Teologia Da Cultura Na Poética de Belchior

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    Revista Eletrnica Correlatio n 14 - Dezembro de 2008

    Natanael Gabriel da Silva88

    Profecia, existncia e Teologia da Culturana potica de Belchior

    Natanael Gabriel da Silva [1]

    [1] Doutor em Cincias da Religio

    RESUMO

    A obra potica do cantor popular Belchior tem uma natureza existencial

    e proftica, possvel de ser estudada como discurso religioso e cristo,

    em contraste ao anti-cristianismo presente na cultura latino-americana. A

    temtica do seu discurso potico e proftico o problema racial, quando

    a pureza nordestina lanada no horizonte do paraso imaginrio da

    metrpole, mas que se transforma no smbolo de desterro. Por conta

    disso, temas da teologia elaborada por Tillich, como inocncia sonhadora,

    preocupao ltima, vida sem ambigidade, por exemplo, podem ser

    encontrados em dilogo com a obra potico-proftica de Belchior. Ao

    negar o cristianismo, e dimension-lo como um no-cristianismo,

    Belchior elabora, pelo vis da contradio, um novo sentido do modo de

    ser cristo e a busca do Paraso em sua condio de inocncia. Este tra-

    balho se prope a refletir sobre tal hiptese.

    Palavras-chave: Belchior, Paul Tillich, poesia, existncia, Teologia da

    Cultura, religio e msica popular brasileira, voz proftica.

    Prophecy, Existence and the Theology of Culture in Belchiors

    poetics

    ABSTRACT

    The poetic work of the pop singer Belchior has an existential and

    prophetic nature that can be analyzed as religious and Christian speech,

    in contrast to anti-Christianity present on the Latin-american culture. The

    theme of his poetics and prophetic discourse is the racial prob-lem, that

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    shows itself when the purity Brazilian northeastern is drawn into the

    horizons of the metropolitans imaginary paradise, which transforms this

    northeastern purity in a symbol of deportation.Because that, themes from

    theology made by Tillich, such as dreamer innocence, ultimate concern,

    life without ambiguity, for example, can be in dialogue with the poetic-prophetic Belchiors works. When Belchior denies the Christianity,

    calling it non-Christianity, he elaborates, by contradiction, a new sense

    of being Christian and to seek the paradise in its condition of innocence.

    This article tries to reflect about this hypothesis.

    Keywords : Belchior, Paul Tillich, Poetry, Existence, Theology of

    Culture, Religion and Brazilian Popular Music, prophetic Voice.

    Apontamentos introdutrios

    Estudar a potica de Belchior, Antnio Carlos Gomes BelchiorFontenelle Fernandes, nascido em Sobral, Cear, em 1946, no umatarefa simples. Como todo poeta que prima pela liberdade, o tom de seudiscurso no pode ser enclausurado num nico sistema. Sua produocoincide com um perodo de profundas mudanas sociais e expectativasno que diz respeito a uma esperana na Amrica Latina. Desde o final

    dos anos 50, incio dos 60, a regio vivia a expectativa dos resultadosdos seus muitos caminhos. No se sabia se a vocao econmica, comraiz nitidamente agrcola-pastoril, iria se enveredar pela tomada dosistema pelo oprimido ou se haveria uma radicalizao reacionria pormeio de golpes de extrema direita que tomariam conta do continente.Desencadeou-se a secunda.

    A questo poltico-econmica no era a nica ameaa. Se estarepresentava o poder, havia outra, presente na sociedade e cotidiano,

    resultado da pluralidade cultural e regionalismo, o problema racial. Istoquer dizer que o sujeito oprimido encontrava-se no apenas na relaocapital-trabalho. A dinmica tnica tomada como exemplo, na obra deBelchior, pela figura do deslocamento do nordestino para as babilniasdo sul, smbolo de cativeiro e desterro, o que por si s j se d comosimblico-religioso. Deste modo que aparece na potica de Belchior, o drama que no poderia ser resolvido apenas por uma distribuio de

    rendas, que o preconceito. A sua temtica existencial brota dessedebate. Belchior poderia ser assim considerado como uma voz profti-

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    ca, e o discurso voltado para o problema da raa, e na ameaa existen-cial do desterrado, o caminhar contnuo em busca do paraso.

    Nesse caso, em Belchior, a existncia ameaadora, e no amor

    residiria a superao das condies desintegradoras do ser. Contudo,ainda prematuro caminhar por esse vis, sem antes compreendermosse de fato possvel uma leitura de algum mtodo existencial em suaobra, mesmo considerando a sua negao expressa, por vezes jocosa, docristianismo ocidental. Seria necessria uma leitura de superao danegao que Belchior faz do formalismo cristo em nossa sociedade,mediado pela possibilidade dogmtica, e uma tentativa de aproximaopelo vis de uma teologia de natureza existencial. Com isso, possivel-

    mente, seria possvel observar que, na negao e crtica ao cristianismo,o que h a presena de um imaginrio religioso existencial. Bem, essaser a nossa tarefa como apontamento.

    Pela natureza do texto e seus limites, no foi possvel estabelecerparmetros e conceitos de termos especficos, principalmente do pen-samento de Tillich. Expresses como correlao,* vida sem ambigi-dade*, teologia da culturae preocupao ltima , por exemplo, sotomadas considerando j serem conhecidas pelo leitor.

    A pergunta ontolgica em Belchior

    O debate sobre a natureza religiosa de um discurso existencialnecessita buscar, primeiramente, o lugar do ser nesse discurso. No preciso reafirmar aqui que o ser seria um exceder de sentido do ente,superao da objetividade e lugarde onde poderia emergir a religio.

    Heidegger havia dado pergunta ontolgica um contedo pela

    busca de sentido do ser, o que esgotaria o seu prprio sentido no hori-zonte existencial, no ser-para-a-a morte. A teologia responderia a isso,procurando demonstrar que a pergunta ontolgica um partir do ser,mas limitar o seu horizonte ao existencial estabelecer antecipadamen-te a sua possibilidade hermenutica. Tillich reagiu a isso: a perguntaontolgica no tem que se limitar ao limite da existncia, para serconsiderada ontolgica. A pergunta do ser, no tem contedo, e emer-ge na cultura como a pergunta pela preocupao ltima e vida semambigidade, na tentativa de superar as condies ameaadoras daexistncia. A existncia, para Tillich, no se constitui apenas como

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    anlise de sua estrutura, como na analtica de Heideg-ger em Sein undZeit, mas se d como existncia na dimenso teolgica da cultura, enesta aparece como pergunta pelo ser-em-si.

    A questo que, se Belchior um poeta que discute a existncia,talvez a primeira busca que devssemos fazer seria a de tentar encontrarse h em seu discurso uma natureza essencial, uma tentativa de encon-trar o ser, que pudesse exceder a simples existncia, apontando parauma ontologia que se manifesta como pergunta ontolgica, numa apro-ximao mais clara do discurso teolgico.

    Em Alucinao, Belchior afirma no estar interessado em nenhu-ma teoria, nenhuma fantasia, ou mstica oriental, mas a alucinao o

    suportar o dia-a-dia no delrio com coisas reais. No caso, coisas reais soas condies de existncia, o que dado, o ser lanado, se optarmos porHeidegger, ser-no-mundo, em busca de sentido. Seguindo os versos dacano, Belchior se envereda por esta condio de existncia e faz umrelato do cotidiano do preconceito, sonhos e limites: o preto(raa-precon-ceito), o pobre(capital-trabalho), estudantes(conhecimento e sonho),mulheres sozinhas(existncia e angstia), blue jeans e motocicletas*(alienao e fuga), *pessoas cinzas, normais(vida e desaparecimento),garotas dentro da noite(opresso e desumanidade), revlver: cheiracachorro(morte e animalidade), humilhados do parque com os seus jor-nais (presena e esquecimento, informao/desinformao ereaproveitamento de texto), carneiros, mesa, trabalho(submisso e pro-dutividade), meu corpo que cai do oitavo andar (vida-morte, existnciae desintegrao, liberdade e fim) e a solido das pessoas dessas capitais(existncia e ameaa), a violncia da noite, o movimento do trfego

    (dinmica da vida e impessoalidade), um rapaz delicado e alegre quecanta e requebra, demais!...(gnero e preconceito). Pouco adiante, dozejovens coloridos, *expresso clara e irnica tradio crist, e com eles

    *dois policiais, *smbolo da opresso e ameaa vida. Ao contrrio da

    viso proftica da *Laranja Mecnica,anunciando o terror, o amor dado como resposta e possibilidade de mudana.

    Todos os personagens constituem a vida, com as suas ameaas,preconceitos e contradies. No h teoria que d conta de explicarisso. Para Belchior, pelo menos em Alucinao, a existncia trgica,o limite o cotidiano, e a esperana o amor.

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    Por essa perspectiva, contudo, com uma potica da morte, bempoderia sugerir que Belchior seria devedor analtica de Heidegger,condio da angstia *e o *ser-para-a-morte, *limitando-se ao ser

    dado. Entretanto, o poeta concebe um estado de pureza essencial, se-melhante ao que Paul Tillich chamou de *inocncia sonhadora.

    Imaginrio de contraste a inocncia sonhadora

    A condio trgica da existncia uma leitura de contraste com apureza do nordestino, idealizado no imaginrio da essncia do rapazlatino-americano, vindo do interior. Naquela leitura, h tambm a so-lido de quem chega com os seus sonhos, a msica e a promessa de que

    h uma essncia divina que espraia a existncia. Tal existncia se apre-senta como desconexa, e, num dado momento, existncia emerge comoameaa, entre o proibido e o permitido.

    Entretanto, a referncia solido das pessoas nas capitais e a vio-lncia da noite sugerem uma leitura de contraste com o imaginrio idea-lizado da essncia do rapaz latino-americano, vindo do interior, na canoApenas um rapaz latino-americano. Nesta, h tambm a solido dequem chega com os seus sonhos, a msica e a promessa de que h umaessncia que se espraia na existncia, entre o proibido e o permitido. Orapaz latino-americano, vindo do interior, um profeta que no sabecompor, seno palavras como navalhas. Ao invs do divino, traz umapalavra aguda, ao invs da msica suave, o conflito, diante da vida queno apenas diferente, muito pior. Trata-se de um pessimismo existen-cial, mas que s pode ser colocado a partir do descortinamento da che-gada e o que encontra um nada divino, um nada sagrado, um nada

    maravilhoso e um nada misterioso, um nada secreto. A hermenuticaexistencial de um fatalismo apocalptico d-se como relao, a partir deum imaginrio puro, de quem vem do interior, para a hecatombe urbana.H um partir essencial no incio da jornada, e a declinao da essnciaque se d como existncia correlaciona-se no espao do cotidiano. Dano seria possvel de se falar dos dramas existenciais de Alucinao,sem um conceito de possibilidade de superao, que tem como fim oamor, mas um ponto de partida como idealidade. Comeo e fim seencontram, mediados pelo ter que viver e existir.

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    No h um algo escondido, como uma virtude a ser procurada, oupossvel de ser encontrada. Atrs da ameaa desintegradora, no hnada. O caos existencial pergunta, e o horizonte hermenutico se abre

    superao da tragdia humana. Nesse caso, parece ficar claro que acondio ameaadora faz emergir a pureza interiorana, traz a inquietudeexistencial da inocncia sonhadora.O paraso se fora, e ao mesmotempo desejado.

    Ao emissrio que vai para o Nordeste, em Baihuno, Belchior fazuma anlise existencial do meio urbano no Sudeste, comparando-o Babilnia, smbolo de desterro e cativeiro. Diz Belchior:

    Conta aos amigos doutoresque abandonei a escola pra cantar em cabar,

    baies, brbaros, baihunos,

    com a mesma dura ternura que aprendi na estrada e em Che.

    Ah! metrpole violenta que extermina os miserveis,

    negros prias, teus meninos!

    Mais uma estao no inferno, Babilnia, Dante eterno!

    h Minas? Outros destinos?

    Pouco adiante acrescenta:

    Ao pastor de minha igreja

    diz que essa ovelha jamais vai ficar branquinha.

    - No vendi a alma ao diabo...

    O diabo viu mau negcio nisso de comprar a minha.

    Se meu pai, se minha me se perguntarem, sem jeito

    - Onde foi que a gente errou?

    Elogiando a loucura, e pondo-me entre os sonhadores, diz que oshow j comeou.

    Trogloditas, traficantes, neonazistas, farsante: barbrie, devastao.

    O rinoceronte mais decente do que essa gente demente

    do Ocidente to cristo.

    Tomado como imaginrio, se a babilnia do desterro o limite daameaa e desencanto, o Nordeste o que se perdeu, o tribalismo, paraso,

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    a pureza, o que ficou antes do sonho, que poderia no ter ido to longe,como Minas no caminho, mas rumou ao limite e horizonte, e caiu no vazio.Lugar da loucura e do drama real da existncia, mas que deve ser noticiado

    como a realizao do sonho, do belo, ideal, mas que na verdade se traduzcomo barbrie e devastao. Catstrofe, como existncia.A leitura da metrpole como o lugar da desintegrao do ser o

    horizonte que se v do paraso, e tal espao de selvageria e angstiaexistencial pode ser qualquer lugar, uma vez que o imaginrio do pa-raso no pode ser transferido. A pureza, o estado de inocncia sonha-dora,tem o seu lugar sagrado.

    Em outra cano, Tudo outra vez, Belchior coloca o nordestino

    como idealizado, mesmo diante do mundo europeu. L tambm des-terro e ameaa. No texto, as coisas do cotidiano, bluso de couro, redebranca, cachorro ligeiro, so poeticamente colocadas em forma de sau-dade, uma espcie de utopismo milenarista escatolgico ao contrrio.A lngua, o discurso, a expresso do idioma corrompe a pureza existen-cial. Belchior diz quero esquecer o francs. O poeta contrasta a vidana Europa com o paraso do serto. Deste modo, uma noite de prazerno Danbio, e tem que ser Azul para ser potico, no pode ser compa-rada com o magnfico sol e o amor de irm no interior do Brasil. Olugar sagrado da inocncia no pode ser deslocado, nem substitudo,mesmo quando, aparentemente, as ameaas desintegradoras da existn-cia estejam presentes. Belchior deseja recuperar tudo outra vez. Namesma cano, o serto se ope ao Concorde, smbolo de deslocamentoe distanciamento do que h de mais puro.

    O Nordeste, na poesia de Belchior, idealizado como o lugar da

    essncia. Tal pureza se acaba, quando do encontro com a metrpole,smbolo da ameaa existencial, num discurso de resistncia a CaetanoVeloso, incapaz de se dar na existncia com suas contradies, emFotografia 3x4, diz:

    Em cada esquina que eu passava um guarda me parava,pedia os meus documentos e depois sorria,examinando o trs-por-quatro da fotografia

    e estranhando o nome do lugar de onde eu vinha.[...]

    Veloso o sol no to bonito pra quem vem do norte e vai | viver na rua.

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    Em Bahiuno, diz:

    Gnios-do-mal tropicais, poderosos bestiais, vergonha da Me Gentil.

    Fosse eu um Chico, Gil, um Caetano, e cantaria, todo ufano: Os AnaisDa Guerra Civil.

    A reduo da pessoa expresso da face em uma fotografia 3x4, o contraste da fagulha essencial, preservada na imagem, em relaoao mundo e universo que a ela se ope. No discurso est o sentido dehumilhao, abandono, desintegrao do ser, mas cuja fotografia, quereproduz uma essncia, no pode ser definitivamente aniquilada. O

    conflito de ser e no-ser se d como impasse e ameaa.

    Potica e voz Proftica

    Portanto, poesia e voz proftica, em Belchior, so as mesmas coi-sas. H uma crtica e inconformismo quando o poeta presencia a ausn-cia de condenao ao preconceito. O preconceito no poderia ser igno-rado, pois fotografia, contradio e vida. Em Conheo o meu lugar,Belchior expressa isso de forma bastante clara:

    O que que eu posso fazer com a minha juventude

    - quando a mxima sade hoje pretender usar a voz?

    O que que eu posso fazer - um simples cantador das coisas do poro?

    (Deus fez os ces da rua pra morder vocs

    que sob a luz da lua, os tratam como gente -

    claro! - a pontaps).

    [...]Fique voc com a mente positiva que eu quero a voz ativa

    (ela que uma boa!)

    pois sou uma pessoa.

    Esta minha canoa: eu nela embarco.

    Eu sou pessoa! (A palavra pessoa hoje no soa bem - pouco me importa!)

    No! Voc no me impediu de ser feliz!

    Nunca jamais bateu a porta em meu nariz!

    Ningum gente! Nordeste uma fico! Nordeste nunca houve!

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    No! Eu no sou do lugar dos esquecidos!

    No sou da nao dos condenados!

    No sou do serto dos ofendidos!

    Voc sabe bem: Conheo o meu lugar!

    A idia da criao, Deus fez os ces da rua, estabelece ainacessibilidade mudana do discurso e do contedo da voz proftica,que no pode ser outra coisa. O drama existencial tambm no, e simbolizado no limite do que seria o mais desprezvel: ser humano,poeta e profeta como co de rua. A ironia do texto a palavra pessoahoje no soa bem, trata da inverso e da mudana do sujeito do dis-

    curso, o co passa a ser o interlocutor, por desconhecer o sentido de serpessoa. Nesse caso, ningum gente, o sujeito o ningum, que gente. No fim, h a preservao do ser pessoa, o que se recupera comodimenso do discurso proftico, conheo o meu lugar. O lugar aquino um onde, mas estado de existncia que preserva aessencialidade de ser pessoa, pois o lugar Nordeste no existe. Nose pode voltar para um lugar que no existe. O Nordeste no existe,mas a pessoa sim. Trata-se de um imaginrio construdo pela memria,mas que se apresenta existencialmente como ameaador.

    Smbolo e potica expresso da preocupao ltima

    Assim, o discurso proftico em Belchior pretende avanar s ex-presses poticas que no percebem as contradies da existncia,manifestadas na ameaa pelo preconceito. S pelo fato de se dissociarum ser puro e nordestino, vindo do interior, em contraste com a vida

    ameaadora na capital, que corrompe tal pureza e a degenera, a pergun-ta que poderia ser levantada se Belchior teria elaborado uma leiturade duas essncias: um ser do interior e um ser da capital.

    possvel compreender essa potica como a metfora de ser eno-ser de Paul Tillich. O no-ser ameaa o ser. A alteridade existencialem Belchior, como si-mesmo diante de si, aparece como a dimensodinamizadora que faz emergir a pergunta pela inocncia sonhadora,domesmo como o no-ser ameaa o ser e se traduz na pergunta ontolgicapelapreocupao ltimaou pela vida sem ambigidade,para alm dascondies ameaadoras da existncia. A condio pura s assim se d

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    diante do que lhe oposto, o seu no, sua negao, e os conflitosameaadores na existncia, simbolizado no preconceito que despertabusca do irrecupervel paraso. Ser e no-ser se do dialeticamente

    necessrios, em correlao, para a emergncia do discurso proftico.Belchior, nesse ponto bastante crtico: o discurso potico queno tem uma natureza proftica causa a desintegrao do ser. Em Co-mentrios a respeito de John, Belchior diz no ter se esquecido dacano Happiness is a warm gun, dos Beatles e autoria de Lennon.Belchior traz o imaginrio do Oeste norte-americano, no tempo dasdiligncias, mediante o estilo musical, e mostra que a falta de percep-o das condies ameaadoras da existncia naquela cano, desinte-

    gram o ser, por desintegrar a vida e o seu no. A felicidade, portanto,no pode ser uma arma quente. O smbolo tomado o da morte trgicade J. Lennon. O rosto-rouge e o batom de Lennon so imagens de suaalienao existencial e ausncia de voz proftica. Diz a letra:

    Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho

    Deixem que eu decida a minha vida

    No preciso que me digam de que lado nasce o sol

    Por que sei que bate l meu corao

    Sonho e escrevo em letras grandes (de novo)

    Pelos muros do pas

    Joo, o tempo andou mexendo com a gente sim

    John, eu no esqueo (oh no, oh no)

    A felicidade uma arma quente, quente, quente

    Sob a luz do teu cigarro na cama

    Teu rosto-rouge, teu batom me diz.

    A resistncia ao discurso religioso formal na potica de Belchior

    contra a heteronomia

    Belchior resiste a qualquer imposio religiosa, do mesmo modocomo Tillich, ao que chamou de heteronomia. possvel compreenderum discurso tambm de condenao autonomiaem Belchior, mas s seesta for representada pelo discurso de autonomia existencialgerada pelaliberdade (dos outros) e a desumanidade exasperada no descontrole de

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    quem, por si, se impe e ameaa a vida, como no caso da metrpole,demonicamente manifestada no cooptao da pureza e ingenuidade dequem dela se aproxima. Isso, contudo, deveria ser tomado por inferncia.

    No caso da resistncia heteronomia religiosa, possvelencontr-la de forma mais clara, expressa em Como o diabo gosta,por exemplo:

    No quero regra nem nada

    Tudo t como o diabo gosta, t,

    J tenho este peso, que me fere as costas,

    e no vou, eu mesmo, atar minha mo.

    O que transforma o velho no novo

    bendito fruto do povo ser.

    E a nica forma que pode ser norma

    nenhuma regra ter;

    nunca fazer nada que o mestre mandar.

    Sempre desobedecer.

    Nunca reverenciar.

    Nada de regras, imposio ou qualquer coisa que possa determinaro que deveria ser a existncia. O diabo o smbolo proftico de resis-tncia s regras, e tomado aqui como uma leitura carnavalesta dodiscurso potico. o abuso da inverso, o exagero, a busca do limitedo que seria o total oposto, como forma de realar no discurso literrio

    a malignidade das regras. A inverso do texto sagrado, o que transfor-ma o velho no novo, em aluso ao discurso bblico de no se colocarvinhos novos em odres velhos, em desprezo ao que velho, agoratomado o velho como sendo o prprio discurso cristo que precisariaser transformado. Para tanto, a desobedincia a toda e qualquer deter-minao, e nunca fazer nada que o mestre mandar, sempre desobede-cer, nunca reverenciar: esse bendito fruto.

    Observado por essa perspectiva, pode-se entender que Belchiorestaria sugerindo um anti-cristianismo. No possvel afirmar se opoeta est no limite do atesmo, ou se a sua re-sistncia se d em face

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    da religiosidade constituda e opresso religiosa crist, pela via dog-mtica. Ao que parece, trata-se da ltima, pois o seu discurso de resgateda vida, tema central do cristianismo, preservado como contedo da

    ao e voz proftica.Ento, se h uma tentativa de resgate do que h de mais puro, emmeio aos dramas ameaadores da existncia na desintegrao do ser, umsonho de paraso perdido e recuperado, e a possibilidade do horizonteproftico ser encerrado com o amor, ao que parece, tais temas so resul-tado de uma cultura ocidental, que existencialmente, na linguagem deTillich, seriam smbolos da preocupao ltima e o desejo existencial deum encontro com a inocncia sonhadora. Se isto estiver correto, o discur-

    so potico e proftico de Belchior, est na trilha de um pensamento cris-to existencial, e sua negao religiosa pode ser mais bem compreendidacomo resistncia a um modelo cristo, que desde o incio mostrou-seterrivelmente aniquilador. Como diria em Quinhentos anos de que?:No sabia o que fazia, no, D. Cristvo, capito. / Trazia, em vo,Cristo em seu nome / e, em nome dEle, o canho, o trocadilho vo,como em vo somado a Cristo, que lhe deu o nome Cristo-em-vo,teria sido o fim do Paraso, e o cristianismo um anti-cristianismo.

    Com outras palavras, ao que parece o cristianismo, na forma comodeveria ser, soluo e sentido ao Paraso, ou inocncia sonhadora, seope ao anti-cristianismo que se mostra latente no preconceito e nacriao do desterro. Sendo assim, o rinoceronte mais decente do queessa gente demente do Ocidente to cristo.

    Apontamentos inconclusivos

    Belchior uma voz proftica, sem dvida. Seu elemento de discurso o contraste, numa luta contra o preconceito. Belchior tambm mencionaa frivolidade da vida, e o medo existencial que est presente num avio,que no se sabe se o medo do simples estar, mas do deslocamento re-presentado pela viagem da vida, apaziguado pelo smbolo feminino, deuma presena quase materna. O medo, na cano, adolescente e a se-xualidade estaria na aeromoa, e no em quem lhe segura a mo, smboloda vida, conduzindo o poeta-profeta s condies ameaadoras da exis-tncia, lugar da desintegrao, para onde jamais seria possvel voltaroutra vez, fuga do paraso e morte, onde seria apenas voz.

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    claro que a denncia de Belchior se reveste de uma natureza pro-ftica em favor da vida. A partir disso, o seu discurso assume uma dimen-so existencial, que no v na prtica religiosa elaborada no cristianismo

    ocidental. No h possibilidade de recuperao das condies puras daexistncia e de qualquer retorno ao paraso. Longe de ser agnstico,Belchior desenvolve temas que podem ser aproximados teologia exis-tencial, tambm denunciadora, de Paul Tillich. Sua voz proftica, aexistncia ameaadora, h um abandono e uma esperana de retorno aoParaso, como inocncia sonhadora, uma no soluo do ser no mundoameaado por uma e uma constante condio desintegradora.

    A pergunta que poderia ser levantada se Belchior intentou uma

    sntese deste sistema. Aparentemente, no. A colocao das temticasexistenciais em sua poesia sugere uma no soluo, como na correla-o, contudo isso seria um tema que excederia o nosso trabalho, tosomente de apontamento entre a potica de Belchior e a teologia dacultura de Paul Tillich, profetismo, existncia e o ser nas condiesameaadoras e desintegradoras da existncia.