desejariam estar e onde esta narrativa faz, realmente, um eco.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PLOTINO. Ennéades. Paris: Belles Lettres, Vol. IV, 1933. Tradução de Émile Bréhier.

Siempre! La cultura en México, número. 1,051 (15-VIII-1973), pp. VI-VII. Entrevista a Joseph

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