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Tempos Frios

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Uma coletânea de contos da autora Silvia Regina Pellegrino Freitas da Rocha. Leitura grátis

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Todos os direitos autorais pertencem a autoraTexto não pode ser reproduzido, nem no todo

nem em parte.

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autora

Sylvia R. Pellegrino

edição

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ÍndiceTempos Frios............................................ 06

A Chácara dois Pinheiros.................... 14

A Tempestade.......................................... 18

Fuga........................................................... 21

Mente da Fome...................................... 28

Epistolário............................................... 31

Rotina de Ser..........................................35

O Lançamento....................................... 38

Intrigas................................................... 41

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A se acreditar nos ditos populares, aquela mulher sentada à fren-te de Eduarda era uma intrigante. Aquele foi efetivamente um final de março bastante marcante e esclarecedor. Possivelmente inesque-cível. Era o aniversário do marido dela. Os pensamentos iam e vi-nham. Sentiu o estômago pesado, quando a mulher colocou a mão sobre a dela e disse que Felícia viria apenas se o marido tivesse li-gado pedindo isso. Em seguida perguntou candidamente se ela sa-bia se ele havia feito isso. A quimioterapia fazia seus efeitos naquele corpo, o estômago embrulhou, a tontura voltou. Levantou-se, sem responder, dizendo que ia ao banheiro. Na verdade se encaminhou para o marido e fez a pergunta: Você ligou para Felícia, convidando-a pessoalmente? A questão foi feita olhando dentro dos olhos dele. O olhar se furtou rapidamente dos dela. “Claro que não, por que eu faria isso? Lembrou imediatamente da mãe dizendo que as pesso-as só não encaram as outras quando pretendem esconder a verdade. Aquilo a irritou sobremaneira, mas a fragilidade física e psíquica, devido à depressão não a permitiu ir adiante. Aquietou-se num canto.Ela fez uma entrada triunfal. Pelo menos foi o que pensou e o que causou no marido de Eduarda, porque os olhos deles brilharam e o sorriso tomou conta de seu rosto. Parecia um garoto que havia rece-bido seu doce preferido.

O espelho refletiu a imagem de uma desconhecida. Alguém que um dia fora ela. O rosto encovado, fino, angulado. Os olhos que a fitavam não tinham o brilho de antes. Passou as mãos pelos cabe-los e fios se soltaram. Olhou-os por um demorado tempo. Chorou. Abriu o roupão lentamente e a visão a aterrorizou. A cicatriz dividia

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seu peito ao meio. O colo sempre tão elogiado não estava mais lá. Caminhou arrastando os chinelos. Estirou o corpo ma-gro e ossudo sobre a cama. A pele sobrava. Fraqueza era a eter-na companheira do cotidiano. Olhou o teto branco. Era sua única tela. Não sabia se a dor estava na cicatriz ou no coração. O pei-to se confrangia e a dor latejava constante. Buscou o comprimi-do sobre a mesa de cabeceira. Voltou ao teto. Fundiu-se a ele. Dormiu por várias horas. Sonhou que aquilo tudo era um pe-sadelo mal acabado. Levantou-se e sentiu a dor funda na cicatriz. Avaliou o que aquela mulher havia dito, dias atrás. Ela estaria certa em suas insinuações? Lembrou-se do abraço daquela mulher. A voz macia dizendo que gostava dela. Se precisasse de uma amiga para desabafar, era só ligar. O marido chegou e a viu deitada. Já não a estimulava a levantar, sair, passear. O cenho carregado, ar cansado. Olhou-a rapidamen-te. Sequer a cumprimentou. Saiu do quarto após colocar as chaves do carro e carteira no lugar de sempre. Ela o olhou esperando al-guma coisa, que não veio. A mente tumultuada de dúvidas urdidas por aquela mulher. Sentia-se cansada. Não tinha ânimo para levan-tar. Lembrou-se da tal moça dos olhos azuis aguados e cabelos al-voroçados. Os olhos quando a fitavam pareciam sempre rancorosos e para os outros era só sorrisos. Não havia entendido aquele olhar ameaçador até quando aquela mulher levantara suspeita em seu es-pírito, antes tão desarmado, olhando a todos quase como anjos. Ago-ra... Só havia dor e medo dentro dela. Não sabia se podia confiar em alguém. Queria conversar sim, desabafar, mas não com aquela mulher. Tinha medo que a família soubesse de suas dúvidas. Preci-sava dirimi-las sozinha. Mas aquilo estava se tornando uma tortura. Ele entrou novamente no aposento e perguntou: “Você vai querer ir amanhã? Todos dizem que você precisa levantar. Lu-tar contra esse desânimo, caso contrário não vai melhorar nun-ca. Já faz seis meses de sua cirurgia cardíaca, não há motivo para continuar acuada e com medo. O médico já disse que a cirurgia foi um sucesso. Agora é levantar, caminhar e continuar a viver.” Ela não tinha a menor vontade de ir, principalmente porque iria

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encontrar aqueles olhos claros e fuzilantes e as dúvidas iam acicatá-la cada vez mais. Pensou em falar com o marido, porém não tinha argumentos, nada palpável, apenas incertezas. Era óbvio que ele iria rir dela. Facilmente poderia desacreditá-la, principalmente porque ela estava com diagnóstico médico de depressão e síndrome do pâni-co. Tudo que dissesse naquele estado poderia se voltar contra ela. Voltou a freqüentar aquele ambiente. Olhava as duas mulheres que cochichavam pelos cantos e riam de suas piadas. Ela não po-dia ouvi-las, mas via-se observada, analisada, chacoteada. A ser-pente de olhos escuros e vesgos olhou-a e se aproximou dela com intenção malévola, sob o disfarce de um sorriso manso.”Você não quer conversar um pouco? Está tão afastada de todos nós...Na ver-dade o que todos nós aqui queremos é ajudá-la. Sabemos que você está doente, está com depressão e nós podemos auxiliá-la orando e escutando suas aflições”. Ela olhou aquela mulher. O sorriso doce e gentil. Perguntou-se como um ser humano pode ser tão falso. Al-guns dias atrás aquela mulher havia insinuado que seu marido a traía com a loura de cabelos alvoroçados, que agora a observava com o canto dos olhos. Um sorriso matreiro bailou naquele rosto fazen-do-a ter certeza de que as duas pretendiam espicaçá-la ainda mais. Cada vez que tentava se esquivar do marido e não ir àquela casa, voltavam às reclamações e a frieza irônica. Pelo corpo pululava toda sorte de enfermidades oportunistas que passavam a representar real perigo de vida. Chegavam pela imunidade baixa. A terapeuta já ha-via recomendado o afastamento daquele grupo de pessoas que só es-tava trazendo desconforto espiritual, mental e físico para ela. Mas o marido continuava sem arredar pé. Queria continuar a frequentar aquele ambiente que a martirizava tanto. Repisava sempre sua ne-cessidade de manter contato com aquelas pessoas. Tão diferentes deles... Pessoas que haviam conhecido há tão pouco tempo e agora tinham um peso tão grande para ele. Como será que aquela amiza-de com eles havia se estreitado tanto? Perguntava-se incessantemen-te. Será que aquilo era apenas fachada para poder ver a tal mulher dos cabelos loiros alvoroçados? Ela passou a observar com atenção o comportamento do marido e daquela loira que gargalhava a todo

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o momento. Havia alegria naquela mulher... Uma alegria escanda-losa, mas era alegria. E ela continuava tão triste. Olhou o marido e viu o sorriso no rosto dele. Ele se sentia feliz naquele lugar. Pen-sou que estava sobrando entre eles. Possivelmente as insinuações da serpente de olhos escuros e vesgos deviam ser mesmo verdadeiras. Apesar do tempo, das tentativas, deixou-se vencer e falou tudo que pensava. O marido a olhava como se olha uma estranha e não aceitou afastar-se de ninguém. O divórcio foi dolorido. Como toda separação deixa um vazio enorme, não seria ela a não senti-lo. O tempo foi passando e ela pode alugar um pequeno aparta-mento de dois quartos. Com a finalização da venda do imóvel que residiam foi mobiliando com seu gosto particular e parecia que tudo tinha o seu perfil. Olhou o local e sentiu-se, depois de três me-ses da separação, com a emoção da liberdade fluindo pelos poros. Ensaiou algumas saídas com amigas de tempos idos, também separadas. Não gostou de alguns programas. Parecia viver uma reali-dade onde não se encaixava. Nada tinha com a separação, mas o jeito como as pessoas encaravam a vida. Alguém lhe disse que precisava ser mais leve ao encarar os fatos. Ela concordou plenamente com essa afirmação. Resolveu que voltaria a namorar, mas precisava reapren-der. Entrou num site da internet que ensinava como flertar. "Flertar é um aspecto universal e essencial das interações humanas". Que coisa estranha, pensou. O que quer dizer aspecto essencial das interações humanas? Pelo jeito vou ter que estudar sociologia, se quiser voltar a namorar. Resolveu escrever para a articuladora do assunto e tentar se informar um pouco mais. A escritora indicou o Guia do Flerte. Ela procurou livro, pesquisou na internet, foi à Biblioteca Pública e não encontrou nem sinal do tal “guia do flerte”. Voltou a escrever para a moça que havia indicado aquela bibliografia. Ela não se fez de rogada e enviou pelo correio eletrônico um texto bastante extenso prepara-do por um ‘Social Issues Research Center’ de Oxford, na Inglaterra. Na verdade aprendeu que à luz das ciências sociais essa é uma das ocupações favoritas dos humanos. Dissertar, ao menos do ponto de vista teórico, sobre o tal assunto... Por exemplo, você sabe por que a

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gente paquera? Não? Então, se nós não conseguíssemos capturar a atenção e expressar interesse pelo sexo oposto, há muito nossa espécie estaria extinta. Alguns especialistas em psicologia evolu-tiva chegam a afirmar que o tamanho do cérebro humano - e tudo que vem junto com isso e nos distingue dos outros animais, como nossa inteligência e capacidade de expressão - funcionam como a cauda do pavão: são adereços mais ou menos coloridos com um único objetivo, conquistar o interesse de nossos potenciais par-ceiros sexuais. Pode imaginar? Tudo que conquistamos, da arte à matemática, tudo de que nos orgulhamos tanto, seria apenas um subproduto da nossa capacidade de seduzir..É para se pensar... E em função da importância deste tipo de contato entre humanos, também inventamos uma séria infindável de rituais e comporta-mentos que funcionam exatamente como uma vitrine da Tiffany: mostrar para o outro o quanto somos interessantes e o quanto esta-mos ou não interessados nele... Algumas festas e celebrações, por exemplo, são praticamente feitas para favorecer a paquera. Car-naval e Ano-novo são algumas delas. Nestes momentos, dizem os especialistas, reina o que se chama “remissão cultural”, quer dizer, as regras da “boa conduta” ficam temporariamente suspensas, e assim, mesmo os muito tímidos podem abandonar por algum tem-po suas inibições e entrar na festa. Mesmo na mais selvagem das festas, no entanto, existe certa etiqueta: se no dia-a-dia o flerte ex-plícito pode não ser sempre adequado, nestes momentos, se você insistir em ficar de fora, com aquela cara de “eu não sou daqui” pode pegar muito mal...Paquerar em outros locais, no entanto, é uma dança, cujos passos todo mundo tem que aprender e que va-riam de cultura para cultura. A área em volta do balcão de um bar, por exemplo, é considerada na Inglaterra como “zona pública”. Ali em volta você flerta com quem quiser. Mas não faça a mesma coisa com quem está sentado às mesas, quanto mais distante do balcão, mais “privadas” vão ficando as mesas. Regra geral: zonas onde se bebe e se dança favorecem o flerte, ao contrário, zonas de

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comer não incentivam os contatos entre estranhos. À medida que você se afasta das baladas, o comportamento da paquera vai fican-do mais e mais “ritualizado”, menos explícito. Escolas e cursos, se, por um lado, favorecem o flerte entre pessoas com a mesma idade e que compartilham os mesmos interesses, por outro exigem um pouco mais de “delicadeza” na aproximação; afinal, supõe-se que num local destes, o aprendizado deveria ser mais importante do que a sedução. Mesmo assim, os cursos noturnos são considerados verdadeiros oásis de oportunidades de paquera... Hobby e esportes também aparecem como excelentes facilitadores dos contatos en-tre estranhos que querem se conhecer. Mas cuidado, os estudiosos advertem que se seu objetivo é esse, melhor experimentar as clas-ses de iniciantes. O clima competitivo que reina entre os experts e esportistas sérios dificilmente encorajam os flertes... De todos os locais favoráveis aos encontros, o mais cheio de armadilhas, com certeza, é o trabalho. Não existem regras universais, o que deixa tudo mais complicado, depende da empresa, depende da área... Me-lhor sempre observar com cuidado o comportamento dos colegas antes de tentar qualquer aproximação na hora do cafezinho. Mas escolha como benchmarking aquele colega mais respeitado para não acabar imitando por engano o estilo de abordagem de algum dos alpinistas sociais de todos os tipos, gêneros e posições que vi-vem nas organizações... E como escolher o “alvo” certo para dançar conosco? Existem duas (só?) regras, de acordo com o nosso guia:1. Procure flertar com alguém tão atraente quanto você. Isso é a medida mais segura de compatibilidade e garante relacionamentos com mais chance de darem certo. Sim, é estatístico. Mas como fazer para avaliar sua própria beleza? Mulheres são as rainhas da baixa auto-estima, ao passo que os homens tendem a se superesti-mar um pouco, até porque são menos massacrados por padrões de beleza inatingíveis... Os sociólogos sugerem então uma sub-regra, igualmente simples: uma mulher deve pensar sempre para cima e escolher alguém que a ache mais atraente do que ela mesma se vê.

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Um homem, ao contrário, deveria tentar ser mais “pé no chão” em relação a si próprio e parar de correr atrás da mulher mais linda, de-sejável e atraente da festa. Até porque a maioria dos homens precisa de muito exercício na hora da dança do flerte... E bastante treino nas sutilezas das aproximações! 2. Não paquere alguém que não esteja minimamente interessado. Os estudos mais recentes sobre nossa es-pécie mostraram que as mulheres buscam homens poderosos, seguros e financeiramente bem resolvidos. Os homens, ao contrário, buscam companheiras mais jovens e atraentes. Na prática isso significa que elas querem segurança, eles querem beleza. Mas se você se sentir fora deste padrão, nem pense em desistir da dança do flerte. Tudo é uma questão de atitude, ensinam os estudiosos dos comportamentos humanos. 55% da impressão inicial que nós criamos uns dos outros dependem da aparência e da linguagem corporal, 38% do nosso jeito de falar e apenas 7% naquilo que efetivamente dizemos. Traduzindo, sinta-se seguro, transmita tranqüilidade, olhe diretamente nos olhos do outro, fale com entusiasmo e suas chances aumentam vertiginosa-mente no mundo da paquera. Ufa, nada simples para um comporta-mento tão primitivo, não é? Quer saber mais? O guia tem muito mais idéias interessantes e surpreendentes sobre a arte do flerte - são 22 páginas o negócio é guardar para ler com calma. Na verdade sentiu-se munida de coragem e teoria sobre o tema. Ago-ra era colocar em prática e... qualquer dúvida lançar mão daquela bengala para se socorrer. Olhou a roupa na vitrine e sentiu uma comichão quase es-quecida. Abriu o baú da memória e encontrou a alegria de es-tar em forma e poder vestir algo que fosse escorregar no cor-po e se ajustar perfeitamente. Ainda ensaiava a entrada na loja._ Como vai, Eduarda?Aquela voz ouvida tão próxima um novo calafrio percorreu-lhe o cor-po. Só podia ser ele. Virou-se lentamente e o sorriso largo de dentes perfeitos, os olhos muito verdes reluziam e pareciam querer transpas-sá-la.

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_ Rogério! – Lançou-se aos braços dele. Foi uma reação de tanta fe-licidade que nenhum controle férreo poderia tê-la evitado.Os braços a apertavam forte, contra aquele peito. Sentiu o coração dele disparado. O dela também disparou. Nenhum “guia de flerte” poderia dar a ela aquela sensação gostosa e a ponta de esperança que agora brotava forte.

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A Chácara Dois Pinheiros

Por volta das dez horas, já vestida e tendo tomado seu desjejum, en-contrava-se no jardim podando suas rosas, quando ele chegou. Estava feliz como uma criança e, diversamente da rotina, acenou para a Sra. Lourdes, a vizinha da direita, que se divertia com o pequeno Rodrigo refestelada em sua cadeira, ao sol da manhã. Ainda assombrada com tanta amabilidade a Sra. Lourdes acenou para ele entusiasmadamente.O trator que passava desde as primeiras horas da manhã, aplai-nando as ruas do bairro, cessou seu ruído. A manhã ensolarada fi-cou abençoadamente silenciosa. Hélio desceu da cabine do jipe e saltou para o chão, caminhando ereto e nobre em sua direção.- Não queria interromper você, querida, mas tenho uma novidade que a fará extremamente feliz - ele foi explicando.- Sim... - Esperando que a novidade fosse realmente excepcional. Todo ele esbanjava felicidade.- Tenho algo a lhe mostrar. Se me acompanhar terá uma surpresa agradável.- De jipe?- Sim. Importa-se?- Absolutamente. Quer ir já, ou toma um chá comigo?- Melhor irmos já. Depois tomamos o chá, se for o caso.Ela tirou as luvas e o avental. Entrou em casa para deixá-los. Voltou rápido. Ele já estava dentro do jipe a esperá-la.Viajaram pela Estrada do Papel até o Triângulo. Entraram para uma estrada secundária, de terra. De repente ela avistou uma colina com dois enormes pinheiros plantados. Lá embaixo uma mata fechada e, mais abaixo, uma cachoeira de águas cristalinas. Foi uma visão de be-

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leza inenarrável. Ele sempre soubera o quanto ela gostava do campo, mas até aquele momento jamais falara em adquirir um pedaço de terra.- Um cliente não tem como pagar meus serviços advocatícios e me ofereceu esta gleba...- Maravilhosa, Hélio. Você vai aceitar?- Se você quiser?- Se eu quiser? É claro que eu quero!

Ela sorriu. Sempre gostava de ver Hélio no trabalho ár-duo da semeadura e a alegre determinação que ele esbanjava. O que fora uma propriedade negligenciada, agora se torna-va produtiva. Troca de cercas e mourões, pintura branca nas ba-ses das árvores, a construção do pontilhão sobre o riacho que cortava a propriedade e ia encontrar-se com o rio que desagua-va em cachoeira, arar a terra, plantar o arroz, o feijão, a horta.Não se lembrava de um único dia de folga, desde o início da aqui-sição da chácara. Os finais de tarde eram passados na propriedade.Depois que construíram a casa então, não mais deixavam de ficar até altas horas trabalhando, quando não resolviam pernoitar. Ele acendia o fogão de lenha e ela fazia a sopa. Na manhã seguinte com a brasa ainda acesa, era só colocar gravetos, alguns tufos de jornais e atiçar o fogo. O café saía quentinho e cheiroso para o desjejum da manhã.Dois anos depois, a chácara tinha uma alameda ladeada por ipês roxos e amarelos, o gramado da entrada aparado, o pessegueiro, a macieira, o parreiral dando seus frutos. Tinha sido arada e estava toda plantada. A colheita do arroz e do feijão era para breve. Hélio, no entanto, não estava satisfeito. Queria construir a casa sede no alto da colina, ao lado dos pinheiros e deixar aquela para o caseiro, agora contratado.Sonhava sentar-se na varanda e olhar o bosque todo limpo, com suas árvores circundadas por pedras brancas e a mesma pintura a meio-pau. Lá embaixo, antes da cachoeira, e às margens da bacia formada sobre as pedras, o jardim plantado por ela, onde já se viam, à volta dos xa-xins, bem-me-queres, lírios da paz e flores silvestres. Era um arco-íris

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de plantas.Começou a comprar o material de construção e guardá-lo num depó-sito construído para esse fim. A casa foi erguida em seis meses. Um ano depois estava toda mobi-liada e bela, encimando a colina dos dois pinheiros.Naquela manhã ele chegou exultante. O irmão ia casar-se e eles seriam os padrinhos. Decidiram ir à capital comprar rou-pas para o evento. Marcaram a viagem para o dia seguinte.O dia continuou sua marcha e a manhã terminou, preenchida de pe-quenas e rotineiras tarefas. Após o almoço retirou a valise do ar-mário e colocou as roupas necessárias para uma viagem rápida. À noite o sono não foi sossegado, havia uma excitação incomum.Finalmente amanheceu. Estava sentindo a cabeça meio zonza pela noite mal dormida. Teria tomado um chá e depois ido para a cama por mais algumas horas, não fosse o compromisso da viagem.

A curva apareceu. Ele não conseguiu tangenciá-la e o carro saiu de traseira, caindo na depressão que vinha margeando a estrada. Sen-tiu-se sendo atirada fora do veículo, após muitas batidas na cabeça.Acordou tonta, procurando com o olhar o resultado daquilo.O corpo dele estava caído, emborcado no terreno. Havia um silêncio sepulcral, apenas quebrado pelo barulho do limpador de pára-brisas, que ironicamente continuava a limpar o vidro da chuva fina que caía. Ergueu o corpo ainda dolorido e foi até ele. Hélio continuava lá sem se mexer. Tentou reanimá-lo, mas percebeu o inevitável.Foi levada ao hospital para curativos leves. Algumas escoriações nos joelhos e na testa.Voltou para casa. O vestíbulo estava cheio de pessoas. Foi até o quar-to pegar um xale, no qual se enrolou, encolhendo-se no canto da sala. Estavam todos a esperá-la para seguirem com o féretro ao cemité-rio municipal. Seguiu sem entender, como num pesadelo sem fim.A chácara foi seu último refúgio, para fugir dos curiosos. Os dias seguiam monótonos, vazios. Andava pelos cômodos da casa re-cém-terminada. Parou diante do espelho antigo que herdara da mãe e observou sua silhueta magra e abatida. Ouviu a chegada do

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carro, ainda no quarto de vestir. Seguiu para a porta, sem ânimo.Ele falava sem parar até que ela finalmente entendeu a intenção de seu interlocutor. Pretendia adquirir a chácara, já que soubera que ela estava sem condições de continuar o trabalho do marido e teria que vendê-la de qualquer forma.Ela olhou-o inexpressiva e perguntou numa voz monocórdia quanto ele pretendia pagar. Ouviu o valor sem, contudo, ter condições de ava-liar sua correção. Concordou com o preço. Ele saiu da casa, vitorioso.Aquela seria a última noite a ser passada na cháca-ra. A propriedade seria entregue no dia seguinte ao Dr. Ro-sauro, e ela voltaria a viver em sua casa na cidade.Sentou-se na varanda e olhou nostálgica para o bosque, suas árvores pintadas de branco até o meio. Lá embaixo o riacho em seu murmurar contínuo, indo despejar suas águas na pequena cachoeira. Ainda es-tava sentada na varanda quando ouviu o relógio dar quatro badaladas na madrugada.A chuva começou a cair em pingos grossos, levantando o cheiro de terra. O tempo refrescou. Ela apertou a manta à volta do corpo e se encolheu na rede. Ouviu o pio de uma coruja, talvez se escondendo da chuva. Pendeu a cabeça e dormiu suavemente, embalada pelo som da natureza.

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A Tempestade

Lá fora o vento virou e o tempo esfriou, trazendo um céu cinzen-to e brumoso. Alexandre Nogueira Ramos revirava na cama. Cul-pou a indigestão pela sua insônia. Resolveu sair para a rua repleta de gente. Pessoas aparentemente indiferentes à sua passagem, mas ele tinha certeza que dentre elas estariam os homens que o perse-guiam. A qualquer instante eles poderiam agarrá-lo, empurrando-o para uma viela e retirar dele todas as informações que não podia dar.Aquilo se tornara uma constante. Cada vez que deitava sabia que iria acordar encharcado em suor, com o coração batendo descompassa-damente e a respiração entrecortada. Era o terror de viver naquele suspense. Sentou-se na cama, pegou o maço de cigarros automatica-mente e acendeu um. Olhou o quarto demoradamente e a ca-beça começou a latejar alucinadamente. Amassou o cigarro no cinzeiro e foi até o banheiro em busca de um comprimido.Quando a dor cedeu avaliou a situação com clareza. Admitiu que havia sido inconsciente ao atender aquele pedido de Rodrigo. Qual era a importância de Rodrigo Steinbrock ser seu colega de escri-tório de advocacia, se não podia tirá-lo daquela situação escusa? Recordava um tempo bom em que tudo parecia passar lenta e aca-lentadamente. Na época da primavera tudo havia sido diferente. Os problemas desapareciam e se era mais feliz. Nas manhãs primaveris peticionar era uma chama acesa a todo instante. Subia as venezianas e via o asfalto secar, sob o sol cálido, após as chuvas. Por que havia chegado o inverno? Frio e duro daquela forma? Uma tempestade fora e dentro dele?Decidiu descer e comprar a edição matutina do jornal da cidade. A ex-pressão de cansaço ainda estava estampada no rosto. Virou a esquina e entrou na banca de revistas. Olhou ao derredor e o medo diminuiu. A cidade dormia. Raros transeuntes passavam por ali e ninguém o observava como se fosse abordá-lo. Os pingos da chuva tamborila-18

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vam sobre seu guarda-chuva, a capa mal o resguardava do temporal. Apressou o passo.Ele sabia o quanto tinha sido prudente e como as coisas haviam corri-do mal, mesmo assim. Dedicara seu tempo ao seu trabalho e acredita-va na ética que um colega deve ter com o outro, mas jamais imaginou que Rodrigo pudesse colocá-lo numa situação incerta e desonesta. Ainda bem que sua mulher havia entendido a situação e aceitado via-jar para o interior do estado e ficar na companhia dos pais. Até que aquele caso se resolvesse era o melhor a fazer. Ela havia chorado, sim, lembrava-se agora, mais por ele do que pelo dinheiro que iam perder ao ter de se afastar do escritório de advocacia. Ele havia sido estúpido o suficiente para entrar naquela canoa furada, mas agora não era hora de lamúrias e sim de soluções. Tudo vinha como parte da luta contra a pobreza que ambos enfrentaram quando crianças. É um sentimento que nunca se vence. Carrega-se pela vida. Os dois não admitiam isso com clareza, antes do fato. Pensavam ser superiores às outras pesso-as, porque haviam vencido aqueles tempos duros e transposto o portal da infelicidade financeira. Agora aqueles conceitos haviam se ba-nalizado completamente. Era o momento de defender sua honradez.Parecia que ao deixá-la na rodoviária, para a volta à pequena cidade interiorana, retornavam à parte mais triste de suas vidas. Era cedo ainda e caminharam, enroscados nas capas de chuva, inclusive, cada qual puxando os capuzes sobre os rostos, para não serem reconheci-dos. Ela voltava para o ambiente pardacento da meia-água de ma-deira caiada, à beira do rio Tibagi, no município de Telêmaco Borba. Ele continuaria em Curitiba, porém não se sentia o vitorioso de antes. Era como se houvesse se afastado do centro do palco teatral e entrado novamente no picadeiro, na fantasia de palhaço. Triste ser que sorri de sua própria desgraça.Mal haviam ganhado uma bolada com aquela causa e Rodrigo os envolvera num caso de tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. Não sabiam que a empresa que vinham defendendo era mera fachada para lavar dinheiro sujo. Como explicar para a polícia que um ad-vogado tinha sido envolvido e não prestara atenção em detalhes tão claros daquela situação. Eram sócios de Rodrigo, mas não se preo-

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cuparam em acompanhar suas causas. Apenas aceitavam a procura-ção e deixavam o caso sob a responsabilidade do outro. A ambição os cegara. Nenhum dos dois foi capaz de usar o intelecto prepara-do para o raciocínio jurídico. Era tudo tão óbvio, bastava que les-sem os documentos arquivados no escritório. Preferiram a ingenui-dade como parceira. Agora ele questionava a inteligência de ambos.Precisava decidir que caminho tomar. Procurar a polícia e confessar sua total estreiteza de raciocínio, provando com os documentos que guar-dava naquela pasta, e correr o risco de ser desacreditado, ou enfrentar os miseráveis que o haviam envolvido e fazer conluio com eles. A se-gunda hipótese era fatal. Faria dele e de sua mulher tão ou mais pérfi-dos do que aquela gente. A primeira hipótese era o risco de ser preso e desacreditado. Mas ainda assim talvez o único caminho a ser encetado.Caminhou de volta ao apartamento. Foi abordado na porta do prédio. Imaginou ser um dos “clientes”. Tarde demais, percebeu que era policial.- Doutor! Bom dia. Sou o policial Neto e gostaria de solicitar uma aju-da sua, num caso que estamos estudando há algum tempo. – Olhou o policial e decidiu escutar tudo.Ficou sabendo que eles queriam sua ajuda naquele caso, apesar de ele também ser procurador dos denunciados. Precisavam de alguém que lhes desse mais subsídios. Perguntaram-lhe se não preferia ferir a ética profissional a ferir a Justiça.Suspirou aliviado. Era o caminho que lhe restava.

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Fuga

O mais encantador nele é que sua simples presença fazia to-dos, homens e mulheres, se sentirem mais atraentes e vivos, quando o normal seria que se considerassem incomodados.Susana suspirou. Sentia-se desajeitada ao comparar sua vivência com a daquele rapaz de vinte e oito anos. Sua vida parecia-lhe insípida e sem cor. Tal como Joana, sua filha, não se esforçava para impressio-nar o visitante, como faziam os demais. Susana via-se com um jeito decidido, eficiente e objetivo que, por implicação, repudiava as fu-tilidades, muito embora apreciasse imensamente o senso de humor.Olhar e ouvir aquele homem era como viajar num mar de conhe-cimentos e verdades insondáveis novas para todos os ouvintes.Começou a sentir a garganta apertada e os olhos marejados de lágri-mas. Quebrou o clima sutil com um:- Vou fazer café para todos.À sua saída olhos e atenções continuaram voltados ao narrador. O sotaque arrastado dava-lhe um charme especial.Susana não era vaidosa ou arrogante. De qualquer modo nunca se sentira à vontade para chorar diante de estranhos, mesmo que os ou-vidos lhe trouxessem imagens doloridas.Ao retornar à sala, inclinou-se para frente, enquanto pegava o bule de prata com o café ao gosto de Almeida. Um gracioso serviço de prata Sheffield, o favorito dela, e finíssimas xícaras de porcelana inglesa, com uma pequena bombonière com alguns biscoitos amanteigados, feitos por sua sogra, arrumados com capricho sobre um guardanapo de linho bordado.Sentia-se desajeitada servindo pessoas que pegavam as xícaras sem prestarem atenção ao gesto.Percebeu naquele momento que havia perdido muito da narrativa, mas agora era inútil pensar no caso. Seu gesto de fuga diante da

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emoção excluíra-lhe os fatos. Balançou a cabeça num gesto enérgico, como a retirar o pensamento impertinente, e continuou a servir o café.Omar levantou-se. Estava tarde e precisava voltar ao hotel, onde se instalara desde a chegada a Foz de Iguaçu. Observou o homem de cabelo escuro e feições queimadas de sol. Os olhos penetrantes olharam-na e com uma inclinação de cabeça, num cumprimento, tentaram um misto de sorriso.- Agradeço sua gentileza Da. Susana e desculpe o traba-lho. – Comentou à guisa de despedida, olhando de relan-ce a bandeja disposta sobre a mesa e as xícaras espalhadas.- Trabalho algum. Foi um prazer e lembre-se que a casa é sua.Madalena olhou a mãe com carinho. Havia um agradecimento mudo naquele olhar. Era estranho para Susana pensar que a filha pudesse estar apaixonada por um homem com costumes e vivências tão diver-sos dos deles. Enfim... Balançou os ombros, num gesto de desalento. Seu pensamento voltou-se para quando conheceu Almeida. Tam-bém ele tinha os cabelos escuros naquele tempo, as feições eram menos fortes, bem verdade. Os olhos miúdos tinham sempre um misto de ingenuidade e doçura. Foram felizes por anos. Agora ele se dedicava inteiramente a fabriqueta de camisetas, após a aposen-tadoria do serviço público, até altas horas da noite. Vez por outra reclamava do governo, por causa dos empréstimos que estavam se tornando impagáveis pelos juros escorchantes. Tinham as duas fi-lhas moças, prontas para o casamento e muito diferentes entre si. Madalena independente, autoconfiante e competente, além de muito bonita. Contrariamente Joana nunca se sentira com-petente, não tinha confiança em si mesma e certamente não era independente. Não se podia dizer que fosse feia, mas era de uma beleza tão sem cor que desaparecia ao lado da irmã.De vez em quando ainda esperava que Almeida a surpreendesse com algum gesto apaixonado, qualquer sentimento mais ardente, em que ordem fosse. Tudo seria melhor que aquele vazio. Os ecos dos anos da juventude não são facilmente aquietados, apesar de já se es-tar na casa dos cinqüenta. Não se recordava quando aquilo tudo se amornara e continuava a querer de Almeida algum arroubo que lhe 22

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trouxesse ânimo, mas nada disso acontecia e a vida a envelhecia. Certo dia Omar chegou com o pai. Também ele viera do Iraque an-tes mesmo da primeira guerra dos Estados Unidos contra seu país de origem. Estava ali para oficializar o noivado do filho com Madalena. Os olhos tão penetrantes quanto os do filho, os cabelos com alguns fios brancos e a pele morena já lhe denotavam a idade, porém con-tinuava a manter as feições delineadas e firmes, que lhe marcavam a beleza da raça. Mantinha o bigode bem aparado e nada nele de-monstrava a dor que havia passado alguns anos atrás, quando sou-bera do falecimento da esposa e do filho mais novo, após um ataque de artilharia aérea americana. Somente quando a conversa girou so-bre o assunto as lágrimas correram soltas por aqueles olhos escuros.Novamente Susana se esquivou de ouvir relatos sobre fatos dolo-rosos. Saiu da sala, à busca do café, sabendo que ficaria alheia aos detalhes. Não podia evitar. Nem mesmo à época da última guer-ra conseguia manter-se diante do televisor. Aquilo tudo lhe pa-recia tão distante de sua realidade. Preferia alienar-se às dores da-quele povo. Era uma forma de se proteger dos desalentos que não podia evitar. Agora eles pareciam teimar em adentrar ao seu am-biente familiar, através das narrativas do futuro genro e do pai dele.O café jazia frio e insosso dentro das xícaras. Pensou que poderia se permitir um pedaço de torta. Ergueu os olhos para observar as fisio-nomias que continuavam voltadas para o novo narrador e, como quem rouba, serviu-se.Dois meses se passaram e eles continuavam a freqüentar-lhe a casa. Madalena se preparava para o casamento e já se engajara na empresa de comércio exterior do futuro sogro. Pelo que Susana pudera depre-ender de conversas esparsas, faziam exportação de sapatos para vários países da Europa.Seu pensamento andava tumultuado com os preparativos de últi-ma hora para o casamento da filha. Enquanto caminhava pelas ruas comprando pequenos detalhes, resolveu descansar os pés toman-do um chá na confeitaria do hotel. O prédio de construção clássica fazia esquina entre as duas ruas. Observou o interior por entre as cortinas que recobriam as janelas. Entrou. Estava sentada e já ha-

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via feito o pedido ao garçom, quando o viu. Ele atravessou a sala em passos largos e veio ao seu encontro. Os olhos penetrantes pare-ciam invadi-la. Educadamente pediu licença para sentar-se à mesa.Após cumprimentá-la e perguntar pela família convidou com a maior naturalidade:- Não quer subir ao meu apartamento? Podemos tomar o chá mais tran-qüilamente.- Talvez seja uma inconveniência...- Inconveniência a sogra de meu filho visitar-me em minha casa? Ab-solutamente. Não vejo qualquer inconveniência nisso. Depois moro com Omar. Ele não está no momento porque foi até o escritório, porém não vejo qualquer motivo que a impeça de visitar-me.Ela mantinha os olhos pregados na toalha da mesa, suas mãos foram primeiro às faces afogueadas, num gesto desesperado para acalmar-lhes a vermelhidão, então vagamente procurou o casaco nas costas da cadeira.Ele levantou-se solícito e ajudou-a a vesti-lo. Chamou o garçom e dis-se que a senhora iria tomar o chá em seu apartamento.Subiram. Ela entrou e ele ajudou-a a desvestir o casaco.O garçom chegou com o chá, biscoitos e torradas. Serviu-os e retirou-se discretamente.Ele falava animadamente sobre o casamento dos filhos até que em certo momento tocou-lhe a mão direita num gesto delicado. Ela estremeceu e ele sentiu sua emoção. Olhou-a profundamente. Levantou-se, sem largar-lhe a mão, estreitou-a nos braços.Os lábios se procuraram sôfregos. Não disseram palavra. Os corpos se colaram e sentiram um calor intenso abrasá-los. As mãos dele corriam pelo corpo dela sentindo-lhe as curvas. Os seios intumescidos arfavam num delírio de há muito esquecido. Perdeu-se no redemoinho das sen-sações.Ainda sentia os braços dele molemente envolvendo seu corpo desnu-do. Ficou na expectativa, sentindo-se frágil como o cristal, como se por dentro pudesse estilhaçar-se em miríades de pedacinhos. Embora estática diante do acontecido, tinha a impressão de seguir um túnel es-curo onde, há milhares de quilômetros, pudesse adivinhar um filete de 24

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luz que se ampliaria e a envolveria, aquecendo-lhe a alma vazia. Mas não podia ficar ali, não depois do acontecido. Vestiu-se lentamente en-quanto ele ressonava e saiu do quarto.Em casa sentiu-se segura. O perigo, por ora, havia passado.

Não ousou olhar ao redor e localizá-lo. Vê-lo no salão apinhado de gente, enquanto se desenrolava o casamento ao estilo mulçumano, aceito por Madalena, a enchia de temores. Naqueles últimos dias ti-nham se evitado. Não mais reuniões de finais de tarde em sua casa.Depois de todo o cerimonial religioso passaram aos jardins onde tudo estava ornamentado para um baile convencional.O som da orquestra lembrou-a do local em que estava. Enxugou os olhos com cuidado por causa do rímel, depois bebeu um gole do cham-panhe que lhe haviam enchido a taça. Sentiu o líquido borbulhante descer-lhe pela garganta.Havia uma coisa da qual podia se orgulhar: tinha mantido as apa-rências e Almeida não suspeitara em minuto algum do turbilhão que envolvia seu ser. Não era justo com o marido, nem com as filhas.Relembrou de tantos momentos em que se desesperava ven-do os momentos e anos que nunca mais tornaria a viver com Almeida se desintegrarem em nada. Agora aquilo lhe pare-cia tão distante. Uma ânsia feroz de vida lhe tomava o ser. Era-lhe quase impossível deter aquela torrente de desejo insaciado.Quando Mansur a fitou com aquele brilho abrasador nos olhos ficou-lhe impossível discernir tudo o que ele estava sentindo. Se fosse outro homem Susana afirmaria que era desejo físico, puro e simples. Mas ele... Não sabia. Nem queria saber.A festa de casamento durou “anos” para terminar.Quando se viu só no quarto, ouvindo o marido elogiá-la por sua habili-dade na decoração e escolha de tudo, sua vida pareceu pálida e cinzenta.Com um pequeno suspiro recostou no travesseiro e percebeu que sem-pre fugira da realidade. Sua vida sempre fora um imenso deserto, or-ganizado sim, mas um deserto, sem ninguém com quem compartilhar opiniões ou sentimentos. Não atinava desde quando isso começara a

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acontecer. Ela e Almeida jantavam fora inúmeras vezes em reuniões de amigos que acabavam em conotação comercial. Era importante que ela o acompanhasse. O casal perfeito. Outras vezes as reuniões eram feitas em sua casa. Uma silenciosa conspiração para evitar ficarem sozinhos. O dia seguinte amanheceu brusco. Com toda força Susa-na se negou saborear o desjejum que Maria servia com tan-to apreço. Afastou o pão e a manteiga em penitência aos exces-sos da noite anterior. Poderia não ter nunca seios pequenos ou quadris estreitos, mas ao menos não se sentiria gorducha, nunca mais.Desde aquele dia vinha mantendo alimentação mais saudável e cui-dava da aparência. Um calafrio percorreu-lhe a espinha. Não enten-dia porque tantos cuidados. Almeida sequer a olhava e quando man-tinham relação o faziam sob os lençóis. Era algo mecânico como o desempenho de uma função para ela e uma necessidade física para ele.Ultimamente Almeida vinha reclamando mais amiúde de noites in-sones. Eram as dívidas que se acumulavam. Susana o aconselhava vender a fabriqueta e viverem apenas de sua aposentadoria. Ele re-torquia sempre sobre a impossibilidade de manterem aquele pa-drão com a miséria que recebia do governo. Aquilo se tornara um círculo vicioso. Agora nem mais a procurava. Tornara-se assexuado.Dois anos após o casamento de Madalena, Almeida teve o derrame. Susana chamou a filha e o genro e eles providenciaram o pedido de fa-lência da fabriqueta e organizaram um cronograma para o pagamento das dívidas.Três meses depois ele enfartou. Foi para cirurgia e não conseguiu su-perar o pós-operatório.Susana andava como um fantasma naquela casa. Madalena, Omar e Mansur haviam se mudado para São Paulo, inclusive levando a sede das empresas para aquela capital. Joana transferira-se para Curitiba, decidindo estudar arquitetura.Como cinzas ao vento seu casamento desaparecera. Fazia grande esfor-ço diante das pessoas. Ninguém adivinharia que ela sentia alívio pelo término do casamento, mas a sensação de culpa a esmagava por dentro.Ela jogou a cabeça para trás, como a espantar os pensamen-tos que a perseguiam. Decidiu sair. Vestiu-se com esmero. Mui-26

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tas vezes se desleixava, outras abusava da elegância. Via o olhar das pessoas pesarosas pela sua batalha interior. Supunham dentro dela uma viúva sofredora. Que importava o que pensavam. Vivia como achava melhor. Hoje desejava estar elegante e assim o faria.Saiu sem rumo certo. Passeou pelas ruas a pé. Parou defronte ao hotel. Olhou a confeitaria. Estava cheia de gente. Decidiu entrar.O garçom se aproximou. Fez o pedido.Novamente o garçom veio até ela. A visão de seu nome – Susana Sou-za Almeida – escrito naquele bilhete a assustou. Olhos pregados na bandeja segura pela mão enluvada à espera de uma reação. Passou nervosamente a mão pelos cabelos, num gesto característico, então vagamente correu os olhos e o encontrou.Por fim, pegou o envelope e leu: “Posso me sentar à sua mesa?”Levantou os olhos para o garçom e respondeu:- Por favor, diga ao cavalheiro que sim.- Obrigado por me receber. – disse ele, sentando-se em frente a ela.Depois fez sinal ao garçom e pediu que ele levasse tudo para o seu apartamento. Naturalmente levantou, tomou a mão dela e a levou do-cemente para o elevador. Ela o seguia maquinalmente sem nada dizer. Aliás, não sabia o que dizer.Ele esperou que o garçom arrumasse a mesa e saísse. Voltou-se para ela e carinhosamente a puxou para si. Beijou-a longamente. Ela sentiu novamente aqueles calafrios e a quentura entre as pernas, para então se perder no redemoinho das sensações que as mãos e o calor do corpo dele lhe causavam.Acordou e recordou aquele outro dia a três anos passados. Tentou le-vantar e fugir. Ele gemeu docemente e envolveu seu corpo com uma das pernas, prendendo-a. Ela deixou-se ficar. Não podia mesmo fugir.

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Mente da fome

A tarde chegou de mansinho. O sol já se punha no horizonte. So-mente eu continuava naquela caminhada. À medida que a tar-de avançava e a noite enegrecia o céu, ficava mais inquieta. An-dava sem rumo agarrada àquele breviário. Minha vida era me apegar a ele. Aquilo se tornara uma defesa. Sair para a rua buscan-do, sem saber para onde. Depois voltava para casa decepcionada.Encostada numa escada, entre trapos malcheirosos, estirei-me. Dormi a sono solto. A Candelária badalou seis horas e perce-bi pessoas subirem as escadas, sem se importarem com meus tra-pos. Lá no fundo o espírito se confrangeu diante da indiferença. Levantei aquelas vestes e caminhei rápida. Sair dali era preciso. O dia claro de primavera deu-me forças. O sol lavava meu rosto e en-contrei a doce fragrância de flores, vendidas logo na esquina da igre-ja. Era mais um desconhecido que seguia pela cidade, na tentativa de sobreviver. A vista se turvou e as lágrimas desceram insistentes. “Será que adianta continuar?”, dizia a mim mesma. Tinha per-dido a conta dos dias de insistência em encontrar empre-go. Tantas esperanças acalentadas e desfeitas, novas tentati-vas que sempre davam em nada, tudo isso me aniquilava o ânimo. Certa vez apresentara-me como doméstica, mas cheguei tarde e, além do mais, não tinha outra vestimenta que não aquela e já cheirava mal. A senhora da residência me olhou com desdém e expulsou-me de sua casa. Apresentei-me outra vez numa lanchonete e o dono passava em revista suas possíveis funcionárias, apalpando os corpos de cada uma. Diante de mim passou reto, limitando-se a franzir o cenho e fechar o nariz com o polegar e o indicador. O homenzinho, olhar agudo, esticou o dedo em riste, num movimento que me fez sair dali num estado mi-serável. Era meia-noite. Tornei a voltar ao meu esconderijo noturno e joguei o corpo ossudo por sobre alguns jornais e os velhos trapos voltaram a recobrir meu corpo. Só acordei às nove horas naquele dia. O rumor dos 28

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carros e vozes embalaram meu espírito e senti certa alegria naquele coro matinal. Se ao menos eu pudesse ter um pouco de comida, naquele dia especial. A sensação de alegria subjugava meu ser. Incapaz de refrear meus sentimentos, cantarolei uma canção, que saiu do fundo de minha alma. Minha voz tinha um timbre agradável e percebi que alguns tran-seuntes jogaram algumas moedas junto aos meus pés. A alegria invadiu meu ser e deixei os dentes amarelos sobressaírem na boca murcha. Ali estava a minha comida do dia. Recolhi as moedas e comprei um sandu-íche de presunto e queijo. Manjar dos deuses para meu estômago vazio.Caminhei enfeitiçada pela possibilidade de cantar e conseguir sus-tento. A sede tomou conta de meu ser e aproximei-me do chafariz e bebi da água que jorrava farta. Um leve enjôo, mas segui adiante.Continuei a rodar, flanando sem me preocupar com coisa alguma. O dia estava claro e a manhã alegre me incitava passear aqui e ali com minha despreocupação, entre outros felizes mortais. Segui por uma rua lateral à avenida, onde nada tinha a fazer, e deixava as coisas cor-rerem leves. O céu estava claro, de um azul anil sem nuvens, e ne-nhuma sombra enegrecia minha alma naquele dia. Estendi meu corpo cansado sobre uma calçada e tirei um cochilo. Um sono sem sonhos.

***Caminhava sem rumo certo, deixando o tempo rodar, quando percebi uma senhora carregando um pacote com imensa dificuldade. Vendo-a arquejar de fadiga, aproximei-me para auxiliar. Ela assustou-se e se-guiu apressada. De repente a vi parar e voltar-se para mim. Observou-me longamente. Retornou com vagar, retirou o cabelo que me recobria parte do rosto e falou: “Marcela!”. Olhei-a sem entender. Ela tocou meu breviário e novamente aqueles olhos doces pousaram em meu rosto. Senti os braços dela envolverem meus ombros ossudos e me encaminha-rem para um carro. Era um belo carro que cheirava ainda melhor. Afinal aquilo começou a assustar-me. Tentei me defender e ela acariciou meu rosto, para que eu me acalmasse. “Não se recorda de mim?” pergun-tou com os olhos marejados. Observei aquele rosto e algo indefinível passou pela minha mente. “Não”. Sentia que pouco a pouco aquilo me destruía o bom humor, enfeando aquela bela e pura manhã. Ao chegar-mos perto da ladeira, que levava a uma imensa mansão, rebelei-me.

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Não me deixaria conduzir por uma estranha, através daquelas grades.Depois de alguns minutos, deparei-me com uma esplêndida constru-ção e segui amparada por aquela senhora, que sequer parecia sentir o cheiro que eu exalava.Tomei banho numa banheira de mármore, vesti roupas que ja-mais pude imaginar existir e desci as escadas, sentindo os odo-res que se desprendiam de algum lugar encantado. Meu estô-mago ensaiou alegria, que contive com medo de represálias.Fui recebida pela senhora e outros membros da família. Mostraram-me fotos de alguém que lembrava uma pessoa enterrada em minha mente. Fiz um esforço para recordar, mas cansada desisti. Depois do banquete, que me pesou no estômago sensível, levaram-me a uma cama perfumada e macia. Num canto da minha cabeça eu dizia “Estou sonhando e vou acordar em breve, melhor aproveitar o que puder”.

***Descendo as escadas, um flash passou pela minha mente e recordei algo que doeu profundamente. Tive ímpetos de sair dali novamente às ruas. Levantei os olhos e encontrei os dela. Suzana era o nome dela. Ela dizia ser minha mãe. Observei suas mãos e a imagem de uma garoti-nha sendo acariciada nos cabelos muito louros riscou minha memória.Era preciso acabar com aquilo. Saí rapidamente para o gramado. Corri alucinada pelo caminho entre as árvores e me deparei com uma casa encarapitada sobre uma delas. A lembrança explodiu em minha mente e comecei a chorar convulsivamente. Retornei em busca de compre-ensão.Detive-me diante dela, que esperava pacientemente a minha vol-ta. Os quadros pareciam correr diante de mim como um filme en-trecortado. A faculdade de Belas Artes. Os amigos. As drogas. A intransigência contra todos naquela casa e finalmente a fuga.Ela abriu os braços e eu me refugiei neles desesperadamente.

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Epistolário

Na primavera de 2001 ele descobriu que o amor crescia em seu ser, como acontece aos amantes daquela estação. Nada pare-cia aplacar aquele sentimento, nem mesmo seus encontros furti-vos com as esquálidas garotas da sociedade curitibana. Maria Edu-arda soubera, com sua inteligência arguta, envolvê-lo totalmente.Sob o fascínio daqueles longos cabelos negros e brilhantes, o intelecto sobressaía em faíscas de raciocínio rápido e culto. Os olhos o perce-biam em suas mínimas reações e devolvia-lhe através dos lábios a sa-bedoria de sua pequenez. Exatamente. Sentia-se diminuto diante dela.Seu sofrimento era maior ao perceber o completo absurdo de seus sentimentos. Em outras palavras, intuía quão tolo fora ao se deixar enredar por conceitos interessantes e inteligentes, se o coração não lhe respondia aos anseios. Mas ela realmen-te era um ser estranho dentro da sociedade em que perambulava.Somente na solidão de seu quarto, tarde da noite, conseguia escrever. No papel tornava-se o cavalheiro talentoso, que imaginava ser o obje-to dos sonhos dela. As respostas também partiam de sua mente e eram guardadas separadamente. No entanto, quando o dia amanhecia e a encontrava, a articulação das palavras, os gestos, tudo era desastroso. Os dias passavam e suas cartas noturnas se amontoavam, sem encon-trar eco na realidade diária. Esta correspondência solitária durou meses, gerando refrigério à alma angustiada de Fernando. Como todo amante atormentado, Fernando tornara-se visionário e desfrutava silenciosamente de sua amada nos segredos engendrados naquele epistolário. Sua felicidade tornava-se desmedida e o deixava assombrado quando relia aquelas cartas.Assim, um dia, reticente e impreciso, procurou um amigo. Precisava desabafar. Não se correspondia. Sofria apenas. Não mentiu, disse que mostrava seu segredo, porque era fruto de sua imaginação. Estava se

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tornando doentio. Não percebeu que o amigo ao ler os escritos não acreditou. Invejou-lhe a sorte, pois tudo estava descrito com riqueza de detalhes e Maria Eduarda era o sonho de todos eles. Depois, Renato, o amigo, era tido como o escritor da turma e nada do que escrevia se comparava com o que agora lia. A beleza, agonia e magia daquelas páginas faziam dele um poeta, que se mortificava e se encantava com sua felicida-de. Ninguém escrevia daquela forma sem ser verdadeiramente corres-pondido e nem razões para tão-só fantasias amorosas nos anos 2000. Fernando permitiu que Renato copiasse algumas linhas das cartas, para tirar frases de efeito aos seus poemas, depois de as ter lido com vagar. E não percebeu que Renato tentava captar sentimentos que imaginava serem de Maria Eduarda, para tirar temas às conversas do escritório, imaginando-se envolvê-la em suas próprias teias intelec-tuais. Não podia ouvir as conclusões de Renato: “O sortudo já teve o seu pedaço. Agora é minha vez de mostrar conhecer o temperamento e gostos de Maria Eduarda e fazê-la observar-me com mais atenção. Tenho certeza de que as cartas são verdadeiras e que por alguma ra-zão indecifrável Fernando está escondendo a verdade através de ter-giversações mentirosas. Preciso dar uma lição em Fernando e a úni-ca forma plausível é tomar-lhe o objeto de desejo – Maria Eduarda”.

Fernando chegou às portas da loucura e pensou em contar para Maria Eduarda o que se passava em seu íntimo. Lógico que não a deixa-ria jamais ter acesso ao seu epistolário, inclusive por suas discórdias internas. Aquela luta férrea que travava entre render-se à timidez ou continuar na tentativa de demonstrar mais inteligência na conversa-ção atiçava o fogo impiedoso da culpa interna. Até mesmo sua pro-fissão estava sendo atingida por aquele comportamento compulsivo.O escritório fervilhava naquele horário e ele sentia apenas vontade de ir para casa e escrever continuadamente em busca de respostas para seu desalento. “Fernando”, disse Maria Eduarda, enquanto ele so-fregamente se voltou, buscando um olhar de amorosa compreensão. Mas o olhar era duro e estava voltado para um problema a ser resol-32

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vido. “Aquele caso da partilha de bens já foi sanado? Vamos falar com a viúva, para que componha com seus enteados, ou deixaremos que eles procurem outro advogado fora do escritório?”. Fernando a olhou embevecido. “Pelo que percebo, continua com algum pro-blema indefinido e os assuntos do escritório parecem não atingi-lo”. Gostaria imensamente de retorqui-la, explicar seus sentimentos, fa-zer um comentário inteligente sobre aquele caso, mas ela o subjuga-va e suas vontade e inteligência pareciam diluir diante daquele olhar.Voltou para casa naquele dia e exorcizou seus demônios, escrevendo várias cartas cada vez mais apaixonadas, com respostas que o satis-faziam. Era a maneira que encontrava para manter a mente sã. Se é que havia algo de saudável naquele modo de viver. Até mesmo Re-nato se permitira fugir de suas obsessões e não mais lera qualquer coisa que lhe apresentava. Aliás, ele andava esquivo, desde que sua amizade com Maria Eduarda se estreitara. Agora outra coisa vaga-va pela mente de Fernando. A possibilidade de Renato contar sobre as cartas a Maria Eduarda. Aquilo espremia seu cérebro como um torniquete. Fernando tentava aniquilar dentro de si aquele pavor que crescia a cada dia. “Era óbvio que Renato não havia falado nada. Ela o teria abordado sobre aquilo, com sua sagacidade habitual”.Enfim, voltava-se com fúria para suas cartas, em busca da paz e do amor inatingíveis. Adentrava às portas da fantasia fresca, si-lenciosa e afável. Lá ficava horas a fio, depurando sua solidão.

Naquele inverno de 2002 chegou ao escritório enregelado, mas sua alma endureceu realmente quando percebeu a troca de sorrisos e olhares entre Renato e Maria Eduarda. O amigo sabia de seus senti-mentos por ela, no entanto ali estavam. Rodopiou e voltou para casa.Passou alguns dias errando pelas ruas da cidade sem sa-ber aonde ir. Deixou celular em casa, tornou-se incomunicável.Decidiu, finalmente, voltar para casa. A arma era uma atração irresistí-vel. Pegou-a. Acariciou o metal gelado. Soltou sobre a mesa, foi até o ar-mário, pegou o baú com seu epistolário e o abriu. Era como ter a presença dela ali. Lentamente pegou a arma, abriu a boca e atirou. Caiu no vácuo.Quando voltou a si não entendia exatamente o que acontecia ao seu

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redor. Não reconhecia nenhum daqueles rostos, somente o dela. Ma-ria Eduarda estava ali e o olhava demoradamente. As lágrimas caíam abundantes e ela acariciava lentamente o rosto dele. Não se recor-dava do que havia acontecido, mas era muito bom tê-la ao lado dele.Os dias corriam vagarosos. Ele foi aos poucos recordando e a cada vez que ela entrava ele voltava a se encolher. Ela percebeu o ges-to e começou a ler as cartas a ela dirigidas. “São lindas” falou, num sopro. “Só não precisava fazer aquilo”, complementou doce-mente. “Se não tinha coragem de me dizer, podia tê-las enviado”.Fernando estendeu a mão num gesto de agradecimento e ten-tou pronunciar alguma coisa, mas não conseguiu. A voz ago-ra realmente não saía. A morte o poupara, mas não à sua gar-ganta. Optou por olhá-la apenas, num pedido mudo de perdão.

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Rotina de ser

Quando o inverno chegou, mesmo de maneira estranha, como um outono brincalhão que espalha folhas pelo chão, ainda assim Rafae-la sentiu os ossos gelarem. Tudo estava tão recente, que nada podia aquecê-la. A coisa que mais estraga a vida de alguém é pessoas sem limites. Daquelas que invadem sua vida sem pedir licença e tomam conta de seu tempo e de sua cabeça, com seus problemas pessoais.Naquela manhã brumosa, de um inverno sem frio, ela voltou a es-crever bem cedo, enquanto o marido dormia. Abriu as janelas que davam para o verde do jardim e via a cerração que se forma-ra ir baixando lentamente, após a chuva fina da noite, enquanto o sol apontava tímido. Os pingos restantes sobre as folhas iam se-cando vagarosamente e também as fachadas dos apartamentos que davam frente à velha casa de família, onde teimava em ficar.Olhou a rua e os transeuntes passavam rápido, em direção ao tra-balho cotidiano. Tudo parecia correr célere fora de sua vida. A monotonia e a rotina pareciam ser apenas suas companhei-ras. Podia ouvir sua respiração enquanto teclava. A casa se man-tinha quieta naquele horário. Quando o velho relógio, herdado da mãe, badalou oito horas, percebeu os movimentos de Clara den-tro da cozinha. Tudo como ontem e anteontem, e antes, e antes...Decidiu abandonar o computador por algum tempo e solicitar o desje-jum. Sabia que Fernando somente acordaria lá pelas dez horas da ma-nhã. Isso havia virado rotina, mas sacudiu a cabeça e afastou o pensa-mento doído.Pegou o jornal jogado sobre a mesa da sala, mais uma rotina mantida e folheou. Notícias de política, economia... O Brasil continuava a se debater em seus problemas de sempre.

***Virou a página do livro, sem perceber. Nada havia sido apreendido.

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Olhou o computador, absorta, e sentiu novamente a dor fina da frus-tração. “Maturidade é um tecido que se vai moldando durante a vida, conforme as circunstâncias se delineiam na existência de cada um”. Não, ela não queria ser madura, nem moldar nada conforme aquela circunstância, ela queria mudá-la completamente. Desejava um mi-lagre que solucionasse tudo e a alegria escolhesse a sua existência. Não queria aquela trama enganosa para si. “Escolhemos nosso rotei-ro e carregamos na bagagem quando aqui aportamos”, era a voz da mãe soando em seu íntimo. Novamente seduziu-a a idéia do milagre. Não podia ter escolhido aquele roteiro, porque não o compreendia.Voltou à leitura e agora conseguiu compreender o sentido do ro-mance. Era tudo tão tranqüilo, como gostaria que fosse sua vida. Os altos e baixos do enredo prendiam a sua atenção, e atesta-va que nem uma ficção necessita de tanto aborrecimento e con-fusão, para ser interessante. Não que achasse sua vida interessan-te. Nem mesmo no início do casamento a achara. Agora então... Foi até o quarto e Fernando continuava a ressonar como se a vida fosse dormir. Isso a irritou sobremaneira. Lembrou da noite anterior e ainda sentiu o tapa no rosto. O silêncio subseqüente e a submissão. A per-sonalidade esmagada desde o início fazia-na sonhar com uma saída, um milagre. Não queria se comprometer diante de todos os familiares. Desejava ardentemente que ele tomasse a atitude esperada. Seria tão mais simples. Sentiu-se uma covarde, como, aliás, só acontecia em sua vida. Naquele jogo de poder do seu casamento ele a tiranizava e ela abdicava das coisas.Num ímpeto o acordou com um safanão. Ele levantou espantado e gri-tou com ela. Mas ela percebeu o brilho de medo nos olhos dele. “Que-ro que saia da minha vida”, se ouviu falando, num tom peremptório, que não admitia réplicas. Ele tentou dissuadi-la. Pela primeira vez percebeu a súplica, mais do que a manipulação tirânica. Continuou naquele caminho e encostou a mão na cadeira, como se fosse arma. Já havia dado a largada, não sabia retroceder. Ele não reagiu violen-tamente, apenas contestou, chorou e ela sentiu-se, pela primeira vez a vencedora. O medo desapareceu dando lugar a adrenalina.

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Ele levantou-se, agora totalmente, pegou uma valise, juntou algumas peças de roupa as arrumou lentamente. Olhou-a como se a visse pela primeira vez. Fez menção de aproximar-se. Ela agarrou a cadeira com força e ele retrocedeu. Nem mesmo o medo a impedia. O sabor de se conhecer e se gostar gritava forte.Viu-o sair e teve certeza de que era para sempre. Estava livre para viver, porque aprendera a reagir. Suspirou fundo e fechou a porta da-quele pedaço ruim de sua vida.

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O lançamento

Antonio ficou em silêncio. E o silêncio se estendeu a Roberto, como se dissesse: “Acabou”.“Há várias coisas em sua história”, disse Roberto, quebrando aquele mutismo constrangedor, “que não me convencem”. O vendedor for-mulou algumas acusações fantasiosas ao estilista que se compromete-ra com o desfile, mas afinal isso eram apenas elucubrações defensivas, diante de sua impotência em reconstruir o pacto que haviam feito.“Ele se comprometeu a pagar uma parte da festa!”“Porém, se recusou no último momento e você ficou inteirado do fato. Convenceu-se de que devíamos continuar na tentativa de que tudo cor-resse a contento. Comprometeu-se a encontrar patrocinadores.”“Mas não encontrei”.“Simplesmente assim? Não encontrei. E como ficam as contas? Afinal somos sócios.”Durante uma hora ficaram naquela conversação, com Roberto tentan-do convencer Antonio que se esquivava malandramente de suas obri-gações.“Pode ser. Mas acredite em mim, nos meus quarenta anos de trabalho dentro da área de marketing e vendas assisti nestas festas de lançamen-to várias vezes as pessoas não assumindo seus compromissos. Sempre se deliciaram em vender ostentação aos convidados e tirar proveito de quem se permitia ser espoliado.”“Neste caso serei eu, porque jamais me aliaria a você nesse mote. Vou pagar todos os credores, sim. Não pretendo vender apenas ostenta-ção, mas um produto. E esse produto é a revista. Para ela continuar no mercado é necessário que todos que participaram deste ou daquel modo do projeto sejam pagos”. Antonio o observou longamente e de forma mansa e sem rodeios, respondeu: “Neste caso arque você com os prejuízos”. Roberto já estava exausto de tamanha desfaçatez. Nada parecia abalar aquele homem.38

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Despediram-se educadamente, porém Roberto sentia-se realmente fraudado. Arrasado, arrastou-se até a sala. Pegou um cálice de vinho do porto e tomou pequenos goles. Colocou um clássico de Debussy e ouviu, tentando controlar sua revolta.A porta de entrada fez o barulho da chave abrindo. Levantou-se e viu Regina entrando. Apesar do sempre otimismo diante das adversidades ela também aguardava algum desfecho daquela conversa.Atenta e perspicaz ouviu Roberto contar-lhe a história, em grandes linhas no início, depois mais detalhadamente e nenhum otimismo ou respeito pelo próximo pode resistir à escolha de tal tipo desclassifica-do, como se lhe mostrou a personalidade e o caráter de Antonio. Sabia que grande parte da culpa lhe cabia, porque a escolha daquele indi-víduo havia sido dela. Mais ainda, porque o sonho do lançamento da revista também lhe cabia e agora a conta recaía sobre o marido, além daquela sensação de frustração por terem confiado na pessoa errada.

“Os venenos e os antídotos seguem juntos... Claro que foram ingênu-os. Acreditaram realmente que um vendedor, com toda a malícia ad-quirida no mercado, fosse honrar compromissos não escritos”, falava Elizabeth com sua extensa experiência na área de relações humanas, “mas poderão usar o antídoto que é o fato de a revista já estar lançada, o mercado aberto e ter sido esplendidamente bem recebida. Ninguém sabe do acontecido nos bastidores”. Roberto remexeu-se na cadeira e lembrou que aquele indivíduo ainda constava do contrato da editora. “Ele não quer devolver sua parte na editora sem arcar com sua res-ponsabilidade nos débitos do lançamento e sem receber o “pedaço” que lhe cabe? Pois, ameace-o. Use os métodos dele. Diga-lhe que vai fechar, pagar os credores e explicar ao público, através da mídia tele-visionada e escrita, o acontecido. Rapidamente ele aceita assinar sua saída, sem cobrar um único níquel por sua parte. Depois, ele já deu seu golpezinho mesquinho e ganhou seu dinheiro com isso. Tenho certeza que a ele esse já é um negócio encerrado, está apenas blefando para ver se consegue um pouco mais de lucro. Aliás, já deve estar partin-

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do para novo golpe. Não vai querer que o público venha a ter conhe-cimento dos métodos que lhe garantem seus rendimentos”. Roberto a olhou incrédulo. “Acha realmente que isso funcionaria?” Beth era uma mulher vivida e de ingênua não podia ser chamada. Ela sabia que os amigos haviam confiado àquele homem sua empresa e o sucesso do lançamento da revista, mas que agora ele havia levado os lucros e deixado apenas prejuízos, porém com toda a certeza já estaria dando golpes no mercado e aquilo só iria prendê-lo a uma situação sem retor-no. “Proponha isso e tenho certeza de que ele aceitará”. Roberto suspirou e imaginou a nova sessão de despautérios que teria de ouvir ao fazer aquela proposição, mas agora não podia furtar-se a defender o que sobrara do patrimônio, nem expor seu nome diante do público que esperava a continuidade do produto.A festa havia sido um sucesso, com desfile de grifes da moda fashion, convidados da alta sociedade e a mídia fazendo cobertura do aconte-cimento. Tudo havia se desenrolado como num filme holywoodiano, e para completar a revista havia sido muito bem recebida. Novos anun-ciantes já os procuravam para expor seus produtos naquele veículo de comunicação, que o público aceitou com presteza. Não fossem os res-quícios que sobraram de tudo aquilo, era motivo para um champanhe em grande estilo.A cabeça de Roberto dava voltas sobre o assunto, não conseguia su-portar os excessos dos pensamentos negativistas. Ligou para Antonio e propôs sua saída da empresa, nas condições indicada por Elizabeth. Sua surpresa foi tal que não acreditava nos ouvidos. Antonio respon-deu simplesmente: “Está bem, aceito. Mesmo sabendo que você está fazendo um grande negócio, com a revista já lançada e bem recebida, após o meu trabalho. Faço apenas uma exigência: gostaria que isso fosse feito com a máxima urgência, porque já estou com novos negó-cios em andamento”.Roberto desligou o telefone abriu um champanhe, serviu-se do líquido dourado. Sorveu uma taça lentamente. Foi até a sala, olhou as duas mulheres e simplesmente tomou mais duas taças e serviu a elas. “Va-mos brindar ao lançamento da revista”.

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Intrigas

Entrei na sala e me deparei com o cadáver ali estendido. Roberto pa-recia um boneco largado no chão. O revólver displicentemente jogado ao lado do corpo. Instintivamente peguei a arma.Enquanto olhava aturdido aquela cena, rememorava o discurso do pre-sidente geral do Banco. A voz daquele homem, vindo diretamente de Nova York para a posse de Roberto, corroborava o prestígio de meu melhor amigo. A bem da verdade, algumas vaidades presentes ficaram feridas, principalmente Augusto. O português sofrível de Mr. Cole tecia elogios ao dinamismo dele, sua inteligência arguta e muito mais.Fitei rostos. A inveja e o rancor estampavam-se nalguns olhares. Sabia que a escalada meteórica de meu amigo causava mal estar, mas não imaginei tanto e tão claro. Desde sua separação da primeira mulher e o casamento com Regina cavou enorme abismo entre alguns “ami-gos” de suas relações dentro do Banco. Olhei a mulher dele entre os presentes. O sorriso largo e confiante parecia acalmá-lo. Ela era uma advogada respeitada dentro da Instituição, tida como uma profissional equilibrada e inteligente. A ruga funda na testa desapareceu, dando espaço à tranqüilidade e segurança peculiares a ele. Sabia não ser o momento para decepcioná-la. Afinal ela fora a mentora daquele sonho em que embarcou, vaidoso.Na verdade quem ajudara a mulher dele naquele feito fora Ana Maria. Ela era a melhor amiga de Regina e já sabia, de antemão, a pretensão em colocarem o vice-presidente da gestão anterior na presidência da filial brasileira. Inclusive Augusto já estava respondendo interinamen-te pelo cargo. Regina procurada por Ana Maria decidiu pela estratégia do combate. O vice-presidente de Mr. Cole, Arthur, precisava saber do estratagema de um subalterno com interesses em que Augusto ficasse

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no cargo. Afinal ele estava sendo lesado em sua competência. Sempre fora ele a escolher os presidentes das filiais do Banco em outros países. Ana Maria estava insegura em conversar com Arthur, depois do caso mantido com ele em Nova York. Regina soube influenciá-la de modo rápido e eficaz, antes que a amiga se recusasse terminantemente a aju-dá-la. Todos os contatos foram feitos e lá estava ele sendo empossado para a filial brasileira. Ainda estava nessas reminiscências quando alguém entrou na sala e saiu pelos corredores gritando.Não tive tempo de argumentar.Vieram os policiais. Perguntas, interrogatórios e por fim me acusaram de ter matado meu melhor amigo. Aquilo não combinava dentro da minha cabeça. Ele havia me escolhido para seu vice-presidente, apesar da aversão que meu nome causou em todos. Eu era o amigo mais pró-ximo do novo casal que formavam ele e Regina e parece que isso inco-modava a alguns. Será que alguém pretendia me incriminar? Discre-tamente preferi encostar aqueles pensamentos funestos que passaram pelo meu cérebro. Aquilo tudo seria controlado. Logo as explicações apareceriam. Um advogado conseguiria as provas necessárias para me livrar daquela imputação de homicídio.Fui afastado do cargo. O Banco pagava um salário mirrado aguardan-do solução do caso.Não podia recuar diante do inevitável. Contratei Dr. César Camargo Soares. Conseguiu me fazer responder o processo em liberdade.Minha vida virou um inferno. Era imprensa, fotógrafos, televisão. En-quanto tudo acontecia, eu tentava refazer alguns fatos. Lembrei do embate do divórcio dele com Lenise. Ela havia tentado todo tipo de chantagem junto aos filhos. Inclusive coletara aliados dentre os velhos amigos do Banco. Eu estava decidido a procurá-la. Talvez ela fosse o início daquele emaranhado. O ódio se instalara dentro dela, quando percebeu nada mais poder fazer além de assistir a felicidade do novo casal.Contei à Regina meu propósito. Ela descartou completamente essa possibilidade. Isso iria me complicar mais ainda.

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Novamente lá estava eu reconstruindo fatos. Rememorei quando Re-gina solicitou nova promoção para Ana Maria. Ela estava sendo pres-sionada pela amiga. Discutimos pela primeira vez, os três amigos. Fui contundente. Ana Maria não tinha condições, naquele momento, para nova promoção. Afinal Roberto delegara competência decisória a mim sobre a área de Ana Maria. Regina saiu derrotada. Isso, eu sa-bia, era um espinho na vaidade dela, no entanto não podia deixá-la administrar no lugar dele. Nossas relações pessoais também sofre-ram um abalo com aquele incidente. Já não havia o companheirismo de antes. Senti-me alijado dos projetos pessoais do casal. Depois os olhares estavam sempre voltados para mim e comecei a sentir uma ansiedade suprema. Semelhavam-se a vorazes leões no Coliseu de Roma, espreitando sua vítima. Minha concentração estava cada dia mais comprometida. Lia e relia papéis procurando encontrar armadi-lhas.Procurei Ana Maria e desabafei. Fui aconselhado por ela a ficar aler-ta. Eu tinha muitos desafetos dentro do Banco. Continuei a ver inimi-gos por todos os lados. Isso me deixava em frangalhos. Resolvi me controlar.Após aquela conversa começaram alguns rumores de desvio de di-nheiro dentro da empresa. Uma auditoria foi contratada para levantar dados e possíveis provas. Exatamente sobre aquilo iríamos conversar, Roberto e eu, naquele dia. Ele havia sido lacônico ao telefone. Disse apenas se tratar de remessas irregulares para o exterior em nome de um certo Larry Raven, para uma conta em Miami.No processo judicial agora instaurado o tal Larry Raven constava como uma fachada para uma conta pessoal minha.De uma hora para outra me vi privado de um padrão de vida adquiri-do a longos esforços e desacreditado por todos.Após os primeiros momentos de angústia sabia apenas que Dr. Cé-sar de Camargo Soares acreditava sobejamente na minha inocência e numa possível armação para destruir minha reputação. Sugeriu-me ir ao Banco coletar provas e ouvir testemunhos informais para compor minha defesa. De início refutei a idéia de me expor daquela forma.

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Posteriormente percebi não haver outra maneira de subsidiar o traba-lho de Dr. César, para o caso.Diante da porta do Banco desejei a beleza da vida tranqüila dos tem-pos de juventude. Sempre tive poucas ilusões quanto ao meu talento como administrador. Era organizado, sincero, enfático, persistente à obstinação, mas raramente carismático. Apesar disso não pude resis-tir ao convite de Roberto para ser seu vice-presidente. A vaidade às vezes nos enreda.Ia entrar quando percebi Lenise conversando com Augusto. Meus sentidos ficaram alertas quanto à possibilidade da ex-mulher de Ro-berto ter algum envolvimento naquele crime.Esgueirando-me passei pelo corredor e vi Ana Maria, subchefe da área de câmbio. Achei ser ela a única pessoa que pudesse esclarecer de onde estavam vindo as rajadas de tiro. Ela estava sentada à sua mesa mexendo em papéis. Nesse cargo tinha descoberto um lado organizado de seu caráter, que destoava comple-tamente do lado pessoal.Emocionalmente vivia uma balbúrdia desde sua separação do marido. Resolvi entrar na sala. Fui direto ao assunto. Perguntei-lhe se sabia quem poderia ter cometido o assassinato. Ela abriu um sorriso indeci-frável e disse somente. Eu!- Você? - perguntei, sem entender. Ana Maria confessou ter sido amante de Roberto. O ódio ao ser re-jeitada quando pediu a ele para se divorciar de Regina, ampliado pela minha negativa em sua promoção, detonaram o processo. Não conse-guindo nem uma coisa nem outra, resolveu tirá-lo do cargo e vingar-se tanto dele como de mim. Eu era o culpado perfeito. Meu estado de aflição e insegurança com as novas responsabilidades foram explo-rados. Seu cargo de subchefe de câmbio permitiu-lhe a inclusão de documentos suficientes para me incriminar. Aliciou pessoas ao seu novo intento e ainda instigou Arthur, seu antigo amante, à proposição do processo de investigação. Uma lógica tão banal e tão imoral! – pensei. Muito mais porque eu a auxiliei tolamente pegando a arma do crime.

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Saí e encontrei Regina. Olhei-a com uma interrogação no olhar. - Você ouviu?- O quê? - ela perguntou.Saí do Banco sem estímulo para falar com mais ninguém. Ana Maria era a única pessoa com quem eu pensava contar. Agora aquilo. Era mi-nha palavra contra a dela. Andei sem rumo por horas a fio.Ao chegar no escritório de Dr. César encontrei Regina conversando com ele.Olhou para mim com um ar cerebral e distante. Colocou sobre a escri-vaninha uma pequena fita cassete. Bancava a superior, porém pude ver um brilho diferente no seu olhar.Dr. César tinha um senso de humor e tempo para as pessoas. Colocou a fita e ouvimos a revelação. O fim da história, com Dr. César e Regina entabulando como resolve-riam a peça processual passou a ser detalhe insignificante. Aquilo não valia como confissão, juridicamente falando, mas havia o testemunho de Regina. Aquele material seria usado junto ao juiz e daí a Ana Maria fazer uma confissão em juízo era questão de estratégia. Havia um alívio em deixar momentaneamente para trás a minha ansiedade. Saí quase feliz daquele escritório. Respirei fundo o ar puro da noite de verão, en-quanto apreciava a lua imensa e redonda.

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Dedicatória

Esta antologia é dedicada a todo aquele que tem senso crítico de sua responsabilidade com o Meio Ambiente. Aos estudiosos da necessidade de se escrever e pu-blicar doravante apenas na forma digital.O livro impresso nos remete a várias lembranças e a sensação do concreto, que podemos manter, guar-dar, esconder, empilhar em nossas bibliotecas, mas custa ao planeta o corte de árvores. Mesmo haven-do reflorestamento, ainda ficam vestígios tóxicos deixados pela indústria papeleria, forçosamente despejados em nossos rios.Nossos peixes sofrem com isso, nossa vegetação prejudicada, nossas plantações sofrem com a to-xicidade do solo, banhado por esses rios e, con-sequentemente, nosso alimento, transformado em veneno, decorrente dessa infiltração danosa chega

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à nossa mesa.Esse efeito tende a piorar a cada dia e a cada árvore derrubada. A cada rolo de papel que sai da fábrica, o solo de nosso planeta é mais maltratado.As gerações futuras sofrerão imensamente com a nossa inconsequencia, se continuarmos neste passo.Sei que a indústria tem empregados e um lado so-cial a preservar, porém é um custo muito alto.O planeta depende, para sobreviver, de todo ato res-ponsável que pudermos doar. As gerações futuras dependem disso e podemos deixar nosso exemplo, seguindo por outros caminhos colocados às nossas mãos.

A autora

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