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Superando a ingenuidade: minha dívida a Guerreiro Ramos Fernando Guilherme Tenório* 1. Introdução "A teoria da organização. tal como tem prevalecido. é ingênua . .. Guerreiro Ramos Em 1967, quando o professor Alberto Guerreiro Ramos deixava o país para exilar-se nos EUA, tive um rápido encontro de despedida com ele, em sua sala, no antigo prédio da EBAP. A sala, um pequeno espaço quadrado junto ao término de uma bonita escada de madeira, parecia não ser suficiente para caber a grande quantidade de livros, o odor de bons charutos e a grandeza intelectual de seu ocu- pante. Ali, paternalmente, perguntou-me o que eu gostaria de estudar quando fos- se para a universidade. Respondi de imediato: sociologia. Rindo, o professor Guerreiro comentou: "Não faça isso, veja o que está acontecendo comigo". A resposta que dei nasceu muito mais da minha admiração por Guerreiro Ramos do que de alguma convicção a respeito de minha futura formação profis- sional. O professor Guerreiro era uma figura que impressionava qualquer pessoa, fosse pela sua maneira altiva de ser, fosse pela sua bagagem intelectual. Poste- riormente, não como estudante de sociologia mas de administração, tive oportu- nidade de estudar a obra de Alberto Guerreiro Ramos, estimulado, inicialmente, por ex-alunos seus, então meus professores: Antonio Carlos Ned, José Antonio Parente Cavalcante, Luiz Antonio Alves Soares e Wilson Pizza Jr. Quando do falecimento de Guerreiro Ramos, em 1982, organizei, juntamen- te com a professora Ana Maria Marquesini e o então mestrando, hoje professor da EBAP, Frederico Lustosa da Costa, um fórum em homenagem àquele que foi um dos maiores pensadores da sociologia brasileira e, com certeza, o brasileiro que desenvolveu um pensamento teórico original em administração. Justamente a partir da leitura e reflexão dos textos do socióLogo Guerreiro, senti-me na obrigação de rever meu "pensamento" sobre o significado da administração como área de conhecimento no âmbito das ciências sociais aplicadas. Qual não foi a minha surpresa ao encontrar, nas minhas leituras, os indicadores da inge- nuidade tão objetivamente apontados por Guerreiro Ramos no seu livro A nova * Coordenador do Programa de Estudos em Gestão Social, da EBAPIFGY. RAP RIO DE JANEIRO 31 (5):29-44, SET.lOUT. 1997

Tenório 1997 Superando a Ingenuidade Minha

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Tenório 1997 Superando a Ingenuidade Minh

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  • Superando a ingenuidade: minha dvida a Guerreiro Ramos Fernando Guilherme Tenrio*

    1. Introduo

    "A teoria da organizao. tal como tem prevalecido. ingnua . ..

    Guerreiro Ramos

    Em 1967, quando o professor Alberto Guerreiro Ramos deixava o pas para exilar-se nos EUA, tive um rpido encontro de despedida com ele, em sua sala, no antigo prdio da EBAP. A sala, um pequeno espao quadrado junto ao trmino de uma bonita escada de madeira, parecia no ser suficiente para caber a grande quantidade de livros, o odor de bons charutos e a grandeza intelectual de seu ocu-pante. Ali, paternalmente, perguntou-me o que eu gostaria de estudar quando fos-se para a universidade. Respondi de imediato: sociologia. Rindo, o professor Guerreiro comentou: "No faa isso, veja o que est acontecendo comigo".

    A resposta que dei nasceu muito mais da minha admirao por Guerreiro Ramos do que de alguma convico a respeito de minha futura formao profis-sional. O professor Guerreiro era uma figura que impressionava qualquer pessoa, fosse pela sua maneira altiva de ser, fosse pela sua bagagem intelectual. Poste-riormente, no como estudante de sociologia mas de administrao, tive oportu-nidade de estudar a obra de Alberto Guerreiro Ramos, estimulado, inicialmente, por ex-alunos seus, ento meus professores: Antonio Carlos Ned, Jos Antonio Parente Cavalcante, Luiz Antonio Alves Soares e Wilson Pizza Jr.

    Quando do falecimento de Guerreiro Ramos, em 1982, organizei, juntamen-te com a professora Ana Maria Marquesini e o ento mestrando, hoje professor da EBAP, Frederico Lustosa da Costa, um frum em homenagem quele que foi um dos maiores pensadores da sociologia brasileira e, com certeza, o brasileiro que desenvolveu um pensamento terico original em administrao. Justamente a partir da leitura e reflexo dos textos do sociLogo Guerreiro, senti-me na obrigao de rever meu "pensamento" sobre o significado da administrao como rea de conhecimento no mbito das cincias sociais aplicadas. Qual no foi a minha surpresa ao encontrar, nas minhas leituras, os indicadores da inge-nuidade to objetivamente apontados por Guerreiro Ramos no seu livro A nova

    * Coordenador do Programa de Estudos em Gesto Social, da EBAPIFGY.

    RAP RIO DE JANEIRO 31 (5):29-44, SET.lOUT. 1997

  • cincia das organizaes: uma reconceituao da riqueza das naes (Guerrei-ro Ramos, 1981).

    Assim, a temtica central deste texto-depoimento a identificao crtica de posies anteriormente assumidas quanto ao papel da administrao, como rea de conhecimento e prtica, e das teorias organizacionais, como ideologias desse saber analtico-emprico. Para tanto, este artigo desenvolvido em trs momen-tos. No primeiro, aponto aqueles textos, por mim elaborados, que se posiciona-vam ingenuamente quanto administrao e seus contedos terico-prticos. No segundo, identifico o referencial terico crtico, a partir de Guerreiro Ramos, que estimulou a ilustrao da minha ingenuidade. No terceiro, resumo aqueles textos que so uma tentativa de assumir uma outra posio, guerreira, frente ao pensa-mento administrativo contemporneo. I

    2. Ingenuidade

    Cinco foram os textos que, no perodo 1978-83, identificaram minha creduli-dade acrtica no pensamento administrativo. O primeiro deles foi um ensaio inti-tulado Teoria geraL da administrao: necessidade de seu estudo (Tenrio, 1978). Nele defendi a tese de que, para um bom desempenho organizacional, era indis-pensvel que os ocupantes de cargos gerenciais conhecessem as diferentes escolas ou teorias organizacionais em curso nos compndios de administrao. Ali afir-mava: "Normalmente, quando observamos ou tentamos explicar um fato adminis-trativo, somos levados a esquecer que ele possui uma explicao terica. Claro que esta explicao no est dita nos compndios nem ser encontrada pelo sim-ples relacionamento cronolgico dos fatos. Isto , o que estamos observando ou desejando explicar num determinado momento est muitas vezes disperso em diferentes enfoques tericos, que s podero ser identificados na medida em que estejamos familiarizados com a Teoria Geral da Administrao, que poderia ser conceituada como o conjunto de idias prescritivas ou explicativas dos fenmenos administrativos" (Tenrio, 1978:40).

    Mais tarde, quando da redao de "Lecturas bsicas sobre administracin y teora de sistemas", captulo I do livro Proyectos de desarrollo: planificacin, im-plementacin y controL (Tenrio, 1979) no s atribu grande importncia admi-nistrao como rea de conhecimento, como tambm afirmei que a teoria de sistemas, atravs de seu modelo ciberntico de orientao globalizante, seria ca-paz de explicar e prescrever o processo produtivo com mais clareza do que as abordagens que a antecederam. O texto foi iniciado da seguinte forma: "Os pro-blemas que existem no mundo so, antes de tudo, problemas humanos, porque

    J Esta idia foi originariamente motivada pelo professor Michel Thiollent, quando fui seu aluno, em 1995, na disciplina de anlise organizacional, no curso de engenharia da produo da Coppe/UFRJ.

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  • existem na medida em que o homem os percebe. E o homem que se defronta com uma situao problemtica deseja melhor compreend-Ia e classific-Ia, quer di-zer, observ-Ia desde os mais variados pontos de vista: educacional, social, eco-nmico, cientfico, tecnolgico etc.

    Essa anlise do problema, essa decomposio do todo em partes, facilita a determinao dos passos necessrios para encontrar a soluo. No obstante, necessrio sintetizar e integrar as solues parciais em uma soluo global ( ... ). Portanto, parece ser essencial buscar a otimizao do todo e no somente das par-tes consideradas de maneira isolada. Esta uma das preocupaes principais do mtodo sistmico" (Tenrio, 1979:29).

    Ainda no captulo I do citado livro, tambm descrevi a "administrao por ob-jetivos" (APO), apontando-a como a tecnologia gerencial mais importante daque-le momento: "( ... ) a APO tem por objetivo assegurar que todos os membros de uma organizao orientem-se em uma mesma direo e com o mximo de esforo. Portanto, para realizar este fim quem utiliza a Administrao por Objetivos preo-cupa-se em:

    - concentrar a ateno dos administradores nos resultados importantes;

    - proporcionar uma base para coordenar os planos da organizao;

    - estabelecer um vnculo de comunicao que v desde o executivo mais importante at a primeira linha de superviso e que funcione em ambos os sen-tidos;

    - permitir que os gerentes que vo executar o plano participem tambm de sua formulao;

    - estimular a identificao e satisfao das necessidades dos gerentes em mat-ria de desenvolvimento" (Tenrio, 1979: 108).

    Em seguida, com o artigo "Permanencia dei modelo weberiano" (Tenrio, 1981), a pretenso era divulgar o conceito de burocracia de forma no-pejorativa, como normalmente ocorre. A motivao do trabalho era ir de encontro ao slogan que pre-dominava na linguagem modernizante da poca: "vamos acabar com a burocracia", dito muito utilizado pelos programas governamentais de desburocratizao de en-to. Esse ensaio era concludo da seguinte maneira: "Tentou-se mostrar ( ... ) o quo 'ridculo' ( ... ) ficam aqueles autores, professores ou tcnicos que, divulgando ou exercitando o estudo da burocracia, deseducam leitores, estudantes ou clientes. De-seducam por no estarem aptos conceitualmente no que se refere ao fenmeno bu-rocrtico. Quando dizemos aptos conceitualmente, no no sentido de estudar o fenmeno burocrtico apenas pela tica weberiana. A nossa idia bsica a de que devemos estudar a burocracia e suas manifestaes, partindo das diferentes concep-es que a ela se reportam. Da porque iniciamos focalizando ( ... ) as perspectivas

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  • liberal e marxista. A preocupao de centrar em Max Weber foi somente a de, por aceitarmos seu modelo como referencial, darmos um carter mais cientfico ou im-parcial ao tema burocracia" (Tenrio, 1981 :232).

    Finalmente, ainda nesse perodo de fase ingnua, desenvolvi o artigo "Admi-nistracin versus planificacin" (Tenrio, 1983), que tinha como idia central en-fatizar a importncia do profissional de administrao no seu papel de agente modemizador da sociedade. Para justificar essa funo, formulei as seguintes per-guntas: "Como perseguir mudanas se os instrumentos de implantao dessas mudanas tambm devem mudar? Poderia ainda ser feita outra pergunta, aparen-temente contraditria com a anterior: antes de planejar deve o Estado melhorar o seu aparato burocrtico? A resposta seria afirmativa, j que uma boa estrutura bu-rocrtica agilizaria tanto a fase de diagnstico como a de execuo do que foi pla-nejado" (Tenrio, 1983:421).

    As passagens aqui retomadas revelam uma viso positivista da administrao como cincia social aplicada e uma certa alienao com relao ao carter ideol-gico das teorias organizacionais, fato que impedia sua anlise do ponto de vista das contradies scio-econmicas em que ela se insere.

    Inspirado em Guerreiro Ramos, observei no somente a simplicidade da lin-guagem utilizada nos textos anteriormente citados mas, principalmente, percep-es fundamentalmente acrticas:

    a) a compreenso da relao teoria-prtica, a partir das teorias organizacionais, era que a teoria, idealmente, deveria preceder a prtica, isto , limitava a ao administrativa ao pensamento administrativo;

    b) a importncia atribuda percepo do administrador em detrimento da ao do administrado, ou seja, restringia o processo produtivo predominantemente dimenso gerencial;

    c) o desenvolvimento scio-econmico do pas ou regio condicionado ao bom desempenho tcnico-organizacional, ou seja, limitando as aes da sociedade performance da tecnoburocracia.

    3. Referencial terico crtico

    A crtica do Guerreiro

    A identificao da percepo acrtica, ingnua, vai aparecer quando estudo, de forma mais sistemtica, a obra de Guerreiro Ramos (Soares, 1993). Nela trs livros foram fundamentais: Introduo crtica sociologia brasileira (Guerreiro Ramos, 1995), A reduo sociolgica: introduo ao estudo da razo sociolgica (Guerreiro Ramos, 1958) e notadamente o seu ltimo livro, A nova cincia das organizaes:

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  • UIrUl reconceituao da riqueza das naes (Guerreiro Ramos, 1981). O primeiro pa-rgrafo do livro estabelece a dimenso das provocaes que em mim suscitou: "A teoria da organizao, tal como tem prevalecido, ingnua. Assume esse carter por-que se baseia na racionalidade instrumental inerente cincia social dominante no Ocidente. Na realidade, at agora essa ingenuidade tem sido o fator fundamental de seu sucesso prtico. Todavia, cumpre reconhecer agora que esse sucesso tem sido unidimensional e, como ser mostrado, exerce um pacto desfigurador sobre a vida humana associada. No esta a primeira vez em que, em razo de consideraes te-ricas, se levado a condenar aquilo que funciona na vida social prtica. ( ... )

    Nessas circunstncias, a teoria da organizao, tal como hoje conhecida, menos convincente do que foi no passado e, mais ainda, toma-se pouco prtica e inoperante, na medida em que continua a se apoiar em pressupostos ingnuos" (Guerreiro Ramos, 1981: 1).

    Em seguida, no captulo 3, Guerreiro Ramos atribui, ao que ele denominou "sndrome comportamentalista", a incapacidade de anlise das teorias organiza-cionais frente complexidade dos sistemas sociais organizados, na medida em que o uso exagerado da psicologia por estas teorias no suficiente para explicar o funcionamento desses sistemas nas sociedades contemporneas. Para ele, "essas sociedades constituem a culminao de uma experincia histrica, a esta altura j velha de trs sculos, que tenta criar um tipo nunca visto de vida humana associa-da, ordenada e sancionada pelos processos auto-reguladores do mercado. A expe-rincia foi bem-sucedida, certamente que bem demais. No apenas o mercado e seu carter utilitrio tomaram-se foras histricas e sociais inteiramente abran-gentes, em suas formas institucionalizadas em larga escala, mas tambm demons-traram ser altamente convenientes para a escalada e a explorao nos processos da natureza e para a maximizao das inventivas e das capacidades humanas de produo. No entanto, atravs de todo esse experimento, o indivduo ilusoriamen-te ganhou melhora material em sua vida e pagou por ela com a perda do senso pes-soal de auto-orientao. A iseno do mercado da regulao poltica deu origem a um tipo de vida humana associada, ordenada pela interao dos interesses indi-viduais (para autopreservao), ou seja, uma sociedade em que o puro clculo das conseqncias (ao com respeito a fins) substitui o senso comum do ser humano" (Guerreiro Ramos, 1981 :52).

    J concluindo seu ltimo livro, Guerreiro Ramos prope um novo paradigma: a "teoria da delimitao dos sistemas sociais". Paradigma que prope substituir a viso unidimensional, no estudo dos sistemas sociais, por uma abordagem multi-dimensional. Segundo Guerreiro, o enfoque unidimensional tem no mercado "a principal categoria para a ordenao dos negcios pessoais e sociais" (Guerreiro Ramos, 1981: 140). a seguinte a proposta desse paradigma: "O ponto central desse modelo multidimensional a noo de delimitao organizacional, que en-volve: a) uma viso da sociedade como sendo constituda de uma variedade de en-claves (dos quais o mercado apenas um), onde o homem se empenha em tipos nitidamente diferentes, embora verdadeiramente integrativos, de atividades subs-

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  • tantivas; b) um sistema de governo social capaz de formular e implementar as po-lticas e decises distributivas requeridas para a promoo do tipo timo de transaes entre tais enclaves sociais" (Guerreiro Ramos, 1981: 140).

    A crtica frankfurtiana

    A erudio de Guerreiro Ramos transcendia qualquer bibliografia por ele ci-tada. No entanto, uma das fontes usadas em A nova cincia das organizaes foi a escola de Frankfurt, corrente de pensamento do denominado marxismo ociden-tal. Esta fonte pode ser observada logo no primeiro captulo do livro, quando Guerreiro faz referncia a esse grupo de pensadores alemes: "na sociedade mo-derna, a racionalidade se transformou num instrumento disfarado de perpetuao da represso social, em vez de ser sinnimo de razo verdadeira. Esses autores pretendem restabelecer o papel da razo como uma categoria tica e, portanto, como elemento de referncia para uma teoria crtica da sociedade" (Guerreiro Ramos, 1981:8).

    Portanto, foi a partir do estmulo de Guerreiro Ramos que procurei, por meio da escola de Frankfurt, entender, criticamente, os postulados das teorias organi-zacionais e suas relaes com o cotidiano dos sistemas sociais organizados.

    A escola de Frankfurt2 foi a institucionalizao de um grupo de pensadores alemes, originariamente liderados por Felix Weil, que renem-se no vero de 1922 em Ilmenau (Turngia), para discutir o marxismo em um encontro por eles denominado Primeira Semana de Trabalho Marxista. A inteno de realizar uma segunda semana no foi adiante, porque o grupo avanou na possibilidade de for-malizar as suas discusses. Assim, foi criado em 3 de fevereiro de 1923, no mbito da Universidade de Frankfurt, o Instituto de Pesquisa Social, posteriormente co-nhecido como escola de Frankfurt.

    Na realidade, a escola de Frankfurt somente passa a ser institucionalizada como movimento intelectual a partir da ascenso de Max Horkheimer direo do instituto, em janeiro de 1931. At ento, o instituto era liderado por pensadores como Friedrich Pollock, Carl Grnberg e outros, que cultivavam um marxismo ortodoxo. Sob a direo de Horkheimer, o instituto, apelidado pelos alunos da uni-versidade de "Caf Marx", por sua estreita ligao com o marxismo, passa a in-corporar outros pensadores, como Theodor W. Adorno, Erich Fromm e Herbert Marcuse. A partir da liderana de Horkheimer, o instituto, que originariamente somente estudava os fenmenos econmicos, amplia o foco de suas pesquisas, publicando, na sua Revista de Pesquisa Social, inclusive ensaios relacionando a psicanlise com o marxismo, como foi o caso dos textos escritos por Erich Fromm.

    2 Dada a dimenso deste trabalho, faremos uso de indicaes historiogrficas resumidas no cap-tulo I da tese de doutorado por mim defendida em dezembro de 1996 (Tenrio, 1996b).

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  • Com a ascenso do nazismo em 1933, o instituto cria filiais em outros pases europeus (Sua e Frana) e, mais tarde, exila-se nos Estados Unidos, ficando or-ganizacionalmente alojado na Universidade de Colmbia. Com o retomo Ale-manha em 1950, o instituto volta consolidado como uma escola, porm no exclusivamente marxista, o ponto de os estudantes da Universidade de Frankfurt redenominarem-no "Caf Max", em homenagem a Max Horkheimer e supera-o da ortodoxia marxista do incio da sua constituio.

    A produo intelectual dos frankfurtianos varia sobre disciplinas como a filo-sofia, sociologia, psicanlise, economia, cultura e msica. A fim de no correr o risco de superficializar temtica to ampla, privilegio como objeto de referncia a racionalidade instrumental.

    A expresso teoria crtica foi usada por Horkheimer para diferenciar a pro-posta da escola do que ele chamou de teoria tradicional. Os frankfurtianos enten-deram como teoria tradicional o conhecimento, baseado nos pressupostos das cincias naturais, que se preocupa em estabelecer princpios gerais, enfatizando o empirismo e o conhecimento antes da ao. Tal conhecimento estaria, portanto, sob a gide do pensamento positivista. A teoria crtica, por sua vez, estaria preo-cupada em investigar as interconexes dos fenmenos sociais e observ-los numa relao direta com as leis histricas do momento da sociedade estudada. Ou seja: "O especialista 'enquanto' cientista tradicional v a realidade social e seus produ-tos como algo exterior e 'enquanto' cidado mostra o seu interesse por essa reali-dade atravs de escritos polticos, de filiao a organizaes partidrias ou beneficentes e participao em eleies, sem unir ambas as coisas e algumas ou-tras formas suas de comportamento, a no ser por meio da interpretao ideolgi-ca. Ao contrrio, o pensamento crtico motivado pela tentativa de superar realmente a tenso, de eliminar a oposio entre a conscincia dos objetivos es-pontaneidade e racionalidade, inerentes ao indivduo, de um lado, e as relaes de processo de trabalho, bsicas para a sociedade, de outro" (Horkheimer et alii, 1975:140).

    O uso da teoria crtica frankfurtiana como referncia justifica-se aqui na me-dida em que ela contribuiu para uma releitura das teorias organizacionais, uma vez que o estudo da racionalidade instrumental foi uma das contribuies mais importantes dessa escola ao pensamento do sculo XX. Apesar dos frankfurtianos discutirem o conceito de razo indo de Immanuel Kant a Max Weber, no nosso caso fundamental a oposio entre os conceitos weberianos de razo com rela-o afins (racionalidade instrumental) e razo com relao a valores (racionali-dade substantiva), com o qual os frankfurtianos tambm trabalharam: "Os conceitos de razo - escreveu Horkheimer - no representam duas formas in-dependentes e separadas da mente, ainda que sua oposio expresse uma antino-mia. A tarefa da filosofia no consiste em confront-las, mas sim em fomentar uma crtica recproca e, desse modo, se possvel, preparar na esfera intelectual a reconciliao das duas" (citado em Jay, 1974:419).

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  • No obstante essa posio, os frankfurtianos da primeira gerao mantm o pessimismo com relao ao predomnio da racionalidade instrumental na socie-dade contempornea. Para essa possvel reconciliao, sero de fundamental im-portncia os estudos de Jrgen Habermas, frankfurtiano da segunda gerao, que prope que este "encontro" se d por meio da razo comunicativa, tema objeto de exposio no item seguinte.

    4. Negao

    Neste item focalizo minha autocrtica, apoiado em Guerreiro Ramos e na escola de Frankfurt, procurando demonstrar meu inconformismo com as teorias organizacionais tradicionais. Esta perspectiva ser demonstrada seguindo a cro-nologia de publicao dos textos.

    A anomalia do fato administrativo (Tenrio, 1989)

    Com a publicao desse artigo, procurei atingir trs objetivos:

    a) utilizar um ttulo que provocasse a pretensa normalidade do fato administra-tivo;

    b) estabelecer uma estrutura de redao que a diferenciasse daquelas geralmente usadas na redao de trabalhos acadmicos - introduo, desenvolvimento e concluso -, substituindo a introduo por incitao e a concluso por comeo;

    c) adotar a idia de que os paradigmas tradicionais no estudo de administrao no eram suficientes para explic-la, j que "privilegiavam a razo funcional homogeneizadora do homem nas organizaes" (Tenrio, 1989:7).

    Propnhamos, ento, uma sada antiparadigmtica que significava "resgatar conhecimentos que no circulam na normalidade dos estudos administrativos". Completvamos essa idia dizendo: "O anti paradigma, h que busc-lo fora da bi-bliografia que privilegia a funcionalidade. E essa bibliografia no-convencional encontra-se nos escritos deserdados pela tecnocracia e pela comunidade acadmi-ca. Podemos ach-los nos escritores tidos como 'malditos' pelo 'sistema' ou nos textos dos partidrios da acracia, por exemplo, cujas idias, por mais absurdas que possam ser ( ... ), podem contribuir para aperfeioar o conhecimento administrati-vo. Por que acreditamos nessa possibilidade? Porque aceitamos que as contradi-es servem para promover o conhecimento em dado momento da anlise, ou seja, o confronto ( ... ) da racionalidade administrativa com conceitos aparentemen-te esdrxulos contribuiria para melhorar o contedo ingnuo e mecanicista das

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  • teorias organizacionais. Confrontar conhecimentos, ainda que polarizados, no perder a razo, mas sim encontr-la temporariamente" (Tenrio, 1989:7).

    Resgatar conhecimentos que no circulam na normalidade dos estudos em ad-ministrao no significava procurar apoio em propostas esotricas, msticas ou assemelhadas, mas em idias cujo contedo estivesse relacionado a questes de natureza scio-econmica, como o caso dos textos de origem libertria. Finali-zei o texto dizendo que "no conclumos, comeamos, pois seria contraditrio propor qualquer sada na medida em que a suposio bsica deste artigo a de que no h razo que justifique a permanncia de outra razo", acrescentando que "pensar diferente do 'normal' reconhecer que jamais existiu e jamais existir uma palavra nica; porque, acima de tudo, existe a diferena" (Tenrio, 1989:8).

    Tem razo a administrao? (Tenrio, J 990)

    Esse texto apresentava a discusso conceitual de trs tipos de racionalidade: instrumental, substantiva e comunicativa. As duas primeiras derivadas de Max Weber e a terceira de Jrgen Habermas.

    Duas observaes devem ser feitas antes que apresente o contedo desse texto:

    a) os frankfurtianos, a includo Habermas, tm, como j observei, uma dvida para com as concepes weberianas de racionalidade;

    b) Horkheimer usa a expresso razo subjetiva para identificar a razo instru-mental e razo objetiva para razo substantiva.3

    A fim de evitar confuso e por acreditar ser mais inteligvel, optei por traba-lhar com os conceitos de razo instrumental (com relao a meios e fins) e razo substantiva (com relao a valores), distino que est bem desenvolvida no livro de Guerreiro Ramos Administrao e estratgia do desenvolvimento: elementos de uma sociologia especial da administrao (Guerreiro Ramos, 1966:37-42), quando ele discute os dois conceitos a partir das leituras de Karl Mannheim e Chester Bamard. Guerreiro Ramos retoma essa discusso de maneira mais crtica no livro A nova cincia das organizaes: uma reconceituao da riqueza das na-es (Guerreiro Ramos, 1981). Baseado nestas referncias bibliogrficas, fiz o se-guinte comentrio a respeito da interao da racionalidade instrumental com a racionalidade substantiva: "A racionalidade instrumental ou funcional o pro-cesso organizacional que visa a alcanar objetivos prefixados, ou seja, uma ra-zo com relao a fins no qual vai predominar a instrumentalizao da ao social dentro das organizaes, predomnio esse centralizado na formalizao mecani-

    3 Estes conceitos de racionalidade esto desenvolvidos em Tenrio (I996b:31-8).

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  • cista das relaes sociais em que a diviso do trabalho um imperativo categ-rico, atravs da qual se procura justificar a prtica administrativa dentro dos sistemas sociais organizados. Por sua vez, a racionalidade substantiva a percep-o individual-racional da interao de fatos em determinado momento. O que significa dizer que os atores sociais dentro das organizaes, administradores e administrados, deveriam desenvolver suas relaes e forma de produzir segundo a sua maneira particular de perceber a ao racional com relao a fins. No en-tanto, isso no ocorre devido a razes que s a razo funcional procura explicar" (Tenrio, 1990:6).

    Na realidade, o que comumente ocorre no interior das organizaes o con-fronto entre a racionalidade instrumental e a racionalidade substantiva. De um lado, a organizao estabelece seus mecanismos funcionais de ao com respeito a fins e, de outro, a pessoa humana desenvolve sua percepo individual-racional, interpretando as intenes do sistema. Intenes essas que, na linguagem haber-masiana, colonizam o mundo da vida.

    A fim de minimizar o conflito entre as duas racionalidades e considerando a hegemonia da razo instrumental no interior das organizaes, hegemonia essa ideologizada pelas teorias organizacionais, propus que essas teorias fossem apli-cadas atravs da intermediao da racionalidade comunicativa habermasiana: ra-cionalidade sob a qual os atores sociais tm no dilogo, por meio do melhor argumento, o contedo central de suas decises.

    Portanto, como a "ao comunicativa pressupe a linguagem como um meio dentro do qual tem lugar um tipo de processo de entendimento, em cujo transcurso os participantes ( ... ) se apresentam uns frente aos outros com pretenses de vali-dade que podem ser reconhecidas ou postas em questo" (Tenrio, 1990:8), a pro-posta habermasiana do agir comunicativo implicaria uma mudana de paradigma das teorias organizacionais. Isso ocorreria porque o uso desse novo "paradigma em administrao significaria, em primeiro lugar, admitir a falibilidade de seus conceitos e, em segundo, incorporar criticamente outros conceitos que ampliem o horizonte de suas perspectivas como rea de conhecimento" (Ten6rio, 1990:8).

    o mythos da razo administrativa (Tenrio, 1993)

    Com esse artigo procurei enfatizar minha percepo crtica quanto ao papel das teorias organizacionais. Para tanto, desenvolvi o texto com dois objetivos. O primeiro era utilizar a mitologia grega para relatar "aquilo que poderia ter aconte-cido se a realidade coincidisse com o paradigma da realidade" (Tenrio, 1993:3). Portanto, trabalhei com a "hiptese de que as teorias organizacionais", assim como seus novos paradigmas de produo centrados em mecanismos "flexveis", por serem "dependentes imediatos da racionalidade instrumental, no passam de mitos daquilo que poderia ter acontecido, no daquilo que realmente ocorre no interior dos sistemas sociais organizados" (Tenrio, 1993:3).

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  • No segundo objetivo dizia que: "O mito na idade contempornea, que preva-lece como elemento possvel e ilustrativo, no deve ser visto como um objeto de pura investigao emprico-descritiva, nem tampouco manifestao histrica de nenhum absoluto: o modo de ser ou forma de uma conscincia - a conscincia mtica. Esta conscincia tem um princpio que se pode investigar mediante um tipo de anlise que no emprico nem metafsico, mas - em sentido lato - epis-temolgico" (Tenrio, 1993:3).

    Dividi o texto em trs momentos e de acordo com as etapas do teatro clssico grego: prlogos, gon e xodos. No prlogo, primeiro ato da comdia grega, a ra-zo instrumental representada por Zeus, deus supremo, senhor do universo, "pai dos deuses e dos homens, diante de quem no s os deuses, mas tambm os mor-tais compartilham idntica inferioridade: Zeus no se considera sujeito a regras democrticas. ele quem faz a lei. Atena, sua filha, diz: preciso tem-lo, pois ele castiga, indistintamente, o inocente e o culpado" (Tenrio, 1993 :2).

    No segundo ato, gon, cena intermediria da comdia grega, utilizei o mito de Ssifo para ilustrar o papel submisso das teorias organizacionais racionalidade instrumental. De acordo com a mitologia grega, Zeus condenou Ssifo a carregar uma pesada pedra para o cume de uma colina; porm, quando Ssifo chegava ao topo, a pedra rolava de volta base da colina e ele tinha de repetir a tarefa indefini-damente. Assim, eu apresentava a hiptese de que esse castigo tambm foi imposto pela razo instrumental s teorias organizacionais, na medida em que, at nossos dias, a razo administrativa ainda no resolvera o "problema da relao homem-trabalho na 'modernidade' da sociedade tcnico-burocrtica" (Tenrio, 1993:6).

    No xodo, ato final da comdia grega, fiz as seguintes perguntas: "Que teremos de sacrificar perante o Orculo de Zeus em Dodona, no pico para minorar o so-frimento de Ssifo? O que se tem sacrificado nos ltimos anos o taylorismo-for-dismo e colocado disposio de Ssifo robs, na tentativa de o aliviar da pesada e repetida tarefa de (e)levar a pedra para cima do monte Hades. Ser que a simples substituio da automao rgida pela automao flexvel alivia o castigo que Zeus determinou? No ser mais esse um novo artifcio da toda poderosa razo instru-mental de mais uma vez impedir a emancipao do homem?" (Tenrio, 1993:17).

    A flexibilizao da produo significa a democratizao do processo de produo? (Tenrio, 1994)

    O objetivo desse trabalho era verificar se, conceitualmente, o novo paradigma de gesto denominado ps-fordista ou flexibilizao organizacional possua ca-ractersticas que o identificasse com possibilidades de democratizao das rela-es sociais no processo de produo. A hiptese bibliogrfica estudada era "se as novas tecnologias de organizao da produo baseadas no princpio da flexi-bilidade, podero promover, favorecer ou pelo menos no impedir a democratiza-o das relaes sociais no interior das empresas" (Tenrio, 1994:87).

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  • Dos trs indicadores que compem o contedo do modelo da fleXibilizao organizacional - progresso cientfico-tecnolgico, globalizao da economia e valorizao da cidadania, a nfase foi dada a este ltimo, na medida em que a ele est vinculado o tema da participao do trabalhador no processo de tomada de deciso. A participao com aflexibilidade organizacional foi assim identificada: "No 'universo das cincias sociais pode dizer-se que a participao o conjunto organizado de aes tendentes a aumentar o controle sobre os recursos, decises ou benefcios, por pessoas ou grupos sociais que tm nveis de influncia relativa-mente menores dentro de uma comunidade ou organizao ( ... )'. Apesar dos tra-balhadores, principalmente aqueles de nvel operacional, terem sob o fordismo reduzido nvel de influncia nos processos formais de produo, o novo paradig-ma (flexibilidade organizacional) tem como proposta transformar o processo pro-dutivo atomizado, setorial, em outro mais integrado e homogneo socialmente. Dois elementos so importantes para consolidar essa proposta de uma gesto mais participativa: circulao das informaes e gesto social das relaes homem-trabalho" (Tenrio, 1994:93).

    O indicador progresso cientfico-tecnolgico, no ps-fordismo, interagiria com a valorizao da cidadania e, conseqentemente, com a varivel participa-o, na medida em que a circulao das informaes, favorecida pelos equipa-mentos de base microeletrnica, contribuiria para uma maior aproximao entre superiores e subordinados. Como tecnologias favorecedoras dessa relao revolu-o cientfica-valorizao da cidadania, o artigo apontava as tcnicas de qualida-de e produtividade, to em voga no pas nos anos 90. A concluso crtica a que cheguei nesse ensaio (1994:98) foi: "Poderamos concluir este trabalho dizendo que aflexibilidade organizacional no Brasil, de acordo com a bibliografia estuda-da, parece percorrer um continuum entre dois extremos: flexibilidade organiza-cional defensiva -flexibilidade organizacional ofensiva; acreditamos at que as empresas brasileiras aproximem-se mais de uma estratgia defensiva do que o seu contrrio. V. Prochnick em pesquisa realizada na indstria de calados diz que existe um possvel tipo de flexibilidade organizacional, 'no qual equipamentos e tcnicas modernas coexistem com salrios baixos e condies de trabalho prec-rias, denominado flexibilizao espria'''.

    Contiene dialogicidad la calidad? Un anlisis crtico de la calidad total (Tenrio, 1996a)

    Esse trabalho deu seqncia ao anterior, na medida em que a preocupao aqui foi colocar na berlinda a tcnica de gesto pela qualidade, que est inserida no contedo do paradigama ps-fordista de gesto da produo. Partimos do pres-suposto de que, nos dias atuais, tanto o setor privado quanto o setor pblico preo-cupam-se em estar atualizados com as novidades tecnogerenciais. Apesar disso, essas preocupaes pareceriam estar isentas de anlises crticas referentes vali-dade dessas novidades.

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  • A fim de guardar coerncia com as propostas que fiz no artigo "A anomalia do fato administrativo", no qual propus o uso de outros contedos conceituais que no aqueles considerados "normais", utilizei, para "discutir" a relao qualidade-dialogicidade, as propostas conceituais de Martin Buber, nas quais a correspon-dncia Eu-Tu (um-com-o-outro) antittica a Eu-Isso (um-ao-Iado-do-outro).

    O que procurei verificar, ainda que conceitualmente, se a tcnica gerencial de gesto pela qualidade conteria elementos que favorecessem a dialogicidade entre os diferentes atores sociais nos sistemas formalmente organizados. E o mote dessa verificao era a frase de Martin Buber: "O dilogo no imposto a nin-gum. Responder no um dever, mas sim um poder" (Tenrio, 1996b: 189). Este mote referendado pela idia central de que na relao Eu-Tu a alteridade o con-tedo que fomenta a totalidade, a organicidade, entre os atores. J na relao Eu-Isso, o entre intermediado por uma coisa.

    A gesto pela qualidade pressupe o uso de tcnicas de mobilizao grupal: crculos de controle de qualidade (CCQs), grupos de expresso (GEs), clulas de produo (CPs) e outras que enfatizam aparticipao. Corroborando esse pressu-posto, diz que o conceito de qualidade total visto como "um sistema orgnico e no como um sistema mecnico de tipo taylorista, cuja diviso do trabalho espe-cializado e separao entre o planejamento e a execuo" (Tenrio, 1996a: 195) impediria a ao dialgica entre os diferentes atores do processo produtivo. Ape-sar da possibilidade de que a gesto pela qualidade poderia contrapor-se aos es-quemas gerenciais mecanicistas, iniciei a concluso do ensaio da seguinte maneira: "No interior dos sistemas sociais organizados, o inter-humano geralmen-te uma ao que ocorre entre os homens, ora como atores (dirigentes) ora como assistentes (dirigidos), atravs de um processo estruturado, racional, de uma ade-quao de meios e fins. Em uma empresa privada, por exemplo, o inter-humano ter como objetivo, de uma forma ou de outra, o lucro, o que faz com que a ao entre pessoas a ele seja submetida. Assim, a relao Eu-Tu (um-com-o-outro) tor-na-se difcil porque numa organizao entre o Eu e o Outro existe a intermediao do processo de produo, o que faz com que a relao Eu-Isso (um-ao-Iado-do-outro) ocorra com mais freqncia, j que a relao se d sob uma estrutura arti-ficial (formal), no natural. Enquanto em um espao comunitrio, dialgico, o ho-mem expressa sua totalidade reciprocamente a partir do que ele , na empresa, o homem, por estar dentro de uma estrutura organizacional, por ser 'parte' de uma imagem determinada por essa estrutura, pelo 'todo', expressa somente o 'desejo diferenciado em tirar vantagens gerado pelo pensamento isolado da totalidade' ( ... ) em que o Tu j no mais seno um Isso, sendo parte de uma soma de quali-dades teis para atender os objetivos planejados" (Tenrio, 1996a: 199).

    Flexibilizao organizacional, mito ou realidade? (Te n rio, 1996b)

    Nesse texto, utilizado para defesa de tese, procurei aprofundar a crtica mi-nha ingenuidade que predominou at a metade dos anos 80. Nesse trabalho estu-dei, no especificamente o contedo terico crtico da obra de Alberto Guerreiro

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  • Ramos, mas aqueles marxistas ocidentais a mim "apresentados" por Guerreiro Ramos. A fim de operacionalizar a anlise frankfurtiana, realizei quatro estudos de caso para verificar se o paradigma da flexibilizao organizacional (ps-for-dismo) contm elementos que favoream uma ao gerencial dia lgica, tipo de ao social substanciada pela teoria social de Jrgen Habermas.

    Por flexibilizao organizacional entendo "o novo paradigma em gesto da produo que preconizaria a diferenciao integrada da organizao da produ-o e do trabalho sob a trajetria de inovao tecnolgica em direo demo-cratizao das relaes sociais nos sistemas-empresa" (Tenrio, 1996b:XIII). Defini o objetivo do estudo da seguinte forma: " a partir da nova referncia ge-rencial quanto a organizao da produo e do trabalho e dos possveis proble-mas por ela gerados quanto gesto dos recursos humanos, que o nosso objetivo foi pesquisar como est sendo implementado, sob a perspectiva de uma ao ge-rencial dia lgica, a incorporao de tecnologias da informao em quatro em-presas ( ... ) brasileiras. O que desejvamos verificar era se os pressupostos gerenciais da flexibilizao organizacional correspondem, de acordo com o pa-radigma terico-social habermasiano, a um agir comunicativo (dialgico) ao in-vs de um agir estratgico (monolgico). Contrariando este ltimo, em um agir comunicativo no existe hegemonia decisria daqueles que ocupam cargos de di-reo, mas sim uma esfera pblica na qual todos os agentes envolvidos tm parti-cipao ativa no processo de tomada de deciso" (Tenrio, 1996b:XIV).

    Aps a anlise dos quatro casos estudados, cheguei ao seguinte resultado: "a con-cluso que chegamos a partir dessas anlises nos permite dizer que, no conjunto, as quatro empresas pesquisadas ainda carecem de contedos substantivos facilitadores do desenvolvimento de aes gerenciais dia lgicas. Ou seja, apesar do 'caminhar' em direo dialogicidade, nos quatro casos estudados ainda ocorrem procedimentos gerenciais direcionados a aes estratgicas (monolgicas), nos quais os gerentes implementam tais aes mais atravs do clculo de meios e fins sob o ponto de vista da maximizao da utilidade ou de expectativas de utilidade do que orientados a aes comunicativas (dialgicas), quando os gerentes deveriam implementar suas aes por meio do entendimento com os outros atores a fim de coordenarem, de co-mum acordo, seus planos de ao e com eles suas aes" (Tenrio, 1996b:469).

    5. Concluso

    Apesar de um texto-depoimento caracterizar-se por pontuaes de natureza pessoal, fato que mobiliza motivaes egocntricas, no descarto a hiptese de que este tambm um processo de aprendizagem. Processo que permite rever conceitos ou prticas, considerados aqum da possibilidade de estabelecer com-promissos com a razo verdadeira.

    Portanto, a importncia da obra de Alberto Guerreiro Ramos na minha forma-o terica caracterizou-se pela sinalizao da necessidade de leituras que justifi-quem o estar "em mangas de camisa" (Guerreiro Ramos, 1995:31), no apenas

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  • com o "hbito" (Guerreiro Ramos, 1996:7) do conhecimento mas com o de um "saber de salvao".

    Assim, possvel observar, neste texto-depoimento, que trs foram os mo-mentos nos quais constru e reconstruf minha compreenso da administrao como rea de conhecimento e das teorias organizacionais como referncias con-ceituais da prtica administrativo-gerencial:

    a) ingnuo ou de compreenso tradicional, no qual a idealizao do processo de trabalho se dava sob o fenmeno administrativo como racionalidade exclusiva-mente instrumental;

    b) estudo do fenmeno administrativo como um fenmeno de natureza social e interatuante com a racionalidade substantiva, fase estimulada pelo socilogo Guerreiro e ampliada, criticamente, pela perspectiva dos frankfurtianos de pri-meira e segunda geraes;

    c) (re)leitura e redao crtica, atravs da publicao de textos e execuo de pes-qUisas,4 muito mais como uma catarse do que com pretenses de originalidade, acreditando na possibilidade de a administrao e as teorias organizacionais rea-lizarem-se sob a racionalidade comunicativa.

    Esta autocrtica serve para ilustrar a importncia, na trajetria intelectual de qualquer pesquisador, de uma referncia paradigmtica que pode ser expressa por meio da teoria, epistemologia, axiologia e mesmo tica de um indivduo. Alberto Guerreiro Ramos foi uma das referncias fundamentais na minha formao. Por-tanto, a ele devo a oportunidade de procurar a natureza e o poder da razo admi-nistrativa no mbito da racionalidade instrumental.

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    4 Desenvolvo na EBAPIFGV um programa de pesquisa denominado Programa de Estudos em Gesto Social (PEGS), no qual o referencial terico aqui apresentado procura ser operacionalizado em dois segmentos bsicos de investigao: relao sociedade-Estado e relao trabalho-capital.

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