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Dilogos com Norbert Elias
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Ademir Gebara
Antnio Dari Ramos
Cynthia Greive Veiga
Jones Dari Goettert (Org.)
Jos Tarcsio Grunnenvaldt
Levi Marques Pereira
Magda Sarat (Org.)
Manuel Pacheco Neto
Marcos Leandro Mondardo
Marina Vinha
Reinaldo dos Santos
Renato Suttana
Simone Becker
Dilogos com Norbert Elias
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Universidade Federal da Grande Dourados
COED:Editora UFGD
Coordenador Editorial : Edvaldo Cesar MorettiTcnico de apoio: Givaldo Ramos da Silva Filho
Redatora: Raquel Correia de OliveiraProgramadora Visual: Marise Massen Frainer
e-mail: [email protected]
Conselho Editorial - 2009/2010Edvaldo Cesar Moretti | Presidente
Wedson Desidrio Fernandes | Vice-Reitor
Paulo Roberto Cim QueirozGuilherme Augusto BiscaroRita de Cssia Aparecida Pacheco Limberti
Rozanna Marques MuzziFbio Edir dos Santos Costa
Reviso: Renato SuttanaProjeto grco e capa: Marise FrainerFotos de capa: Arquivo pessoal Prof. Jones DariImpresso: Grca e Editora De Lis | Vrzea Grande | MT
Livro produzido com apoio da Pr-Reitoria de Extenso, Cultura eAssuntos Estudantis | PROEX | UFGD.
Ficha catalogrca elaborada pela Biblioteca Central UFGD
302.42T288
Tempos e espaos civilizadores: dilogos com Norbert Elias./ Jones Dari Goettert, Magda Sarat (Orgs.). Dourados, MS :Editora da UFGD, 2009.272p.
Vrios autoresISBN 978-85-61228-54-5
1. Elias, Norbert, 1897-1990. Processo civilizador. 2. Civili-
zao. 3. Interao social. I. Goettert, Jones Dari. II. Sarat,
Magda.
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Tempos e Espaos Civilizadores
sumrio
07 Apresentao
tempos civilizadores
13 Civilizao e descivilizao na Amrica Latina: O caso brasileiro Ademir Gebara
33 O processo civilizador e a morticao corporal:
Interdependncia de fundamentos e de mtodo na misso jesutica Antonio Dari Ramos
63 Contribuio das postulaes de Norbert Elias para oestudo das bandeiras paulistas:
Primeiras aproximaes Manuel Pacheco Neto
83 Civilizar: Tenses entre violncia e pacicao nas relaes de alunos e professores na institucionalizao da escola pblica elementar, Brasil, sculo XIX Cynthia Greive Veiga
103 Relaes entre geraes e processos civilizadores Magda Sarat
121 O esquecimento como origem: o mito nacionalista na crtica literria do Brasil Renato Suttana
espaos civilizadores
141 Espao civilizador: Consideraes sobre o corpo e a casa a partir do processo civilizador
Jones Dari Goettert
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155 Famlia e escola no processo contemporneo de socializao primria: Reexo sociolgica sobre representaes e expectativas institucionais Reinaldo dos Santos
177 Abordagem do ethos terena a partir das noes de etiqueta e civilidade Levi Marques Pereira
195 Olhares do processo civilizador sobre o jogo de linha entre indigenas Kadiwu Marina Vinha
215 O esporte na viso do mestre das guraes Jos Tarcsio Grunennvaldt
233 Revisitando o Bairro das Flores sob a inspirao dos estabelecidos e outsiders Simone Becker
243 Encontros e os desencontros identitrios na fronteira entre descendentes de italianos, alemes e poloneses (estabelecidos) e caboclos (outsiders) Marcos Leandro Mondardo
271 Sobre as autoras e os autores
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Tempos e Espaos Civilizadores
Tempos Civilizadores
APRESENTAO
Norbert Elias, em O Processo Civilizador, escreveu:
A partir da sociedade ocidental como se ela fosse uma espciede classe alta padres de conduta ocidentais civilizadoreshoje esto se disseminando por vastas reas fora do Ocidente,seja atravs do assentamento de ocidentais ou atravs da as-similao pelos estratos mais altos de outras naes, da mesmaforma que modelos de conduta antes se espalharam no interior
do prprio Ocidente a partir deste ou daquele estrato mais alto,de certos centros cortesos ou comerciais. O curso assumidopor toda essa expanso foi determinada apenas ligeiramentepelos planos ou desejos daqueles cujos padres de condutaforam assimilados. As classes que forneceram os modelos noso, sequer hoje, criadores ou originadores absolutamente livresde tal expanso. Essa difuso dos mesmos padres de conduta apartir de mes-ptrias do homem branco seguiu-se incorpo-rao de outros territrios rede de interdependncias polticase econmicas, esfera das lutas eliminatrias entre naes doOcidente e dentre de cada uma delas.1*
Aqui, pensando tempos e espaos civilizadores a partir das
contribuies de Norbert Elias, perguntamo-nos: como incorporamos ou
disseminamos, mesmo sem perceber, padres de conduta? Como que, a
partir dos nossos desejos, impomos ao Outro desejos que parecem livres,
naturais, absolutos e destitudos de maiores dores? Como produzimos, in-
ventamos ou construmos tempos e espaos de civilizao ou de des-
civilizao em nossas relaes cotidianas, ou como foram produzidos
tempos e espaos e neles inventamos nossa Amrica Latina, nossoBrasil, nossos ndios, nossa famlia, nossa escola, nossos gnios,
nossos lhos, nossos bairros? Como?
Como que e essa a questo que se sobressai inventamos um
Ocidente2** puro, branco, positivo, limpo e universal? E como
1* ELIAS, Norbert.O Processo Civilizador.Vol. II. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. [p. 212].
2** E, ao mesmo tempo, inventamos o Oriente. SAID, Edward W.Orientalismo:a inveno do Oriente peloOcidente. So Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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ele se inscreve, marca e procura dominar, com suas posturas, etiquetas,
modas, comportamentos, sotaques, tempos e espaos, outros espaos e
outros tempos?
O conjunto de autoras e de autores, reunidos nesta publicao,
busca, cada uma e cada um a seu jeito, revelar como o processo civiliza-
dor se faz como projeto dominante ao mesmo tempo em que busca o
projeto ocultar, o quanto mais possvel, seu arcabouo material e sim-
blico no qual se assenta e se esparrama pelo cho.
Mais que apontar snteses de cada anlise aqui desenvolvida, vale
ressaltar que esta publicao rene esforos de grupos de discusso e
pesquisa que, encontrando-se anualmente nos simpsios Processo Civi-
lizador, tm procurado a construo de dilogos em torno do legado deNorbert Elias.
Da mesma forma, os esforos aqui empreendidos procuram aglu-
tinar contribuies de cinco Universidades brasileiras: a Universidade
Federal da Grande Dourados, a Universidade Federal de Minas Gerais, a
Universidade Federal de Pernambuco, a Universidade Federal de Sergipe
e a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.
Todas as anlises, mais que a reproduo das idias eliasianas,
buscam pensar justamente a construo de processos espao-temporaisnos quais osprocessos civilizadoresse fazem, se mostram, arranhando e
at subsumindo outros espaos, outros tempos e outras civilizaes.
No primeiro conjunto de textos o tempo toma a centralidade. O
tempo da histria, de uma histria como construo parte de um processo
linear amarrado em uma razo (ou esprito?) e marcada pela oposio
primitivo (ou selvagem) e moderno (ou civilizado). Como des-
imagem de uma velha Europa (ela mesma nova em sua vontade em se
apoderar de tudo e de todos), tudo o outro e todos os outros vo sendo
inventados como a imagem invertida sob os olhos azuis eurocntricos:
como se o movimento entre a retina e o crebro congelasse a imagem
como aquela que aparece primeira vista, virada. Civilizar, evangelizar,
penetrar, ensinar, educar, miticar... Endireitar o torto: a cronologia e a
geometria se anando nos mnimos detalhes da matria e da alma.
E assim todo o espao (o centro do segundo conjunto de textos)
tambm delineado como expresso, forma, profundidade, comprimento,
altura, ajustamento em esquadrias de arredondamentos em modos e
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Tempos e Espaos Civilizadores
Tempos Civilizadores
jeitos de se portar, comer, andar, correr, trabalhar, dormir, danar, ouvir,
chorar, velar, adoecer, nascer, viver, morrer, projetar, construir e inventar
casas, cidades, regies, culturas, identidades, Estados-naes e todo um
mundo ao mesmo tempo globalizado e fragmentado. E no h corpo
que escape. Mas h corpos em resistncia. Em espaos e tempos das fres-
tas da civilizao, mulheres e homens vo jogando com relaes um
tanto desajustadas s concepes e prticas dominantes, mesmo que
ns, do lado de dentro das grades de nossas casas (como na imagem
que ilustra a capa do livro), por vezes teimamos em compreender que a
grade e todo tipo de muro parte deste espao que civiliza e separa
os estabelecidos e os outros, e que os de fora, talvez se negando a
participar de nosso espao e tempo, nos provoquem a ver que amansaro outro no signica, denitivamente, destru-lo. Talvez, apenas, faz-lo
outro, sem que por isso deixe de ser o que .
Jones Dari Goettert
Magda Sarat
(Julho de 2009)
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Tempos e Espaos Civilizadores
Tempos Civilizadores
CIVILIZAO E DESCIVILIZAONA AMRICA LATINA:O CASO BRASILEIRO
Ademir Gebara
1. Introduo
Quando nos referimos constituio da populao brasileira, fre-
quentemente nos referimos existncia de grupos indgenas no espao
geogrco brasileiro, deixando margem ao entendimento de que estamos
falando de um grupo relativamente homogneo, e identicvel em sua ob-viedade. Duas questes merecem particular ateno ao tomarmos este
modelo de anlise como fonte inspiradora para compreender os processos
de constituio das identidades nacionais, em particular em pases coloni-
zados. De um lado a questo da colonizao em si mesma, que, no dizer
de Elias, trata-se de um processo que deve ser visto a partir da scio-
dinmica entre grupos comunitrios e Estados nacionais. Este processo
evidente na medida em que as naes tornam-se socialmente mais dife-
renciadas, assumindo a maioria das funes anteriormente atribudas scomunidades: um processo de desfuncionalizao da vida comunitria.
De outro lado, as formaes nacionais na Amrica Latina, implican-
do aspectos at ento no considerados de geopoltica, nos quais a posse
de espaos geogrcos vazios, em alguns casos de dimenses continen-
tais, tem importncia signicativa no processo de formao de fronteiras e
limites, fato frequentemente de maior relevncia do que a monopolizao
da violncia e dos tributos no interior de uma rea previamente delimita-
da. Alm disso, as reformulaes permanentes de interdependncias entre
estabelecidos e recm-chegados, articuladas a processos de desfunciona-
lizao e informalizao mal permitem denir relaes estveis de poder.
Indgenas, mestios, portugueses, escravos africanos e imigrantes, em
diferentes momentos, sero tipos presentes nesse processo civilizacional
onde um governo centralizado desfuncionaliza permanentemente inter-
dependncias comunitrias, impondo a presena do Estado, de maneira
multifacetada, no cotidiano das pessoas.
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O sentido do processo de monopolizao que entende o poder de
deciso apenas nas mos de um cada vez menor nmero de indivduos
perde a noo de longa durao. Para Elias, no signica dizer menos
pessoas se tornam livres e mais e mais pessoas se tornam no-livres.
Efetivamente, se o movimento considerado como um todo podemos
reconhecer sem diculdade que pelo menos em sociedades altamente
diferenciadas em certo estgio do processo a dependncia passa por
uma mudana qualitativa peculiar.
Quanto mais pessoas so tornadas dependentes pelo mecanismo
monopolista, maior se torna o poder do dependente, no apenas indivi-
dual, mas tambm coletivamente, em relao a um ou mais monoplios
(O Processo Civilizador, v. 2, p. 100). Nessa linha de raciocnio, podemosdestacar que a interdependncia entre as classes sociais e os indivduos, d
margem a uma maior diviso de funes e a criao de instituies mais
slidas que, cedo ou tarde, foram o poder monopolista a uma relao de
dependncia funcional diante de grupos com menor coeciente de poder.
Ser que poderamos pensar que a busca desse equilbrio de po-
der, para Elias, se congura como motor de todas as relaes humanas?
Em Introduo Sociologia, isso aparece justamente quando trata dos
modelos de jogos (p. 87-112) para pensar as relaes sociais. Assim,arma Elias, o equilbrio de poder no se encontra unicamente na grande
arena das relaes entre os Estados, onde frequentemente espetacular,
atraindo grande ateno. Constitui um elemento integral de todas as rela-
es humanas (1980, p. 80).
Nas relaes com modelo de competio sem regras, o exemplo o
de dois grupos A e B que se encontram numa luta prolongada pela sobre-
vivncia. Os dois grupos so rivais mas tambm dependentes um do outro
entre outras coisas porque os movimentos de um grupo determinam
os movimentos do grupo rival, mantendo assim um contato constante.
Os rivais desempenham uma funo recproca, e a funo que desempe-
nham baseia-se na coero que exercem mutuamente devido a sua inter-
dependncia (p. 84). A competio primria apresenta-se como um caso
fronteirio onde um grupo busca privar o outro de suas oportunidades e
qui tambm de sua vida.
J nos modelos de processos de interpenetrao com normas,
Elias busca discutir a mudana na teia de relaes humanas e a mudana
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Tempos e Espaos Civilizadores
Tempos Civilizadores
na distribuio de poder. Da decorrem diferentes possibilidades: desde
o jogo de duas pessoas, onde A tem uma fora muito superior a B, at o
modelo de jogo a dois nveis tipo democrtico crescentemente simpli-
cado, onde a fora dos jogadores observemos os termos no plural de
nvel mais baixo vai crescendo, lentamente mas de modo ntido, relativa-
mente fora dos jogadores de nvel mais alto (p. 96), passando ainda pe-
los jogos de muitas pessoas a um s nvel, jogos multipessoais a vrios
nveis, modelos de jogos de dois nveis: tipo oligrquico e modelos de
jogos a dois nveis: tipo democrtico crescentemente simplicado. Dessa
emergncia nas oportunidades de poder, decorrem consequncias no
planejadas, e que por isso mesmo devem interessar ao estudo sociolgico,
considerando que h (ou deveria haver) interdependncias humanas nointencionais na base de todas as interaes intencionais.
Considerando que o termo equilbrio de poder no necessari-
amente sinnimo de igualdade de poder, Elias aponta que, tanto nas rela-
es bipolares como, por exemplo, a de pai e lho, ou de senhor e escra -
vo, como nas relaes multipolares ou multipessoais, sejam grandes ou
pequenas as diferenas de poder, o equilbrio de poder est sempre pre-
sente onde quer que haja uma interdependncia funcional entre pessoas
(p. 81). Sendo assim, o poder , sem sombra de dvidas, e como fruto
dessa interdependncia, um atributo das relaes. Na proporo da funo
que desempenha uma pessoa em relao outra, ou um grupo em rela-
o a outro, est a base em que se constri o equilbrio de poder. Pois,
que indivduos ou grupos destitudos de qualquer tipo de interdependncia
funcional tambm se ignoram ou se desprezam mutuamente.
Os aspectos do poder nas relaes sociais mereceram tambm
destaque especial na anlise que Norbert Elias e J. Scotson (1994) re-
alizaram no bairro operrio de Wiston Parva, mostrando que nem todas as
formas de opresso social assumem o formato de relaes de classe. No
estudo em questo, a relao entre os estabelecidos e os recm-chegados
privilegiada no sentido de capturar melhor a realidade das relaes de
poder no cotidiano das pessoas, alm das interdependncias que se esta-
belecem no interior destas conguraes. conveniente atentar para o
conceito de comunidade em Elias, tratando-se de um grupo de vizinhos vi-
vendo em uma localidade, ligados por interdependncias funcionais mais
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prximas do que as interdependncias de mesmo tipo de outros grupos,
dentro do campo social mais amplo ao qual a comunidade pertence1.
Em Wiston Parva encontramos trs diferentes agrupamentos, um
de classe mdia (zona 1), que foi uma rea acrescida posteriormente ao
empreendimento inicial, datado de 1880 e iniciado com a zona 2. Esta
rea, tambm denominada de Aldeia, foi habitada por uma classe tra-
balhadora mais numerosa, antiga e com laos familiares muito estreitos,
implicando por isso mesmo uma maior participao associativa e comu-
nitria, com um alto nvel de organizao no campo poltico. A zona 3,
ou o Loteamento existente posteriormente aos anos 1940, tornou-se, por
inmeras razes, um bairro de migrantes. As relaes entre a classe o-
perria, tanto a estabelecida na Aldeia quanto a classe operria migrantedo Loteamento, tm grande signicao neste trabalho, pois trata-se de
analisar processos de identicao/pertencimento a partir da relao en-
tre grupos, o que constitui diculdade no desprezvel, tendo em vista a
existncia de unidades estatais plenamente consolidadas, como o neste
caso a Inglaterra.
No estudo de caso proposto, no havia diferenas de nacionalidade,
ascendncia tnica, cor, raa, ou mesmo diferena signicativa de moradia
e renda entre os residentes das duas reas, e tampouco havia diferenade nvel educacional ou classe social. A diferena essencial estava no fato
de um grupo viver na rea h duas ou trs geraes, enquanto o outro
grupo residente caracterizava-se como recm chegado. As conguraes,
por sua natureza mltipla e interdependente, acabam por constituir um
poder coercitivo sobre os indivduos que as constituem; justamente essa
questo que enraza parte substantiva da elucidao do funcionamento
dos mecanismos de poder no cotidiano, e no caso de Wiston Parva, a fo-
foca um integrante privilegiado deste processo.
Em linhas gerais pode-se armar que o processo de estigmatiza-
o manipulado pelas elites mais poderosas, em relao aos seus grupos
outsiders, independente de diferenas culturais, apresenta as seguintes
caractersticas2:
1 Para maiores detalhes, ver de Norbert Elias Towards a theory of communities, in C. Bell & H. Newby(eds), The Sociology of Community, London, Frank Cass (1974).
2 Robert van Krieken: Norbert Elias(Coleo Key Sociogists) Routledge, London na New York, 1998. Ver
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Tempos e Espaos Civilizadores
Tempos Civilizadores
1) as distines de status entre os grupos esto enraizadas em uma
balana de poder desigual entre eles. Por exemplo, o grupo estabelecido
possui relaes familiares (casamentos e parentescos cruzados), e redes
de comunicao formais e informais (clubes sociais locais e centros ir-
radiadores e organizadores de fofocas). Esse primeiro grupo mantm um
status superior em relao ao segundo grupo outsider, cujos membros tm
como funo um certo respeito pelo grupo estabelecido3.
2) os diferenciais de poder entre os grupos geram uma relao
dinmica entre carisma e estigma. O grupo estabelecido tende a atribuir
ao conjunto do grupo outsider as caractersticas ruins de sua poro
pior de sua minoria anmica. Em contraste, a auto-imagem do grupo
estabelecido tende a se modelar em seu setor exemplar, mais anmicoou normativo na minoria de seus melhores membros (p. 22-23).
3) difcil para os membros de um grupo outsider resistir ao pro-
cesso de internalizao das caractersticas negativas que lhe so atribu-
das pelo grupo estabelecido: quando o diferencial de poder grande e a
submisso inelutvel, vivenciam afetivamente sua inferioridade de poder
como um sinal de inferioridade humana. Como arma Goudsblom (2007),
ela (a vergonha) derivada do medo; medo da perda dos dois mais pre-
ciosos reconhecimentos da vida social: o respeito e a afeio (p. 5). Ecompleta: Mais que qualquer outra emoo a vergonha uma emoo
exclusivamente social.
4) como os grupos estabelecidos compartilham uma histria co-
mum, memrias, eventualmente parentescos, favores, tenses e alegrias,
existe um slida articulao grupal, e desta maneira os moradores da Aldeia
acentuam o isolamento dos recm-chegados, que, com mltiplas origens
e passado distinto, so gente diferente. Em qualquer caso, forasteiros
colocam em risco os valores e a posio dos antigos moradores, por issomesmo a sociodinmica dessas relaes sempre muito tensa.
5) os grupos estabelecidos consideram-se sempre mais cultos, mais civili-
zados, mais decentes, mais respeitveis. Em suma, podemos armar que
especialmente o captulo Process Sociology Extended, p 135-163.
3 Para uma maior e melhor discusso dessa relao entre grupos distintos interessante observar o estudode Elias em Introduo Sociologia, no item referente ao Modelo de jogo de dois nveis: tipo oligrquico(p. 93-96).
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uma grande quantidade de conitos sociais podem ser melhor compreen-
didos atravs da sociodinmica das interdependncias entre grupos esta-
belecidos e recm-chegados.
2. De como os estabelecidosse tornam outsiders e vice-versa
Indgenas e africanos so permanentemente sujeitos ao processo
ambguo que se reproduz nas regies de fronteira agrria. De um lado,
a presena de um outsider, com organizao estatal militarmente supe-
rior dada a natureza de seu equipamento, e simbolicamente articulada por
uma tica crist, destri lideranas, valores e identidades grupais; no casodos indgenas, cam diante de duas opes: ou a fuga para as matas in-
teriores, ou a aculturao. De outro lado, populaes transplantadas da
frica, submetidas ao aprisionamento ou a guerras escravizadoras, e ento
ao trfego martimo intercontinental. Em todos os casos, a processos des-
civilizadores.
A natureza civilizadora do processo de colonizao foi assumida
tanto pelas estruturas polticas metropolitanas, organizando suas fontes de
poder, quanto pela Igreja Catlica, produzindo um conjunto de documen-tos na direo apontada por Elias. importante notar que a colonizao
civilizadora, do ponto de vista europeu, implicava um processo descivili-
zador explcito, na medida em que a violncia na destruio das popula-
es autctones implicava sua eliminao fsica, em especial no que diz
respeito a suas lideranas. Como bem armou Elias sobre a natureza desta
relao:
Um dos mais radicais processos de informalizao desse
tipo foi a destruio dos rituais que davam signicado vidae sustentavam modelos de vida coletiva entre os povos maissimples. No processo de colonizao e no trabalho missionriopor europeus. Talvez fosse til examinar isso brevemente. Umdos mais extremos exemplos da desvalorizao de um cdigoque fornece signicado e orientao a um grupo em ligaocom a perda de poder do seu grupo portador a eliminao dasclasses superiores nas Amricas Central e do Sul, no decorrerda colonizao e imposio do cristianismo pelos espanhis eportugueses. (ELIAS, 1997, p. 77)
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Tempos e Espaos Civilizadores
Tempos Civilizadores
Na colonizao americana h uma imbricao da ao europeia na
frica e na Amrica, ou seja, a natureza civilizadora tambm genocida,
ou descivilizadora, dependendo da dimenso temporal na qual o processo
considerado. A capacidade tecnolgica e poltica dos europeus, em glo-
balizarem a dimenso colonizadora de sua expanso a partir do sculo
XVI, em si mesma geradora do descontrole dos comportamentos tidos
como civilizados, dadas as injunes de sua prpria superioridade poltica
e tecnolgica. A nova elite que se constitui nestes espaos coloniais de-
senvolver, na longa durao, processos pedaggicos de integrao destas
populaes submetidas, inclusive na construo legal de comportamentos
e prticas integrativas desejveis. Vejamos como isso ocorre com indge-
nas e negros no Brasil.Em primeiro de junho de 1823, Jos Bonifcio de Andrada e Silva
endereou Assemblia Nacional Constituinte os Apontamentos para a
civilizao dos ndios bravos do Imprio do Brasil4. Estes apontamentos,
aps uma anlise pregressa e atualizada das relaes dos portugueses e
brasileiros com os diferentes grupos indgenas, sugerem um conjunto de
medidas de que se deve lanar logo mo para a pronta e sucessiva civili-
zao dos ndios... (p. 77). Dentre as medidas sugeridas, concentraremos
a anlise nas recomendaes 19-20 (p. 82-83) e 44 (p. 92-93).
A facilidade de os domesticar era to conhecida dos mission-rios, que o Padre Nbrega, segundo refere o Vieira, dizia porexperincia, que com msica, e harmonia de vozes se atreviaa trazer a si todos os Gentios da Amrica. Os Jesutas co-nheceram, que com presentes, promessas, e razes claras e ssexpendidas por homens prticos na sua lngua podiam fazer osndios brbaros o que dles quisessem. Com o Evangelho emuma mo, e com presentes, pacincia e bom modo na outra,tudo deles conseguiam. Com efeito o homem primitivo nem bom, nem mau naturalmente, um mero autmato, cujasmolas podem ser postas em ao pelo exemplo, educao e
benefcios. (p. 72)
4 Jos Bonifcio de Andrada e Silva nasceu em Santos em 1763, jovem desenvolveu intensa e reconhecidaatividade cientca na Europa como mineralogista; botnico e matemtico, regressou ao Brasil em 1819,tornando-se gura central no processo de constituio do Brasil independente. O texto que trabalha-remos a seguir, Apontamentospara a Civilizao dos ndios brancos do Imprio do Brasil,encontra-sena coletnea organizada por Otavio Tarqunio de Sousa, Jos Bonifcio(Biblioteca do Pensamento Vivo,Livraria Martins Editora, So Paulo, 1944, p. 67-93).
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O processo de domesticao apontado por Jos Bonifcio, pre-
viamente denido como amansar pelos portugueses, de acordo com a
Carta de Caminha, e por arrebanhar de acordo com a documentao
jesutica do sculo XVI, agora resignicado com a utilizao do termo
domesticao. importante ter presente que a distino entre ndios bra-
vos ou brbaros e os civilizados o tom em torno do qual se constri o
texto de Jos Bonifcio, no qual o homem primitivo por denio um
autmato que pode ser impulsionado, entre outras coisas, pela educao.
Desta maneira, o termo domesticao contextualizado tendo por pres-
suposto a sua diferenciao em relao ao tema central do documento
ndios bravios, por isso todo o texto gira em torno da domesticao dos
ndios bravios, signicando que, no sendo bravios, o documento perderiasignicado. Como explicar este aparente paradoxo?
Observem no texto que segue, quando a reao dos mais velhos, e
mais resistentes a qualquer aproximao, atenuada pela observao da
participao dos mais jovens em jogos:
19 Procuraro os missionrios substituir aos seus folguedose vinhos, funes aparatosas da Igreja, com msicas de boasvozes, e jogos ginsticos, em que principalmente os rapazes ou
catecmenos se entretenham e criem emulao. Por este meiotambm se conseguir, que os pais folguem de ver seus lhosadiantados, e premiados, por suas boas aes e comportamento;e com estas funes e jogos se divertiro e instruiro ao mesmotempo, sem constrangimento de nossa parte (p. 82-83).20 Nas grandes aldeias centrais, alm do ensino de ler, es-crever, e contar, e catecismo, se levantaro escolas prticas deartes e ofcios, em que iro aprender os ndios, dali, e das outrasaldeias pequenas e at os brancos e mestios das povoaesvizinhas, que depois sero distribudos pelos lugares em quehouver falta de ociais, concedendo-lhes a iseno de servio
na tropa paga.
Nesta proposio claramente indicada a direo do processo de
aprendizagem pretendido. Alm da escrita, leitura e um bsico de arit-
mtica, o aprendizado de um ofcio poderia no s implicar dispensa de
recrutamento para a tropa, como tambm signicava o pice na diferen-
ciao de comportamento entre ndio bravo e brbaro e nossa civilizao
tropical. Nasce por esta rota o nacional, o brasileiro.
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Como se pode ver em inmeras outras passagens do texto de Jos
Bonifcio, o ndio bravo no poderia vir diretamente da mata, do serto
para as campinas, mas de um entremeio: o processo de integrao no
tinha como pressuposto a cidade, mas sim os lugarejos rurais integrados,
meio caminho entre a mata e a cidade. Estamos falando de um gradiente
de diferenciao e individuao que se interpe entre o ndio bravio de
nao inimiga, do ndio posicionado em inmeros momentos de um pro-
cesso civilizador. A cidade o centro das fontes de poder, onde o carisma
est. Aos bravios e brbaros as matas, o serto; aos mancos, o campo. Aos
negros, as senzalas nas fazendas.
Apenas em 1845 (Lei Bill Aberdeen5) e em 1850 (Lei Eusbio de
Queiroz6), com a proibio do trco africano de escravos, o sistema deproduo baseado no trabalho compulsrio comearia a tornar-se invi-
vel, no obstante a escravido no Brasil apenas ter sido abolida em 1888.
A referncia questo da liberdade dentro de um sistema escravista tem
um signicado que transcende o fato em sua dimenso imediata: o deixar
de ser escravo para tornar-se liberto no signica em absoluto o tornar-se
livre. Existe uma evidente distino entre o homem livre e o liberto; tal
distino abre um amplo terreno para o exerccio de controle social, nega-
o de liberdades civis e manipulao poltica. Em suma, os mecanismosjurdicos interpostos entre o escravo, o liberto e o homem livre, denem
a signicao poltica do vir a ser livre. na discusso dessa signicao
e dos mecanismos elaborados para controlar a rota da liberdade, que ser
possvel precisar a forma pela qual as normas no escritas foram incorpo-
radas pelo projeto poltico. Tal projeto expresso na legislao nacional,
que foi elaborada para organizar e disciplinar o mercado de trabalho livre,
em paralelo com a desescravizao lenta, gradual e segura.
J em 1865, Pimenta Bueno apresentou, a pedido do Imperador,
cinco projetos visando uma sada para a questo escrava. Devido s re-
sistncias do Gabinete em discuir a questo, esses projetos foram esque-
5 O Slave Trade Suppression ActouAberdeen Act, mais conhecido no Brasil como Bill Aberdeen, foi umalegislao da Gr-Bretanha promulgada em 8 de Agosto de 1845, que proibia o comrcio de escravos entrea frica e a Amrica.
6 Lei Eusbio de Queirs: legislao brasileira do Segundo Reinado que proibiu o trco interatlntico deescravos.
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cidos at 1867, quando foram retomados pelo Conselho de Estado7, que,
naquele momento, inicia a discusso da questo da escravido. Posterior-
mente s discusses preliminares, o Imperador indica uma comisso de
conselheiros, liderada por Nabuco de Arajo, que deveria preparar um
novo projeto baseado nas discusses j efetuadas e, obviamente, nos pro-
jetos iniciais de Pimenta Bueno8. O projeto de Nabuco de Arajo seria re-
tomado posteriormente e, por iniciativa do Gabinete Rio Branco, apresen-
tado ao Parlamento em 12 de maio de 1871. Essa proposta foi analisada
por uma comisso especial do parlamento, que teve o prazo de 45 dias
para apresentar parecer referente ao projeto do governo9.
No parecer parte-se do princpio de que, se a escravido tem que
ser extinta, tem-se que olhar tanto pelo futuro do escravo quanto pelo doproprietrio. Estabelecido esse princpio, o passo seguinte seria indicar as
alternativas possveis para a realizao desses objetivos, para tanto tratan-
do de desqualicar qualquer medida radical e imediatista:
Envernizaramos de liberdade turbas e turbas no educadasnela incapazes de exercer as graves funes do cidado.Foraramos a autoridade a imensa vigilncia irnpossvel, emais impossvel represso... Converteramos o pas numa es-
pelunca de malfeitores, porquanto o escravo, prematuramenteliberto... faltando-lhe coao ou incentivo torna-se vagabundo...Criaramos uma repentina lacuna nos instrumentos de trabalho,e alterao radical e sem preparo no sistema dele. No dara-mos tempo a substituio de braos. Prejudicaramos a nao,a classe agrcola (a mais importante do Brasil), e ao prprioescravo a quem a liberdade em massa e sem transio seria umpresente de grego... (Elemento Servil. Rio de janeiro, 1871, p.25)
7 A resistncia deveu-se posio do Marqus de Olinda, liderando a ltima resistncia ao projeto eman-cipacionista que seria assumido. Ver: Trabalho sobre a extino da escravatura no Brasil, Rio de Janeiro,1868.
8 Os membros da comisso foram: Visconde de Itabora, Visconde de So Vicente, Euzbio de Queiroz,Jos Maria da Silva Paranhos, Francisco Sales Torres Homem, Bernardo de Souza Franco, Visconde deAbaet e Jos Tomaz Nabuco de Arajo. O parecer foi apresentado por Nabuco, e tanto o parecer quantoo trabalho da Comisso foram publicados com a denominao da nota anterior.
9 Brasil, Cmara dos Senhores Deputados, Elemento Servil, Parecer da Comisso Especial apresentadana sesso de 30 de junho de 1871 sobre a proposta do Governo, de 12 de maio do mesmo ano. Rio deJaneiro, 1871. Os membros dessa comisso foram: Monsenhor Joaquim Pinto de Campos, ConselheiroRaimundo Ferreira de Arajo Lima, Conselheiro L. Antonio Pereira Franco, Joo Mendes de Almeida engelo Tomz do Amaral.
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No debate parlamentar que se seguiu apresentao desse parecer,
as intervenes dos membros do parlamento, e principalmente do minis-
trio, explicitam claramente essa linha de argumentao.
Ora a proposta do governo estabelece que a redeno no sejaforada, seja com o consentimento do senhor, no posso com-preender como o ilustre deputado enxergou em tal propostaafrouxamento dos laos de disciplina...
O indivduo que atualmente vive no estado servil ter necessi-dade de ser um bom escravo, de agradar a seus senhores; eento, longe de vir afrouxar os laos de disciplina, o projeto emdiscusso vai dar-lhes mais fora e vigor (Apoiados)10.
Segundo o projeto em discusso, o caminho para a libertao do es-
cravo era garantido para as geraes futuras e, no caso das geraes
presentes, tratava-se de encontrar formas de acesso liberdade, da a
instituio do peclio e do fundo de emancipao. Mecanismos que, quer
atravs da poupana do escravo, quer pela destinao de recursos ociais
ou privados, garantiriam o dinheiro para ser empregado na compra dos
escravos para imediata libertao. O debate, nesses casos, centrava-se no
fato de que aqueles que se opunham ao projeto armavam que haveria aquebra da autoridade do senhor ao se permitir ao escravo o controle do seu
prprio destino: permitido ao escravo a formao de um peclio com o
que lhe provier de doaes, legados e heranas, e com o que por consen-
timento do senhor, obtiver de seu trabalho e economias... (Idem, p. 54)
Tal proposio , em verdade, a transcrio para o texto legal de
costumes existentes. Perdigo Malheiro11deixa isso bastante claro em sua
copilao da legislaao escrava no Brasil:
10 Anais do Parlamento Brasileiro Rio de Janeiro, 1871. O autor do discurso, Dr. Joo de OliveiraJunqueira, deputado pela Bahia, foi membro da comisso especial que formulou o projeto de abolioapresentado na legislatura de 1870.
11 Agostinho Perdigo Malheiro publicou A Escravido no Brasil: Ensaio Histrico, Jurdico, Social. Riode Janeiro, 1866/7; 2 vols. Uma verso preliminar desse livro foi apresentada por Malheiro em confe-rncia comemorativa ao aniversrio do Instituto dos Advogados Brasileiros, em 7 de setembro de 1863,sendo posteriormente publicada Illegitimidade da Propriedade Constituda Sobre o Escravo, Natureza daMesma. Abolio da Escravido: Em que Termos, Rio de Janeiro, 1863.
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Entre ns, nenhuma lei garante ao escravo o peclio; e menosa livre disposio sobretudo por ato de ltima vontade, nem asucesso, ainda quando seja escravo da Nao.
Os nossos Praxistas referem mesmo como aceitos ou aceitveisalguns princpios a esse respeito. Alguns casos de peclio dosescravos se acham assim compendiados em o Universo Jurdicodo Padre Bremeu, quais so,v.g.: 1) 0 de ajuste com o prpriosenhor, pelo qual fosse o escravo obrigado a dar-lhe um certo
jornal; o excesso seria do escravo; 2) se o senhor expressa outacitamente convm em que o escravo adquira para si algumacoisa; 3) se alguma coisa for doada ou legada ao escravo comclusula expressa ou tcita de que seja exclusivamente sua, eno do senhor, a semelhana do que dispe o direito acercados lhos sujeitos ao ptrio poder mesmo quanto ao usufruto,
e em outros casos anlogos; no obstante a opinio contrria,que entende nula tal clusula; 4) se o escravo aumentar o seupeclio ou naturalmente ou industrialmente; 5) se ao escravo fordoada ou legada alguma coisa em ateno ao prprio escravo eno ao senhor; 6) se o escravo, poupando os seus alimentos, osconverte em valores ou bens; 7) se ao escravo se manda pagaralguma indenizao por alguma ofensa recebida; se pelo senhor,a sua importncia pertence ao escravo; se por estranho, diver-gem, conquanto se deva decidir que pertence ao escravo...Nao raro, sobretudo no campo, ver entre ns cultivarem escra-vos para si terras nas fazendas dos senhores, de consentimento
destes; fazem seus todos os frutos, que so seu peclio. Mesmonas cidades e povoados alguns permitem que os seus escravostrabalhem como livres, dando-lhes porm um certo jornal; oexcesso seu peclio: e que at vivam em casas que no asdos senhores, com mais liberdade. (A Escravido no Brasil,1976, p. 62-63)
De fato, essas observaes de Malheiro a respeito das possibilidades
abertas aos escravos, referentes participao em atividades comerciais,
so plenamente corroboradas pela anlise das Posturas Municipais12
. Onvel de sosticao atingido por essas Posturas, sugere que a participa-
o dos escravos era signicante em inmeras reas do abastecimento
urbano.
12 Posturas Municipais so regulamentos elaborados pelas Cmaras Municipais com vigncia para reasdelimitadas pelos respectivos municpios. Essas posturas referem-se a praticamente todas as atividadesurbanas e rurais.
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A formulao bsica das posturas permitia ao escravo car den-
tro de uma casa de comrcio apenas o tempo necessrio para efetuar a
compra ou a venda de alguma mercadoria; a desobedincia a esta de-
terminao implicava multa, onerando o proprietrio do armazm. Alm
disso, em pocas e regies diferentes (dependendo do tipo de agricultuara
existente), havia uma diferenciao clara na relao que se estabelecia
entre o escravo e a mercadoria; alguns produtos eram vedados aos escra-
vos: armas de fogo ou branca, munio, bebida, ouro, prata, caf, acar,
algodo, animais, couros, ch, cana, melao, cobre, brilhante e substncias
venenosas.
Efetivamente, o que se permitia ao escravo era a posse e comercial-
izao de mercadorias at um determinado valor. Uma listagem nos indi-
caria as seguintes: ovos, frutas, peixes, leite, drogas medicinais homeopti-
cas, generos alimentcios genericamente denominados por mantimentos
(feijo, farinha, milho, arroz, etc.), capim, lenha, gneros de quitanda (fru-
tas e verduras), esteiras. Como ca evidente, existe um determinado limite
de valor monetrio que explica a permisso de comercializao a deter-
minadas mercadorias, excluindo outras de maior valor. Alis, uma Postura
Municipal de Batatais, explicita numericamente esse fato:
Art. 87 Todo aquele que comprar de escravos qualquergnero ou objeto de valor que exceda a 1$000, sem bilhete deseu senhor, sofrer multa de 5$000, e 3 dias de priso de cadaescravo, alm de ser obrigado a restituir ao senhor os objetoscomprados ou o seu verdadeiro valor quando tiverem sidofurtados.13
Outras cidades, como Jundia, por exemplo, graduavam a penali-
dade imposta ao negociante que comprasse de escravos; essa graduao
variava de acordo com a mercadoria que fosse comprada:
Todo aquele que negociar com escravos sem consentimento deseu senhor, e dos mesmos comprar milho, farinha, feijo, arroz,toucinho, ser multado em 10$rs. e aquele que comprar caf,acar e aguardente ser multado em 30$ e 8 dias de priso.(IbidJundia, So Paulo, 1865, p. 189)
13 Coleo de Leis da Provncia de So Paulo; Postura Municipal de Batatais; So Paulo, 1872, p. 125.
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Os conservadores-abolicionistas da Cmara de 1871, propunham
um mecanismo de transio que permitisse a manuteno do controle do
escravo por parte de seu senhor; controle que era estendido, tambm, para
as possibilidades de libertao que a legislao previa. Na verdade, o que
se faz reforar os laos informais, ou costumeiros, pr-existentes entre o
escravo e o senhor, ao mesmo tempo em que se refora a determinao do
senhor sobre o futuro do escravo.
Um outro aspecto alterado pela comisso, no projeto inicial, refora
o argumento segundo o qual o objetivo poltico do projeto, tanto quanto
o de incorporar as normas costumeiras na legislao, era o de fortalecer
os laos de dependncia entre o senhor e o escravo. No tpico referente
alforria, a proposta inicial previa que o escravo poderia, por contrato deprestao de futuros servios, obter meios para indenizao de seu valor,
tendo ento o direito e a possibilidade de liberdade. A emenda apresentada
pela comisso suprimiu o trecho referente contratao de prestao de
futuros servios sob o argumento de que tal proposio encerra princpio
perigoso necessria disciplina e subordinao (Parecer, p. 27).
A estratgia para o enfrentamento da questo absolutamente clara.
De um lado trata-se de fazer a abolio de maneira lenta, gradual e segura;
no apenas para controlar o ento escravo, mas tambm para garantirpor coero ou incentivo a inexistncia do vagabundo, leia-se daquele que
eventualmente no queira trabalhar, depois. Por outro lado, na medida em
que as emendas foram basicamente dirigidas para a rearmao da autori-
dade do fazendeiro diante do escravo e de seu futuro, a lei passou a servir
tanto para o encaminhamento de um processo de desescravizao a longo
prazo, quanto para a abertura de inmeras possibilidades de manobra para
o fazendeiro, enquanto o processo de transio perdurasse.
O item referente classicao dos escravos, delimitado pelo De-
creto 5135, de 13 de novembro de 1872, veicula os seguintes tpicos:
primeiro, refere-se aos lhos livres da mulher escrava, denindo as obriga-
es e procedimentos, tanto dos proprietrios quanto dos procos, em
relao aos nascidos a partir de ento; xa multas e penalidades para os
casos de omisso ou m f, especica os assentamentos necessrios para
os livros paroquiais. Segundo, regulamenta as questes referentes pos-
sibilidade do escravo passar a prestar servios; tal regulamentao espe-
cica as clusulas e dene a forma pela qual se executam os contratos
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de prestao de servios. Trata do problema das associaes existentes
ou que seriam criadas para o tratamento e educao dos lhos livres da
mulher escrava14, referindo-se ainda ao Fundo de Emancipao. Terceiro,
especica as multas e penalidades pertinentes a situaes em que se
constatassem irregularidades, veicula as questes gerais sobre matrcula,
refere-se aos libertos pela lei e estabelece as novas regras do processo
civil, rmando dois princpios bsicos em relao aos escravos: o processo
passava a ser sumrio e, nos casos de decises contrrias liberdade, as
apelaes se fariam ex ofcio.
O objetivo dessa legislao seria: primeiro, atravs da criao do
Fundo de Emancipao, libertar anualmente um volume de escravos cor-
respondente ao volume de dinheiro arrecadado, e distribudo na proporodo nmero de escravos registrados por localidade. O dinheiro do Fundo de
Emancipao provinha da taxa de escravos, dos impostos sobre transmis-
so de propriedade de escravos, do produto de seis loterias anuais e da
dcima parte de todas as loterias que corressem na capital do Imprio, das
multas impostas pelo regulamento referente ao decreto 5135, de quotas
oramentarias e de doaes e legados para esse m; segundo: classicar
os escravos para que eles pudessem ser libertados pelo Fundo de Emanci-
pao. Essa classicao seria feita pelas juntas municipais, criadas ento,dando prioridade s famlias e, posteriormente, aos indivduos, segundo a
seguinte ordem de precedncia: a) cnjuges que fossem escravos de dife-
rentes senhores; b) os cnjuges que tivessem lhos nascidos livres em vir-
tude da Lei Rio Branco; c) os cnjuges que tivessem lhos menores de 21
anos; d) as mes com lhos menores escravos; e) os cnjuqes sem lhos
menores; f) a me ou pai com lhos livres e, nalmente, os de 12 a 50 anos
de idade, comeando pelos mais moos do sexo feminino e pelos mais
velhos do sexo masculino. Nessa ordem geral seriam preferidosos que,
por si ou por outrm, entrassem com uma certa quota para sua libertao,
bem como os mais trabalhadores, segundo a opinio dos senhores.
No obstante essa regulamentao se apresentar como matria
puramente normativa e tcnica, evidente que podem ser encontradas
justicativas para esses critrios utilizados na classicao dos escravos.
14 Esse captulo da legislao viria a ser implementado a partir do Aviso n 352, do Ministrio da Agricul-tura, Comrcio e Obras Pblicas. Cf. Coleo de Leis do Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, 1873, p. 322.
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Antes de aprofundar o argumento nessa direo, importante notar que
so preferidos, dentro da ordem geral estabelecida, aqueles que tivessem
um certo peclio para auxiliar sua libertao. Tanto o peclio quanto a
opinio dos senhores (como foi anteriormente mencionado) eram, a partir
das alteraes introduzidas no projeto inicial pela comisso da Cmara
dos Deputados, controlados e autorizados pelos senhores.
A par disso, nas prioridades estabelecidas para a classicao geral,
evidente a preocupao de valorizar os escravos que tivessem famlia
e, bvio, nessa medida, a preocupao de estimular a prpria formao
de famlias. A justicativa para esses critrios estabelecidos pode ser en-
contrada na fala do primeiro ministro Rio Branco, quando da discusso do
Projeto nas Cmaras de Deputados e Senadores:
O peclio, assim como o resgate, assim como a providncia dalei de 1869, que proibiu a separa.o dos cnjuges e dos lhos,no tem por m seno melhorar a sorte do escravo, elevar oseu moral, tir-lo da condio de coisa e dar-lhe a qualidade depessoa, mas dentro de limites que o uso j tem consagrado eque ora se trata de estabelecer por direito, sem perturbar a dis-ciplina dos estabelecimentos agrcolas, pelo contrrio, rmandoos vnculos dessa obedncia pelo modo mais justo e razovel.
(Anais do Parlamento Brasileiro, 1871, p. 304)
Esse pronunciamento de Rio Branco, em defesa da Lei de 1871, co-
loca claramente a incorporao do direito costumeiro de forma a delimitar
o alcance das reformas em andamento. O efeito mais imediato dessa cui-
dadosa incorporao ser no apenas rmar os vnculos de obedincia en-
tre escravo (trabalhador) e senhor (patro); mais que isso, a aquiescncia
do escravo ser tambm fator fundamental para um processo de transio
lento, gradual e seguro.
A famlia escrava torna-se, em si mesma, um forte componente
desse processo. evidente que a existncia de uma famlia na qual um -
lho nasce livre, e algum de seus membros est mais ou menos prximo da
liberdade, , potencialmente, uma famlia na qual a necessidade de agra-
dar ao senhor se impe com a mesma fora que o desejo e a esperana de
liberdade. Tal situao, tanto mais relevante quando se sabe que o escravo
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tinha uma chance real de ser manumitido15, acaba por considerar a fam-
lia do escravo um componente dos mecanismos de controle, disciplina e
induo ao trabalho.
A concepo geral do processo poltico, formulado a partir da Lei
de 1871, foi muito bem sintetizada por Arajo Lima, ex Primeiro Ministro,
quando discursou na Cmara dos Deputados, na sesso de 21 de julho de
1871, em defesa do projeto: A proposta do governo outorga a muitos a
liberdade, a todos a esperana. J que o acesso liberdade era mantido
sob estrito controle, ao mesmo tempo em que impunha a constituio de
uma famlia, e induzia diligncia, obedincia, esperana, alimentada
homeopaticamente, pde manter esse processo de transio pelo tempo
necessrio aos ajustamentos desejados.A famlia escrava, tal como se constituia a partir dessa lei, uma
famlia hbrida, ela prpria sintetizadora desse processo de transio. Seus
membros so ingnuos, libertos, de mais para menos escravos; todos con-
centrados na realizao das esperanas delimitadas pela lei.
A teoria de Elias, no que se refere violncia, e o processo civi-
lizador, funda-se na existncia de um processo no planejado (cego),
no qual ocorre uma mudana na balana entre os controles externos e
o auto-controle, mudana esta que se verica em direo de um maiorauto-controle na regulagem dos comportamentos. justamente esta inter-
nalizao de sentimentos e emoes, tais como a vergonha e a culpa, que
levou ao renamento das atitudes dos europeus. Tanto violncia quanto
civilizao permitiram s formaes nacionais emergentes na Europa os
instrumentos bsicos para governar: o monoplio dos impostos e o uso
da fora. Neste sentido, as ocorrncias que se vericavam no Brasil, ou
em espaos no europeus, referiam-se ao exerccio do poder governante
dotado de violncia potencializada. No se tratava mais da violncia de
guerreiros, tratava-se da violncia de um Estado sobre componentes de
uma nova congurao emergente.
Esta faceta assumida pelo processo de integrao euro-americano
implica reconsiderar a formulao clssica da questo da violncia, tal
como Elias a colocou. A violncia que se verica no caso da formao do
15 Ver a respeito R. Slanes, The Demography and Economics of Brazilian Slavery 1850-1888 (Tese dePh.D Universidade de Stanford, 1976), p. 484-573.
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Estado no Brasil, no pode ser compreendida apenas na dimenso de um
processo civilizacional, no qual o controle das emoes construiria um
habitus, mais ou menos como se vericou na Europa, na medida em que
os guerreiros foram se transformando em corteses. No caso brasileiro,
a violncia e/ou a tolerncia foram racionalmente utilizadas, quer paradominar os ndios, quer para conquistar o territrio, mais especicamentea fronteira agrria em expanso. Neste caso, a violncia um componenteestrutural da poltica estatal, e as consequncias desse fato so bastanteevidentes na Histria do sistema policial brasileiro.
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O PROCESSO CIVILIZADORE A MORTIFICAO CORPORAL:
INTERDEPENDNCIA DE FUNDAMENTOS E DEMTODO NA MISSO JESUTICA
Antonio Dari Ramos
1. Introduo
Quais as razes da presena constante do tema morticao cor-
poral nos escritos jesuticos dos sculos XVII e XVIII? Para responder a
essa questo, partindo da noo elisiana de que as sociedades so gura-
es de homens interdependentes, ser objeto de anlise, aqui, o contexto
scio-histrico da fundao da Companhia de Jesus. Com isso, pretende-
se compreender a interdependncia existente tambm entre as variveis
que permitem situar as morticaes corporais como um componente.
Acreditamos que o processo civilizador europeu possa fornecer subsdios
para o entendimento dos fundamentos da morticao corporal jesutica.
Atuariam como justicadores teolgico-sociais a psicologia tomista, a pie-dade cristocntrica e o ideal germnico de misso. Estes fundamentos per-
mitiriam aos religiosos tomarem a exemplaridade como mtodo missional
por excelncia.
2.Fecundidade do pensamento elisiano
Uma rpida anlise nos escritos dos comentadores da obra de Nor-
bert Elias perceberia quo fecundo o pensamento do socilogo na anlisedos processos sociais de longa durao. Para chegar a isso, o terico lana
mo de uma perspectiva comparativa e crtica. Por isso, historiadores, an-
troplogos, socilogos, gegrafos e demais cientistas humano-sociais tm
encontrado em Elias um modelo interpretativo bastante provocativo para
a crtica da formao da ocidentalidade. Embora injustamente acusado de
propor uma teoria teleolgica de histria, demonstra com propriedade a
forma como as interdependncias das guraes sociais, principalmente
das sociedades de corte, vo moldando a sensibilidade ocidental.
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A releitura interdisciplinar da obra de Norbert Elias demonstra, por
outro lado, o amadurecimento acadmico das disciplinas. Como aventado
pelo grande conhecedor da obra de Elias, Carlos Antonio Aguirre Rojas,
se, no presente, h a especializao das disciplinas, deve-se contar tam-
bm com um bom dilogo entre as cincias humanas e sociais (AGUIRRE
ROJAS, 1998). Isso permite que investigadores provindos das mais difer-
entes reas do conhecimento possam sentar-se mesa e aproximar-se da
obra de Norbert Elias com resultados bastante profundos em termos de
anlise das prticas sociais.
Percebe-se, a partir do que foi dito, a superao da crtica que o
prprio Norbert Elias fez Histria, quando escreveu, em 1933, A socie-
dade de corte. No prefcio da obra, Roger Chartier traz a crtica de Elias
histria, tida, em sua viso, como perdida nos caminhos do relativismo,
diferentemente da sociologia, devido a supor em geral um carter nico
para os acontecimentos que estuda. A crtica tambm dirigida Histria,
por esta postular que a liberdade do indivduo fundadora de todas as de-
cises e aes, por remeter as evolues principais de uma poca s livres
intenes e aos atos voluntrios daqueles que tm fora e poder (ELIAS,
1998). Talvez Norbert Elias estivesse se referindo histria conhecida sob
inspirao de Leopold Von Ranke, exatamente aquela questionada, a partir
de 1929, pelo Movimento dos Annales. Com este movimento, o estudo das
sries deslocou a ateno do acontecimento nico para o fato repetido; da
excepcionalidade da ao poltica e militar para os ritmos cclicos dos mo-
vimentos conjunturais (Idem). Hoje, h enorme semelhana entre o que
Elias fazia e o que a Histria faz, embora a obra de Norbert Elias no seja
aceita por todos os historiadores.
Ademais, a aproximao que realizamos a Elias, no mbito de
nossas investigaes, demonstra a importncia que o autor possui para
entender o projeto colonial americano, uma vez que cou escancarado
nas fontes histricas do passado o objetivo que os europeus tinham de
civilizar o mundo: e o modelo era o europeu. Como nossa inteno, neste
texto, pensar sobre o papel que a conteno do corpo ocupou no pro-
jeto missionrio jesutico, a teoria elisiana permitiu adentrar no imaginrio
europeu e buscar nele os fundamentos e os mtodos utilizados pelos je-
sutas.
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Tempos e Espaos Civilizadores
Tempos Civilizadores
Tema recorrente nos documentos fundacionais da Companhia de
Jesus, principalmente nas Regras, nas Constituies e na documentao
missionria dos sculos XVII e XVIII, a morticao corporal entendida
como toda ao deliberada que envolva conteno, autodisciplinamento,
agelo do corpo e de suas sensaes , a um s tempo, posto como
um ideal a ser alcanado pelo jesuta, portanto um m, mas tambm uma
prtica, um meio que o prepararia para a misso. Dessa forma, poderamos
tom-la, no mbito das fontes documentais jesuticas dos sculos XVII e
XVIII, como uma gura de linguagem que signica e direciona o projeto
missionrio. Nossa percepo de que a clara relao existente entre mis-
so jesutica e morticao corporal pode ser explicada em grande me-
dida pelo trabalho que os inacianos assumiram de disciplinamento social ereligioso na Europa e nas frentes de misso, visando renovar os costumes
europeus, agindo internamente na Igreja Catlica e externamente na so-
ciedade.
Aqui pretendemos, ento, identicar, dentro do contexto europeu
do surgimento da Companhia de Jesus, os fundamentos sociopolticos,
tericos, religiosos e antropolgicos que fundamentariam a presena da
morticao corporal no centro da ao missionria da Companhia de
Jesus nos sculos XVII e XVIII. Daremos destaque tambm exemplari-dadeenquanto um dos recursos utilizados pelos jesutas em seu projeto
missionrio, ao ponto de constituir-se no mtodo missional por excelncia.
Para dar conta da temtica, partiremos da anlise do processo civilizador
europeu, passando pelo ideal de busca de imitar a Cristo, pela noo de
misso compartilhada pelos primeiros jesutas, a m de desembocar, ao -
nal, na anlise da temtica da exemplaridade. Acreditamos que uma anlise
mais ampla do fenmeno civilizacional deva passar por estas variveis.
3. Fundamento sociopoltico:o processo civilizador europeu
A especicidade da misso assumida pela Companhia de Jesus
expressa em sua documentao fundacional perde sua compreenso se
deslocada do contexto social e poltico europeu do incio da Idade Mo-
derna. A Ordem jesutica nascente no somente se deixa moldar pelo pro-
cesso civilizacional europeu que estava em curso, como tambm o inu-
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encia. A morticao do corpo e o controle de suas sensaes so centrais
nesse processo.
Tratar, no entanto, sobre o processo civilizacional europeu e o papel
que nele desempenhou a Companhia de Jesus buscar entender a relao
que existiu entre o disciplinamento social e a confessionalizao, mesmo
que entre ambos os termos existam diferenas conceituais. O disciplina-
mento est ligado construo do Estado Absoluto e adequao dos
indivduos a ele, pertencendo, portanto, histria poltica, ao passo que
a confessionalizao, termo cunhado por W. Reinhard e pelo historiador
alemo Heinz Schilling, um processo histrico-eclesistico baseado em
uma moral religiosa que supe uma transformao planicada do com-portamento humano (REINHARD, 1994).1Estabelecendo um cruzamento
entre as expresses, tomamos disciplinamento enquanto um processo de
adequao dos indivduos e dos grupos aos padres de comportamento
ditados tanto pela elite eclesistica quanto pela poltica, fundindo-se, de
certa forma, no conceito de civilizao formulado por Norbert Elias: A
mudana no controle das paixes [] a conduta que denominamos civili-
zao (ELIAS, 1989, p. 54).
O processo civilizador europeu que aconteceu no nal da IdadeMdia e incio da Moderna, sob inuncia das sociedades de corte Elias
entende sociedade de corte em dois sentidos: a corte como sociedade,
com relaes especcas e como sociedade dotada de uma corte (real ou
principesca), com caractersticas prprias (ELIAS, 1988) acompanhadas
dos meios eclesisticos , efetuar uma reviso nos valores e compor-
tamentos sociais europeus, ao mesmo tempo em que implantar novos
padres morais calcados no sentimento de vergonha, de nojo e de culpa
relacionado s funes corporais, na busca da regulao da vida instintivae afetiva dos indivduos.2O processo civilizador se constitui, ento, numa
1 Callado percebe a disciplina em dois sentidos: enquanto aprendizagem de um determinado aspecto deconhecimento e enquanto uma prtica e atuao disciplinada em consonncia com certos padres decomportamento (CALLADO, 2002).
2 O controle social das funes corporais est inscrito naquilo que Marcel Mauss deniu como tcnicascorporais, ou seja, as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional sa-bem servir-se de seus corpos(MAUSS, 1974, p. 211). A forma como as sociedades percebem as funesnaturais como o sono, a reproduo, a higiene, as partes do corpo constituem-se em hbitos adquiridos.
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Tempos Civilizadores
mudana na conduta e nos sentimentos humanos, atravs da implantao
de regras comportamentais (ELIAS, 1989, p. 193-194).3
Norbert Elias, ao analisar detidamente o processo de mudana na
sensibilidade pelo qual passava a Europa na virada da Idade Mdia para a
Moderna, d destaque s estratgias utilizadas pelas sociedades de corte
no disciplinamento dos corpos dos sditos. O longo processo histrico
que culminou com a formao das monarquias nacionais modernas euro-
peias descrito por Norbert Elias como a projeo dos valores cortesos
sobre os demais grupos sociais.4O uso de uma etiqueta e de um cdigo de
normas bem denidos visaria internalizao do controle externo, trans-
formando-o em autocontrole.5Em tal processo de construo dos Estados
Nacionais, a inteno principal era subjugar os indivduos, o que deveriaser perceptvel em termos de exteriorizao da corporeidade. A mortica-
o corporal representa, nesse paradigma de racionalidade, a adequao
individual s normas sociais que tenderam naquele momento a se tornar
hegemnicas.
Deve-se considerar que a formao dos Estados Nacionais Moder-
nos coincide com a renovao catlica e com o processo de surgimento
e fortalecimento das igrejas protestantes. No nal de Idade Mdia e incio
da Idade Moderna, a simbiose que existiu entre igrejas crists e estadosnacionais em formao levou a que houvesse naquelas instituies a preo-
cupao com prticas educativas condizentes com a necessidade de indi-
vduos submetidos ao poder do Estado e da Religio. Nesse sentido que
Morgado Garca percebe que as prticas educativas realizadas no perodo
devem ser inscritas no marco de uma estratgia de pacicacin y concr-
dia social, convertendo-se em paradigma y fundamento del nuevo arte
de gobernar, cooperando nainstauracin del nuevo orden social, y que
aspiran al gobierno del alma, el cultivo del ingenio, y la destreza del cu-
erpo. Modelar la infancia con mano rme, es la base del gobierno ideado
3A Europa moderna [...] foi marcada por grandes transformaes operadas pelo avano das relaescapitalistas e pela formao dos Estados Nacionais absolutistas que implicaram um processo de revisodos valores e dos comportamentos. (FLECK, 1999, p. 26).
4 H que se esclarecer que, no mbito da obra de Elias, a migrao da etiqueta de estratos sociais consi-derados superiores para os inferiores no obedece a uma direo nica. Pelo contrrio, burgueses e demaiscamadas sociais copiaro da sociedade de corte prticas corporais como forma de distino social.
5 Para maiores esclarecimentos, consultar os dois tomos de ELIAS, 1994.
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por la Iglesia, ya que solo fabricando hombres a imagen y semejana de
Cristo se puede desterrar la hereja (MORGADO GARCA, 2002, p. 8).6
No sculo XVI, enquanto o referido processo estava em franco de-
senvolvimento, muitos tratados pedaggicos, de razes medievais, rela-
cionados com os mbitos monsticos e clericais, ganharam importncia.
Difundiu-se, ento, um cdigo de conduta baseado na modstia e na obe-
dincia, convertendo-se a educao crist em um veculo para alcanar
a salvao, mas tambm para obter do indivduo obedincia Igreja, tra-
duzida tambm em submisso ao poder poltico (MORGADO GARCA,
2002). A subjugao do corpo ao intelecto, pensamento em voga na poca,
deve ser percebida como o controle que o indivduo devia exercer sobresi mesmo aqui se est falando da construo mesma da subjetividade
moderna enquanto adequao da conscincia individual a uma morali-
dade instituda.
A Companhia de Jesus, ao aceitar a misso de disciplinamento e
regulao dos comportamentos sociais, continuar mantendo a concep-
o medieval que atribua aos missionrios o qualicativo de apstolos,
que agiriam dentro da Histria da Salvao. Por isso, continuavam toman-
do a Cristo como modelo (RICCO CALLADO, 2002), o que ca fartamentedemonstrado na documentao missionria jesutica. Os Exerccios Es-
pirituais, manual de vivncia asctica, foram transformados, ento, tanto
pelos jesutas que realizavam trabalhos missionrios na Europa quanto
pelos que missionavam na Amrica e no Oriente, no somente em um
instrumento de reforma da piedade catlica, mas tambm dos costumes,
conforme sugesto contida na correspondncia missionria de 1617 refe-
rente ao Colgio de San Thiago do Chile e arredores: Piden muchos con
instancia los exos spirituales, concedese a los que se puede commodam.tey vesse en ellos notable reformacion de costumbres.7
6 Temos de considerar, como o fez Morgado Garca, a importncia que a Igreja Catlica teve na consti-tuio de um aparato social condizente com a nova forma de pensar a poltica europeia moderna, e suainuncia no campo educacional, pois as camadas mdias europeias passam pelas escolas de religiosos,principalmente, de jesutas.
7 DCIMA CARTA, DEL P. PROVINCIAL PEDRO DE OATE, EN QUE SE RELACIOAN LO ACAECIDODURANTE EL AO 1617. In:Documentos para la Historia Argentina. Tomo XX. (Iglesia). Buenos Aires,1924, p. 159.
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Tempos Civilizadores
A reforma dos comportamentos sociais europeus, alicerada na
conteno dos desejos individuais, remete busca da pacicao do teci-
do social. Isso tem a ver com o fato de a vida, no nal da Idade Mdia,
possuir um carter bastante violento, seja porque a resoluo das con-
tendas, inclusive das menores, acontecia pela via armada8, seja devido
s calamidades climticas, indigncia e s epidemias que levavam a
mudanas bruscas de comportamento. Os contrastes de nimos eram
bastante salientes, estando entre eles os emocionais. Frequentes procis-
ses e execues pblicas agitavam o universo religioso e levavam o povo
das lgrimas incontidas exuberncia da alegria. Elas eram contempladas
pelos espectadores como se fossem diverses de uma feira. Sermes de
pregadores itinerantes causavam verdadeiro frisson. Para Huizinga, todaa receptividade para as emoes desordenadas deve ser lembrada, se se
quiser compreender como era tensa e violenta a vida naquele perodo e a
importncia dada pelos dirigentes polticos e eclesisticos ao controle das
emoes (HUIZINGA, 1978).
O autocontrole das emoes e a externalizao corporal dele de-
corrente ligam-se ao processo de separao entre cultura e natureza que
estava em curso desde a Idade Mdia e, consequentemente, busca de
dife-renciao das aes tidas como prprias dos seres humanos e dosdemais animais. Sobre isso, ilustrativa a anlise elaborada por Keith
Thomas, referindo-se modicao da sensibilidade ocorrida na Ingla-
terra entre os sculos XVI e XVIII, quando se tinha
[...] como objetivo elevar os homens acima dos animais [...].Uma vez que todas as funes fsicas tinham associaesanimais indesejveis, alguns comentadores consideravam ser amoderao do corpo, ainda mais que a razo, o que distingue oshomens das bestas. [...] Nem todos atingiam um nvel peculiar
de autoconscincia. Mas a maioria das pessoas era ensinada aencarar seus impulsos fsicos como impulsos animais, a exigircontrole. O contrrio signicaria ser animalesco ou brutal.A luxria, em particular, era sinnimo de condio animal,pois as conotaes sexuais de termos como bruto, bestiale animalesco eram ento muito mais fortes do que hoje. [...]A higiene fsica era necessria [...] porque a sua falta mais do
8 Note-se a a importncia que teve a centralizao no Estado acerca do uso legal da violncia, domonoplio mesmo da violncia.
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que qualquer outra coisa, torna o homem bestial. A nudez erabestial, pois as roupas, como o ato de cozinhar, constituam umatributo humano exclusivo. (THOMAS, 1988, p. 44)
Essas caracterizaes do que seria especco do ser humano, con-
traposto animalidade, remetem base terica seguida abertamente pelos
jesutas, a psicologia tomista, que analisaremos adiante, e que lhes possi-
bilitava explicar as mudanas de conduta social e religiosa que pretendiam
no interior da Europa, bem como as diferenas culturais dos povos com os
quais mantiveram contato a partir do sculo XVI.
Outra faceta importante da vida social em que o processo civiliza-
dor se fez sentir foi a depurao da vivncia da piedade religiosa, pois nonal da Idade Mdia, a vida individual e social, em todas as suas mani-
festaes, est saturada de concepes de f. [...] h um enorme desdobra-
mento da religio na vida diria (Idem, p. 46). Essa saturao da religio
levava ao risco da perda da distino entre o espiritual e o temporal:Na
Idade Mdia a demarcao da esfera do pensamento religioso e das preo-
cupaes mundanas estava quase obliterada (HUIZINGA, 1978, p. 141-
145). Para Huizinga, no nal do sculo XIV, at mesmo as festas religiosas
eram eivadas de cenas profanas. As procisses e as missas, por exemplo,
transformavam-se, para muitas pessoas, em momentos de ertes e de en-
contros amorosos, inclusive entre prostitutas e seus clientes, de bebedeiras
e escrnios, que escandalizavam somente aos moralistas, como Gerson,
uma vez que eram costumes arraigados e considerados naturais.
O que estamos analisando permite perceber a Reforma Catlica
no como um esforo da Igreja Catlica em disciplinar-se, mas tambm
de disciplinar a moral e a piedade catlica europeia. Assim, para buscar odisciplinamento interno da Igreja Catlica, houve investimento na forma-
o terica e moral de seus quadros, atravs da implantao de seminrios
e da criao de inmeras dioceses para que os bispos acompanhassem
de perto os trabalhos realizados pelos padres, embora saibamos, no caso
americano, da precariedade dessa estrutura em virtude das grandes dis-
tncias entre os ncleos urbanos. Com o disciplinamento interno, a Igreja
Catlica objetivava o disciplinamento de seus is, delizando-os para que
no aceitassem as Igrejas Reformadas.
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Tempos Civilizadores
Na percepo de Georges Duby, nos sculos XIV e XV, a sensibili-
dade europeia se modica realmente, e isso teria sido consequncia da
evoluo do sentimento religioso, fruto de um processo que ele chama dedesclerizao e vulgarizao da cultura da massa, quando os grupos popu-
lares teriam copiado comportamentos de seus heris de devoo.9Cenas
de devotos morticando-se para imitar os santos de devoo so bastante
comuns naquele momento histrico.
Muito embora Peter Burke reconhea as limitaes da expresso
cultura popular, ele sugere que a ao da Igreja Catlica ir centrar-se
nela principalmente em funo da reforma da sensibilidade que se disps
a realizar aps o Conclio de Trento. margem da grande tradio, termoque Burke toma de emprstimo a Robert Redeld, transmitida nas esco-
las e universidades, no sculo XVI e XVII, havia uma pequena tradio,
composta pelas festas dos santos, de Natal, de Ano-Novo, de Maio, do
Solstcio de Vero, pelo carnaval, das quais participam as pessoas simples,
incultas, iletradas, a no-elite embora a elite compartilhasse com elas de
vrios momentos sobre a qual os reformadores catlicos e protestantes
centraro suas crticas, buscando suprimi-la (BURKE, 1989).10As objees
a que se referiam eram de ordem dogmtica e moral. Na primeira, estariaa tradicional familiaridade com o sagrado que levava irreverncia e
perigosa no separao entre o sagrado e o profano; na segunda, a denn-
cia de que as festas transformavam-se em ocasies de pecados carnais,
particularmente de embriaguez, glutonaria e luxria (Idem).
Especicamente na luta contra a luxria, destacamos o incentivo
ao culto mariano como recurso utilizado pela Igreja Catlica. Ele irrompe
no sculo XII, encarnando os valores da virgindade e da maternidade, mas
se xa de fato na metade do sculo XVI. Isso importante na medida em
9 DUBY, Georges.Idade Mdia, idade dos homens: do amor e outros ensaios. So Paulo: Companhia dasLetras, 1989. p. 165.
10No nal do sculo XVI e incio do sculo XVII, houve uma tentativa sistemtica por parte dos membrosda elite, principalmente por parte dos cleros catlico e protestante, em reformar a cultura do povo comum.A reforma tinha precedentes medievais, mas foi mais ecaz no incio da Europa moderna do que no nal
da Idade Mdia porque as comunicaes, de estradas a livros, eram melhores do que antes (Idem, p.257). Como grandes reformadores dos costumes daquele momento podem ser citados Carlos Borromeu,arcebispo de Milo, Gabriele Paleotti, arcebispo de Bolonha, e Carlo Bascap, bispo de Novara.
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que a virgindade, a modstia e a pureza passam a ser requisitadas dentro
do esprito contra-reformista, e as Congregaes Marianas, criadas pelos
jesutas, sero um importante canal para isso, pois pretendiam formar umaelite social modelar na piedade e no controle das emoes que viesse a
reformar a cristandade no incio da Idade Moderna.
Na tentativa de disciplinar as prticas piedosas catlicas, no seio
das Congregaes Marianas, est a busca sistemtica de controlar a livre
expresso individual da religiosidade. Salientamos, no entanto, que foi a
prpria Igreja que alimentou em grande medida o desenvolvimento de
tendncias intimistas de religiosidade. No incio da Idade Moderna, por ter
perdido o controle sobre esse tipo de expresso religiosa, a Igreja Catlicabaixou regras especcas visando disciplin-las.
O esforo de disciplinamento religioso e moral se fez sentir tam-
bm no nvel da hagiograa, quando a Igreja Catlica pretendeu ordenar
o culto aos santos e a prpria produo de santos. No sculo XVI houve
apenas a canonizao de seis novos santos. Entre 1523 e 1588 no houve
nenhuma canonizao; no sculo XVII, apenas 24; no XVIII, 29. Acompa-
nhou o referido disciplinamento a intensicao da vigilncia do Tribunal
da F em relao s manifestaes ngidas de santidade, atravs da aorepressiva da Inquisio aos supostos agentes satnicos (PAIVA, 2000).
A regulao da piedade religiosa e tambm dos costumes sociais
assumida pelos jesutas seria possvel somente atravs da subjugao do
corpo ao intelecto, a partir da premissa da adequao das relaes sociais
a uma determinada ordem natural impressa desde a criao pela prpria
divindade.11 nesse sentido que a psicologia tomista assume relevncia
para os jesutas e para a maioria das ordens religiosas, enquanto linha
terica que permite elaborar estratgias concretas visando ao controle das
sensaes corpreas.
11 Embora reconheamos as sutilezas do tomismo, que por vezes se transformam em armadilhas, quandotrata das trs almas e de suas potncias, julgamos no haver incoerncia entre as expresses ato devontade e ato intelectual ou racional. No esquema de pensamento de Toms de Aquino, a alma vegetativae a sensitiva devem estar sujeitas racional. Porm, tal sujeio no por si s evidente. Pelo contrrio,para o telogo, o homem fortemente atrado para as sensaes baixas da alma, restando-lhe, comosada para evitar a perdio, ordenar-se interiormente, isto , ordenar as potncias da alma, o que se dpela ao de Deus, auxiliado por um ato de vontade, pelo querer.
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4. Fundamento terico: a psicologia tomista
O processo civilizador ocidental, orientado para o controle do cor-
po e de suas sensaes, , em grande medida, devedor da viso tomista
da alma que, muito mais que uma teoria especulativa, tornou-se um guia
da moralidade catlica a partir do sculo XII.12A conteno do corpo e a
busca do controle racional de suas sensaes justicam, losocamente,
as aes da Igreja direcionadas ao disciplinamento social e religioso na
passagem da Idade Mdia para a Moderna. Na verdade, Toms de Aquino,
na Suma Teolgica, apoiado em toda uma tradio asctica que remonta
ao perodo helenstico da histria do Ocidente, passando pelo cristianismo
desde seu incio at o sculo XII, explicita o que seja o controle do corpopelo intelecto, recorrendo ao conceito de ordenamento da alma.
Para Toms de Aquino, baseando-se na viso aristotlica, o que
diferenciaria o ser humano das demais criaturas o tipo de alma que pos-
suiria, dado existirem trs almas, a vegetativa, prpria dos vegetais, a sen-
sitiva, dos animais, e a racional, dos homens, a qual abarcaria as duas
anteriores, sendo, portanto, nica. Para o pensador, existiriam na alma
cinco gneros de potncias que comandariam a vida humana, entendidas
como o princpio das operaes vitais: vegetativas, sensitivas, apetitivas,motrizes e intelectivas (AQUINO, 1959, p. 249).13 O que deniria o ser hu-
mano e o diferenciaria dos demais animais seria o uso das potncias supe-
riores da alma, com a sobrepujana da alma intelectiva sobre a sensitiva,
uma vez que, pelo grau de perfeio, a vegetativa precederia a sensitiva, a
qual precederia a intelectiva, num processo de preparao do corpo para a
ao da alma superior (Suma Teolgica.1, questo 7, artigo 1). Assim, um
corpo ordenado deveria ser a expresso de uma alma ordenada, e o tra-
balho missionrio jesutico tencionava fazer o cristo, segundo viso cor-
rente, transformar em ato a potncia intelectiva, por uma ao calcada na
vontade,14subordinando ao intelecto as sensaes corpreas desordena-
12 Neste estudo, embora reconheamos a importncia que tiveram na releitura de Toms de Aquino,no entraremos na discusso estabelecida pelos jesutas Surez e Vzques, por no se constituir no fococentral das anlises.
13 Adotaremos, a partir deste ponto do texto, para referenciarmos o pensamento de Toms de Aquino,apenas o ttulo da obra, a questo e o artigo citados.
14 Esto presentes na vontade os afetos e os desejos, ou seja, as foras que moveriam e determinariam
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das. Na verdade, para Toms de Aquino, toda a natureza corprea est
sujeita alma(Suma Teolgica.1, questo 7, artigo 1). O maceramento
corporal e os castigos fsicos teriam a nalidade de fazer a alma racional
sobrepor-se sensitiva, educando-a para que sujeitasse o corpo, como
retomada do ordenamento natural impresso pela divindade. Isso dava
Igreja e ao Estado a justicativa para castigar as pessoas que, em sua con-
cepo, estivessem desalinhadas ao status quovigente.
As noes de pecado e virtude so denidas, em Toms de Aquino,
seguindo a premissa da existncia dessa ordem natural. A moralidade hu-
mana deveria estar constituda a partir dela e supunha um direcionamento
das aes cotidianas sempre tendendo para o Criador, o que caracterizaria
a virtude (esse o sentido de ordenamento da alma para Toms de Aquinoe, por decorrncia, na documentao jesutica fundante, que segue de per-
to o pensamento tomista). Toms de Aquino d destaque s potncias da
alma consideradas superiores, por acreditar que estariam mais prximas
de Deus, as quais deveriam dirigir as potncias inferiores. Dessa forma,
o corpo e suas sensaes, por estarem no extremo oposto, deveriam ser
controlados para evitar o pecado e a no salvao da alma. Da, a necessi-
dade de morticao do corpo para ordenar as potncias da alma.
Na Suma Teolgica, o pecado aparece relacionado desordemdas potncias da alma, podendo estar presente em qualquer uma delas.
Dentre os pecados, tanto os espirituais quanto os carnais remetem ao des-
controle do indivduo na vida social e religiosa, que poderia acontecer por
pensamentos, palavras e obras, causados que seriam pelo apetite sensitivo,
pela vontade, pelo diabo, pela prpria condio humana, o pecado origi-
nal, e pelos demais pecados, pois um seria a causa de outro. Para ilustrar o
que estamos dizendo, daremos destaque, na Suma Teolgica, aos pecados
ligados ao corpo, principalmente gula e luxria, e s formas sugeridas
para cont-los, embora saibamos que, em Toms de Aquino, impossvel
deslig-los dos demais pecados.
Para Toms de Aquino, o ordenamento das potncias da alma in-
cide diretamente na moderao das sensaes corpreas relacionadas ao
comer e ao beber. O centro de sua tematizao sobre a gula no se encon-
tra na comida e na bebida, mas nas sensaes que essas produziriam e
o querer humano.
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nos males que poderiam causar alma. O apetite desordenado no comer
e no beber transformar-se-ia em pecado pela busca da deleio mesa.
Derivaria da gula o embotamento mental ou perturbao do juzo, causado
pelas fumosidades produzidas pela comida, de acordo com o pensamento
hipocrtico-galnico, a alegria inepta, o multilquio, ou as palavras desor-
denadas, a escurrilidade, que a jovialidade proveniente da falta de razo
que no deixa coibir os gestos exteriores, a imundcie, entendida como a
produo e a emisso de superuidades, principalmente a seminal (Suma
Teolgica. 1, Questes 148 e 149).15 Decorrem, ento, para Toms de
Aquino, orientaes prticas com relao mesa: moderao na comida
e na bebida, e medidas ordenadoras do apetite, como a abstinncia e o
jejum, que teriam a funo, segundo o pensador, de regular os prazeres
mesa, de reprimir os desejos da carne, de elevar a alma na contempla-
o da verdade e de satisfazer os pecados cometidos(Suma Teolgica.1,
Questo 146, artigo 2).
A regulao dos prazeres venreos sensaes corporais relacio-
nadas sensualidade remete virtude religiosa da castidade e ao seu
oposto, o vcio da luxria. A luxria implicaria um excesso de prazer que