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Tempo e Linguagem Augusto Meneghin

Tempo e Linguagem

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por Augusto Meneghin

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Tempo e Linguagem

Augusto Meneghin

I

ou voz adolescente: primeiros hematomas

A arte está livre e não sabemos o que fazer com isso. Não livre de maneira absoluta, mas livre dentro de sua dimensão formal.

Não há mais vanguardas – quem se propõe a isso, propõe-se a uma repetição desnecessária. Toda a ruptura dos modernistas foi mais que essencial para as transformações que ocorreram na humanidade, mas o saudosismo é tão pouco moderno quanto um vaso etrusco. Artistas saudosistas são um gênero de artistas, assim como surrealistas, cubistas ou conceitualistas. Estes rótulos não cabem no momento em que estamos. Criamos, simplesmente.

Isso não significa que a questão da criação seja simples ou que estejamos ignorando a contribuição de todos esses artistas. Muito pelo contrário, criar é um ato de extrema complexidade, embora em sua conclusão se apresente como uma unidade.

Vejamos o mundo. Mundo é uma única palavra. Esta palavra, entretanto, é desconhecida em suas dimensões. Tudo o que sabemos do mundo é o que conhecemos de seus fenômenos. Mar, amor, casas, uma doença – isso tudo é mundo, mas a palavra mundo, permanece intocável.

Da mesma maneira, a palavra arte permanece intocável. A palavra criação, a palavra casa. Porque, em termos de linguagem, tudo aponta alguma coisa, mas nunca a define. É pelo conjunto dessas relações nem sempre visíveis e compreensíveis que as coisas adquirem sentido.

Minha arte trata de tudo aquilo que me espanta, perturba ou incomoda. Trata também de tudo o que meu espírito desejar, ainda que meu espírito também possua uma dimensão e não deseje falar sobre qualquer coisa. Meu espírito não é uma obra metafísica, mas minha revolta, sim.

Camus disse: “A revolta metafísica é o movimento pelo qual um homem se insurge contra a sua condição e contra a criação. Ela é metafísica porque contesta os fins do homem e da criação”. Minha obra é uma revolta metafísica, tanto porque contesto a finalidade da existência, quanto busco questionar, dentro da própria obra, sua finalidade. Ela não é um produto acabado, porque eu não sou um ser acabado. Não tenho uma essência da qual poderia extrair toda a inspiração e estilo. Não sei absolutamente nada sobre a palavra essência: tudo o que vejo é um mundo que se oferece para que eu o transforme. E eu, ao mesmo tempo, sou transformado nesse processo.

Gosto de pinturas, como gosto de fotografias, esculturas, instalações, vinho, erotismo e literatura. No passado eu me esforçaria para explicar porque gosto de todas essas coisas e tantas outras, mas hoje acredito que essas coisas não precisam ser justificadas. Minha própria escolha é uma justificativa. Se escolho a pintura para criar uma obra é porque julgo que aquela obra só poderia ser uma pintura e não uma escultura. Da mesma maneira que posso optar por sair com amigos ao invés de permanecer pintando obsessivamente. Não há absolutamente nada que me impeça. Fujo da idéia e do peso que a palavra “artista” carrega, ainda que eu não consiga me desvencilhar de sua atração.

Não posso nesse texto entrar em um devaneio. Preciso dizer porquê estou aqui e cumprir com a obrigação que me propus. Direi, portanto, que minha obra trata da existência.

Não estou preocupado com questões meramente formais. Não estou ocupando todo o meu tempo em estudar as cores e o espaço, enfim, todas as pesquisas que estavam na moda nos anos 60 e 70. Também

não creio que me ocupe da abstração. Porém, tudo isso está sempre necessariamente presente no que faço, já que não haveria arte alguma sem a existência do espaço, do tempo, da cor, etc.

Gostaria de encontrar uma palavra que unisse a arte chamada conceitual e a arte chamada expressionista, se isso for possível de alguma maneira. Entretanto, isto seria meramente uma palavra, como mundo, arte ou casa.

O que gostaria realmente é expressar a existência, tanto a minha quanto a coletiva.

Não sou um ser que se move em uma única esfera. Não sou meu cotidiano, por exemplo. Não sou apenas as roupas que visto ou a visão política que tenho da realidade. Sou tudo isso, numa rede complexa de relações que seguem se alterando até o momento de minha morte. Daí que expressar a existência não é meramente existencialismo. Expressar a existência é um itinerário que continuamente se desdobra sobre si, sobre os outros, sobre o mundo. É isso que procuro fazer: criar o que está sendo, em mim e nos outros.

Não aprecio artistas que tenham um sentido de criação isolado, que tratem de temas afastados da existência ou que não tratem de tema algum. Toda arte diz algo, usando-se de clichês ou de mecanismos hiper-complexos. Não há arte imune, pois o ato artístico é, por excelência, uma postura do sujeito.

Quero dizer que a arte, por mais excêntrica que se pretenda, ainda é uma postura do sujeito, dentro de um mundo que ele ama, odeia ou é indiferente. Mas nunca é imune. Imune é o cotidiano medíocre, o ganhar a vida sem a mínima reflexão e aguardar a morte sem filosofia. Já disse Montaigne: “Filosofar é aprender a morrer”. Acrescento ainda que criar é aprender a viver, pois nos coloca em contato direto com a idéia de nascimento. Não vejo outra maneira de explicar o prazer que existe em criar senão em compará-lo com o prazer de estar vivo, apesar de tudo.

Uma das descobertas que tive no ano de 2012 foram os CadernosLivros de Artur Barrio. Além, é claro, do próprio Artur Barrio. A partir disso iniciei uma obsessão por esses artefatos mágicos portáteis. Tudo pode ser motivo para uma anotação. Uma folha de árvore pode ser colada, cinzas, excrementos, insetos, desenhos, poemas, colagens – tudo o que suportar as costelas do caderno. Há também a alma que habita cada caderno: alguns são sombrios, outros alegres, uns renegam tinta, outros só aceitam nanquim e aguada; há também os que aceitam tudo, os que adoram ter as páginas rasgadas, etc. Não se deve questionar essas almas: deve-se aceitá-las e contribuir para que cresçam em suas personalidades. Isso poderia ser chamado de aceitar o que o inconsciente nos propõe ou deixar que o rio tenha o seu curso.

Os cadernos, por si só, já poderiam ser obras. Como também são os embriões, a gênese da expressão, a idéia e o sentimento em estado bruto. Enfim, são receptáculos da existência, o suporte que considero ideal para acompanhar o movimento da realidade. Talvez para outros ele nada signifique senão um amontoado de idéias caóticas, desenhos sem nexo ou perversões. A característica que mais admiro em alguns cadernos é a perversão. Um caderno recebe uma perversão como nenhum psicólogo. Só ele permite que nossa perversão se materialize no ato. Entretanto, isto pode não ter valor artístico algum, pois o que determina o valor artístico de alguma coisa são aqueles que entendem do mercado ou que escrevem os grandes volumes da história da arte. Ao artista, muitas vezes, não lhe cabe escolher o seu destino financeiro, o que pode ser frustrante ou uma benção, dependendo exclusivamente da postura que o próprio artista tem em relação ao que cria.

Posso dizer que crio a partir de uma necessidade. Uma necessidade existencial. E não me incomodaria em vender algumas obras se as pessoas tiverem esse desejo. Isso não significa que eu crie pensando em vendê-las. Aliás, o que ocorre é exatamente o contrário: crio porque é minha vida e não poderia ser diferente.

Tenho, como todos, algumas preferências: gosto de Duchamp, de Kiefer, Rauschenberg, Beuys, Barrio...

Não me incomodo se cada um deles possui uma maneira diferente de pensar a vida. O que me atrai é justamente a diferença, a maneira pela qual cada um deles encontrou de existir. Mas isso não significa que eu goste de todos os artistas. Significa que alguns participam de minha dimensão existencial, que partilho de maneira semelhante as suas visões.

Sempre apreciei a filosofia e a poesia. A primeira arte que desenvolvi foi a arte da escrita. Depois de sucessivas crises quase místicas em que alternava entre desenhar, escrever e filosofar, escolhi um campo que não me impedisse de realizar nenhuma delas. Chamo tudo isso de arte, ainda que perceba intimamente

que conservam características que lhe são peculiares. Faço sempre tentativas de uni-las, ainda que nem sempre essas uniões sejam frutíferas. Como tudo é um imenso processo inacabado, não me pressiono por realizar essa unificação. Talvez ela já esteja na minha frente, mas eu não possa vê-la tão claramente quanto eu queria. Talvez ela esteja a caminho. E talvez ela nunca chegue.

Nada disso é importante, no sentido que a existência não cessa seu movimento porque estou refletindo ou criando ou deixando de criar. Tudo está fluindo e eu já estou um pouco mais velho do que quando escrevi a primeira linha. Assim como você.

Interesso-me pelo vazio que este século XXI me traz. No âmbito pessoal: a solidão, as relações efêmeras, a sexualidade. No âmbito coletivo: a morte da utopia, a desolação das grandes cidades, a guerra. Entretanto é sempre sobre certo vazio, certa náusea diante o real. Cioran disse em uma carta: “Tendo perdido o gosto pelos seres, esforço-me em vão por adquirir o gosto pelas coisas; limitado forçosamente pelo intervalo que os separa, exercito-me e esgoto-me à sua sombra. Sombras também essas nações cuja sorte me intriga, menos por elas mesmas que pelo pretexto que me oferecem de vingar-me do que não tem nem contorno nem forma, de entidades e de símbolos”.

Eu ataco os símbolos. Incomoda-me a escravidão humana a essas formas patrióticas, religiosas, políticas defasadas. Há uma deformação da existência quando o homem entrega sua consciência a uma idéia que não seja sua. Cada um possui a possibilidade de experimentar a vida por si mesmo. Por que entregá-la a outrem? Ao mesmo tempo, não somos ilhas em um oceano de outras milhares de ilhas. Somos parte de uma história e, como essa história, vivemos suas contradições e desenlaces. Esperar é assumir a alienação. Só existimos plenamente quando nós e a humanidade nos encontramos. Isso é extremamente político, ainda que, à primeira vista, não pareça.

Se eu pudesse, criaria uma obra que aniquilasse os sentimentos domesticados que todos carregam. Creio que muitos não percebem a passagem do tempo, que ignoram a morte e a possibilidade do amor. Tento inserir a morte em minhas obras. Acredito que nossa sociedade precisa estabelecer uma outra relação com a morte. Os outdoors, as propagandas, as revistas, as embalagens dos produtos, os shoppings – todos celebram uma vida em que a morte, a doença e o sofrimento não existem. Ao mesmo tempo, é a celebração de uma vida que não existe, uma vida falsa, um simulacro da realidade. Aliás, neste mundo em que vivemos, devido a tamanho grau de artificialidade que atingimos já praticamente não há realidade, estando os seres imersos em um lodo sombrio, sem utopias, sem experiências profundas, mediados unicamente por imagens que todos veiculam através de tecnologias cada vez mais reprodutivas.

Esta idéia de um mundo sobreposto acompanha algumas de minhas obras. Sei que Kiefer trabalhou algumas de suas pinturas a partir de fotografias. Minha idéia é que por trás de algumas obras exista uma imagem fotográfica. Que, por trás de todos os materiais, ainda se revele uma imagem reproduzida. Quero dizer com isto que uma suposta imagem do real está encoberta por artificialidades, da mesma maneira que a existência em suas milhares de dimensões.

Augusto Meneghin, caderno de artista, pintura sobre fotografia, 19x25cm, 2012.

Augusto Meneghin, caderno de artista, pintura sobre fotografia, 19x25cm, 2012.

Realizei também uma série de obras que buscou descaracterizar a figura de três ditadores do século XX: Hitler, Mussolini e Stálin. Trabalhei com fotografias pintadas e depois retornei ao fotográfico. Procurei mostrar a descrença política e ao mesmo tempo a persistência dessas figuras assombrando a humanidade. Acredito que o mundo ainda não se libertou da necessidade desses ícones totalitários e realizei as obras como uma crítica ao sentimento fascista. Estão inseridas na visão de um mundo absurdo, movido por calamidades massivas comandadas por governos comunistas ou fascistas.

Augusto Meneghin, Mussolini, fotografia, 10x10cm, 2012

Augusto Meneghin, Stálin, fotografia, 10x10cm, 2012

Augusto Meneghin, Hitler, fotografia, 10x10cm, 2012

Paralelamente a estas criações comecei a desenvolver uma série de obras a partir do tema Asilos.

Augusto Meneghin, sem título, aquarela sobre papel canson, A3, 2012.

Augusto Meneghin, sem título, aquarela sobre papel canson, A3, 2012.

No dicionário encontramos a seguinte definição para a palavra asilo:

asilo: sm (gr ásylon, através do latim) 1 Abrigo que os países ou suas legações concedem aos estrangeiros perseguidos pelos respectivos governos como criminosos políticos. 2 ant Lugar onde alguém se acolhe para não ser preso ou morto. 3 Estabelecimento de caridade, onde se recolhem crianças, velhos, mendigos, inválidos etc. 4 Amparo, proteção, refúgio.

Podemos ver que esta palavra sugere diversas interpretações no âmbito existencial, tanto serve para designar um indivíduo recluso, abandonado em uma casa de repouso por sua invalidez, quanto um pária da sociedade, um revolucionário político ou um criminoso político.

Acrescentei a esta palavra a idéia de um asilado existencial: um ser que, diante todos os aspectos presentes da existência, asila-se por conta própria em suas criações artísticas, tentando escapar da impotência do homem diante o destino que a história toma, mas ao mesmo tempo, crente de que essa história também é construída minimamente por ele através da arte. É um asilado porque as portas do mundo contemporâneo se fecham diante as críticas que ele tece e porque ele ainda é capaz de contemplar, apesar da velocidade e do embrutecimento capitalista. Seria esta a condição do artista, no meu ponto de vista.

Nesta série de obras que estou desenvolvendo lanço para o futuro as imagens de seres comuns em um estado de culpa, como se sentissem na velhice o vazio de suas vidas, as esperanças frustradas, o desejo de terem sido diferentes, como se estivessem assistindo impotentes a um filme da memória na qual eles mesmos são os diretores, personagens principais e coadjuvantes. Entretanto, neste filme não há como realizar cortes ou alterações. As situações do passado já estão incorporadas em seus corpos, participando de suas anatomias e pensamentos.

Estas obras pretendem subverter as representações típicas do capitalismo, centradas quase exclusivamente sobre a juventude. Vivemos atualmente o império da juventude e a ilusão coletiva de que o corpo não

enfrentará o seu declínio. Essas obras, ao lançarem-se no futuro, mostram ao espectador uma possibilidade de seu próprio destino, ao mesmo tempo em que oferecem a ele a escolha de transformá-lo.

Quando a frase “Eu deveria tê-la amado” surge abaixo da imagem de uma mulher velha, somos naturalmente lançados ao questionamento: amado quem? Sua filha? Uma outra mulher? Sua mãe? Sua amiga? Uma pessoa a quem odiou? Enfim, qualquer resposta adquire valor existencial semelhante e não cabe ao artista respondê-las, mas apenas propô-las da maneira mais contundente.

Essa série ainda está se desdobrando e mostrou-se a mim como bastante rica para um desenvolvimento em diversas linguagens: desenho, pintura, vídeo, performance, fotografia...

Fica evidente o caráter existencial destas criações: o ser visto na temporalidade a partir da proximidade da morte. Pode-se dizer que elas, através de uma imagem lançada no futuro, trazem o espectador ao seu próprio ser presente, fazendo-o questionar o sentido de sua existência em relação ao ser que se apresenta diante ele numa obra de arte. Quando ele observa esta obra, observa uma possibilidade: tanto uma possibilidade já realizada, quanto a sua própria possibilidade. Ao mesmo tempo, olha para uma obra que não diz respeito ao seu cotidiano e à arte de massa, pois nela não há juventude e apelos de consumo, mas culpa. Ela é crítica em diversos sentidos, mas procura não ser fria como uma idéia, e tenta captar a expressão dos seres através de uma técnica tradicional: a pintura.

Os próprios materiais que aprecio servem adequadamente para estas criações. Materiais brutos como concreto e pedra, madeiras velhas, texturas de paredes, cinzas... todos remetem à certa aspereza, peso ou passagem do tempo, podendo ser incorporados às futuras obras.

Com isso penso unir tudo o que vem me acompanhando: a filosofia, a poesia, a pintura e a fotografia, ao mesmo tempo em que me sinto plenamente livre para continuar criando a partir deste tema, seja falando do envelhecimento, da culpa, quanto da morte, da política ou do amor. O tema é amplo o suficiente, mas tem uma dimensão finita e humana.

Resumindo, crio livremente a partir de meus cadernos que são a base para tudo o que penso e sinto. Neles deposito todas as esperanças, frustrações, idéias, fotografias, colagens, palavras, etc. A partir deles, penso em como expandir os esboços que considero relevantes para outros suportes. Todos os temas são acompanhados de um existencialismo: seja na paisagem desolada que busca representar o vazio da vida humana ou nas figuras envelhecidas na proximidade da morte, lamentando-se ou culpando-se pelo que deixaram de realizar.

Asilos são todas as possibilidades (inclusive as não realizadas) da existência, são o futuro lançado em uma representação que tenta trazer o ser à presença (Dasein). São também a subversão da estética capitalista centrada na juventude, na cultura de massas e na arte pop.

II

ou Do Entalhe

A partir das reflexões da parte I, alguns pontos tornaram-se mais claros: a presença do tempo (tanto como tema, quanto como processo) e o esvaziamento da linguagem. Antes, dissertava sobre os trabalhos, escrevendo ora especificamente, ora de maneira geral - o que revelou-se como imaturidade em meu ponto de vista.

A primeira intuição surgiu a partir da série de obras que intitulei Sobre o Esvaziamento da Linguagem I, II e III. Nessas obras utilizei-me, como ponto central, de envelopes para cartas sem conteúdo, sem remetente e sem destinatário.

O próprio material já nos diz algo: as cartas são maneiras bastante antigas de comunicação entre as pessoas, até hoje são utilizadas, em geral, para fins burocráticos (recebimento de contas, notificações, cobranças, informativos judiciários, etc.), perdendo neste século que vivemos a função de transmitir mensagens pessoais para outras pessoas. Salvo as exceções, a arte postal tem sido ainda uma forte linguagem no que diz respeito às cartas. Entretanto, é evidente a substituição que se operou com os recursos tecnológicos, precisamente os e-mails e as redes sociais. Utilizar-se, portanto, de envelopes em brancos possui um sentido simbólico.

Se o elemento de comunicação da carta é retirado, temos um esvaziamento de sua linguagem. Um envelope em branco, sem remetente, sem destinatário e sem conteúdo é, praticamente, um objeto inútil. Inutilidade aqui também significa que este objeto encontra-se aberto. Assim são todos os envelopes do mundo, até que algo os signifique. Porém, minha intenção não foi introduzir nada nestes envelopes, mas fazer deles mesmos objetos com valores e sentidos próprios.

A primeira ação que realizei (e que dei título posteriormente) chamava-se Sobre o Esvaziamento da Linguagem I. Ela consistia em uma performance de repetição na qual abri 1000 envelopes em branco procurando algo sem seu interior. De tempos em tempos um despertador soava diminuindo a cada vez o intervalo temporal. Desnecessário dizer que não havia nada neles. Ao término, meus pés estavam cobertos com os envelopes e abandonei o local, deixando as cartas como uma pequena instalação efêmera. Junto desta performance, expus na parede a série de dois desenhos em aquarela que encontram-se na parte I deste texto.

Esta ação discutiu, entre diversas interpretações possíveis, o desespero do ser diante a linguagem, seja sob o caráter vazio e efêmero das mensagens, ou sobre uma busca incessante por comunicação e sentido. Reflete, evidentemente, a minha própria busca, dentro das dimensões da linguagem, por uma Voz que tenha duração e profundidade, por um aprofundamento da compreensão que tenho de meu ser.

A segunda ação, intitulada Sobre o Esvaziamento da Linguagem II, foi realizada em um salão de arte contemporânea no município de Araras. Utilizei-me de dois bondes restaurados que se encontravam no local da exposição. No primeiro coloquei um envelope em branco em cada banco do vagão, deixando-o trancado, de tal maneira que os visitantes podiam ver os envelopes apenas pelos vidros. No segundo, realizei uma projeção em vídeo no chão do vagão, permitindo que os visitantes entrassem e assistissem ao vídeo, sentados. Este vídeo dos irmãos Miles, intitulado A Trip Down Market Street before the Fire, foi realizado em 1906, pouco antes do grande terremoto que destruiu boa parte da cidade de São Francisco, nos Estados Unidos. Consiste em uma câmera parada em cima de um bonde que se locomove pela principal rua da cidade. Conseguimos enxergar cavalos, os primeiros carros e os trajes típicos da época – tudo o que hoje nos aparece como memória ou objetos de museu. São, por assim dizer, fantasmas, seres que não existem mais, conservados unicamente por esta linguagem em filme.

Se no primeiro vagão apresento o esvaziamento da linguagem, no segundo procuro apresentar o valor de memória e veracidade que ela carrega, ou seja, digo que a linguagem carrega o ser histórico. Heidegger, em sua carta intitulada Sobre o Humanismo, nos diz: “A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias.”. Essa frase sintoniza-se com os meus pensamentos sobre a linguagem e o papel que ela desempenha na vida humana. Entretanto, é necessário reconhecer que hoje a experiência da linguagem reduziu-se à informação. É justamente esse motivo que me leva a buscar um restabelecimento do papel da linguagem na vida e na história humana. O papel do tempo nessa trajetória é crucial, pois é na temporalidade que o ser é dado, é nela que os acontecimentos da existência são. Com o empobrecimento da linguagem, deduz-se inevitavelmente o empobrecimento da capacidade humana de experienciar o tempo, de aceitar sua finitude, de investigar a história dos que vieram antes de nós. Se a linguagem já não significa nada para mim, por que eu deveria me deter em escutar ou ler narrativas? Ao contrário, vivemos uma saturação de informações cotidianas, mensagens efêmeras de acontecimentos banais. Nossa vida passou a ser permeada por palavras esvaziadas, por meras informações e opiniões, enquanto a faculdade de apreensão histórica – que passa por uma reflexão temporal – perdeu o sentido ou foi substituída por uma vida que ignora sua finitude, que ignora o seu destino, em resumo, que ignora a morte.

Ao apresentar uma projeção em um vagão de bonde restaurado, trago à superfície uma possibilidade de narrativa. Ao observar a reação das pessoas ao assistirem o filme, percebo que elas começam a construir suas próprias narrativas, comentando sobre uma época que já não existe, sobre os trajes, sobre as diferenças entre aquele passado e o presente que nos encontramos. Ao mesmo tempo, mesmo que inconscientemente, percebemos nossa própria finitude, percebemos que nós também seremos passado algum dia. O fato de saberem que aquilo já não existe, que foi literalmente destruído por um terremoto, provoca uma sensação de interrupção: as transformações não vieram por processos temporais cotidianos (a passagem dos dias do calendário, por exemplo), mas através de uma ruptura, uma cisão no curso convencional das coisas. Este aspecto do tempo é também o aspecto das épocas revolucionárias, quando o tempo é transformado pela mão humana, quando a história é assumida pelas massas insatisfeitas rumo a um futuro em aberto.

A última ação que realizei com o título Sobre o Esvaziamento da Linguagem III consistiu na construção de uma imensa espiral de envelopes brancos, em uma área aberta, localizada na cidade de Itajubá em Minas Gerais. Após isso, abandonei o local, deixando os cinco mil envelopes serem carregados pelo vento. Ao centro da espiral, havia um poste abandonado que utilizei como ponto de referência.

O espiral, ao mesmo tempo que pode remeter ao tempo sagrado (ciclos de retorno, a idéia de um tempo circular, segundo os povos antigos), é também um tempo que se move de maneira vertiginosa, não histórica. Inclusive, para os povos antigos, o conceito de história é oposto ao conceito que temos no mundo contemporâneo. Não há uma preocupação em narrar os fatos, mas apenas em realizar a ação primeva, vinda da origem dos tempos. Para os povos antigos, o tempo é circular porque serve unicamente para reviver os mitos ancestrais, segundo Mircea Eliade.

Neste caso da ação que realizei não me remeto a qualquer mito especificamente. O que existe é um vazio espiralado. Não um vazio que termina em si mesmo, mas um vazio que, através deste ritual, busca seu “preenchimento”. Quero dizer com isto que, apesar do esvaziamento da linguagem do mundo que vivemos, acredito que é possível restaurar a linguagem a partir de rituais, ainda que isolados e sem nenhuma participação coletiva. Os envelopes estão ali, aguardando circularmente algo que lhes traga um sentido maior. Ao mesmo tempo, este sentido maior é a própria ação. É a ação que traz algo vivente aos envelopes mortos.

III

ou talvez uma conclusão

A maior dificuldade não é estabelecer indicações técnicas sobre um processo, mas é fazer com que este processo diga o seu Ser. A matéria mesma, ao ser escolhida, já nos diz algo. Daí que toda conclusão leva tempo e nunca é um ponto final, mas apenas o início de uma problemática que não precisa, necessariamente, ser resolvida.

Entretanto, é possível observar os vestígios, não apenas das obras, mas do que foi escrito nas partes I e II.

Evidente que na primeira parte existe muita pretensão e uma verborragia desnecessária que mais obscurece do que esclarece. Sem ela, entretanto, não haveria o primeiro salto em direção ao centro do problema. Por isso não se pode exclui-la, mas deve-se olhar para ela com certa desconfiança e agradecê-la por nos ter trazido até aqui. Na segunda parte, estamos mais perto do problema. Mas, onde estamos?

Parece que todas as criações que venho realizando até o momento nascem de um sentimento existencial de que a linguagem está esvaziada. Sem a linguagem o ser que somos está entregue ao vazio. Isso não significa que a linguagem desapareceu, mas que perdeu a importância, ou melhor, tornou-se indiferente. Se a linguagem tornou-se um adereço de segunda categoria, isso implica que nós também nos tornamos adereços de segunda categoria, seres indiferentes. Fomos substituídos pelos objetos e sua circulação. Não pensamos mais a morte, porque a morte não tem um valor de objeto. Ao contrário, estamos afastados do espírito trágico substituído pelo espírito de consumo. Hoje observamos o nascimento, o crescimento e a morte dos objetos.

O tempo não é apenas um dos temas que mais me interessam, mas é também o tecido que reveste todo o ato de criar. Debruçar-se sobre o tempo é debruçar-se sobre a transformação, não só do mundo, mas de nós mesmos. Usar o tempo como procedimento equivale, em termos simbólicos, a usar a nossa própria transformação, a estar em vigília e jamais estagnado. Dessa maneira, ações que busquem aprofundar a compreensão do tempo sempre são presentes e, recentemente, a descoberta do sal como material que simbolicamente representa a conservação.

Cada vez mais torno-me desinteressado das criações de objetos, optando pelo efêmero, mantendo unicamente um registro fotográfico ou em vídeo das ações que realizo como matéria documental. Isso é uma tentativa, ainda que sempre frustrada, de evitar a participação no modelo que fabrica objetos e que nivela toda a criação artística com qualquer outro produto comercial. Trata-se, portanto, de uma posição política contrária ao capitalismo e a cultura de consumo, mas não através de uma arte panfletária, e sim através da denúncia do esvaziamento da linguagem e o empobrecimento do ser histórico e individual.

Há um caráter ritualístico em oposição ao mundo sem rituais que vivemos. Ações que buscam romper o tempo acelerado introduzindo uma nova duração ao instante, resignificando a idéia de tempo. Pode-se falar que há ruptura e estranhamento, mesmo sendo lugares-comuns.

Não é uma arte fatalista, porque acredito que é possível a restauração da linguagem e o redescobrimento do sentido (inclusive da própria arte). Entretanto, não é otimista, mas crítica, porque não carrega a ilusão de que essa restauração ocorrerá necessariamente e, sim, que está em aberto, como o futuro.

É também uma arte aberta, em busca de sua linguagem, porque não está acabada, mas apenas deu o seu primeiro sorriso.

Bibliografia

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http://arturbarrio-trabalhos.blogspot.com.br

http://michaelis.uol.com.br