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Marcelo Madueña sdb CAPÍTULO I ALGUMAS NOÇÕES DE METAFÍSICA GERAL O Realismo gnosiológico base do realismo metafísico 1. Noção.- Chama-se realismo à posição filosófica que professa a realidade do mundo exterior, quer dizer, de um universo realmente distinto do sujeito que conhece. Universo que pode ser conhecido naturalmente pelas faculdades cognoscitivas humanas. Esta doutrina não é objecto de demonstração, porque não se demonstra o que é evidente, neste ponto estamos de acordo com Gilson e seu «realismo metódico». 2. A evidência realista.- Com tudo, podemos resumir os aspectos da evidência realista. a) O carácter intencional da consciência. O realismo está evidentemente implicado na invencível persuasão do sujeito que conhece, de ser determinado a conhecer por objectos distintos dele. Nenhum argumento é capaz de diminuir este sentimento. É o que em termos técnicos chamamos de carácter intencional do conhecimento: por sua mesma natureza, tende este para um objecto distinto dele para apropriar-se-lho imaterialmente. b) O testemunho da ciência. A ciência implica até a evidência a realidade de um mundo distinto do sujeito cognoscente. É a ciência uma pesquisa paciente e minuciosa, cujos resultados são constantemente confrontados com a realidade, que é a que ordena. c) O sentido comum, ou o acordo dos homens entre si sobre que os objectos da experiência não podem explicar-se senão na concepção realista. Se os objectos fossem só ideias no entendimento, seria inconcebível que meu universo coincidisse constantemente com o universo dos outros, e o dos outros com o meu. 3. O sentido do realismo.- Importa compreender exactamente o sentido do realismo. a) Objecto da inteligência. Ao afirmar a realidade objectiva do ser e a essencial ordenação da inteligência ao conhecimento do ser, o realismo afirma em primeiro lugar que o objecto da inteligência é o ser universal (em toda sua extensão). Daí que nasce em nós a necessidade de o conhecer sempre mais, de penetrar tudo e de abraçá-lo tudo pelo espírito. b) Os limites efectivos da razão humana. Observando, por uma lado, que nossa inteligência encontra-se muna situação encarnada, quer dizer, condicionada em seu exercício por órgãos corporais e pela coordenadas do espaço e do tempo, o realismo não pode esquecer os limites efectivos do nosso conhecimento. Existem, efectivamente, realidades puramente espirituais (Deus, os espíritos puros) que nossa inteligência, ordenada ao conhecimento do mundo sensível (as 1

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CAPÍTULO I

ALGUMAS NOÇÕES DE METAFÍSICA GERAL

O Realismo gnosiológico base do realismo metafísico

1. Noção.- Chama-se realismo à posição filosófica que professa a realidade do mundo exterior, quer dizer, de um universo realmente distinto do sujeito que conhece. Universo que pode ser conhecido naturalmente pelas faculdades cognoscitivas humanas.Esta doutrina não é objecto de demonstração, porque não se demonstra o que é evidente, neste ponto estamos de acordo com Gilson e seu «realismo metódico».

2. A evidência realista.- Com tudo, podemos resumir os aspectos da evidência realista.a) O carácter intencional da consciência. O realismo está evidentemente implicado na invencível persuasão do sujeito que conhece, de ser determinado a conhecer por objectos distintos dele. Nenhum argumento é capaz de diminuir este sentimento. É o que em termos técnicos chamamos de carácter intencional do conhecimento: por sua mesma natureza, tende este para um objecto distinto dele para apropriar-se-lho imaterialmente.b) O testemunho da ciência. A ciência implica até a evidência a realidade de um mundo distinto do sujeito cognoscente. É a ciência uma pesquisa paciente e minuciosa, cujos resultados são constantemente confrontados com a realidade, que é a que ordena.c) O sentido comum, ou o acordo dos homens entre si sobre que os objectos da experiência não podem explicar-se senão na concepção realista. Se os objectos fossem só ideias no entendimento, seria inconcebível que meu universo coincidisse constantemente com o universo dos outros, e o dos outros com o meu.

3. O sentido do realismo.- Importa compreender exactamente o sentido do realismo.a) Objecto da inteligência. Ao afirmar a realidade objectiva do ser e a essencial ordenação da inteligência ao conhecimento do ser, o realismo afirma em primeiro lugar que o objecto da inteligência é o ser universal (em toda sua extensão). Daí que nasce em nós a necessidade de o conhecer sempre mais, de penetrar tudo e de abraçá-lo tudo pelo espírito.b) Os limites efectivos da razão humana. Observando, por uma lado, que nossa inteligência encontra-se muna situação encarnada, quer dizer, condicionada em seu exercício por órgãos corporais e pela coordenadas do espaço e do tempo, o realismo não pode esquecer os limites efectivos do nosso conhecimento.Existem, efectivamente, realidades puramente espirituais (Deus, os espíritos puros) que nossa inteligência, ordenada ao conhecimento do mundo sensível (as

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essências das coisas materiais, diz S. Tomás), não pode apreender em si mesmos, senão somente por analogia com o sensível. E assim, por exemplo, pensamos o espírito por analogia com o que temos de mais leve e menos material no mundo dos corpos (spiritus, ar, sopro).c) O domínio próprio da inteligência humana. Dentro destes limites é como exerce suas actividades nosso conhecimento, como em seu domínio próprio, domínio amplíssimo que encerra as naturezas materiais e tudo o que pode ser conhecido por elas, o ser em toda sua extensão universal, suas leis e divisões gerais, a Causa primeira do ser e os princípios da ordem moral. Ao que se deve acrescentar: nossa actividade intelectual e voluntária e, nela, a existência do sujeito pensante e volente, o sujeito que pensa e quer.d) O realismo filosófico não é um realismo ingénuo. É um realismo crítico, quer dizer, preocupado de determinar no real que se oferece à experiência, o que é objectivo e o que pertence à actividade do espírito. Por exemplo, o problema dos universais (estudados no âmbito da lógica e da gnosiologia) responde sobre tudo a esta preocupação crítica. Sua discussão conduz a afirmar que o universo do conhecimento não é uma cópia do universo objectivo, senão uma actividade realizada pela inteligência a partir dos dados sensíveis e correspondendo às realidades da experiência.A experiência, efectivamente, encerra algo inteligível, a saber, as formas e as essências, que junto com a captação da existência são os objectos primeiros da inteligência, enquanto ideias objectivas das coisas. Este mundo de ideias objectivas, que se encontram potencialmente na realidade singular, é o que a inteligência conhece de forma universal. O universo do conhecimento é, pois, o universo real, mas apreendido pelo espírito segundo o modo imaterial que lhe é próprio.e) O realismo frente ao empirismo e ao idealismo. Pode-se compreender como o realismo crítico permanece equidistante do empirismo sensualista e do idealismo, e conserva de um e outro o que ambos encerram de verdade, ensinando, por uma parte, que nosso saber tem seu origem nos dados sensíveis, e, por outro lado, que a inteligência constrói, a partir destes dados, um universo inteligível o universo de ideias que se corresponde com as ideias (formas e essência) imanentes aos objectos da experiência.

Metafísica geral

4. Noção.- A Metafísica geral é a ciência que estuda o ente enquanto ente, e as características que pertencem ao ente como tal. Ente é tudo aquilo que existe, tudo aquilo que tem ser. A noção de ser é certamente a mais alta abstracção a que nos é possível chegar, quando em certo modo despojamos aos seres singulares de todo o que os distingue e faz deles tal o qual ser determinado.

5. Método.- Mas, cuidado! o método da metafísica não é a abstracção. O nosso intelecto realiza dois operações: A simples apreensão ou intuição onde capta o relativo à essência ou «quididad» da coisa (quid est?) fazendo abstracção da

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existência; e os juízos onde separa na mente o que está separado na realidade (negação) ou une na mente o que está unido na realidade (afirmação). Ora, segundo Tomás, a metafísica que se ocupa do ente enquanto ente, trabalha no âmbito dos juízos, por isso, no comentário ao «De Trinitate» de Boécio, afirma que o método próprio da metafísica é a separatio (separação) que não é abstracção. A separatio leva um juízo implícito. Se ente é aquilo que é (id quod est), quer dizer que, quando digo «ente» implicitamente estou dizendo que isso «existe», que possui o acto de ser (esse) seja qual for sua nota essencial. Em definitiva, o que é que pode separar ou abstrair nossa mente quando faz metafísica? Pode separar a matéria e o movimento, não a existência (o esse). E o pode fazer porque não necessariamente o ente está unido à matéria e en consequência ao movimento, tem entes que não estão em matéria porque não é essencial ao ente existir em matéria, mas sim é essencial ao ente enquanto tal existir. Portanto, a separatio implica:a) Um juízo afirmativo que une os dois elementos que sempre estão unidos na realidade, a essência e o ser com um juízo existencial. Inclusão da existência no ente objecto da metafísica mediante um juízo implícito.b) Um juízo negativo que separa ao ente da matéria e o movimento. Posso fazê-lo porque na realidade não estão necessariamente unidos, evidentemente que alguns entes são materiais, mas não o ente enquanto ente, por isso, a metafísica pode transcender o corporal.c) Juízo afirmativo parcial que une o ente e a matéria ali onde na realidade estão unidos, porque os entes corpóreos são materiais.Com o primeiro ponto (a) afirmamos que a metafísica não é ciência do abstracto, do possível, sendo o método da metafísica a separatio não pode prescindir do acto de ser dos entes.Com ponto segundo (b) afirmamos que a metafísica transcende a matéria. Embora o ponto de partida seja a matéria, a transcende pela imaterialidade do ente.Com o ponto terceiro (c) afirmamos que a metafísica também se abre aos entes materiais e em movimento, já que alguns deles estão «em» matéria.Em conclusão: não partimos de um ente espiritual angélico, senão dos entes materiais concretos para chegar aos entes espirituais concretos (concreto não significa «material» senão «ente particular existente»). Desta maneira a metafísica apresenta-se como realista, existencial, e não uma metafísica do ente lógico ou de razão (impropriamente chamado ente). De agora em diante tenhamos em conta que sempre que falemos do ser o faremos no sentido existencial, o ser é o que existe. Quando usemos o termo ser em sentido abstracto o faremos notar explicitamente no texto.

6. Objecto.- A Metafísica tem, pois, por objecto todos os entes enquanto são e não enquanto são tais ou quais seres determinados. É por isso a ciência mais universal com a máxima extensão, abarca desde um ser inanimado até mesmo Deus.

7. Divisão.- O ser pode ser estudado em si mesmo, ou em suas grandes divisões ou também enquanto causa.

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A) O ser em si mesmo

8. O ser não é um género.- Poderíamos imaginar que, sendo os diversos seres espécies de seres, o ser em geral fosse o género supremo.Mas isto é impossível. Sempre que há relação de género a espécie, esta acrescenta realmente ao género uma nota que o género não contém: «racional» é uma nota que no contém o conceito de «animal». Mas, ao ser não se lhe pode acrescentar nada, porque tudo o que é, é ser. Portanto, o ser não é um género.Em outras palavras, se o ser fosse um género supremo, todas as notas que servissem a diversificar o ser estariam necessariamente fora do ser, mas fora do ser é o nada, e o nada, nada pode diversificar, portanto não haveria mais que um só ser. A variedade de seres seria uma aparência ilusória. Esse foi o erro de Parménides, que precisamente considerava o ser como um género.

9. O ser é transcendental.- Quer dizer que é uma noção que transcende ou ultrapassa todas as categorias do ser e se aplica a todo o que é, de qualquer forma que seja. Com efeito, cada categoria de ser diz o que é o ser (por exemplo, o ser é substância, qualidade, relação, etc.); mas nenhuma o diz adequadamente (o ser não é só substância, senão também acidente; não só é qualidade, senão também a quantidade é ser, etc.). Diremos, pois, que o conceito de ser é imanente a todas as categorias, enquanto todas elas são ser, porém as transcende a todas, enquanto que, como tal, está sobre todas elas.

10. Ser finito e Ser infinito.- O conceito de ser transcende não só a cada categoria de ser singular, senão também a todas as categorias juntas, porque abraça -embora sob aspectos essencialmente diferentes- a uma vez os seres finitos (que se dividem em categorias) e o Ser infinito (que está por cima das categorias).

11. O ser é análogo.- Devemos distinguir o termo unívoco, o termo equívoco, e o termo análogo (ou analógico).a) Unívoco se diz de um conceito que pode atribuir-se de maneira absolutamente idêntica a diversos sujeitos. Por exemplo, o conceito de homem se aplica univocamente a Pedro, a Paulo, a um africano e a um asiático.b) Equívoco de diz de um nome que se aplica a diversos sujeitos mas em sentido totalmente diferente. Por exemplo, «ursa» termo referido a uma constelação celeste e a um animal. O equívoco não pode jamais ser um conceito, senão uma palavra que se aplica a distintos conceitos.c) Análogo se diz de um conceito referido a realidades essencialmente diversas, mas que têm entre si certa proporção. É pois intermédio entre equívoco e unívoco e designa uma noção que se aplica a vários sujeitos em um sentido nem totalmente idêntico nem totalmente diferente. Assim, saúde é uma noção análoga enquanto aplica-se a um alimento, a um corpo, ou ao rosto. Efectivamente, o alimento conserva a saúde, o corpo possui a saúde, o rosto expressa a saúde.

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12. As espécies de analogia.- Distinguem-se:a) Analogia de atribuição, que é a de um termo ou um conceito que convém a muitas coisas em razão de sua relação com outra, à que unicamente aplica-se o termo própria e principalmente. Assim o termo são se diz própria e principalmente do corpo; porém por analogia aplica-se igualmente ao alimento e ao clima, que produzem a saúde no corpo, e ao rosto que revela a saúde corporal.b) Analogia de proporcionalidade, que é a de um termo o de um conceito que convêm a muitas coisas em razão de uma semelhança de relação. Assim se fala da «luz da verdade», querendo dar a entender que a verdade é a inteligência o que a luz do sol é aos olhos do corpo. Temos aqui, como se pode ver, uma proporção de relação, que poderíamos traduzir desta maneira:

verdade = luz inteligência visão corporal

13. A analogia do ser.- Agora vê-se que a noção de ser só pode ser analógica. O ser, com efeito, só se pode dizer dos entes em parte semelhante e parte diferente. A ideia de ser convém a todos os seres, sejam o que forem: a Deus, ao anjo, ao homem, ao cão, a árvore, a vida, etc. Mas não convém a todos os seres em idêntico sentido, porque cada um deles é ser de uma maneira absolutamente especial e própria: o ser de Deus é essencialmente distinto do ser do homem; o ser da planta é essencialmente distinto do ser do animal, etc. Entre este seres dizemos que há relação de analogia.

14. A complexidade da ideia de ser e sua unidade relativa.- A noção de ser, por ser relativamente una, é complexa e um tanto confusa. É assim porque:a) A noção de ser, em sua mais alta universalidade, compreende todas as maneiras, reais ou possíveis, como o ser pode existir. Como já dizemos a noção de ser conota a existência, quer dizer que não podemos pensar essa noção sem referi-la à variegada multidão de modos de existência. Desde este ponto de vista, a noção de ser é essencialmente diversa, porque o ser pode ser realizado e de facto se realiza de múltiplas maneiras, a noção do ser deve conter essa diversidade.b) Mas, por outra parte, só confusamente contém esta diversidade, no sentido de que abraça a universalidade dos seres, sem representar a nenhum em particular. Desde este ponto de vista, a noção de ser possui certa unidade, a saber: enquanto que, encerrando vagamente a ideia da diversidade dos seres, faz separação deles. Esta unidade, como se compreende, é imperfeita e informe. E daí nasce o sentimento de confusão que produz esta noção e em geral a noção analógica.c) Esta noção de ser a possuem necessariamente todos os homens, desde o momento que começam a pensar. Porém, em quem não é filósofo, tem um carácter de confusão que indica que nele não há consciência plena da complexidade da noção. O contrário sucede ao filósofo, quando reflexiona sobre a noção de ser. Não é que suprima dela a confusão que lhe é essencial, mas descobre as razões desta confusão; e é uma grande claridade saber porque é necessariamente confusa a noção de ser.

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As propriedades transcendentais do ser. Noções gerais

15. As três propriedades transcendentais.- Tudo o que existe é uno, verdadeiro e bom. Estas três propriedades acompanham inseparavelmente ao ser e são uma mesma coisa com ele. É o que expressa o axioma: «A unidade, a verdade e a bondade são conversíveis com o ser». Por isso se lhes chama transcendentais, enquanto se identificam realmente com o ser que é transcendental.

16. Relação do ser e de suas propriedades.- Acabamos de dizer que os transcendentais coincidem realmente com o ser. Efectivamente, como o ser não é um género, não é susceptível de receber um atributo que o determine «de fora» (como a diferença específica determina a um género, que não a contém em si). Todas suas determinações lhe vem, pois, «de dentro», por via de explicitação. Neste sentido, as propriedades de uno, de verdadeiro e de bondade nada real acrescentam ao ser, pois elas mesmas são ser. O ser as contêm necessariamente. Elas não fazem senão pôr em relevo os diferentes aspectos do ser; por esta razão não são simples tautologias.

17. Dedução das propriedades transcendentais.- O ser pode ser considerado já em si mesmo, já relativamente:a) Considerando-o em si mesmo, absolutamente, nada se pode dizer do ser, senão que o ser é.b) Considerando-o também em si mesmo, mas negativamente, percebe-se que é indiviso em si mesmo, quer dizer uno.c) Relacionando-o com a inteligência, descobre-se que o ser é verdadeiro; colocando-o em relação com a vontade, aparece como bondade. O mal, que o contrário do bem, é pelo facto mesmo o contrário do ser, quer dizer que é o não-ser, ou, em outros termos, privação de um bem devido a uma natureza.

A unidade.18. A unidade exclui a divisão em acto.- Todo ser é uno por essência. Efectivamente, o ser pode ser simples ou composto. Mas o que é simples não pode ser senão indiviso, por definição. O que é composto não tem ser (quer dizer, não existe) entanto suas partes estão separadas; e só o tem quando suas partes estão reunidas e formam o mesmo composto.

18. A noção de unidade é analógica.- O ser não é uno univocamente, senão analogamente.A analogia da unidade resulta da analogia do ser, já que o ser e o uno são conversíveis, que dizer que, se todos os seres são unos (ou indivisos) por ser seres, cada classe de ser é uma com a unidade que lhe é própria.Por outra parte é o que a experiência nos ensina claramente, pois vemos que a

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unidade interna dos seres encerra diversos graus, desde o todo essencial (um homem, uma árvore), até o todo acidental (uma casa, uma máquina). Por debaixo desta unidade acidental, existe toda uma gama de unidades de continuidade (o voo da ave, a trajectória da pedra), que são obra da inteligência humana. A unidade se encontra onde quer que se encontre ser; porém encerra a mesma flexibilidade analógica que o ser, com o que comparte a necessária transcendência.

19. Divisão da unidade transcendental.- A unidade transcendental compreende:a) A unidade da simplicidade. Esta unidade é a que corresponde ao ser que carece de partes. Só Deus exclui absolutamente toda espécie de composição, quer dizer que o Ser divino é absolutamente simples e perfeitamente uno.b) Unidade da composição. Esta unidade é a do ser que está composto de partes.Distinguem-se neste caso diversas categorias, a saber: a unidade essencial, ou unidade do que não tem mais do que uma essência, por exemplo a unidade de um corpo orgânico, de um homem ou de um cavalo, e a unidade acidental, ou unidade do que tem muitas essências: esta unidade acidental pode resultar bem de uma união extrínseca, ou desde fora, dos elementos que a compõem: um monte de pedras, uma mesa, um aparato de radiofonia; ou bem, de uma união intrínseca, ou desde dentro, dos elementos: por exemplo, a união de Pedro com a ciência que possui.

A verdade

20. A verdade transcendental.- Já sabemos a distinção que se faz entre verdade transcendental e verdade lógica. Esta expressa a conformidade da inteligência com o que é. É, pois, uma qualidade ou propriedade da inteligência. A verdade transcendental é uma propriedade dos seres, porque é o ser mesmo das coisas, enquanto inteligíveis, quer dizer cognoscíveis pela inteligência.

21. A inteligibilidade.- Daqui vê-se que a inteligibilidade (ou cognoscibilidade) é uma propriedade transcendental que acompanha ao ser inseparavelmente, mas em diversos graus, em todas suas determinações. O ser, posto em presença de uma inteligência, é inteligível tal qual é. E reciprocamente, a inteligência está, por natureza, aberta à universalidade do ser, pois, segundo acabamos de ver, o ser, como tal, é inteligível. Diremos, pois, que, estando a inteligibilidade em correlação com o ser, as coisas são inteligíveis em proporção ao ser que possuem.Porém, a inteligência está submetida, em nós, a certas condições que limitam sua extensão e alcance. Como já dissemos, nossa inteligência enquanto encarnada (humana), está ordenada ao ser da experiência sensível. Daí segue-se que tudo o que está sobre o sensível, embora seja mais inteligível em si (já que quanto mais imaterial é um ser, mais acessível à inteligência), de facto para nós é menos inteligível. É o que acontece com Deus, sendo o «ipsum esse subsistens» é o supremo inteligível in se, mas quad nos, será sempre Deus absconditus. Do mesmo modo, o que está por debaixo do ser propriamente dito, quer dizer o que é potencialidade ou virtualidade, nos é imperfeitamente inteligível. Nosso

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conhecimento desenvolve-se, pois, entre duas zonas obscuras: uma possui demasiada luz para nossa inteligência e nos cega; a outra tem demasiada pouca para nossa capacidade intelectual.

O bem

22. Relação com a tendência.- Em primeiro lugar, a bondade expressa relação a uma tendência: o ser é bom enquanto é capaz de satisfazer uma necessidade ou um desejo. A bondade, propriedade transcendental, não faz outra coisa que expressar em forma explícita a relação de conveniência que existe entre o ser e a tendência.

23. O bem transcendental.- O bem, por ser termino da tendência e do desejo, aparece como sendo por natureza ser e perfeição, já que todos os seres desejam a perfeição de seu ser. Assim, o bem e o fim coincidem: todo fim é um bem e todo bem é um fim o pode sê-lo.O fim pode apresentar-se em certa medida de dois modos ou graus: como desejado por quem ainda não o conseguiu, ou como deleitável e objecto de amor para quem o possui. Pois bem, esses são precisamente os caracteres do ser, que é ao mesmo tempo objecto de desejo e fonte de deleitação e de gozo. É, pois, como tal, um bem, e dai segue-se que o bem e o ser são conversíveis: tudo o que é ser é bom enquanto é ser e na medida em que o é.

24. As três espécies de bem.- O bem pode-se dividir em bem útil, deleitável e honesto.a) O bem útil. É o que serve de médio para conseguir um bem. Todo seu valor de bem, enquanto é útil, consiste, pois, na sua capacidade de procurar outro bem; em si mesmo pode não ter nenhum atractivo (a medicina ou a operação para o enfermo).b) O bem deleitável. É aquele que traz goze e alegria: como uma obra de arte, o desporto ou o jogo.c) O bem honesto. É o que nos atrai, não pela utilidade ou o goze que nos procura senão em primeiro lugar pela perfeição que nos traz.É evidente que o bem primeiro e propriamente dito é o que corresponde ao fim essencial do ser (que é dar a perfeição): o bem honesto. O bem deleitável é verdadeiramente, enquanto deleitável, um fim da tendência, mas no seu fim último, porque o goze não é a totalidade do bem, senão só um aspecto do bem. Finalmente, o útil encontra-se evidentemente no último grau do bem, pois não é fim, é médio.

25. O mal.- O mal, que é o contrário do bem transcendental, consiste, para um ser, na privação de um bem que lhe deveria pertencer. É uma falta ou deficiência de ser. Estes termo de «privação», «falta» e «deficiência», servem para fazer-nos entender que se trata, não da pura e simples ausência de uma perfeição qualquer, mas da ausência de um bem necessário à integridade de um ser determinado. Assim, a cegueira é um mal para quem deve ver (privação), mas não para uma

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bactéria, à qual não corresponde ver (negação).

B) As divisões do ser

26. O ser não existe absolutamente em forma indeterminada. Só os seres, que dizer os indivíduos, existem verdadeiramente. Pois bem, estes indivíduos, poder ser agrupados em grandes categorias que constituem a primeiras divisões do ser e as suas determinações mais gerais. Estas grandes divisões são as da substância e dos diversos acidentes. Além disso, o ser pode-se dividir em toda sua amplidão, em acto e potência. Sendo esta última divisão a mais geral, por ela vamos começar.

O acto e a potência

A distinção da essência e da existência é a que melhor nos faz penetrar na divisão em potência e acto.

27. Essência e existênciaa) Noção. Analisando a ideia de ser, vê-se que o ser pode tomar-se em dos sentidos. Primeiro, como significando o acto de existir (a existência) como nestas proposições: «César existiu realmente», «Pedro lê» (está lendo); em ambos casos, afirma-se a existência de uma coisa, de César e do acto de ler.O ser também pode ser tomado como designando: primeiro, o que é ou pode ser, quer dizer o sujeito actual ou possível da existência; e assim nas proposições «Pedro lê», «o homem é racional», «o muro é branco», as palavras Pedro, homem, muro são os sujeitos em que existem o podem existir a leitura, a razão ou a brancura; segundo, o que é uma coisa: Pedro é homem, este muro é branco, César foi um grande general. Estas últimas acepções formam o que se chama, em sentido amplo, a essência.Tomada em seu sentido estrito, a essência é aquilo pelo que uma coisa é o que é e diferencia-se de qualquer outra (animal racional expressa a essência do homem, quer dizer aquilo pelo que o homem é homem). Esta essência é a que formula a definição por género próximo e deferência específica.b) Propriedades da essência. A essência, entendida em sentido estrito, é: o ser necessário, não no sentido de que exista necessariamente (propriedade que só convém a Essência divina, como veremos na Teologia filosófica), senão no sentido de que é impossível pensar uma coisa como privada da sua essência, porque isso equivaleria a pensá-la ao mesmo tempo como sendo e não sendo o que é. Impossível pensar o triângulo com só dois ângulos, ou pensar uma pedra como dotada de inteligência. É também o primeiro princípio de inteligibilidade, enquanto por ela cada ser é primeiro inteligível (quer dizer cognoscível pela inteligência) e por ela se explicam todas suas propriedades: pela essência «animal racional» se compreende em primeiro lugar o ser «homem» e as propriedades de este ser: mortalidade, capacidade de rir, sujeição a dor, etc.c) Todos os seres criados se compõem de essência e existência. O qual equivale

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a dizer que não existem em razão do que são. Sua essência não implica sua existência, isto é, o acto que a faz existir. Poderiam, pois, não existir: trata-se dos seres que em termos técnicos chamam-se contingentes.Um célebre problema que coloca a distinção de essência e existência consiste em saber se, em um ser singular, a essência é realmente distinta da existência, quer dizer do acto que a faz existente. Os tomistas sustém a distinção real. Deve-se dizer também que distinção real não significa necessariamente separação, nem sequer possibilidade de separação (a brancura é real e distinta do papel em que escrevo, mas não é possível separá-la dele).

28. Potência e actoa) As noções de acto e de potência vão já implicadas na distinção de essência e existência. Efectivamente, a essência aparece como o que pode existir, como em potência de existir; e a existência é o que dá a essência o acto de existir, o que faz dela um ser em acto.b) As noções de acto e potência nos são sugeridas pelo fenómeno do devir. Toda mudança consiste no passo da potência ao acto. A água se converte em vapor; é, pois, vapor em potência. Tal árvore dá frutos: o fruto está, pois, em potência na árvore. Vapor e gelo são diversos actos da água, assim como o fruto é o acto da árvore. Vê-se, pois, que a potência é a aptidão de chegar a ser ou devir alguma coisa. Por sua vez, o acto é ou bem o estado do ser que adquiriu ou recebeu a perfeição para a qual estava em potência, ou bem o exercício de uma actividade que faz passar a um ser da potência ao acto (o acto neste último sentido, chama-se acção ou acto segundo).c) A potência é algo real no ser: Assim, para a água, a capacidade de se fazer vapor ou gelo. Os seres não se convertem em qualquer coisa.

29. Axiomas.- Sobre o acto e a potência, enunciam-se alguns importantes axiomas.a) Uma coisa não é perfeita senão enquanto está em acto. Assim, a perfeição da árvore consiste dar frutos.b) O ser age na medida em que está em acto: efectivamente, agir é produzir algo, isto é, realizar um acto; mas ninguém dá o que não tem.c) Todo ser capaz de mudança está composto de potência e acto: de acto, pois ao presente possui um estado determinado; de potência, por ser susceptível de receber outro estado.d) A potência não pode passar ao acto a não ser pela acção de um ser em acto, porque o menos não pode produzir o mais; todo efeito tem uma causa proporcionada.

As categorias. Noções gerais

30. Definição .- Chamam-se categorias (ou predicamentos) aos géneros supremos do ser. Estes géneros supremos são modos do ser e não espécies do ser, porque o ser, como vimos, não é um género. Definisse-os como os modos mais gerais como pode existir o ser.

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31. Divisão .- O ser é substância ou acidente. Chama-se substância a um ser ao que compete existir em si e em razão de si. À substância opõe-se o acidente (etimologicamente: o que sobrevem a uma coisa) que é um ser que não pode existir em si, senão só num sujeito.À substância pertence em primeiro lugar o nome de ser. O acidente é modo de ser mais bem que ser.

32. A noção de substância .- A noção de substância é primitiva. Nasce da percepção do devir, que obriga a distinguir, no mesmo sujeito, realidades mudáveis e uma realidade permanente. A água que aquece no fogo é a mesma água que estava fria um pouco antes. Pedro está sucessivamente alegre, triste, irritado, saudável, enfermo: é a mesma pessoa em todos esses estados. Este ancião é o mesmo indivíduo que antes era menino. A realidade permanente é a substância. A reflexão permite precisar esta noção de substância, dando-nos a entender que a substância é, mas fundamentalmente todavia, uma coisa apta para existir em si (e não num sujeito que a receberia) e por si, quer dizer, em razão daquilo que é.A propriedade essencial da substância é, pois, existir por si e em si e não num sujeito já existente: a virtude não pode existir senão num ser racional; a brancura não pode existir senão numa coisa material, etc.

33. Os acidentes.- Temos tantos modos de ser acidentais (ou acidentes) quantas são as formas de atribuir um predicado a um sujeito. E de um sujeito pode-se predicar:1º que é branco, negro; hábil, ditoso, alegre, caritativo, etc.: qualidade;2º que é grande ou pequeno: quantidade;3º que está perto ou longe, que é pai ou filho, etc.: relação;4º que caminha, guia, fala, etc.: acção;5º que está ferido, que é guiado, etc.: paixão (em sentido de padecer);6º que está em Angola ou Zambia: lugar;7º que está de pé, deitado, sentado, etc.: situação;8º que nasceu em 1977, que Alarico saqueou Roma em 410: tempo;9º que a gente está armada, calçada, etc.: ter.Tais são com a substância, as dez categorias (ou predicamentos) distinguidos por Aristóteles.

C) As causas

Noções gerais

34. Definições .- Chama-se princípio àquilo de onde procede uma coisa, de qualquer modo que seja. Assim, toda causa é princípio, mas não todo princípio é causa, porque o termo causa só se emprega para designar aquilo de que uma coisa depende enquanto à existência. Chama-se efeito ao que provém da acção

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causal e consequência ao que resulta do princípio.

35. Análise da causa .- O análise revela três elementos ou condições na noção de causa. Por um lado, a causa deve ser realmente distinta do efeito. Portanto, a causalidade não se confunde com a actividade: agir não é necessariamente causar ou produzir. Por outro lado, o efeito deve depender realmente da causa, pois é produzido pela virtude da causa. E por último, a causa deve ter sobre o efeito prioridade de natureza. Dizemos «prioridade de natureza» e não de tempo, porque a causalidade é uma relação que não implica necessariamente o tempo (ou a sucessão). E até deve dizer-se que, considerados no que têm de essencial, o exercício da acção causal e a produção do efeito são coisas simultâneas e indivisíveis.

36. Causa, condição, ocasião .- Há que distinguir com sumo cuidado estes três conceitos. A condição é uma coisa que permite à causa produzir seu efeito, ora positivamente, a título de instrumento ou de médio (o arco é para o violinista condição da melodia que vai a tocar), ora negativamente, separando os obstáculos (o pianista deve afinar o piano se quer tocar bem).A ocasião é uma circunstância acidental que cria condições favoráveis à acção (o bom tempo é a ocasião que me decide a sair de passeio). Nem a ocasião mais feliz, nem a condição mais indispensável (chamada conditio sine qua non) podem ser confundidas com a causa propriamente dita, porque o efeito não depende delas essencialmente.

As quatro espécies de causaAs causas são quatro: eficiente, material, formal e final. Tais são, pois, as quatro maneiras como se pode contribuir à produção duma coisa.

[1] A causa eficiente

37. Definição .- A causa eficiente é aquela que, pela sua acção física, produz o efeito. O escultor é a causa eficiente da estatua.

38. Divisão .- A causa eficiente pode-se dividir em: causa principal e causa instrumental; causa essencial ou acidental; causa primeira ou segunda; e em sentido amplo causa física ou moral.a) Causa principal e causa instrumental. A causa eficiente é causa principal, quando se move e age pela sua própria virtude (o escultor que trabalha o mármore, o arquitecto que constrói a casa); ou causa instrumental, quando está ao serviço da principal (o martelo do escultor; o pedreiro que executa os planos do arquitecto).A acção é comum à causa principal e à instrumental, mas por diferente razão. A acção é toda inteira, mas não totalmente, efeito da causa instrumental (a casa é , inteira, produto da actividade dos pedreiros, marceneiros, etc.; mas não o é totalmente, porque o plano da casa não é obra deles). Ao contrário, a acção é toda

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inteira e totalmente o efeito da causa principal, enquanto esta determina e dirige toda a actividade da causa instrumental.Dai que o efeito se assemelhe à causa principal e não à causa instrumental: o estilo da casa revela ao arquitecto que a pensou e não ao pedreiro. Pode também, a pesar de tudo, levar a marca do instrumento, na medida que este exerceu sua própria actividade junto com a acção da causa principal (quer dizer que foi, para um parte da obra, causa principal): assim se pode reconhecer, na construção, o estilo próprio do pedreiro.b) Causa essencial e causa acidental. A causa, principal ou instrumental, pode ser causa por si (ou essencial) ou causa por acidente (ou acidental). A primeira é a que produz o efeito próprio para o qual está ordenada: por exemplo, a operação que sara o enfermo. A segunda é a que produz um efeito para o qual não estava ordenada: a operação que mata o enfermo; outro exemplo, é o acto do escavador que, ao abrir um buraco para plantar uma árvore, encontra um tesouro. Dai se vê que o efeito da causa acidental, ao contrário do da causa principal, não tem razão de fim, por produzir-se fora da intenção do agente. Exemplo disto é o que acontece na casualidade, que é propriamente uma causa acidental.c) Causa primeira e causa segunda. A causa principal pode ser causa primeira ou segunda, segundo seja princípio primeiro ou intermediário da acção. Pelo mesmo, toda causa principal é primeira e toda causa primeira é necessariamente principal.Da mesma maneira, toda causa segunda é instrumental com relação à causa primeira da qual depende. Porém pode, sob outro aspecto, ser também causa principal; o mesmo que a causa primeira pode ser primeira só sob certo aspecto definido e causa segunda sob outro aspecto. Vemos que só Deus é causa absolutamente primeira e independente: todas as outras causas agem dependendo de Deus, causa primeira universal, e, como tais, as outras são causas segundas.d) Causa física e causa moral. Chama-se causa física aquela que age por um influxo físico. Ora, por «influxo físico» não deve entender-se uma actividade de ordem sensível e material, senão só um influxo real: assim o arquitecto é causa física da casa, enquanto que ordena toda a actividade dos operários.A causa moral é aquela que consiste somente em determinar moralmente a um agente racional a exercer sua actividade própria; assim sucede com os conselhos dados a um amigo. A causa moral, assim entendida, só impropriamente chama-se causa eficiente e relaciona-se mais bem com a causalidade final.

39. Acção e paixão .- Agora podemos aprofundar a noção de causalidade eficiente, estudando as relações entre a acção e a paixão ou, o que é o mesmo, as relações entre o agente e o paciente.a) A causa não muda pelo facto da acção. Efectivamente, a causalidade como tal, só se refere ao acto de produzir uma coisa; o qual não quer dizer que o agente que actua tenha que mudar, em outras palavras, não implica nenhuma passividade (no sentido de padecer) no agente.Mas, a pesar disso, este princípio não exclui a mudança acidental no agente. É certo que, o agente corporal é sempre modificado, no exercício de sua actividade causal, pela reacção do sujeito sobre o qual actua (o paciente): assim, o martelo aquece ao bater o ferro. Mas o agente não é modificado enquanto age; o é

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somente enquanto recebe uma acção (ou reacção) da parte do paciente. Por isso uma causa eficiente que fosse unicamente causa, sem receber nada (ou padecer) de nenhuma outra causa, permaneceria sempre idêntica totalmente a si mesma. Isso acontece com Deus, causa primeira universal.b) A acção está no paciente. O termo acção toma-se aqui no sentido de efeito produzido. Como tal, a acção não está na causa senão como num princípio; seu término está no paciente que sofre uma modificação. A acção, constitui, pois, com a paixão, uma só e idêntica realidade, que expressa, enquanto acção, uma relação do agente ao paciente, e como paixão, uma relação do paciente ao agente.c) O efeito preexiste na causa. Este axioma significa, não só que o efeito preexiste virtualmente na causa, senão também que preexiste nela de uma maneira mais perfeita de o que existe em si mesmo, enquanto produzido e realizado. Porque, por uma parte, se a causa não possuísse virtualmente toda a perfeição do efeito, este viria do nada, ou, que o mais vem do menos, o qual é absurdo. Por outra parte, o efeito, antes de ser produzido, não é outra coisa que a causa como potência de produzi-lo, e, realizado, não é outra coisa que um aspecto parcial da perfeição da causa, o qual equivale a dizer que a causa é necessariamente mais perfeita que o efeito.

[2] Causa material e causa formal

40. A causa material.- Dá-se este nome à matéria de que está feita uma coisa, dito de uma forma mais técnica, o que concorre à constituição de um composto como parte intrínseca determinável. Porque num composto, a matéria é o princípio determinável (ou potencial); entanto que a forma é o princípio determinante (ou actual).

41. A causa formal .- Compreende-se, pelo que antecede, que causa formal é sinónimo de forma, já que a forma é o que concorre à constituição de um composto, como parte intrínseca determinante e especificadora. Assim, a alma humana, ao sobreviver ao corpo. constitui um ser humano.

[3] A causa final

Noção42. a) Definição. O fim, em geral, é aquilo pelo que se produz um efeito. É, pois, o término da acção, na ordem da execução, e o princípio da acção, na ordem da intenção, já que ele dirige toda a série das operações. Por esta razão é a causa das causas. Por exemplo, Pedro quer ser engenheiro: este fim (intenção) é que vai-lhe conduzir a fazer determinados estudos, a entrar em tal universidade, a fazer tal exame, etc. Quando tenha obtido o título de engenheiro, o fim (ou a intenção) estará realizado e toda a série de actividades ordenadas por esse fim se terão terminado igualmente. O fim é, pois, à vez o princípio e o término de uma acção.

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b) Natureza da causalidade final. Como explicar a causalidade do fim, isto é, sua propriedade de mover ao agente a produzir alguma coisa? Evidentemente, o desejo é o princípio do movimento; eu me ponho em movimento quando me sinto solicitado por alguma coisa que se me apresenta como apetecível.Mas a explicação devemos procurá-la além, porque ainda podemos perguntar-nos pela razão do desejo. Por outra parte, sabemos, que a tendência e o desejo põem-se em acto pela apreensão de algum objecto que se apresenta como um bem que convém ao agente. É, pois, fundamentalmente, o bem enquanto desejável, o que da razão da causalidade do fim. Por isso se diz que o fim e o bem são conversíveis.

43. Divisão.- O fim o podemos dividir em fim da obra e fim do agente; em fim principal e fim secundário, em fim mediato e fim último.a) Fim da obra e fim do agente. O fim da obra é objectivo: é o fim ao qual a obra está ordenada por sua mesma natureza: assim, a esmola se destina por si mesma ao alívio do pobre. O fim do agente é subjectivo, porque reside na intenção: aquele que faz a esmola, pode tentar: ou socorrer o pobre, ou que seja tido por generoso. Quando o fim do agente não coincide com o fim da obra, esta se converte num simples médio.b) Fim principal e fim secundário. O fim principal é aquele que se pretende antes que qualquer outro e ao qual se subordinam os demais fins (chamados secundários). Assim um estudante segue sua vocação para servir ao próximo e secundariamente para obter um título.c) Fim mediato e fim último. Quer sejam principais ou secundários, os fins particulares sempre são fins mediatos, e nunca o fim último da acção. Estão, pois, necessariamente subordinados a um fim, que é último e absoluto. Este fim é sempre o bem ou a própria perfeição do agente. Todo os demais fins são particulares e instrumentais com relação a este fim último.

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CAPÍTULO II

CRÍTICA DA RELIGIÃO:

O AFIRMAR-SE DO ATEÍSMO CONTEMPORÂNEO,

OS MESTRES DA SUSPEITA

Humanismo ateio de Feuerbach

1. A. Tese fundamental: Um dos máximos expoentes do humanismo ateio é L. Feuerbach, que junto com Nietzsche, tem contribuído de maneira determinante a plasmar a mentalidade anti-teísta do homem contemporâneo. Seu pensamento encontra expressão paradigmática na "Essência do Cristianismo", a tese central pode-se resumir na afirmação segundo a qual «o segredo da teologia é a antropologia». Em outras palavras, o estudo da divindade (teologia) resolve-se ultimamente na pesquisa sobre o ser humano (antropologia) e isso enquanto o homem é o verdadeiro e único deus do homem. A esta conclusão o autor chega através de um duplo momento investigação, definido como método genético-crítico e compreende uma pars destruens e uma pars construens.

2. B. Crítica da divindade transcendente: A juízo do filósofo a existência de um ser absoluto e transcendente (também na forma assumida pela religião cristã) resulta substancialmente alienante. A presença de Deus é danosa em confronto com as exigências fundamentais do pensamento humano. Cada crente é constrangido a fazer próprias afirmações dogmáticas em contradição com a inviolabilidade da razão humana. O cristão é, por exemplo, obrigado a ver em Deus uma realidade que, ao mesmo tempo é una e trina. Deve violentar as leis da natureza admitindo a possibilidade de intervenções arbitrárias da parte da divindade, a qual através de acções miraculosas realiza coisas absurdas, como fazer falar a um animal irracional (a burra de Balaão).

3. A existência de Deus transcendente resulta alienante de frente à praxis do homem. A nível operativo o crente é chamado a comportamentos intrinsecamente deletérios. Quem anela os tesouros do céu não pode não desprezar os bens fictícios da terra. A história testemunha que a fé deu lugar a comportamentos assinalados pela crueldade, o fanatismo e a intolerância. Em oposição com o amor humano, compreensivo e magnânimo, o rigor dogmático favorece comportamentos duros e despiedados em nome de Deus, como as guerras santas.

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4. A fé resulta alienante para a essência humana enquanto tal. Os deuses são de facto resultado da expropriação das riquezas constitutivas do homem em uma realidade distinta. Por isso, Deus nasce a partir da miséria do homem. O homem todavia não percebe que os atributos divinos lhe pertencem. O erro deriva do facto de projectar inconscientemente os limites provenientes da própria individualidade sobre as riquezas originárias da própria natureza. Por esses motivos a fé num ser sobre-humano deve ser combatida até sua abolição, e isso embora se lhe reconheça à religião a função histórica de ter constituído uma modalidade indirecta de auto-consciência: a percepção da própria grandeza entendida como riqueza constitutiva de outro.

5. C. Génese duma nova religião. A crítica da divindade transcendente não é todavia fim a si mesma. Conduz à instauração de uma religiosidade que encontra na veneração do homem, o antropoteísmo, a sua máxima expressão. Isso é possível com uma dupla condição.Em primeiro lugar deve-se proclamar o carácter infinito e divino do homem tomado na sua realidade essencial. Não já o indivíduo particular, que como tal é finito, limitado, precário, mas a essência humana, a espécie, a Gattung, revela de possuir em forma ilimitada (e portanto autenticamente divina) aquelas perfeições de inteligência, coração e vontade que os crentes projectam em entidades de ordens transcendentes.Ao reconhecimento teorético deve seguir uma praxis que se coloque à serviço exclusivo do homem. Tal praxis postulada o afirmar-se de formas novas de eticidade. De facto, «entanto o princípio supremo da moral cristã diz: "faz o bem por amor de Deus", e o da moral filosófica [kantiana] afirma: "faz o bem por amor do bem", a norma irrenunciável da moral que se baseia no homem proclama: "faz o bem por amor do homem"». Deste modo transformam-se os homens de «candidatos para o céu» em «candidatos para a terra», em sujeitos que empenham seus recursos ao serviço de uma humanidade nova.

Nietzsche e a proclamação da «morte de Deus»

6. A. A proclamação da «morte de Deus». Também a concepção religiosa nietzscheana estrutura-se em dois momentos complementares. O ponto de partida, ou se quisermos, a pars destruens está constituída da proclamação da «morte de Deus». A lenda do louco que em pleno meio dia vai gritando na praça do mercado: «Eu procuro Deus, eu procuro Deus», conclui-se, de frente as risadas e zombarias dos presentes, com a proclamação «Nós o matamos».

7. Tal declaração, que poderia fazer pensar a uma atenuação da proclamação ateia, assume em Nietzsche valores que superam o mesmo radicalismo de Feuerbach. Proclama de facto, em forma altamente dramática, não só que Deus não existe, mas que é uma libertação para o homem que a divindade tenha cessado de estorvar a existência. «Não sentimos nada», grita o maluco, «do estrépito que os cavadores fazem sepultando Deus? Não cheiramos, ainda, o lenço da putrefacção divina? Também os deuses se descompõem. Deus morreu. Deus fica morto!»

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8. B. Motivos de aversão pelo divino. A esta conclusão Nietzsche chega sobre o fundamento da persuasão que a experiência sacral resulta estranha à ideia que o espírito humano tem conquistado de si mesmo. Para o filósofo a fé é uma realidade segura, mas afeminante, entanto que a negação de Deus aparece como um mar carregado de insidias, mas propriamente por isso rico de fascinação. Neste sentido escreveu um dia a irmã: «Se queres conseguir a paz da alma e a felicidade, crê; mas se queres ser discípula da verdade, indaga».

9. A «morte de Deus» constitui portanto o pressuposto da redenção do homem. O «conceito de Deus», afirma Nietzsche, «foi inventado em antítese com o conceito de vida. Nisso reuniu-se, em uma terrível unidade, tudo aquilo que era de danoso, de venenoso, de calunioso, todo o ódio moral contra a vida». O desaparecimento de Deus constitui o desmascaramento da nulidade pestilencial que se esconde detrás do conceito de summum ens e se transforma na desconcertante premissa duma nova mensagem de salvação. O anuncio beatificante que constitui o «evangelho do porvir» proclama: «Deus está morto, agora queremos que viva o super-homem»

10. Por isso, frente à notícia que Deus está morto os filósofos e os espíritos livres sentem-se iluminados pelos raios duma nova aurora: os seus corações pulam de reconhecimento, maravilha, pressentimento, esperança. Esperança que na boca de Zaratustra soa como apelo apaixonado à humanidade inteira: «Esconjuro-vos, meus irmãos, ficai fiéis à terra e não acrediteis àqueles que vos falam de esperança ultra-terrena [...] Eles são desprezadores da vida, eles mesmo moribundos e envenenados. A terra está cansada [deles]: que possam desaparecer para sempre».

11. C. A religião do super-homem. Em antagonismo com a perspectiva de fé que humilha o homem e o degrada, Nietzsche reivindica a necessidade de afastar-se da escravidão reinventando formas de existência que resultam à medida das aspirações profundas do nosso ser.

12. A exigência de pular para além do abismo do nada e de conquistar um mundo novo empurra o espírito a encontrar a nova vida no êxtase dionisiaco. No mundo dos deuses do Olimpo, sublimação poética da nova humanidade, o homem encontra o sustenho da sua vontade imperiosa de viver. Nisso solidifica-se aquele modo de ser renovado que é «existência plena, mais ainda, triunfante», «onde tudo o que está presente, bem ou mal não interessa, é divinizado», naquele posto, nada recorda a ascética, a espiritualidade, o dever, tudo é expressão do eterno prazer da existência.

13. A vida dionisíaca, substituta de Deus, transforma-se gradualmente em vontade de poder. Cada existência observa o filósofo, anela superar-se a si mesma, não fica contente com a própria conservação, mas aspira a ser sempre mais. Quer dominar aos outros e fazer-se patrão deles. É esta a exigência que rige o universo. É esta a potência cósmica que representa a força mais genuína que

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anima a realidade. Contra esta força se coloca a fé religiosa que mortifica a necessidade de afirmação inscrita na vontade de poder. Deus é tudo aquilo de debilita e arruína a humanidade. É só por cobardia que o homem até agora não tem ousado atribuir-se sentimentos de potência irrefreáveis, ao invez, fez dono de tudo ao simulacro divino.

14. À par da religião também a moral tradicional deriva dum cambiamento dos valores vitais. Constitui a desforra dos escravos sobre os patrões, a afirmação de valores vulgares, mesquinhos, contra os valores nobres, sublimes, a exaltação da debilidade contra a potência. Com a religião aparece o senso de pecado e, com isso, a consciência culposa: terrível enfermidade da alma moderna e, ao mesmo tempo, distintivo emblemático de espíritos servis.

15. Urge, portanto, a instauração de novos comportamentos. Impõe-se uma nova ética, a moral dos patrões. Esta atitude, reprimida durante séculos pelo cristianismo, define-se como ética vitalista que encontra na afirmação gaudiosa e triunfante da vida o seu paradigma fundamental. Moral que exclui a piedade, mas não a generosidade, sempre que esta se apresente como expansão espontânea, não como homenagem servil dado a fictícias normas transcendentes. Moral que se baseia sobre a lúcida decisão de pôr a vontade criadora do homem como única fonte, absolutamente livre e autónoma, de todos os valores.

A interpretação psicanalítica de Freud

16. A. Entre afirmação e relativismo. O pensamento de Freud sobre a religião encontra expressão sobretudo em três escritos: O futuro de uma ilusão, Totem e tabu, Moisés e o monoteismo. Nessas obras, junto com o momento em que o autor prospecta suas conclusões com tom categórico, não faltam comentários que revelam a consciência da precariedade das perspectivas atingidas. Freud mesmo se compara com aquele que está na corda bamba, confessa sua insatisfação, reconhece que a religião pertence a um ordem de grandeza que ultrapassa os limites do seu discurso.

17. Entanto que o criador da psicanálise revela, ao menos em certos momentos, a consciência da inadequação de suas pesquisas, os seus primeiros discípulos caracterizam-se pela rigidez dogmática e a exasperação do aspecto morboso da experiência sacral. Nesta linha destaca-se a afirmação de C. Berg que define a religião «um sistema neurótico e psicótico de delírio, sustido em modo autoritário». Também T. Schroeder «cada religião de hoje é só o produto evolutivo substancialmente imutável da perversão psico-sexual»

18. B. A religião forma de sublimação e neurose obsessiva colectiva. No quadro da valorização que Freud faz do inconsciente e da incidência exercitada pelos impulsos de índole sexual, a experiência religiosa é interpretada como resultado da interacção do infra-consciencial com o mundo da consciência. Mais

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precisamente resulta uma forma de sublimação dos instintos de natureza sexual ou, se se prefere, uma desviasão dessas energias em direcção aparentemente opostas.

19. De facto, segundo Freud, os impulsos sexuais são reprimidos pela sociedade que exercita sobre eles uma acção de censura. De frente à repressão o «eu» reage mediante um movimento de defesa que se exprime em comportamentos de compensação e de transfert. Não podendo satisfazer abertamente os próprios impulsos o homem procura compensações sublimando a própria necessidade de sexualidade mediante o recurso a objectos e formas camufladas. Surge assim a religião como compensação consoladora dos instintos reprimidos.

20. O facto que a fé, embora tentando apagar no homem os suas necessidades recônditas, não anula, mas confirma a condenação que sociedade pronuncia sobre os instintos sexuais, radicaliza a situação de conflito na qual o sujeito se encontra. Não anula, mas acrescenta o sofrimento ao ver insatisfeitos os próprios impulsos mais genuínos. Produz-se assim a radicalização de uma forma de neurose obsessiva que não tem só valor individual, mas colectiva. Trata-se de um estado de mal-estar neurótico pelo qual o sujeito reage vendo na religião uma modalidade concreta de desafogar-se em forma travestida, e por isso, tolerada pela sociedade.

21. C. A ideia de Deus produto do complexo de Édipo. O carácter obsessivo da religião encontra confirmação no facto que o fenómeno sacro, e a ideia de Deus que está na base, funda-se ultimamente no assim chamado complexo de Édipo vivido tanto a nível individual como colectivo.

22. Segundo Freud o dogma principal de fé religiosa (em modo particular o monoteísmo cristão) é constituído pela ideia de «pai omnipotente». Tal conceito é resultado da idealização da imagem paterna sob a influência de dois factores: a própria experiência infantil e o assassinato do pai primitivo. O pai, de facto, percebido como bom e potente, mas ao mesmo tempo despótico e concorrente com respeito ao amor materno, gera no infante sentimentos de rebelião e ciúme, pelo qual o menino na própria imaginação mata ao progenitor para ter para si os favores da mãe. Este assassínio imaginário produz graves sentimentos de culpa e a necessidade instintiva de reparação que se traduz na exaltação da ideia paterna.

23. Esta experiência psicológica imaginária, que segundo Freud encontra-se numa série inumerável de casos, encontraria correspondência no assassinato real, efectivo, cumprido na origem da humanidade, por parte dos membros dum grupo primitivo em contra do pai cabeça da estirpe que reservava para si todas as mulheres. Também nesta caso o sentido de culpa e a necessidade de expiação se traduzem no processo de sacralização da ideia paterna, identificada ultimamente num totem (prelúdio da divindade) para o qual se dirigem orações e sacrifícios e entorno a qual se erigem prescrições que assumiram formas de tabu.

24. D. Em conclusão. A origem psicológica da imagem de Deus desmascara

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qualquer pretensão de objectividade. A religião é uma forma de ilusão na qual a humanidade, frustrada em seus desejos originários, busca refúgio inutilmente. Uma ilusão que assumiu relevância histórica enquanto tem representado uma fase necessária da evolução do homem, mas que deve ser superada através de processos de desmistificação. Ela é substituída pela acção dos psicanalistas que se transformam nos novos pastores de almas.

As implicações ateias da crítica marxista da religião

25. A. A galáxia marxista. A interpretação que o marxismo faz da fé no Absoluto enquadra-se no âmbito da concepção redutiva sociológica na qual tem particular relevo, junto a factores de ordem social, elementos de natureza económica. A doutrina marxista, porém, não constitui um bloco monolítico com juízos rigidamente padronizados. Ao contrário, qualifica-se como um conglomerado de interpretações, embora com algumas constantes, pode-se dizer que o conjunto tem a fisionomia da nebulosa mas que de sistema fortemente unido e compacto. Desta maneira não é errado distinguir entre a concepção religiosa do marxismo clássico e as novas perspectivas sustidas no âmbito do que se chama neo-marxismo.

26. B. O pensamento marxista ortodoxo. Segundo a interpretação que se remonta aos textos de Marx e Engels e foi sempre confirmada pela crítica soviética, a concepção do fenómeno sacro e o problema de Deus podem sintetizar-se entorno as seguintes afirmações.

27. [1] Em conformidade com a visão materialista da história o marxismo assume como pressuposto fundamental a convicção que todos os fenómenos da vida associada são condicionados por formas de produção que se instauram entre os homens. As inversões que se operam nas relações de produção, isto é, na base, reflectem-se nos outros campos da vida social, quer dizer, na superstrutura.

28. Ao interno desta última são identificáveis duas esferas distintas em interacção. A superstrutura política (que encontra reflexo paradigmático no estado, no direito, nas instituições políticas) e directamente ligada com a base da qual exprime o reflexo imediato. A superstrutura ideológica, que mantém com a base uma ligação menos directa, é constituída pelas várias formas de consciência social, em particular da ética, da arte, da ciência, da filosofia, da religião.

29. Segundo o marxismo a instância sacra não constitui uma exigência inata do ser humano. Não é reflexo de uma situação congénita e originária do sujeito nem tomado individualmente nem socialmente. Não se perguntava pela existência de um ser transcendente divino. A instância religiosa surgiu como uma execrável consequência de situações socioeconómicas antagónicas entre opressores e oprimidos, portanto, substancialmente negativa. Consequentemente é um epifenómeno secundário do dato histórico principal constituído de relações assinaladas pela injustiça e pela opressão dos pobres (o proletariado) por parte dos ricos (a burguesia).

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30. A religião, portanto, representa uma dimensão profundamente alienante enquanto instrumento de opressão por parte das classes dominantes. Exprime o suspiro da criatura escravizada, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação privada de espírito, o fundamento universal de consolação e justificação. Em uma palavra é o ópio dos povos. E é ópio enquanto tem a função de sufocar o hálito de rebelião da classe proletária, tem a função de paliativo ilusório: sedativo que, entanto atenua o senso de sofrimento, retarda a remoção das causas da opressão.

31. [2] A crítica marxista tradicional, a realizada por Marx e retomada por Engels, vê na realidade divina o produto de uma expropriação das riquezas constitutivas do homem, entendida não à maneira de Feuerbach, como realidade genérica e abstracta, senão de modo concreto, isto é, socialmente e historicamente encarnada.

32. Para Marx a fé em Deus nega o carácter essencial do homem, a sua autonomia. Escreve M. F. Sciacca em “Com Dio e contro Dio” (Vol.II, Milano 1985, p. 297): «Um ente é independente somente quanto está sobre sues pés, e está sobre seus pés quando deve a existência a si mesmo. Um homem que vive por graça de outro é um ser dependente. Mas eu vivo inteiramente por graça de outro não só quando lhe sou devedor da conservação da minha vida, mas também quando é Ele que criou a minha vida; e a minha vida tem necessariamente um princípio fora de mim enquanto que não é a minha criação».

33. A hipótese de uma divindade transcendente, distinto dos seres que constituem o universo, está em contradição com os pressupostos do materialismo dialéctico histórico segundo o qual não há espaço para realidades originárias diversas da matéria. Escreve Engels: «Esta filosofia dialéctica anula todas as noções de verdade absoluta, definitiva, e de estados absolutos da humanidade que se lhe correspondem. Não há nada de definitivo, de absoluto, de sacro diante da filosofia dialéctica. Ela mostra a caducidade de todas as coisas e nada subsiste diante dela se não o processo ininterrupto do devir e do perecer, do ascender sem fim do degrau inferior ao superior, e ela mesma não é outra coisa que o reflexo no cérebro pensante».

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CAPÍTULO III

CRÍTICA DA RELIGIÃO:

O AFIRMAR-SE DO ATEÍSMO CONTEMPORÂNEO

RESPOSTA AOS MESTRES DA SUSPEITA

1. O problema do ateísmo tanto histórico como prático nos interessa por dois motivos: primeiro, porque devemos «dar razões da esperança que há em nós» (cf. 1Ped. 3,15); segundo, porque as razões dos não crentes, a final, revelam-se extraordinariamente eficazes para purificar a mesma fé em Deus dos crentes.

2. Há um raciocínio que seduz pela sua extrema simplicidade, dando a impressão de clarificar de golpe tudo: «Não é Deus quem tem feito o homem a sua imagem, mas é o homem que se tem feito um Deus a sua imagem ... Quando adora Deus, o homem adora, sem sabê-lo a si mesmo, e quanto mais adora Deus, mas adora-se a si mesmo».

3. Trata-se duma espécie de revolução copernicana no campo espiritual. Se até agora sempre se tinha pensado que a matéria é uma manifestação do espírito, agora se proclama que o espírito é uma derivação da matéria. É a visão platónica da realidade invertida. Não é mais a matéria projecção, sombra e imagem ilusória do mundo divino e espiritual, mas, ao contrário, é o mundo divino que é projecção e imagem ilusória do homem histórico e da natureza.

4. Quem escuta o anuncio cristão sobre Deus, sobre Jesus Cristo e a vida eterna com essa pressuposição reage exactamente como podemos imaginar que reagissem os poucos íntimos de Copérnico quando lhes tinha comunicado seu descobrimento (que a terra gira entorno ao sol), quando eles tinham sentido sempre repetir que é o sol a girar entorno a terra: piscaram os olhos, como entre pessoas que sabem como são verdadeiramente as coisas, e tudo volta à normalidade. A diferença é que eles, nesse caso tinham razão, porque Copérnico não tinha ainda provas contundentes da sua teoria. Mas, os «copérnicos» de hoje foram muito mais longe. Eles nos querem fazer crer que nem o sol gira entorno a terra, nem a terra gira entorno ao sol, mas que o mesmo sol não existe: é só a projecção de uma necessidade da terra. Escreveu Sartre numa peça teatral: «Não mais o céu. Não mais o inferno. Não há outra coisa que a terra!».

5. Esta operação está ligada em particular a quatro grandes nomes da cultura dos últimos dois séculos: Feuerbach, Marx, Nietzsche e Frued. Para Feuerbach o ser divino é a essência do homem, purificada e libertada dos limites dos homem individualmente considerados, contemplada e venerada como se fosse uma essência distinta dele. «O homem objectiva na religião a sua própria essência segreda, espelhando-se num ente que na realidade é o seu próprio ser profundo».

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Em suma, a religião é a objectivação da essência humana ideal.

6. Em outras palavras, não é Deus que criou o homem a sua imagem e semelhança, como diz a Bíblia, mas é o homem que criou Deus como uma imagem separada e fantástica de si mesmo. «A fé em Deus não é outra coisa que a fé na dignidade humana». O homem atribui a Deus aquilo que de melhor encontra nele. Portanto, quantas mais perfeições se conferem a Deus, tantas menos se atribuem ao homem, tanto mais se enriquece Deus, tanto mais se empobrece ao homem. «Só o homem pobre possui um Deus rico. Deus corresponde ao sentimento de uma necessidade».

7. O nome de Feuerbach em alemão significa «torrente de fogo». Se desejamos chegar a verdade, tem dito Marx, é necessário passar através desta torrente de fogo. Isso é «o purgatório do pensamento moderno». Foi mesmo C. Marx a dar a esta brilhante operação o sucesso que teve, fazendo dela a base teórica do seu ateísmo científico. Mas com um deslocamento de acento. Para Feuerbach Deus é primariamente a projecção da essência do homem, daquilo que é o homem e das suas perfeições, e só secundariamente da sua pobreza e de seu vazio. Portanto, é uma ilusão, mas, a seu modo, plena, porque rica de um conteúdo positivo.

8. Também para Marx, Deus é uma projecção, porém, não tanto da essência positiva do homem, quanto das suas necessidades insatisfeitas, não daquilo que tem, quanto daquilo que lhe falta, sobretudo das suas necessidades económicas. «A religião -escreve- é o gemido da criatura opressa, o animo de um mundo sem coração... Ela é o ópio do povo... A religião não é outra coisa que um sol ilusório, que se move entorno ao homem até que este não chega a mover-se entorno a si mesmo».

9. O acento se desloca do problema de Deus ao problema do além, isto é, do Paraíso. Este é visto como o recipiente no qual o homem transfere suas esperanças insatisfeitas e as «lágrimas» derramadas no vale desta vida. A ideia de Deus nasce da ideia de um além, de uma recompensa ultraterrestre.

10. Deus é portanto uma projecção ilusória não de uma plenitude de humanidade, mas de uma carência, de um vazio. Então, duplamente negativa. Deus não é mais que «a direcção para a qual o homem lança o seu gemido».

11. A mesma teoria assume, com Freud, uma coloração nova, já não socioeconómica, mas psicológica, sem mudar todavia na substância. A religião, Deus, é uma «ilusão»; é a projecção da necessidade inconsciente de protecção paterna e materna que a pessoa humana conserva, uma vez que saiu da infância. «A raiz da necessidade da religião -escreve- está no complexo parental. Um Deus justo e omnipotente é a sublimação grandiosa do pai e da mãe. Novamente, qualquer coisa duplamente negativa: projecção não de uma realidade, mas de uma necessidade e de um vazio.12. É incalculável o influxo que estas teses continuam a ter sobre certos homem de mediana cultura. É esta, em geral, a ideia de Deus e da religião que é dada

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como pressuposto pacífico e demonstrado (em nosso contexto angolano, a que mais tem tido influência é o conceito de alienação assumido por Marx). É esta a «suspeita», que impede ainda hoje a muitos de crer, ou ao menos de se proclamar abertamente crentes.

13. Continua desta maneira no mundo a acção daqueles que João Paulo II, na Encíclica sobre o Espírito Santo, chamou «o perverso génio da suspeita» (foi o filósofo francês P. Ricoeur o primeiro a utilizar a expressão, «filósofos da suspeita» em referência a Marx, Feuerbach, Freud e Nietzsche). Com efeito, quando se busca ajustar e ir ao nó da argumentação dos autores mencionados, constata-se que o único que fica em pé não é uma prova contra a existência de Deus, mas só uma «suspeita». De facto, mesmo que o Deus no qual cremos seja uma projecção do homem, uma «essência desejada», isso não quer dizer ainda nada com respeito à existência ou não existência de Deus na realidade. Sem contar que o crente poderia, com igual direito, lançar a suspeita sobre o incrédulo, com base na observação de F. Bacon que «ninguém crê que Deus não exista quanto aquele a quem aprazeria muito que Deus não existisse». Mais ainda, antes que sobre Deus, a suspeita recai sobre o homem. É o homem declarado suspeitoso nos sues desejos mais profundos. Afirma Freud: «Seria verdadeiramente muito belo que existisse um Deus como criador do universo e benigna Providência, uma ordem moral universal e uma vida ultraterrestre; todavia, é ao menos muito estranho que tudo isso seja verdadeiramente assim como não podemos deixar de desejar». Afirmação reveladora de um profundo desprezo pelo homem. Uma coisa se transforma em suspeitosa pelo facto que o homem a concebe e a deseja.

14. Seria como lançar a suspeita sobre o amor e o matrimónio, porque corresponde a um desejo universal e a uma necessidade profunda do coração humano, ou como negar que exista a verdade e a felicidade, simplesmente porque o homem a deseja. Aqui se revela aquilo que H. de Lubac chamou «o drama do humanismo ateio». Nascido como afirmação do homem, o ateísmo moderno acabou por revoltar-se próprio contra o homem e transformar-se na sua negação.

15. Portanto, é uma necessidade vital para os crentes, desmontar a brilhante, mas falsa operação, da qual tudo iniciou.

Conhecer Deus é reconhecê-lo

16. Ao início da epístola de São Paulo aos Romanos lemos estas palavras: «Em realidade a ira de Deus revela-se desde o céu contra toda impiedade e toda injustiça dos homens que sufocam a verdade na injustiça, porque o que de Deus se pode conhecer é a eles manifesto; Deus mesmo o tem manifestado a eles. De facto, desde a criação do mundo, suas perfeições invisíveis podem ser contempladas com o intelecto nas obras por Ele criadas, como assim também seu poder infinito e divindade, portanto, eles não tem excusas, porque, conhecendo

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Deus, não lhe renderam glória nem acção de graças como é devido, mas perderam-se na vaidade de seus próprios raciocínios escurecendo suas mentes obtusas» (Rom.1, 18-21).

17. Nestas palavras o problema do conhecimento natural de Deus é, no contexto, totalmente marginal.

18. O apóstolo tem a intenção de demonstrar uma coisa bem precisa: que todos pecaram, ninguém fica fora. Paulo divide o mundo em duas partes: Gregos e Judeus, isto é, pagãos e crentes, e começa sua requisitória próprio pelo pecado dos pagãos. Focaliza o pecado fundamental do mundo pagão na impiedade e na injustiça. Afirma que isso é um atentado à verdade. Não a esta ou aquela verdade, mas a verdade fonte de todas as coisas. E explica logo em que consiste (é aqui que toca secundariamente o problema da cognoscibilidade natural de Deus). Os pagãos -afirma- podiam conhecer Deus, e de facto conheceram mais ou menos claramente que há um Deus. Mas, não lhe renderam glória nem acção de graças como merece Deus. Pararam-se a metade de estrada; não atiraram as últimas consequências. A certo ponto, com seus raciocínios rejeitaram de ir além e suas mentes se obscureceram. É nisso que consiste seu pecado «inescusável».

19. Portanto, o pecado não é simples ignorância, como pensavam Sócrates e os gregos, o pecado não radica primariamente no conhecimento, mas na vontade. O pecado é a rejeição da vontade de seguir a voz da consciência. Está em não quer ver, não no simples não ver. Neste ponto S. João está em perfeito acordo com S. Paulo. O pecado é não acolher a luz e não recebê-la, por não querer renunciar às próprias obras más. O pecado não está em ser cegos, mas em ver e não fazer aquilo que se tem visto.

20. A este ponto surge uma objecção. Porque o Apóstolo nesta passagem afirma que os pagãos «conheceram Deus» e noutras diz o contrário, que «o mundo com toda sua sabedoria, não o conheceu? A resposta é que há dois modos de conhecer: um modo grego que podemos chamar também clássico ou filosófico, e um modo bíblico. Eles são descritos da seguinte maneira: para o homem grego o conhecer é semelhante a ver (daí a coruja como símbolo da filosofia), um contemplar o objecto a distancia, na sua imobilidade. Ele busca extrair do objecto a sua forma, isto é, suas qualidades essenciais, para aferrar e dominar a realidade. Cognoscente e conhecido ficam separados; não tem interacção entre eles, isso disturbaria a objectividade do conhecimento. Para o homem bíblico, ao contrário, conhecer é fazer experiência do objecto, entrar em relação com ele. Conhecer qualquer coisa significa interessar-se por ela, estar engajados com ela. Consequentemente, para o grego conhecer Deus quer dizer contemplar a realidade última, o Ser na sua essência imutável. Para o judeu significa reconhecê-lo nas suas obras e satisfazer-lhe seus requerimentos. O primeiro modo é um simples conhecer Deus, o segundo é também um reconhecê-lo.21. O que o Apóstolo quer dizer é que os pagão conheceram Deus no primeiro modo, não o tem conhecido no segundo. De facto, conhecer Deus não significa saber muitas coisas sobre Deus, mas significa saber que Deus é e basta: «... para

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que conheçam e saibam que Eu Sou», afirma Deus mesmo. O que lhes faltou aos pagãos e nisso consiste o seu pecado, é não haver dado glória e acção de graças a Deus.

22. Mas, que quer dizer isso? Será que na literatura pagã faltavam hinos de louvor á divindade e de acção de graças pelos seus benefícios? Não, Paulo mesmo tinha dito aos atenienses que eram «muitos respeitosos da divindade». Trata-se de algo mais radical. Não lhe deram aquela glória e aquela acção de graças que são próprias de Deus, que correspondem só a Ele. Paulo precisa bem: não lhe deram glória nem acção de graças «como a Deus», isto é, como só a Deus se deve dar.

23. Na religiosidade pagã, o temor e a veneração eram dirigidos genericamente ao «divino», que abraçava indiferentemente tanto o divino de signo positivo, isto é, Deus; como aquilo de signo negativo, o demoníaco; como assim também o culto dos deuses celestes e dos poderes infernais. Quando no episódio das tentações, o demónio pede a Jesus de adorá-lo, não pede uma coisa nova, mas aquilo ao que já estava habituado a obter, até então dos pagãos. É Jesus que põe fim para sempre a ambiguidade, proclamando, em aquela circunstância, que se deve «adorar ao Senhor Deus e só a Ele render culto»

34. O que faltou ao mundo pagão é aquela percepção que Deus é tudo e que nada e ninguém tem direito a existir diante dele senão «em graça» dele. Que o homem é para a glória de Deus e não para a própria glória. Que Deus não é qualquer coisa da qual se possa falar e dispor como bem se entende, quase como se pudéssemos estar em pé de igualdade e ser seus interlocutores autorizados. Tem desaparecido o senso da infinita diferencia qualitativa entre Deus e o homem, ou melhor ainda, nunca houve esse senso. A diferença radical entre Deus e o homem foi desfigurada por uma série de realidades degradantes, chamadas justamente, «divindades intermédias» ou «de segundo grau».

35. O homem pagão não conhece, em consequência, um acto que seja reservado exclusivamente a Deus; não conhece a fé no sendo forte da Bíblia, e não conhece a adoração. Esta última (a proskinesis) se dirige sim a Deus, mas também ao rei, ao soberano, ao senhor terreno, e mais ainda às potências celestes e demoníacas. Falta a percepção que «só Deus é Deus». Mas não é só ignorância, tem a mesma raiz que o pecado de Lúcifer, que é o protótipo de aqueles que, embora conhecendo Deus, não lhe rendem glória nem acção de graças. Tal raiz consiste em não querer existir graças a outro, em não querer reconhecer-se radicalmente dependente, criatura. «Se me sento dependente, sou um nada» (dizia Sartre). É aquilo que foi definido com rigor filosófico como «desesperadamente não querer ser si mesmo», isto é, criatura dependente. «Desesperadamente», porque tal tentativo não tem nenhuma possibilidade de êxito e não pode não levar à desesperação.

Um Deus domesticado

36. Depois de haver explicado em que consistiu a grande impiedade e injustiça

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dos homens, isto é, em não reconhecer Deus como Deus e não dar-lhe glória nem acção de graças, Paulo continua dizendo que os pagão «perderam-se na vaidade dos seus raciocínios obscurecendo suas mentes obtusas. Entanto se declaravam sábios, em realidade eram tolos e mudaram a glória de Deus incorruptível com a imagem e a figura do homem corruptível, de pássaros, quadrúpedes e répteis».

37. Aqui há uma alusão, ao menos implícita, à narração da criação. Lá se conta que Deus criou o homem a sua imagem e semelhança, aqui se diz que o homem mudou a imagem de Deus pela figura do homem corruptível. Na idolatria, em outras palavras, acontece qualquer coisa que tenta inverter o que aconteceu na criação, uma espécie de inversão de protagonistas: Deus fez o homem a sua imagem, agora o homem é que faz Deus a sua imagem.

38. Estamos no segundo tempo, na segunda etapa do afastamento de Deus: a idolatria. Esta é vista pelo Apóstolo como a concretização histórica e institucionalização da anterior separação do Criador. O que sucede exactamente na idolatria? Ela é definida como um «adorar a criatura em lugar do Criador». A primeira vista, isso poderia parecer um simples erro de perspectiva que se resolve com total desvantagem para o homem, sendo certamente mais útil servir ao patrão que ao servo. Mas, a idolatria não seria algo tremendo como é para a Bíblia, se só se reduzisse a isso. O facto decisivo é que adorando a criatura, o homem adora «sua» criatura, a obra das «suas mãos», isto é, si mesmo! Coloca, em última análise, si mesmo ao posto de Deus. No fundo de cada idolatria, temos a auto-latria, «o amor de si levado até o desprezo de Deus» (S. Agostinho, Civitate Dei).

39. Isto é um tentativa de «sufocar a verdade». O homem simplesmente não aceita Deus, mas se faz um Deus; é ele que decide. A relação criatural é invertida: o homem se transforma no oleiro e Deus no vasilhame que ele plasma à vontade, atribuindo a Deus os fins e as qualidades que mais lhe satisfazem.

40. É esta a situação em que, em certos casos, nos encontramos nos nosso dias do ponto de vista religioso e do qual toma inicio o ateísmo, senão teórico, ao menos prático.

41. A resposta imediata a dar à aqueles que dizem que Deus não existe, mas que se trata de uma simples projecção humana, é que têm razão! Deus é verdadeiramente, como eles dizem, um produto da mente humana. O problema, porém, é saber de qual Deus se trata. Os filósofos não combateram e demoliram o Deus verdadeiro, mas só um ídolo de Deus, seu vã simulacro.

42. A certo ponto da história espiritual de Ocidente, ao posto do «Deus do Sinai», entrou em actuação uma contra figura, um sósia. Como quando um usurpador fecha numa torre segreda o verdadeiro rei, apresentando-se depois ele mesmo como rei. Quando finalmente, com uma revolução, os homens se desembaraçaram também dele, creram ingenuamente de haver-se libertado de qualquer rei e proclamaram a república. Fora da metáfora, verdadeiramente proclamaram que Deus estava morto. Imaginemos que um dia um desequilibrado

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apanhe a marteladas a estátua de David de Michelangelo que se encontra em Firenze, e depois se meta a gritar com ar triunfante: «Destruí o David de Michelangelo! O David não existe mais! Não sabe, pobre homem, que era só uma cópia para turistas apresados, e que o verdadeiro David de Michelangelo desde há muito tempo foi retirado de circulação e custodiado em outro lugar bem mais seguro. É, mais ou menos, o que aconteceu a Nietzsche quando, por boca de uma personagem, justo um louco, proclamou: «Matamos a Deus, nós somos os seu assassínios».

43. Mas é necessário explicar como e quando se produziu esta substituição. Para entender é necessário retornar ao episódio do vitelo de ouro contado no livro do Êxodo. Em que consistiu o grande pecado do vitelo de ouro? Não é por certo pecado de avareza, fazer do ouro o próprio Deus, como as vezes se pensa, porque aquela gente, ao contrário, se mostra extraordinariamente generosa ao doar o próprio ouro. Também não consiste em abandonar o Senhor por outra divindade estrangeira, porque o vitelo de outro é proclamado como o Deus de Israel, aquele que fez fugir o povo do Egipto, e a festa que se organiza é festa em «honra do Senhor».

44. Porque então Paulo, com toda a Bíblia, chama a este facto idolatria? É idolatria porque mudou a relação entre o povo e seu Deus. O povo se faz o vitelo de ouro para ter um Deus «que caminhe a sua cabeça», uma espécie de bandeira para levar como estandarte e conseguir a vitória contra os inimigos. Assim faziam os exércitos na antiguidade e assim, mais tarde, se fará com a arca da aliança. Um Deus, em suma, porta fortuna. Deus tinha libertado o povo do Egipto «para que o servisse no deserto»; mas agora o povo, em vez de servir Deus, se serve de Deus. Estamos na linha que leva direito à superstição e à magia: conhecer Deus e seu poder, para manipulá-lo e colocá-lo ao próprio serviço, e não por médio da oração, mas quase com prepotência. Deus é domesticado!

O Deus de Abraão e o Deus dos filósofos

45. A tentativa de domesticação de Deus infelizmente não acabou esse dia, no vale do Monte Sinai. Isso acompanha ao homem em toda sua história e se exprime em diversas formas. Uma dessas formas é, justo, aquela que levou à crise cultural que estamos analisando. Com o progresso, mudou o modo, ou a matéria, coma a qual é feito o ídolo, mas não o hábito de fazer-se ídolos. Não mais um ídolo esterno, visível, mas um ídolo interno, invisível; não mais um ídolo material, de ouro, de prata ou de mármore, mas um ídolo espiritual. «A ideia de Deus!». O homem se faz uma ideia sua de Deus (que até aqui é coisa legítima e necessária), mas aos poucos, insensivelmente, acaba por substituir a realidade com a ideia (isto já não é legítimo nem necessário).46. Neste caso, o que sucede entre o homem e Deus, podemos ilustra-lo com um exemplo: Um ré consente de pousar para um pintor para fazer o seu retrato. A medida que a imagem do rei se estampa no pano, o pintor se entusiasma sempre

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mais com o seu trabalho. Por fim, quanto acaba o trabalho, está tão contente e entusiasmado que não liga mais para o rei presente e lhe vira as costas. Extasiado pela sua obra começa a mostrar aos amigos o retrato. Mas a história não acaba aqui, os discípulos do artista fazem cópias do retrato, modificando-o e adaptando-o, cada um, segundo o próprio estilo e gosto. Outros, fazem cópias das cópias ... O retrato já está presente em cada ângulo da cidade, mas está tão longe do verdadeiro que quando o rei passa de incógnito já ninguém o reconhece. (É o que fizeram os filósofos modernos a partir do Iluminismo, perderam o objecto Deus, e se dedicaram a criticar a fotocópia).

47. A palavra «ídolo» (eidolon) é reveladora. Ela passou a significar no uso comum, um objecto material venerado como Deus ou, em senso figurado, coisas e valores (como o sexo, o dinheiro, a fama, etc.) aos quais se atribuem uma importância exagerada, como se fossem o absoluto da própria vida. Mas em realidade, «ídolo» tem a mesma etimologia de «ideia» e, no uso, com frequência as duas coisas se confundem. No seu significado culto, as «eidola» são as imagens que se interpõe entre o sujeito que pensa e a realidade, são as representações mentais, são meios para conhecer a realidade, porém, facilmente se podem transformar em véus que nos ocultam a realidade. «Preconceitos» as definia Bacon em seu famoso elenco: idola tribus (da humanidade em geral), specus (do indivíduo), fori (da linguagem vulgar), theatri (de escolas e sistemas).

48. A ideia, o conceito, como fruto da inteligência, é certamente a coisa mais nobre que há no homem (sem contar, claro, a graça), mas como sempre, a coisa melhor, se corrompida se transforma na coisa pior: corruptio optimi pessima, diziam os latinos.

49. Existe, portanto, uma forma de idolatria religiosa que não consiste em fazer-se de Deus representações ou imagens externas, como o vitelo de ouro, mas em fazer-se dele imagens internas, mentais e invisíveis, e substituir o Deus vivo e verdadeiro pela imagem, contentando-se com ela. «Quem se faz uma ideia da natureza divina com base no raciocínio de sua mente -escreve S. Gregório Nisseno- se há construído um ídolo de Deus». Desta maneira, a idolatria não foi diminuindo ao longo dos séculos, mas ao contrário, foi sempre crescendo e renovando-se em formas novas.

50. Qual é a diferença entre Deus e a ideia de Deus? É que a ideia não tem existência própria, a ideia não existe a não ser na nossa mente, e Deus, Deus existe! Uma diferença infinita. Nos profetas, o nome divino «Eu Sou», revelado a Moisés na sarça-ardente, é com frequência usado para marcar a diferencia entre o Deus de Israel e os ídolos. Como se Deus quisesse dizer: Eu existo verdadeiramente e faço existir; não sou um deus inerte e sem consistência, como os ídolos dos gentios. Entre o Deus vivente e a ideia que temos dele tem a mesma diferencia que entre a água natural e a fórmula H2O. A fórmula química é um invento teu, a podes dominar, não te dá temor, não te apaga a sede... Não é assim a água da fonte ou do oceano!

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51. Outra diferença entre Deus e a ideia de Deus, é que Deus vivente há um só, entanto que ideias de Deus são tantas quantos são os pensadores que especulam sobre Ele. A pessoa é uma só, mas as fotos e os retratos dela poder ser infinitos. Deus é o todo, entanto que a ideia representa sempre uma pequena parte. O Deus vivente é um Deus que te «escruta», que conhece os teus pensamentos antes que se formem. A ideia de Deus não pode fazer nada de tudo isso. Ao Deus vivente não se pode dominar; a ideia, mesmo a ideia de Deus vivente, sim.

52. Esta distinção entre a realidade de Deus e a ideia de Deus, reclama aquela outra distinção entre o Deus vivente e o «Deus dos filósofos». O Deus vivente é chamado «Deus de Abraão, de Isaac, de Jacob»; o Deus dos filósofos é chamado Deus de Descartes, de Kant, de Hegel... Mas, se trata de falar de dois modos totalmente diversos. No primeiro caso, Deus é sujeito, no segundo é objecto. No primeiro caso trata-se de Deus que se revela a Abraão, que o tem escolhido, aqui Deus é o protagonista, não Abraão. No segundo trata-se do Deus que Descartes, Kant ou Hegel pensaram e do qual falaram. O filósofo e não Deus é aqui o protagonista. É uma bela diferencia.

53. Mas, sendo distintos, o Deus de Abraão e o Deus dos filósofos não são, de facto, e em si mesmos, incompatíveis. A mesma expressão «Deus dos filósofos» não nasceu em oposição ao Deus bíblico, ao contrário, próprio para indicar a Deus, se bem em contexto polémico: aos gnósticos marcionitas que se escandalizavam das «paixões» do Deus do AT., Tertuliano rebate: «Se querem mesmo pensar que há um Deus invisível, imperturbável e tranquilo, muito bem, pensem que isso seja o Pai, para di-lo de alguma maneira: Deus dos filósofos. E atribuam ao Filho encarnado, tudo aquilo que lhes parece indigno de Deus».

54. A um nível bem mais profundo e construtivo, a reconciliação entre o Deus vivente da Bíblia e o Deus dos filósofos foi a empresa empreendida e levada a fim por S. Tomás de Aquilo. Definindo Deus como «o mesmo ser subsistente» ele colocou uma ponte entre o Deus de Aristóteles «causa primeira, não movida e que move tudo», e o Deus da Bíblia e da tradição cristã, concebido à luz de sucessivos aprofundamentos de Êxodo 3,14 como «Aquele que é».

55. O mesmo Pascal, que retomou e fez célebre a frase de Tertuliano, queria distinguir mas não contrapor as duas coisas. Sua frase: «Deus de Abraão ... não dos filósofos e dos doutos», não é outra coisa que uma paráfrase das palavras de Jesus: «Te bendigo Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultastes estas coisas aos sábios e inteligentes». Pascal não é portanto um anti-racionalista que rejeita a função da razão na busca de Deus; só subordina, neste caso, a filosofia à revelação. Aliás, durante estes últimos século não foram o crentes a rejeitar o Deus dos filósofos, mas os filósofos a rejeitar o Deus dos crentes.

Tu matas um Deus morto

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56. Como se chegou ao ápice daquele processo de redução do Deus vivo à nossa ideia de Deus e portanto à crise acima descrita? Tal processo, em certo senso, é sempre em acto, mas teve uma aceleração em época moderna, a partir de uma forma de interpretar Descartes que vai dar no Idealismo Absoluto de Hegel (já vimos em gnosiologia que esta não é a única maneira de interpretar Descartes). Segundo esta linha interpretativa, com Descartes ocorre uma inversão: o conhecer toma o posto do ser, em linguagem técnica, a gnosiologia ao posto da ontologia. O ponto de partida ou o fundamento de tudo não é «Deus é», mas «eu sou». À base de tudo não é posto o grande «Eu Sou» de Deus, mas o pequeno «eu sou» do homem. «Penso, portanto sou», não «Deus pensa, ama, e por isso sou». Descola-se o ponto de partida, da realidade ao pensamento, do objecto ao sujeito. «A existência de Deus -escreve Descartes- se demonstra a posteriori, do facto que existe em nós a ideia de Deus». A ideia de Deus passa ao primeiro plano e vá sentar-se sobre o mesmo trono de Deus.

57. Nesta perspectiva, Deus se reduz à «ideia inata» que temos de Ele, e é definida a ideia madre de todas as outras ideias, mas é sempre e só uma ideia. Deus não se apresenta e se impõe ao homem como uma realidade, mas como a ideia de uma realidade, embora seja da suprema realidade. Ele não aparece como Aquele sem o qual não poderias existir, mas como Aquele sem o qual não poderíamos pensar, sendo a ideia de Deus aquela que sustém todas as outras. É o fundamento do nosso raciocinar e só em um segundo momento Aquele no qual e graças ao qual vivemos. A inversão é subtil, mas de profundas consequências.

58. As consequências não emergiram logo, porque em Descartes persiste ainda o espírito do catolicismo precedente, ele é um pensador religioso e quer confirmar a fé, não derrubá-la. Mas o processo tomou início. Bastará que alguém -e será Kant- faça o passo sucessivo, afirmando que de um Deus «pensado» não se dá nenhuma passagem necessária ao um Deus existente, que da ideia de Deus não se poderá nunca deduzir a sua «realidade» e aparecerá evidente de quais consequências estava grávida aquela mudança de perspectiva.

59. A partir desse passo se chega ao Idealismo de Hegel, no qual a «ideia é um Deus criador que, criando se auto-cria». A ideia de Deus se coloca em total autonomia respeito da realidade: não suscitada da realidade, mas a suscita, a põe. As partes invertem-se novamente. O Deus vivente fica fora deste sistema de pensamento: o sistema mesmo de pensamento há tomado o posto de Deus. O «eidolon» de Deus transformou-se em substituto de Deus. A ideia é proclamada o Absoluto. Reproduziu-se aquela situação de auto-latria que o Apóstolo via sob a idolatria pagã. O homem moderno, observa Ch. Pegy, adora si mesmo sob a espécie de Deus.

60. Aconteceu ao Deus vivente como ao velho rei da tragédia, que primeiro é acolhido com todas as honras no castelo (seria a mente humana) e depois, uma vez que está dentro, fechadas as portas e tiradas as pontes elevadoras, inerme e privado da sua escolta, é eliminado durante a noite e o seu adjunto toma o posto do rei. Consumou-se a substituição: ao posto do verdadeiro Deus é entronizada

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sua contra-figura (a ideia).

61. Neste ponto chega Feuerbach que faz explodir todo o processo, atacando de raiz a mesma «ideia de Deus». Deus não existe, a realidade da ideia de Deus (enquanto realidade mental), não é um ser distinto, superior, infinito, mas é o mesmo homem. São os homens que se hão criado Deus a sua imagem. Feuerbach leva ao fim o programa anunciado por seu mestre Hegel em um escrito juvenil: «Depois de todos os esforços do passado, uma conquista foi reservada para nossos dias: reivindicar, ao menos em linha de princípio, como propriedade do género humano, os tesouros transferidos ao céu. Mas, qual será a geração que terá a coragem de fazer valer este direito, reapropriando-se daquilo que é seu?». Feuerbach é aquele que teve essa «coragem». Ele pregou «sobre os telhados» aquilo que o mestre se havia limitado a «sussurrar aos ouvidos» no seu ensinamento restringido e mais segredo (tal vez pela pressão que a ortodoxia protestante exercia no seu tempo).

62. O processo da formação da crença em Deus, que Feuerbach desmascara é exactamente o processo subjacente à idolatria, como já havia implicitamente colocado a luz o Apóstolo. Na idolatria acontece que o homem se forma um Deus a sua imagem.

63. Feuerbach, condicionado como estava, pelo debate em acto entre as escolas filosóficas do seu tempo, tem substituído também ele, sem aperceber-se, a imagem pela realidade: a imagem deformada e esvaziada da fé cristã, pela fé cristã autêntica. Ele não meteu a fogo a «essência do cristianismo» como cria, mas a essência da idolatria, ou da ideologia de Deus.

64. Que a crítica de Feuerbach se aplica à idolatria, e não à verdadeira fé no Deus vivo, é um facto que agora é reconhecido até por pensadores que não são certamente suspeitos de fazer apologia. «O homem -escreve Erich Fromm- transfere suas paixões e qualidades no ídolo. Mais ele esvazia-se, mais o ídolo se engrandece e se fortifica. O ídolo é a forma alienada da experiência que o homem faz de si mesmo. Adorando-o o homem se adora... Ele depende do ídolo porque submetendo-se encontra a sombra, embora não a substância, de si mesmo. O ídolo é uma coisa e não tem vida. Deus, ao contrário, é um «Deus vivente».

65. A prova mais certa de que os teóricos do ateísmo moderno não puderam golpear ao Deus vivente, é que não o conheciam. Conheciam ao Deus das escolas filosóficas, dos sistemas, de tal ou qual mestre, mas não o Deus da fé vivida pelos crentes. Conheciam o Deus dos livros não o Deus vivente, e este encontra-se na vida das pessoas, não podendo um Ser vivente estar contido em coisas mortas.

66. Os pais do ateísmo não conheceram o Deus da grande tradição da Igreja, mas só o Deus dos ambientes universitários. Não sabiam quase nada do Deus santo e «misterioso» como o proclama a Bíblia: «Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, os vossos caminhos não são os vossos caminhos». Aquele

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Deus que faz calar a boca a quem o conheceu, como Santo Tomás que depois de uma visão mística, deixou de escrever a Suma Teológica, porque dizia que era palha, comparada com o que havia visto. Ou o Deus de aquele crente judeu que se dirigiu a Deus antes de morrer com este grito terrível, encontrado escrito nas paredes da prisão: «Oh Deus fizeste de tudo para fazer-me perder a fé, mas não conseguiste!»

67. A diferença entre Deus e o seu substituto é infinita. O Deus da Bíblia não se mete a chorar quando o homem o quer abandonar (como faz o Deus de Sartre, no drama, "A mosca"), não anda mendigando adeptos e reconhecimentos. Mas bem, afirma com soberana autoridade: «Saibam que Eu Sou Deu». O queiram ou não, acreditem ou não, Eu Sou DEUS.

68. «Para saber quem é Deus -escreveu Tertuliano- nós não vamos a escola dos filósofos nem de Epicuro, mas dos profetas e de Cristo». Pois é, quando um filósofo, para saber quem é Deus, se limita a interrogar a outros filósofos, faz como um cartógrafo que consulta outro cartógrafo para conhecer características de uma região que nenhum dos dois viram nem pisaram com os próprios pés. Muda inevitavelmente a mapa pelo território.

69. «Tu matas a um morto!» dizia um soldado a outro que disparava contra um cadáver. A quem proclama que Deus está morto e que ele mesmo o matou, o a quem afirma que está morto sem necessidade de processo, um crente poderia responder-lhe: «Tu matas um Deus morto!»

70. Que esse Deus esteja morto, também a nós nos dá prazer, mais ainda, devemos estar atentos para não ressuscitá-lo. O ídolo é a negação do Deus vivente. Na medida, portanto, que estes homens não combateram, em realidade, contra o Deus vivente, mas só contra o seu substituto, o seu ateísmo não é negação de Deus, mas negação da negação de Deus. De qualquer modo, eles explanaram a estrada para o redescobrimento do Deus vivente. São nossos aliados mas que nossos inimigos.

Verdade e busca da verdade

71. Ora, onde está o aspecto que S. Paulo, ao início da Carta aos Romanos, chama de «impiedade» e «injustiça»? Acontece que, a um certo ponto, perdeu-se completamente o sentido que de Deus não se pode falar sem dar-lhe glória e render-lhe acção de graças, consentindo-lhe de ser sempre Deus.

72. As partes se inverteram. Deus devia servir para segurar o sucesso do filósofo e, as vezes, do teólogo. Daqui o clima de disputa entre personagens e escolas, em que Deus, Ele pessoalmente, passava completamente a ser secundário. Deus não era mais uma pessoa, mas um argumento. Perdeu-se o sentido da «doxologia», da humilde acção de graças, a adoração, coisas que quando estão

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no coração de quem escreve, manifestam-se, embora não sejam exprimidas directamente. Hoje, fala-se com frequência de «mal-estar da cultura». À luz da palavra de Deus, este mal-estar tem uma causa precisa: o orgulho.

73. Não é difícil individualizar algumas das causas principais, que levaram, em época moderna, a esta perda de sentido da infinita diferença qualitativa entre Deus e o homem e portanto à queda da doxologia e acção de graças, também entre os cristãos. O primeiro, é uma certa insistência unilateral na encarnação e na imanência de Deus, como se por esses factos Deus tivesse deixado de ser Deus, entanto se sabe que na encarnação «Deus devém aquilo que não era, ficando aquilo que era».

74. Esta interpretação exagerada da encarnação, abaixando Deus, produziu o indevido exaltar-se do homem, isto é, o humanismo entendido como sistema que coloca o homem ao centro e ao vértice de tudo. «Deus -dizia Tertuliano- encarnando-se privou-se de alguma coisa para conferi-la ao homem» (o Verbo renuncia a glória que tinha junto do Pai). Mas o homem fez o contrário: «privou de alguma coisa a Deus para conferi-lo a si mesmo».

75. A este facto acrescenta-se a busca da verdade elevada a valore supremo, para além do valor da mesma verdade. «Se Deus -escrevia Lessing- tivesse segurada na sua destra toda a verdade e na sua sinistra só a aspiração sempre viva à verdade e me dissesse: Escolhe! Humildemente me prostraria para sua sinistra dizendo: Esta Pai! A pura verdade pertence sem dúvidas só a Ti». O prazer da caça é bem superior ao prazer de possuir a presa, aduzia ele mesmo a justificação, como se neste campo o que conta fosse o prazer e não, ao contrário, o dever.

76. Sob uma falsa humildade e, com a pretensão de não querer nunca «estar seguro de si», esta posição esconde o mais grande orgulho humano. No entanto que se está em busca da verdade, o protagonista é o pesquisador, não a verdade. A «veracidade», isto é, a busca sincera, honesta consigo mesmo, toma, neste caso, o posto da verdade. Efectivamente, alguns permanecem «sempre em busca», sem nunca atingir o reconhecimento da verdade.

77. É um tentativo subtil de ter sempre em xeque a Deus. Com efeito, o homem não pode passar a vida inteira a fazer a busca de Deus, sem nunca adorar Deus. É como um devedor que passasse anos e anos a refazer as contas, para retardar o pagamento da dívida. «Tenho passado a vida inteira a fazer pesquisas sobre Deus e não o tenho encontrado».

78. Entanto se está na fase de busca, é o homem a conduzir o jogo. Mas quando a verdade, com letra maiúscula, é encontrada, então é ela que sobe ao trono e dita as leis e o pesquisador deve ser o primeiro a ajoelhar-se diante dela. Aplica-se também à busca de Deus, aquilo que Dostoevskij diz em termos gerais: «O homem não ama outra coisa que o processo através do qual atinge o fim, e não o fim mesmo... Atravessa oceanos, sacrifica a vida nesta pesquisa, mas de

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encontrá-lo, de descobri-lo efectivamente, tem medo».

79. O sucesso que têm tantas seitas e formas de religiosidade extra bíblica encontra sua explicação, ao menos em parte, nesta problemática. A característica de quase todas estas novas religiões é de propor um Deus impessoal ou feito a medida do crente: Espírito absoluto, força vital, lei cósmica, o Todo, ou o Deus tampa buracos, curandeiro, que soluciona os problemas económicos, etc. (o deus das seitas). É que o Deus verdadeiro, expressa uma vontade com a qual devemos fazer as contas, à qual submeter-se; o outro, não. Inclinar-se frente a um Deus feito a minha medida não custa nada. O homem não sente aquele: «Tu deves...» que tanto o irrita, mas também não sente aquela palavra: «Te amei com amor eterno...» e «servo bom e fiel, entra no reino do teu Senhor».

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CAPÍTULO IV

TEOLOGIA FILOSÓFICA

AS VIAS DE ACESSO A DEUS

PRELIMINARES

1. Definição. - Embora tendo em comum com a teologia dogmática (ou sobrenatural, revelada) o mesmo objecto material, isto é, Deus, a teologia filosófica (em diante TF.) distingue-se dela pelo objecto formal. Efectivamente, enquanto a teologia dogmática estuda Deus partindo da sua auto-revelação e, portanto, mediante a fé, a teologia filosófica, estuda Deus partindo das criaturas, da realidade humana e de tudo o que acontece neste mundo, e o seu único instrumento cognitivo para se aproximar de Deus é a razão humana, não a fé.Podemos dar da teologia filosófica a seguinte definição: a teologia filosófica é o estudo racional de Deus, ou seja, é o estudo da existência, natureza, atributos, operações de Deus, tais como podem ser captados pela inteligência humana ao reflectir sobre os fenómenos que podemos experimentar neste mundo. Segundo a linguagem da Escolástica: o objecto material da teologia filosófica é Deus; o objecto formal é a reflexão racional (exclusivamente à luz da razão).

2. Por que não teodicéia?.- Teodiceia, foi o nome introduzido por Leibniz, autor do famoso «Essais de Théodicée», e quer dizer «justificação de Deus» (do grego theós = Deus, dike = defesa), tem evidentemente um sabor apologético. Pretende defender Deus das objecções que podem ser-lhe feitas como responsável pelas tragédias, pelo mal e pelas perversidades do mundo. Mas, Deus precisa da nossa justificação? Precisa da nossa defesa? Se é Deus, não pode defender-se sozinho?

3. Importância da TF. - Apenas se é necessário salientar a importância e utilidade da teologia natural. A excelência de uma ciência está em razão da excelência do seu objecto. Pois bem, o pensamento no pode ter um objecto mais excelente que Deus. Ser supremo, princípio primeiro e último fim de todas as coisas. No conhecimento e no amor de Deus está nossa perfeição e, portanto, nossa verdadeira felicidade.Por outra parte, nosso conhecimento do mundo e do homem jamais poderá ser completo, se não subimos até Deus como a causa de tudo o que existe; nem a moral poderá encontrar sólido fundamento, se não recorremos a Deus, soberano legislador.Em fim, a TF, ao demonstrar a existência de Deus, proporciona à fé a primeira das suas bases racionais.

4. Método .- Deus não é directamente acessível ao sentidos. Por isso, a TF não

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pode ser uma ciência propriamente experimental. É por excelência uma ciência metafísica, enquanto que seu objecto ultrapassa absolutamente a experiência sensível, e deverá, em consequência, empregar o método racional. Mas como Deus só pode ser conhecido pelos efeitos do seu poder, a TF deverá partir da observação dos factos, para elevar-se a partir deles até Deus, razão suprema destes factos.

5. Divisão .- A propósito de Deus podemos perguntar-nos sobre três classes de questões: podemos perguntar-nos se existe, qual é a sua natureza, quais seus atributos, e em fim quais são suas relações com o mundo. Dai a seguinte divisão da TF: existência de Deus; natureza e atributos de Deus; relações de Deus com o mundo.

A EXISTÊNCIA DE DEUS

6. Antes de entrar nas provas da existência de Deus, convém perguntar-se se estas provas são necessárias e se são possíveis. Porque, por um lado, os ontologistas pretendem que é inútil demonstrar a existência de Deus; e, por outro, os fideístas e os agnósticos negam a possibilidade desta demonstração. Vamos começar, pois, por esclarecer este assunto.

Necessidade e possibilidade de uma demonstração

7. O argumento ontológico .- Os ontologistas afirmam que não é necessário demonstrar a existência de Deus, porque, na sua opinião, essa existência é imediatamente evidente, e a evidência não se demonstra.Alguns, como Malebranch ou Gioberti, afirmam que temos a intuição de Deus na intuição do ser universal. Dai o nome de ontologismo que se dá especialmente a esta doutrina.Outros, como Santo Anselmo ou Descartes, se limitam a afirmar que a existência de Deus é evidente a priori, pelo simples facto de compreender o significado da palavra Deus. Efectivamente, afirmam que a palavra Deus significa «o ser que possui todas as perfeições». E como a existência é uma perfeição (impossível sem incorrer no absurdo, pensar em «um Ser perfeito que não exista»!); portanto Deus existe. Seria, pois, impossível conceber Deus sem compreender ao mesmo tempo sua existência. Este é o famoso argumento que foi chamado de argumento ontológico.

8. Crítica do argumento ontológico - Santo Tomás critica este argumento do seguinte modo:a) Não é evidente para todos, nem sequer para os que admitem a existência de Deus, que Deus seja o ser absolutamente perfeito, de modo que não seja possível conceber outro maior. Muitos filósofos pagãos disseram que o mundo era Deus, e alguns povos olharam para o sol ou a lua como a um Deus.b) O argumento ontológico faz uma conclusão indevida. Mesmo supondo que a

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definição nominal de Deus fosse para todos «o Ser absolutamente perfeito», o argumento ontológico faz uma passagem indevida da ordem lógica à ordem real: eu não posso conceber um ser perfeito sem concebê-lo como existente (ordem lógica); mas isto não prova que este ser perfeito exista (ordem real, ontológica).Além disso, nós não vemos a Deus. Todo nosso saber provém, directa ou indirectamente, da experiência sensível; e Deus é e segue sendo sempre para nós, mesmo ao fim das nossas pesquisas e demonstrações, um Deus absconditus; tão longe está da nossa apreensão directa e da nossa compreensão natural.Enquanto à intuição do ser universal, não é de forma alguma uma intuição de Deus ou do Ser infinitamente perfeito, senão a do ser universal. A existência de Deus não é para nós imediatamente evidente, e tem necessidade de ser demonstrada. Porém, é possível esta demonstração?

9. O argumento fideísta e agnóstico .- Os fideístas afirmam que a existência de Deus não pode ser conhecida pela razão natural, senão só pela fé. Os agnósticos negam simultaneamente o poder da razão e as luzes da fé.O principal argumento de uns e outros é que os princípios das nossas demonstrações vêem dos sentidos, porque toda nossa experiência é de origem sensível. Portanto, tudo o que passa o sensível é incognoscível e indemonstrável pela razão; e como a existência de Deus está além do sensível, é portanto indemonstrável.

10. Crítica do argumento fideísta .- a) Crítica geral. Santo Tomás adverte, primeiro, que a opinião fideísta e agnóstica é uma injúria para a razão natural, que encontra sua mais elevada expressão na arte da demonstração, que dos efeitos se eleva ao conhecimento das causas. Além disso destrui a ordem das ciências e compromete a integridade do saber. Porque se não há ciência do que ultrapassa o sensível, a ciência dos fenómenos da natureza seria a ciência suprema, e o conjunto do saber humano fica privado de toda última explicação. Em fim, a opinião fideísta e agnóstica julga ser vaidade o esforço constante dos filósofos, sobretudo dos mais eminentes, para demonstrar a existência de Deus. Seria inconcebível que semelhante esforço procedesse de uma ilusão.b) Crítica especial. Santo Tomás responde ao argumento fideísta que em qualquer hipótese nosso conhecimento da existência de Deus tem origem sensível, já que toma como ponto partida os aspectos sensíveis do poder divino. Por isso, este conhecimento não é capaz de fazer-nos conhecer Deus perfeitamente, porque não há proporção alguma entre suas obras sensíveis e sua natureza. Mas a demonstração tirada dos efeitos sensíveis basta para fazer-nos conhecer Deus como causa desses efeitos, que é o objecto mesmo da demonstração.Todavia, a melhor refutação dos argumentos fideístas e agnósticos consiste em expor as provas da existência de Deus de tal maneira que seu valor se imponha à inteligência com a evidência da verdade.

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Provas metafísicas da existência de Deus

11. Podemos distinguir dois grupos de provas da existência de Deus: o das provas metafísicas e o das provas morais ou antropológicas, segundo que estas provas partam da realidade objectiva do universo ou da realidade moral. Em realidade, toda prova de Deus é metafísica, pois a existência de Deus não é, propriamente falando, objecto de apreensão objectiva e não pode ser demonstrada senão com a ajuda de princípios metafísicos. É possível, no entanto, tendo em contas estas advertências, conservar a divisão em provas metafísicas e provas morais.

Observações gerais sobre as provas metafísicas

12. A experiência nas provas metafísicas. - Estas provas chamam-se amiúde provas físicas, para sublinhar o facto de que se apoiam na experiência objectiva. Mas toda prova da existência de Deus, seja metafísica ou moral, deve partir necessariamente de dados experimentais, quer dizer, que deve ter sua origem ou ponto de apoio nos seres e nos factos concretos que nos revela a experiência, para elevar-se dai a um Ser real sem o qual estes seres e esses factos e todo o universo ficariam inexplicados e inexplicáveis.

13. Vista de conjunto das provas metafísicas .- Antes de expor os diversos argumentos, é conveniente dar uma olhada de conjunto, em forma sintética, a fim de fazer mais acessível à inteligência o que constitui o nervo comum de todos eles.a) O facto do condicionamento universal. Tudo o que vemos ao nosso redor e tudo o que a ciência nos ensina cada dia, aparece-nos como um encadeamento de seres ou de fenómenos que sucedem-se e implicam uns aos outros e formam assim séries ou anéis solidamente articulados. Isso é o que podemos chamar o facto do condicionamento universal, pelo que todos os seres e todos os fenómenos do universo encontram sua condição, quer dizer, sua causa e razão de ser em outro ser ou em outro fenómeno.b) A causa primeira incondicionada (ou incausada). O princípio que nos dirige aqui é que, de condicionado a condicionante, chega-se necessariamente a um princípio ou a uma causa absolutamente primeira, absolutamente incondicionada, e, portanto, colocada fora da série causal. De nada serviria ir até o infinito, já que a série causal, mesmo concebida como infinita, estaria ainda toda inteira condicionada, isto é, composta unicamente de intermediários, que transmitiriam simplesmente a causalidade. Na ordem causal, o primeiro termo incondicionado é o que o produz tudo, não servindo o resto mais que para transmitir o movimento e o ser. Um canal, por comprido que seja, não é explicação da água que circula por ele; só a fonte nos explica o rio. Da mesma maneira não se explica o movimento das bolas de bilhar, multiplicando o número das bolas, senão unicamente recorrendo à mão que é causa primeira do movimento que as bolas transmitem-se umas à outras.c) A causa universal absolutamente primeira. Nossa pesquisa não pode chegar

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senão a uma causa única e portanto universal, porque a causa absolutamente primeira não pode ser múltipla senão única. Se, em efeito, fosse múltipla, haveria que supor que as causas absolutamente primeiras são independentes entre si (do contrário, não seriam todas absolutamente primeiras). Mas esta suposição é incompatível com a unidade e a ordem que reina no universo, e inconciliável com as exigências da razão, para a quem o inteligível, o ser e o uno são conversíveis. Se não é assim, haveria que admitir que a lei absoluta das coisas não coincide com a do nosso pensamento, que se o absurdo é inconcebível, pode a pesar de tudo, constituir o fundo das coisas. Mas nisso há uma impossibilidade radical, já que de acordo com o que temos estudado na gnosiologia, os princípios da razão não são outra coisa que as leis mesmas do ser.Deve-se concluir, pois, que só existe uma Causa absolutamente primeira, e que esta Causa, que, por definição (sendo absolutamente primeira) não depende de nenhuma outra e domina a todas as séries causais, deve ser um Ser necessário, quer dizer, tal que não possa não ser, tal que exista por sua mesma essência e tenha em si a razão total da sua existência.

14. Objecção kantiana .- Kant apresentou contra o valor das provas da existência de Deus uma objecção geral que vamos examinar neste lugar. Todas estas provas, diz, apoiam-se no princípio de causalidade, já que pretendem demonstrar que Deus é a causa do universo. Mas, o princípio de causalidade não tem valor senão na ordem da experiência sensível. Portanto, as provas da existência de Deus são ineficazes.A esta objecção respondemos: primeiro, que o princípio de causalidade, tal como o empregamos aqui, só nos serve para provar que o universo exige uma causa, e isto em virtude do que vemos experimentalmente no universo, e em maneira alguma para definir o que é ou deve ser em si mesma esta causa; portanto, o princípio de causalidade não é uma forma subjectiva, isto é, a priori e arbitrária, de nossa razão, senão uma evidência objectiva, captada no mesmo ser que se nos dá na experiência e portanto válido proporcionalmente para a universalidade do ser. Segue-se dai que, ao contrário do que afirmava Kant, o emprego transcendental do princípio de causalidade é legítimo e rigorosamente válido.

As cinco vias

Uma vez que tenhamos compreendido bem o esquema geral das provas metafísicas da existência de Deus, são fáceis de compreender os cinco argumentos (ou as cinco vias que levam a Deus) propostas por Santo Tomás. Estes argumentos partem de diferentes ordens de condicionamentos que nos é dado observar no universo, e cada um nos conduz ao mesmo Princípio absolutamente primeiro, que é Deus.

Primeira via: Prova pelo movimento

15. Santo Tomás considera esta prova como a mais clara de todas. Para

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compreendê-la bem, devemos ter presente no espírito a noção de movimento, é o princípio geral sobre o qual funda-se toda a prova.16. Princípio do argumento .-a) A noção de movimento. O termo movimento não designa só o deslocamento físico, senão, em geral, todo passo da potência ao acto, isto é, de uma maneira de ser a outra. Em outras palavras, o essencial do movimento é o passo como passo, o que faz do movimento uma realidade que participa à vez do acto e da potência. O movimento é, pois, o sinal e a forma do que em geral chama-se devir.b) A inteligibilidade do devir. Toda a questão estará, pois, em descobrir o que faz inteligível (quer dizer, o que explica) o devir. Para isso devemos recorrer ao princípio, estabelecido na ontologia, segundo o qual «todo o que se move é movido por outro», quer dizer que nada passa da potência ao acto senão pela acção de uma causa que já está em acto; o qual significa, em poucas palavras, que nada pode ser causa de si mesmo.

17. O argumento, do movimento ao motor imóvel .- «A primeira e a mais evidente deriva-se do movimento (prima autem et manifestior via est, quae sumitur ex parte motus). É certo de facto, e evidente para os sentidos, que algumas coisas mudam neste mundo. Ora, tudo aquilo que muda ou devém é mudado por outros (omne outem quod movetur, ab alio movetur) (...) Se, portanto, aquilo do qual deriva a mutação, por sua vez muda, será necessário que também isso seja mudado por um terceiro e este por um quarto, mas não se pode proceder assim ao infinito (...). Portanto, é necessário chegar a uma primeira razão do movimento, que de facto não mude: e isso é aquilo que todos os homens entendem por Deus» (ST. I, q.2, a.3).

18. Neste texto da ST., Santo Tomás estabelece que o movimento exige um primeiro motor (o qual não é outra coisa que uma aplicação do princípio geral da inteligibilidade do devir). De facto, é uma evidência para nossos sentidos que algumas coisas no universo estão em movimento. Mas tudo o que está em movimento é movido por outro. E é impossível que, sob o mesmo aspecto e da mesma maneira, um ser seja ao mesmo tempo movente e movido, quer dizer, que se mova a si mesmo e que passe por si mesmo da potência ao acto. Portanto, se uma coisa está em movimento, se tem que afirmar que é movida por outra. E se esta coisa que move, também «se» move, é necessário que também ela seja movida por outra. Mas não se pode seguir assim ao infinito, porque em tal caso não haveria primeiro motor, e seguir-se-ia que também não haveria outros motores, porque os motores intermédios não movem se não são movidos pelo primeiro motor, como o pau não se move se não é movido pela mão. Portanto, é necessário chegar a um motor primeiro que não seja movido por nenhum outro. E esse primeiro motor é Deus.

19. Objecção .- Alguns filósofos creram poder fugir desta conclusão admitindo uma série indefinida e eterna de motores e movidos. Se o mundo e o movimento, pensam, são eternos, não temos porque buscar um primeiro motor. Mas Santo Tomás responde que esta objecção nada diz contra o argumento, por não considerá-lo em seu verdadeiro sentido. De facto, o argumento conservaria toda

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sua força mesmo na hipótese da eternidade do mundo, pois o que nele se considera não é a série de motores acidentalmente subordinados no tempo, senão a série de motores acidental e essencialmente subordinados; actualmente, a terra se move, e seu movimento depende do sol; mas o sol, de quem depende? De quem tem seu movimento actual? Se o recebe de outro astro, este astro, por sua vez, de onde tem actualmente seu movimento? É impossível ir até o infinito, porque isso seria suprimir o princípio e a fonte do movimento e portanto o movimento mesmo. Mas é claríssimo que existe o movimento. Portanto, existe um motor primeiro. E se o mundo fosse eterno, eternamente exigiria seu movimento um motor primeiro.

20. Corolários .- Da noção de primeiro motor imóvel, isto é, de um ser imutável na perfeição que lhe pertence por sua mesma essência, podem-se deduzir imediatamente os seguintes corolários:a) O primeiro motor imóvel é infinitamente perfeito. De facto, toda mudança implica imperfeição, já que mudar é adquirir o ser que não se possuía. Se pois, o primeiro motor é absolutamente imutável, é porque possui toda a perfeição, isto é, a plenitude do ser. Em outras palavras, é Acto puro.b) O primeiro motor imóvel é um ser espiritual, porque a matéria é corruptível e portanto essencialmente imperfeita. Sendo espiritual, o primeiro motor deve também ser inteligente e livre, porque a inteligência e a liberdade são propriedades essenciais dos seres espirituais. Em outras palavras, o primeiro motor, é Pessoa.c) O primeiro motor imóvel está presente em todas partes, pois sendo princípio do movimento universal, está presente por seu poder a todo o que move, isto é, ao universo inteiro.

Segunda via: Prova pela causalidade

20. Das causas segundas à Causa Primeira .- Escreve S. Tomás: «Vemos nas coisas que caem sob os nossos sentidos uma ordem de causas eficientes (ivenimus enim en istis sensibilibus esse ordinem causarum efficientium); todavia não se vê nem é possível que uma coisa seja causa eficiente de si mesma porque, se assim fosse, essa coisa deveria existir antes de si mesma, o que é impossível. Mas não é possível que na ordem de causas eficientes se proceda ao infinito (...) Portanto é necessário pôr uma primeira causa eficiente que todos chamam Deus» (ST. I, q.2, a.3).

21. O argumento .- a) Existe uma Causa absolutamente primeira. Na prova pelo movimento, nos colocávamos no ponto de vista do devir fenomenal. Aqui contemplamos a causalidade propriamente dita. Tudo o que é produzido, temos dito, é produzido por outra coisa (do contrário, o que é produzido seria causa de si, quer dizer, que seria anterior a si, o qual é absurdo). Concluímos dai, por exclusão da regressão ao infinito, que há uma Causa absolutamente primeira, fonte de toda causalidade.b) Esta Causa primeira é transcendente a todas as séries causais. Em outros

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termos, não pode ser um elemento da série de causas. De facto, se fosse só o primeiro elemento de uma série causal, haveria que explicar como este primeiro elemento teria começado a ser causa, quer dizer que, em virtude do princípio de que nada se produz a si mesmo, haveria que recorrer a uma causa anterior à que se quisesse considerar como primeira, o qual é contraditório. Portanto, necessariamente é preciso que a Causa primeira transcenda (isto é, ultrapasse absolutamente e domine) a todas as séries causais, que seja causa por si, incausada e incriada.

22. Objecção .- Alguns quiseram opor a este argumento a hipótese de uma causalidade circular, isto é, de uma causalidade recíproca dos elementos do universo, transformando-se a matéria em energias diversas para voltar depois a seu estado original, e assim indefinidamente (hipótese defendida por alguns filósofos gregos, que não tinham a noção de criação, e entre os modernos por Nietzsche).Pois bem, embora se considera com fundamento a esta hipótese, não cambiaria nada o alcance da prova pela causalidade: que a evolução seja circular ou que seja linhal, isto não afecta senão a transmissão, mas não a fonte da causalidade. Além disso, ficaria por explicar a existência do universo, concebido como um Todo.

Terceira via: Prova pela existência dos seres contingentes

23. Do possível ao necessário (tertia via est sumpta ex possibili et necessario) .- «Entre as coisas deste mundo nós encontramos aquelas que podem ser e não ser; de facto, algumas coisas nascem e perecem, o que quer dizer que podem ser e não ser. Ora, é impossível que todas as coisas de tal natureza hajam existido sempre, e porque podem não ser, houve um tempo em que não existiam. Se, portanto, todas as coisas, existentes em natureza são tais que podem não existir, num dado momento nada foi na realidade. Mas, se isto é verdadeiro, também actualmente não existiria nada, porque aquilo que não existe não começa a existir se não por qualquer coisa que é. Portanto, se não havia ente nenhum, é impossível que qualquer coisa começasse a existir, e assim também agora não existiria nada, o que é evidentemente falso. Portanto, não todos os entes são contingentes (non omnia entia sunt possibilia), mas na realidade ocorre que há qualquer coisa de necessário, e que não traga de outros a própria necessidade, mas seja causa de necessidade para os outros. E isto é o que todos chamam Deus» (ibid. a.3).

24. O argumento .- Esta prova parte do facto de que o mundo físico se compõe de seres contingentes, isto é, de seres que são, mas poderiam não ser, porque estes seres, o bem os temos visto nós nascer, o bem a ciência nos prova que foram formados, o bem sua composição exige, para ser explicada, uma causa da unidade de tais seres.Ora, os seres contingentes não tem em si a razão da sua existência. De facto, um ser que tivesse em si, isto é, em sua mesma natureza, a razão da sua existência,

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existiria sempre e necessariamente. Os seres contingentes devem, pois, ter em outro a razão da sua existência; e esse outro, se também é contingente, a tem de igual maneira em outro. Mas não é possível ir assim até o infinito: de ser um ser, devemos chegar, ao fim de contas, a um ser que tenha em si mesmo a razão da sua existência, isto é, a um ser necessário, que exista de por si, e pelo qual todos os outros existam.Este ser necessário, que existe por sua própria natureza, e não pode deixar de existir, é Deus.

25. Objecção panteísta .- Os panteístas admitem este raciocínio, mas não sua conclusão. Para eles o ser necessário não seria um Deus pessoal, senão o mesmo mundo, tomado em seu conjunto, e concebido por eles como um ser único e infinito.Mas esta doutrina vá contra a razão. De facto, o todo, como suma das partes, não pode ser de natureza distinta dessas partes. E sendo o mundo um composto de seres contingentes, ele também é contingente, e não tem mais razão que cada uma de suas partes para existir por si mesmo. Portanto, sua existência, para ser inteligível, exige a existência de um ser que exista por si mesmo, e este ser é Deus.

Quarta via: Prova pelos graus de perfeição dos seres

26. Dos graus de perfeição ao absolutamente perfeito (quarta via sumitur ex gradibus qui in rebus inveniuntur) .- Nas coisas se encontram graus de perfeição (coisas mais ou menos boas, mais ou menos verdadeiras, mais ou menos belas, etc.). «Mas o grau maior ou menor atribui-se às diversas coisas segundo que se aproximem mais ou menos ao que é o máximo e o absoluto (...) Existe, portanto, qualquer coisa que é maximamente verdade, maximamente bondade, maximamente beleza, e em consequência qualquer coisa que é o supremo ente (maxime ens) (...) E isso é o que chamamos Deus (Ibid.).

27. O argumento .- Partamos do aspecto de beleza que em tantos modos manifestam as coisas. E dizemos: se a beleza se encontra em diversos seres segundo graus diversos, preciso é que seja neles produzida por uma causa única. É impossível, de facto, que esta qualidade comum a seres múltiplos e diversos pertença a estes seres em razão da sua própria natureza, pois não se compreenderia porquê a beleza se encontra neles mais ou menos limitada. Seriam esta beleza por sua mesma essência, isto é, que necessariamente a possuiriam completa e perfeitamente, sem limites nem restrição. O facto de que haja diferentes graus de beleza implica, pois, que os diversos seres em que se descobre estes graus participam simplesmente de uma Beleza que existe fora e além desta hierarquia de belezas, e que é a Beleza absoluta e infinita.Este argumento se pode aplicar validamente a todas as perfeição ou qualidades que podem ser levadas ao absoluto: ser, unidade, verdade, bondade, beleza, inteligência, sabedoria. O primeiro princípio, deve ser, pois, necessariamente Ser perfeito, Unidade absoluta, Verdade, Bondade, Inteligência e Sabedoria infinitas.

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28. Alcance do argumento .- Este argumento não exige só uma Beleza ideal, senão uma Beleza subsistente, não só uma Bondade ou Verdade ideal, senão uma Bondade e uma Verdade subsistentes (e assim das demais perfeições); quer dizer que nos leva, como os argumentos precedentes, a um Ser que existe em si e por si, e que é por essência Verdade, Bondade, Beleza, Unidade, etc. absolutas e infinitas.É que este argumento consiste também, como os precedentes, em ir em busca de uma razão de ser, a saber em busca da razão ou da causa da semelhança ou hierarquia dos seres compostos. E por este caminho, estabelece que seres que possuem desiguais graus de perfeição não têm em si mesmos a última razão desta perfeição, e que esta não pode explicar-se senão por um Ser que a possua absolutamente e por essência, entanto que todos os demais a possuem participada.

Quita via: Prova pela ordem do mundo

29. Da ordem do cosmos ao supremo Ordenador (quinta via sumitur ex gubernatione rerum) .- «Nós observamos que algumas coisas privadas de consciência, como são os corpos físicos (corpora naturalia), todavia operam por um fim, como resulta do facto que esses operam sempre ou quase sempre ao mesmo modo para conseguir a perfeição; onde aparece que não por acaso, mas por uma predisposição (ex intentione) atingem os seus fins. Ora, aquilo que está privado de inteligência não tende ao fim se não porque é dirigido por um ser cognoscente e inteligente, pelo qual todas as coisas naturais são ordenadas a um fim: e a este ser chamamos Deus.

30. O argumento .- a) Princípio do argumento. A prova pela ordem do mundo (ou o argumento das causas finais) apoia-se no princípio de finalidade, e adopta a forma seguinte: A complexa organização em vista de um fim requer uma inteligência organizadora. De facto, só a inteligência pode dar razão da ordem, isto é, da organização dos meios em vista de um fim, ou dos elementos em vista do todo que compõem: os corpos ignoram os fins e, portanto, se certos corpos ou elementos corporais funcionam juntos, segue-se que sua organização tem sido obra de uma inteligência.b) Forma do argumento. O argumento parte do facto da ordem universal. Este ordem é evidente: considerado no seu conjunto, contemplamos o universo como uma coisa admiravelmente ordenada, em que todos os seres, por diferentes que sejam, contribuem para um fim comum, que é o bem geral do universo. Por outra parte, cada um dos seres que compõem o universo manifesta uma finalidade interna, quer dizer uma exacta apropriação de todas suas partes em vista do bem de este mesmo ser.Pois bem, este ordem não é inteligível senão pela existência de um princípio inteligente que ordena todas as coisas para seu fim e para o fim de todo que formam. Que é o que se deduz do princípio demonstrado acima. Deve-se admitir,

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pois, que existe uma Causa ordenadora do universo.

31. Objecções .- a) O argumento não nos levaria à existência de uma inteligência infinita. Tal é a objecção de Kant. O mundo, diz, não é infinito; e se, de facto, é necessária uma inteligência ordenadora para explicar sua unidade interna, bastaria em rigor, uma inteligência de uma potência prodigiosa sem dúvida, mas não formalmente infinita.A objecção não fecha, pois comete o erro de supor que a ordem do mundo resultaria de um simples arranjo de materiais preexistentes. Nesse caso, de facto, uma inteligência não infinita seria uma explicação suficiente da ordem do mundo (por exemplo, o Demiurgo platónico). Mas o assunto cambia radicalmente se a ordem não é mais que um aspecto do ser, já que é uma ordem interna, resultado da essência e das propriedades mesmas das coisas, de modo que o autor da ordem é necessariamente, pelo mesmo facto, o criador do ser universal, ao mesmo tempo Potência infinita e Inteligência infinita.b) O jogo de azar. É difícil negar que a ordem reine no mundo. Por isso os ateus não a põe em dúvida. Mas para escapar à conclusão do argumento, afirmam que a ordem do mundo pode ser explicada pela causalidade. O mundo actual, dizem, é o produto de forças inconscientes e fatais; passou por fases muito diferentes da que agora conhecemos, e esta perpetuou-se graças a harmonia que estas misteriosas forças acabaram por gerar fortuitamente.Fácil é ver que esta explicação é, em verdade, o contrário de uma explicação. A causalidade tem como característica a inconstância e a irregularidade, que é justamente o contrário da ordem. A causalidade pode, em rigor, dar razão de uma ordem acidental e parcial, mas não de uma ordem que governe inumeráveis casos, e que se perpetue, já no interior dos seres, já em suas mutuas relações, com uma constância invariável.c) A evolução. Hoje há acordo geral em admitir ou reconhecer a realidade de uma evolução, ao menos dentro dos limites dos géneros e as espécies. Haveria havido pois, na origem das espécies e dos géneros actuais, um reduzido número de troncos que, por diferenciações sucessivas, teriam dado lugar aos poucos à actual multiplicidade. Parece haver provas suficientes a favor desta opinião.Mas a teoria da evolução tem limites. Admitida a probabilidade de tal evolução (numerosos foceis parecem presentar certa relação com os antepassados da espécie humana (homo sapiens), a evolução não poderá nunca constituir uma explicação adequada e suficiente da espécie humana, porque entre o animal e o homem há um abismo inultrapassável, trata-se da vida espiritual. A evolução pode ser admitida como preparação do corpo humano, que não chegou a ser efectivamente um corpo humano senão pela criação da parte de Deus da alma espiritual. De modo que haveria que falar, mesmo neste caso, de uma imediata criação por Deus do corpo e da alma do primeiro homem.A teoria evolutiva também foi invocada para explicar a ordem do mundo. Mas a evolução, longe de fundar a ordem, a supõe, já que se realiza segundo leis, e leis necessárias. A evolução requer, pois, absolutamente uma inteligência. E é que as causas eficientes não excluem de modo algum as causas finais: ao contrário, o mecanismo não tem sentido nem sequer existência se não é pela finalidade. As causas que podem explicar a evolução dos seres do universo obedecem a um

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ideia imanente, e, por conseguinte, supõem a existência de uma ordem anterior e superior a elas.

Via antropológica de acesso a Deus: As provas morais

32. Sentido geral das provas morais .- Chamam-se provas morais porque seu ponto de partida é a realidade moral. Expostas com rigor não têm menos força que os argumentos metafísicos com os que em realidade estão relacionadas. Por outra parte, são especialmente propositadas para fazer entender, além de que o problema de Deus está enraizado bem profundo no nosso coração, mas também que não há solução verdadeira e suficiente senão na existência de um Deus pessoal, Inteligência e amor infinitos. Porque aqui é onde a ideia de um Deus cósmico, alma do mundo, infinito devir e lei universal anónima e impessoal, menos satisfaz nem a razão humana nem ao coração.

33. Divisão das provas morais .- Podemos reduzir a quatro as provas morais que comummente se invocam em favor da existência de Deus, a saber: as provas pela obrigação moral, pelas aspiração da alma, pelo consentimento universal, e pelo facto da experiência mística.

Prova pela obrigação moral

34. O facto do dever .- Nossos actos não vão nem podem ir ao azar, senão que estão ordenados por fins morais que resumimos na ideia do dever. Pois bem, a obediência ao dever é essencialmente a perseguição perseverante de um ideal de perfeição moral.

35. Sentido do dever .- Mas, como este ideal não seria uma ideia subjectiva do espírito? Percebemos perfeitamente que se não fosse mais que uma forma subjectiva, não poderia possuir o poder de fascinação e sobre tudo o valor obrigatório que lhe reconhecemos. Para que a obrigação moral tenha um sentido, é preciso que manifeste uma ordem da qual nós não somos os autores, e que emane de uma Razão suprema, princípio e fim da nossa natureza. Também é preciso que o ideal seja realizado e sancionado por um Bem transcendente, vivente e pessoal, isto é, que representa um valor absoluto, objectivo, fundado de um Ser que o realize em plenitude e garanta o respeito por ele.

Prova pelas aspirações da alma

36. O facto da inquietude humana .- O homem está submetido, durante a sua vida, a uma espécie de contradição que não cessa de inquietar sua razão e de encher de angustia seu coração: por um lado, tende, com todas as forças de seu ser, à possessão de uma felicidade perfeita, estável e sem fim, na qual se realizariam a perfeição da sua natureza e os anseios do seu coração; mas por

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outro lado, e sem podê-lo remediar, haja-se submetido à miséria, à enfermidade, à tristeza e em fim à morte.

37. O argumento .- O homem é um ser cheio de inquietação. Mas possui também o sentimento invencível de que a contradição deve terminar, e de que a morte não pode ser para ele um fracasso radical, nem uma entrada no nada. Esse sentimento não é simplesmente uma reclamação da sensibilidade que subleva ante a dissolução do ser corporal, senão algo mais elevado, uma reclamação da razão e do coração.O universo físico mostra, de facto, uma ordem evidente; um rigoroso determinismo regula seu curso e reúne seus elementos, formando um cosmos, um mundo (que quer dizer coisa ordenada e harmónica). Sendo isto assim, como será possível que a desordem e o absurdo reinem na ordem moral e que reinem duplamente: primeiro, pela aniquilação de um ser inteligente e livre, que aspira com toda sua alma a viver sem fim e a gozar de uma felicidade sem mistura de infelicidade, sem poder encontrar aqui na vida terrena, nem nos prazeres, nem na arte, nem na ciência, nada que lhe satisfaça plenamente; e depois pelo fracasso que padeceria a justiça se depois da morte, não viera outra vida a restabelecer, em favor do justo, o equilíbrio que aqui em baixo não encontra realização?É, pois, impossível admitir que o mundo, ordenado e racional na ordem física, esteja entregado ao absurdo na ordem moral. Isto equivale a dizer que a ordem moral implica e exige ao mesmo tempo um Bem supremo, que satisfaça os profundos anseios do coração humano, e uma Providencia que assegure a realização de uma soberana e incorruptível justiça.

Prova pelo consentimento universal

38. O facto do consentimento universal .- A ideia de Deus não é uma ideia reservada ao filósofos e aos sábios, nem uma noção moderna, nem um elemento exclusivo da nenhuma civilização. É uma ideia universal no tempo e no espaço. Em todas as latitudes e em todas as culturas, desde as origens até nossos dias, os homens, sábios ou ignorantes, têm afirmado sua crença de um Dono soberano do universo. Nem as mitologias, tão estranhas as vezes, que expressaram as crença em Deus, nem o ateísmo, pretendido ou real, que encontramos na história, sobre tudo na contemporânea, nada podem supor contra o facto do consentimento universal, moralmente unânime do género humano. Pois bem, este facto devemos explicá-lo.

39. Sentido e alcance do argumento .- Não se pode dizer simplesmente que a universalidade da crença em Deus prove sua existência. Até Copérnico, os homens creram unanimemente que o sol girava ao redor da terra; mas isto não prova de modo algum a realidade de tal movimento. Mas esta unanimidade provava sem dúvida que sérias e graves razões, até o aparecimento de Copérnico e Galileu, permitia contradizê-las) militavam em favor de tal opinião.O mesmo acontece no caso da universalidade da crença em Deus. Esta universalidade supõe que existem razões poderosas e acessíveis a todas as

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inteligências em favor da crença em Deus. Entanto não se chegue a demonstrar que estas razões estão desprovidas de valor, se haverá de pensar que a crença em Deus baseia-se no exercício normal do pensamento humano, dócil às exigências racionais. Mas também pode-se ver, por tudo o dito, que não é tanto a crença o que serve de argumento, quanto a presunção de que uma evidência objectiva é a que tem dado lugar ao consentimento universal.

Prova pela experiência mística .-

40. O facto da experiência mística .- Muitas são as grandes almas religiosas: São Paulo, São Francisco de Assis, São João da Cruz, Santa Teresa, Santa Catarina de Sienna, etc., que afirmaram ter entrado em contacto experimental com Deus, de uma maneira que ultrapassa seguramente os médios de expressão humana, e na que gozaram da irresistível evidência da presença de Deus.

41. O argumento .- O argumento que se funda no facto místico consistirá em dizer que toda esta experiência do divino, que alcança os mais altos cimos nos grandes místicos cristãos, é absolutamente inexplicável se se prescinde de Deus. Pode-se admitir, sem dúvida, que tal ou qual místico tenha estado em erro. Porém, seria realmente impossível que todos se houvessem enganado e nos enganem falando-nos, com tanta força e convicção, das mesmas realidades sobrenaturais que eles conheceram em experiências absolutamente pessoais e incomunicáveis.Devemos concluir, pois, com Bergson, que existe, na unanimidade dos grandes místicos cristãos ao descrever suas experiências, «o sinal de uma identidade de intuição», ou, mais exactamente, de uma identidade de experiência que não se explica bem senão «pela existência de um Ser com o qual (os místicos) entram em comunicação».

42. Alcance do argumento .- É evidente que o testemunho dos místicos tem valor e força para aqueles que já admitem pela razão e pela fé, a existência de um Deus pessoal.

Conclusão sobre as vias de acesso a Deus

43. O ponto de vista comum a todas as provas .- Todas as provas da existência de Deus são aplicações do princípio de razão suficiente: toda coisa tem sua razão, ou em si, ou em outro. Em outros termos: o mais não pode vir do menos nem o ser do nada. Cada prova, ao contemplar um ponto de vista particular, precisa da aplicação do princípio de razão, no domínio da contingência, do movimento, das causas finais, nos domínios da obrigação moral, das aspirações do homem e do consentimento universal. Em cada caso, o princípio de razão obriga a concluir a existência de um Ser que existe de por si, primeiro motor universal, inteligência infinita, princípio e fim da ordem moral, e absoluta perfeição.

44. Cada prova basta para provar a existência de Deus .- Não temos, pois,

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necessidade de recorrer a todas as provas juntas. Cada uma, de por si, nos leva a Deus e implica todas as outras. De modo que, como temos provado, quem diz primeiro motor imóvel, diz perfeição absoluta, ser incriado e eterno e causa universal, não só do movimento, senão do ser, se é certo que o movimento, isto é, a mudança, revela a insuficiência radical do ser.Mas cada uma das provas tem a vantagem de fazer salientar um aspecto da causalidade divina e de fazer ver que, qualquer que seja o ponto de vista que se adopta, o mundo não tem sua razão suficiente de existir senão em Deus; por isso não fica senão eleger entre estas duas conclusões: ou Deus ou o absurdo total.

45. Espontaneidade da crença em Deus .- A conclusão a que chegamos não é exclusivamente o fruto de uma demonstração científica, tal como a que os filósofos, preocupados da precisão, ou para responder a diversas dificuldades, formularam. A certeza da existência de Deus não depende da perfeição científica das provas que se podem apresentar. Ao contrário, a prova necessária a qualquer homem para adquirir uma certeza plena é tão fácil e tão clara, que apenas se é necessário os procedimentos lógicos empregados, e os argumentos cientificamente desenvolvidos, longe de dar ao homem a primeira certeza da existência de Deus, não fazem senão aclarar e fortalecer o que já se possuía.

46. Pode haver uma intuição da existência de Deus? .- Esta espontaneidade da crença na existência de Deus explica que se possa falar tão amiúde de intuição da existência de Deus (da existência de Deus, quer dizer, desta verdade que Deus existe -e não de Deus em si mesmo-). Parece, de facto, que a argumentação em favor da existência de Deus está fundada numa intuição primitiva e universal; a mesma pela qual apreendemos, imediatamente e sem nenhum raciocínio, na realidade objectiva, as leis universais do ser e, portanto, as condições absolutas da inteligibilidade do ser.Assim é possível explicar ao mesmo tempo a rapidez da inferência pela qual a inteligência humana conclui à existência de Deus, e da universalidade desta inferência. Num sentido, é tão natural e invencível como a intuição do ser inteligível e dos princípios universais do ser.

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CAPÍTULO V

A NATUREZA DA DEUS

OS ATRIBUTOS DIVINOS EM GERAL

Noção dos atributos divinos

1. Definição .- Os atributos divinos não são outra coisa que as perfeições de Deus, tais como a razão pode conhecê-las. De facto, as diversas provas da existência de Deus nos conduziram cada um aspecto particular de Deus: primeiro motor imóvel, existente de por si, soberana perfeição, etc... Elas nos fizeram, pois, conhecer de uma maneira certa não só a existência de Deus, mas também sua natureza.

2. Como conhecemos a natureza divina .- Nós não podemos elevar-nos, só pelas forças da razão, a conhecer a natureza divina no que a constitui propriamente. Só a conhecemos pelos seus efeitos. Indubitavelmente que os efeitos têm sempre alguma semelhança com sua causa: por isso nosso conhecimento da natureza divina é real. Porém, segue sendo imperfeito, porque não conhecemos perfeitamente uma coisa se não a conhecemos nela mesma.

Nós podemos conhecer a natureza divina .-

3. Alguns filósofos pensaram que a natureza divina nos era totalmente incognoscível, porque nossa razão está limitada ao finito e ao relativo, e o infinito e o absoluto lhe são totalmente alheios. Respondemos a esta objecção com as observações seguintes:

4. Deus é incompreensível .- Porque de qualquer maneira que lhe consideremos, é o Ser infinito. E nossa inteligência, essencialmente limitada, não pode compreender, quer dizer abraçar o Infinito, assim como nós não podemos abraçar uma montanha. Por todos lados, Deus ultrapassa infinitamente nossa inteligência, e todo o que d'Ele podemos conceber não é senão um balbucio comparado com o que Ele é.

5. Deus não é incognoscível .- Porque o conhecimento que d'Ele temos, se bem não é perfeito, é, não obstante, um verdadeiro conhecimento. A ciência está longe de conhecer o mundo de maneira perfeita e adequada; mas isso não quer dizer que não tenha a legítima pretensão de descobrir-nos em parte sua natureza e seus leis. Do mesmo modo, se nós não somos capazes de rodear uma montanha com nossos braços, podemos ao menos com a vista adquirir dela um conhecimento parcial.

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6. Sabemos que nosso conhecimento de Deus é imperfeito .- Isto nos livra de certos erros. Nós não concebemos a natureza divina segundo o modelo da nossa: nós não fazemos Deus à nossa semelhança. Deus, dizemos, deve possuir todas as perfeições que se encontram nos efeitos de seu poder, porque não pode haver na causa menos que nos efeitos. Mas estas perfeições das criaturas são perfeições relativas. Devemos, pois, ao atribuí-las a Deus, negar delas tudo o que as limita (via de eliminação) e elevá-las ao infinito (via eminentie, de eminência).Dessa maneira, não atribuímos a Deus as perfeições das criaturas senão por analogia, isto é, afirmando que as semelhanças deixam subsistir infinitas diferenças, e que, por exemplo, a inteligência, a liberdade e a bondade não são em Deus somente superiores às do homem, senão que são de outro ordem.

7. Os atributos divinos não introduzem em Deus composição alguma .- Nossa maneira discursiva de pensar é a que nos faz conceber estes atributos como distintos entre si. Mas o que nesta concepção a de inexacto o corrigimos dizendo que os divinos atributos não são em realidade mas que os diferentes aspectos da essência perfeitamente simples de Deus. E como a essência de Deus é acto puro de ser, em definitiva, os atributos divinos se identificam com o Esse divino, porque é o Esse divino que possui todas as perfeições.

Atributos entitativos

8. Chama-se atributos entitativos (ou metafísicos) ao que têm relação com o mesmo Ser de Deus. Estes atributos são os seguintes:

9. Simplicidade .- Deus não está composto de partes, nem quantitativas, nem metafísicas, nem lógicas. De facto, toda composição implica imperfeição, porque o composto depende necessariamente dos elementos ou partes que o constituem; em consequência, com relação à seus componentes é um ser secundário e derivado. Mas Deus é o ser absolutamente primeiro. Portanto em nenhuma forma é composto, o que significa que é perfeitamente simples.

10. Infinitude .- Deus é infinito, isto é, sem limites em seu ser, porque é o Ser por si mesmo, quer dizer o ser que existe por sua própria essência. De facto, de onde poderiam vir os seus limites? Não poderia ser de um poder estranho a Ele, pois todos são inferiores a Ele, não depende de ninguém e todos dependem d'Ele. Também não poderiam vir da sua própria vontade, porque Deus não se fez a si mesmo. Nem, em fim, da sua própria essência, porque esta essência, que é seu próprio existir, encerra todas as perfeições e exclui toda imperfeição e portanto qualquer limite.

11. Unicidade .- A unidade de que tratamos aqui, não é a que resulta da indivisão do ser em si mesmo; pois sabemos já que sendo Deus infinitamente simples é pelo mesmo infinitamente uno. Trata-se de provar agora que Deus é único, isto é, que não pode haver mais que um só Deus.Isto é consequência de que o conceito de dois seres infinitamente perfeitos é contraditória. De facto, Deus é tudo o que é pela sua mesma divindade, quer dizer

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pela sua natureza. Pois bem, o fez tal a um ser é incomunicável e portanto não se pode multiplicar; se um homem fosse tal homem por sua mesma natureza humana, e não (como é o caso) pelas qualidades individuais que o distinguem dos outros homens, formaria um uno com a humanidade; seria a humanidade mesma, e não poderia haver outro homem mais que ele. Assim, sendo Deus a mesma natureza divina, não pode haver mais que um só Deus. A unicidade divina pode demonstrar-se também pela absoluta perfeição da divindade. Se houvesse muitos deuses, necessariamente se diferenciariam entre si. Mas esta diferença significaria que um possui algo que falta a outro, o qual não seria absolutamente perfeito e, portanto não poderia ser Deus; ou bem a ambos faltaria alguma perfeição possuída pelo outro, e em tal caso, ninguém possuiria a perfeição infinita, quer dizer que nenhum seria Deus.

12. Imensidade .- Etimologicamente é imenso o que não se pode medir, e imensidade é um atributo divino que exclui de Deus toda possibilidade de ser circunscrito ou limitado por alguma coisa. Este atributo deriva imediatamente da infinitude divina: o que é infinito não pode ser limitado por nada.A ubiquidade, ou a presença de Deus em todas as coisas, não se realiza senão pela criação do mundo. Deus está presente ao universo e a cada parte do universo, o qual conserva pela contínua acção do seu poder.

13. Eternidade .- Deus é eterno por existir pela mesma necessidade da sua natureza. Por outra parte, começar a ser é uma imperfeição que não podemos atribuir sem contradição ao ser infinitamente perfeito.A eternidade divina exclui a mudança e a sucessão. Não é um desenvolvimento infinito de diversos e sucessivos estados, senão que é propriamente a possessão total e perfeita de uma vida interminável. Não há, pois, nela nem passado, nem futuro: a eternidade é um presente perpétuo.

Atributos operativos

14. Deus é um ser espiritual. Devemos, pois, atribuir-lhe as operações dos seres espirituais, quer dizer as operações da inteligência e as da vontade.

A inteligência divina

15. A ciência divina .- Em Deus tudo é infinito. Devemos, pois, admitir que Deus é uma inteligência infinita e que possui uma ciência infinita, a saber: não só ciência de tudo o que foi, é ou será, mas também de tudo o que é possível. Deus conhece em sua essência a infinita multidão de seres que poderia chamar à existência como outras tantas participações de sua essência.

16. Objecto da ciência divina .-a) A essência de Deus é o primeiro objecto da ciência divina, objecto sempre presente ao Pensamento divino, com o qual se identifica.

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b) Todos os seres. Deus conhece todos os seres reais do passado, do presente e dos futuros, assim como todos os possíveis. Todos os seres, reais ou possíveis, Deus os conhece como imagens mais ou menos longínquas de si mesmo e conhece-os em sua própria essência.

17. Modo da ciência divina .- Deus, para saber, não tem necessidade de raciocínios, por ser o raciocínio a imperfeição de uma ciência que se forma aos poucos, e que portanto supõe a ignorância. Deus vê tudo numa só intuição, de um só olhar; e seu pensamento penetra até o fundo mais íntimo dos seres.

A vontade divina

18. O amor divino .- A vontade, é uma inclinação para o bem apreendido pela inteligência. Esta inclinação deve existir em Deus e levar-lhe a amar o bem que conhece.

19. O objecto do amor divino .- a) Deus ama-se a si mesmo como se conhece, quer dizer infinitamente. Ele é, de facto, o Bem perfeito, que não pode menos de amar, e em cujo conhecimento encontra uma infinita felicidade.b) Deus ama todos os seres que criou, entanto e na medida em que participam de sua infinita perfeição, quer dizer na medida em que imitam sua divina essência.

20. Modo da vontade divina .- A vontade divina não conhece limites e está livre de qualquer impedimento. Deus pode tudo o que quer. As vezes se acrescenta: salvo o que implica contradição. Mas a contradição, por não ser mais que um nome, não pode limitar realmente a divina omnipotência.É também evidente que Deus não pode querer o mal moral. Este, tomado absolutamente, não se pode definir senão como a negação de Deus. Porém Deus, que é o ser necessário, não pode negar-se ou renegar-se a si mesmo.

21. Conclusão sobre os atributos divinos .- Todo este estudo sobre os divinos atributos deve deixar-nos um sentimento muito vivo da nossa insuficiência e de nossa impotência para pensar em Deus em si mesmo. E esse é o ponto mais alto do nosso conhecimento de Deus, já que por ai proclamamos a transcendência infinita do Ser que não pode ser posto em comparação com os seres da criação.

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CAPÍTULO VI

DEUS E O MUNDO

1. Os diversos problemas que as relações de Deus com o universo colocam são os da distinção de Deus e do mundo, da criação, e da Providência.

Distinção do Deus e do mundo

2. As diferentes formas de panteísmo .- A existência de um Deus pessoal, absolutamente distinto do universo, é negada pelo panteísmo (etimologicamente: Deus é o Todo, e o Todo é Deus). Podemos distinguir três classes diferentes de panteísmo:a) Panteísmo emanatista. Esta concepção é de Plotino, segundo o qual Deus, ou o Uno primitivo, gera necessariamente, em virtude de sua mesma natureza, a todos os seres do universo. Todo o universo emana (ou sai), pois, de Deus, e não é outra coisa que uma espécie de explicitação de Deus. Este panteísmo absorve a Deus no mundo.b) Panteísmo realista. Spinoza rejeita o sistema emanatista, que lhe parece não guardar bastante a absoluta identidade de Deus e do mundo. Para Spinoza, de facto, não existe senão uma só Substância, um só Ser, do que o universo e os seres singulares que o compõem são só sua manifestação. Poderíamos dizer que são fenómenos de Deus. Spinoza absorve, pois, o mundo em Deus.c) Panteísmo evolucionista. É a doutrina daqueles para quem Deus é o término do devir universal. Deus não é, senão que se faz. Ou se é, não é outra coisa que a força imanente que move o mundo desde dentro e governa sua evolução. Esta doutrina tem sido proposta de muitas formas, sobre tudo pelos filósofos alemães do século XIX (Fichte, Schellin, Hegel, Schopenhauer).

3. Discussão do panteísmo .- Sob qualquer forma que se apresente, o panteísmo não só fica excluído dos resultados positivos da demonstração da existência de Deus e dos atributos divinos, mas também implica em si tal quantidade de dificuldades que não é possível propô-lo nem sequer de maneira inteligível. Examinemos as principais destas dificuldades.a) O panteísmo é contraditório em si mesmo. De facto, identifica o perfeito com o imperfeito, o finito com o infinito, o contingente com o necessário. Um só e mesmo ser não pode estar submetido à desgraça lógica de possuir atributos tão incompatíveis entre si. Um círculo quadrado seria mais fácil de ser concebido.b) O panteísmo vá contra a experiência. A experiência nos impõe, de facto, com a maior evidência o sentimento de nossa personalidade, isto é, de nossa qualidade de sujeitos autónomos, livres e responsáveis. Mas, seria possível este sentimento se não fossemos realmente distintos de Deus, ou se Deus não fosse real senão em nós e por nós?c) O panteísmo choca contra a realidade moral. Chega fatalmente a justificar tudo com parte da realidade. Se tudo é Deus, ou se Deus confunde-se com o mundo,

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tudo o que acontece é ao mesmo tempo necessário e bom. A distinção entre bem e mal é uma coisa sem sentido (e algo inexplicável) e ao mesmo tempo desaparece a ideia de responsabilidade pessoal.d) O panteísmo evolucionista faz brotar o ser do nada. A ideia de um Deus que se vai fazendo aos poucos, mediante o devir universal, equivale a pôr o menos como princípio do mais, o nada como princípio do ser, sem falar do absurdo que é supor uma ordem que se realiza sozinha, uma evolução que se desenvolve por si mesma, sem ser governada nem dirigida. O menos que se pode dizer é são teorias inconsistentes porque elevam a princípio metafísico o azar e a casualidade.

Imanência e transcendência

4. Temos, pois, que remeter-nos às provas pelas que Deus se nos manifesta como absolutamente distinto do universo e transcendendo a este universo. Mas por um lado convêm compreender bem que a transcendência de Deus não suprime a imanência (ou presença) de Deus no universo, e por outra parte, temos que entender exactamente o alcance de estas noções de transcendência e de imanência.

5. A divina imanência .- Como Deus é necessariamente primeiro Princípio e Causa universal, deve estar presente a todo o que é, e até deve estar mais presente aos seres do que eles estão presentes a si mesmos, já que não existem nem subsistem senão por efeito de um contínuo influxo do poder criador. Também temos de dizer em toda verdade com São Paulo, que «em Deus temos a vida, o movimento e ou ser».A imanência não a temos de imaginar, pois, como uma espécie de mistura do Ser divino com as coisas criadas. Temos de concebê-la como um modo de presença espiritual, irredutível às presenças corporais, e pelo mesmo infinitamente mais profunda e mais envolvente.

6. A divina transcendência .- A divina imanência não nos tem que fazer esquecer a transcendência, isto é, a absoluta independência de Deus respeito do mundo e do soberano senhorio de Deus sobre todo o universo. Devemos cuidar-nos, pois, de representar-nos a divina transcendência como uma exterioridade material e espacial, como se a absoluta distinção entre Deus e o mundo implicara uma justaposição do mundo e de Deus. A noção de transcendência nada disso significa, senão que é essencialmente a independência absoluta, a perfeita aseidade de Deus (ou a propriedade de existir necessariamente, por si, a se).

7. Imanência e transcendência são igualmente necessárias .- De facto, imanência e transcendência são dois aspectos igualmente inevitáveis de uma noção de Deus conforme a o que ao mesmo tempo requerem a experiência e a razão. Se não existisse a imanência, Deus é estranho ao universo, e não é portanto nem infinito nem perfeito: a ideia de Deus resulta algo contraditório. Se falta a transcendência, Deus é idêntico ao universo, e também aparece como

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imperfeito, potencial e em devir. A noção de Deus é uma vez mais contraditória.

Deus é um Ser pessoal

8. Noção de Ser infinito pessoal .- Tudo o que acabamos de dizer leva-nos a reconhecer que Deus, se existe, não pode menos que ser o Ser infinito, radicalmente distinto do universo que criou e que conserva por um acto da sua livre vontade; e por conseguinte que Deus é um Ser que chamaremos, por analogia, pessoal, isto é, um Ser subsistente, inteligênte e livre.Como poderia ser possível que o princípio do que procedem, no universo, os sujeitos inteligentes e livres, os espírito que aspira a gozar da verdade absoluta e da felicidade sem fim, fosse uma realidade impessoal, inconsciente e dominada por um fatal determinismo? Haveria nisso uma insuportável contradição.

9. O antropomorfismo.- Quando pensamos e falamos de Deus, não nos é possível escapar ao antropomorfismo, porque não podemos pensar em Deus e falar de Deus senão é usando nossos conceitos humanos, que os extraímos do mundo sensível. O antropomorfismo ainda, pode ser precioso para a consciência religiosa, porque dá uma espécie de apoio a alma humana, que tem necessidade de imaginar o que pensa. Porém, é preciso saber bem de quê se trata, isto é, que o neguemos ao mesmo tempo que nos servimos dele. Deus não é um ser pessoal como nós; Deus não tem corpo; a inteligência e a vontade não são nele o que são em nós. Em Deus não existem distinções reais (tudo está identificado com o acto puro de ser, no Esse divino) as distinções a faz nossa inteligência discursiva. Deus nos ultrapassa infinitamente.

A criação

10. Por tudo o que levamos dito, vemos até a evidência que Deus, por ser radicalmente distinto do universo que não tem nem pode ter em si mesmo sua razão suficiente, dever ser o criador deste universo. O facto da criação não está, pois, em discussão, senão só o modo dessa criação. Fica, pois, por precisar a noção de criação, e outra que lhe é conexa, a de conservação.

11. Noção de criação. Que coisa é criar? .- a) Criar é fazer uma coisa do nada (creatio ex nihilo sui et subjecti). Tal é o sentido próprio da palavra criação. A produção de uma nova forma na matéria preexistente (como faz o artista) só impropriamente se chama criação. Em realidade, há simplesmente transformação.Criar é privilégio de Deus, porque a criação propriamente dita exige um poder infinito.b) Criação e começo. É fundamental compreender bem que a ideia de criação não está necessariamente unida à de um inicio temporal. Ao contrário, a criação faz completamente abstracção da ideia de começo temporal, e não significa outra coisa que a absoluta dependência do mundo, até o mais mínimo dos seres, em

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relação a Deus.Em realidade, o mundo, por ter sido criado, que tenha tido ou não um primeiro instante temporal, não deixa de começar. Ao não existir por si mesmo, senão só pela virtude criadora de Deus, e isso em cada instante da sua duração, como um todo mas também em cada um dos seus elementos, é da sua essência começar sempre. A hipótese da eternidade do mundo não suprime esta necessidade: se o mundo não tivesse tido um começo temporal, não deixaria por este motivo de ser em cada instante criado por Deus, e portanto de receber de Deus o ser que possui (o qual é propriamente começar). Também dá para perceber como, mesmo nesta hipótese, a ideia de eternidade não poderia aplicar-se realmente ao mundo, porque, como temos visto, a eternidade exclui a mudança e a sucessão (isto é, qualquer ideia de começo). Só Deus é eterno. Por isso, se o mundo não tivesse tido um instante inicial, poder-se-ia falar da sua perpetuidade, mas não da sua eternidade.c) Criação e duração. A noção de criação (na hipótese de que o mundo tivesse tido um instante inicial) não implica em modo algum a ideia de uma duração vazia, que precedesse à duração concreta e a existência real. Em realidade, o tempo é co-extensivo ao real criado: se o universo teve um instante inicial, o tempo começou com ele, e, como temos vista na filosofia da natureza, até o tempo deve ser considerado como logicamente posterior ao mundo como substância móvel, já que é fundamentalmente uma consequência do movimento.Se pois o mundo teve um começo temporal, antes do mundo não havia nada, nem ser, nem mundo, nem duração temporal, nem vazio, nem matéria preexistente. O ser universal, em sua substância e em todos os atributos que lhe afectam, incluído o tempo, nasceu de uma acto absoluto e intemporal de Deus.

12. O modo da criação .- Não é possível conceber a origem do mundo, quando se parte da ideia de criação, senão de duas maneiras: ou bem Deus tirou o mundo do nada absoluto, ou bem o fez de uma parte da sua substância.Esta segundo hipótese fica excluída pela refutação do panteísmo emanatista. É, de facto, absurdo pensar que Deus tenha podido fazer o mundo de uma parte da sua substância, porque Deus é um ser espiritual e perfeitamente simples. Não pode, pois, ter formado da sua substância um mundo material, composto e perecível.Devemos admitir, pois, que Deus criou o mundo e que o criou do nada. Porque se quiséssemos supor uma substância preexistente, da que tivesse Deus formado o mundo, o problema voltaria a colocar-se de novo: esta substância preexistente ao mundo, de onde veio? Ou bem a tirou Deus do nada absoluto, ou bem a formou da sua própria substância. Sendo absurda esta segunda hipótese, não fica senão a criação ex nihilo.

13. Liberdade da criação .- O acto criador é livre. Isto é uma consequência necessária da natureza de Deus. Se, de facto, Deus é um Ser perfeito e infinito, não pode estar submetido a uma necessidade de produzir o ser, pois isto suporia que está dominado por uma força exterior a Ele, ou bem por um determinismo interno, o qual é incompatível com a noção de ser perfeito e infinito.

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Objecções contra a criação

As observações precedentes permitirão resolver as dificuldades que se suscitam as vezes contra a noção de criação.

14. A eternidade do mundo e a ideia de criação .- Uma objecção bastante comum consiste em dizer que se o mundo é eterno, a criação é inútil, no sentido de que a existência do mundo não tem já necessidade de ser explicada.Esta objecção, como se vê, procede de uma noção errada da criação, que une indevidamente a esta com um começo temporal. Precisemos, pois, que a hipótese da eternidade do mundo não suprimiria a necessidade da criação, porque o que obriga a admitir a criação do mundo, não é o facto de que tenha começado depois de não ter sido (o qual é a verdade de facto, mas que ignoraríamos sem a Revelação); é antes de mais nada, que o mundo não tem em si a razão da sua existência, isto é, que é contingente, como vimos ao estudar as provas da existência de Deus. Se, pois, por hipótese, o mundo fosse eterno, não seria menos dependente eternamente de Deus, quer dizer, criado por Deus, na totalidade de seu ser; e isto em cada momento da sua duração e em cada um dos seres singulares que o compõe.

15. Objecção: Do nada não se faz nada .- A objecção fundamental deste axioma vá dirigida, não já simplesmente contra o facto da criação, mas contra a mesma ideia de criação. Esta seria ininteligível.Também neste caso, a resposta à objecção seguir-se-á da exacta inteligência da noção de criação. De facto:a) A criação é incompreensível, mas não ininteligível. A criação, em sentido próprio, ultrapassa evidentemente o alcance da nossa inteligência, por tratar-se de uma actividade que é privilégio de Deus, enquanto exige um poder infinito. Mas a ideia de criação não é ininteligível, isto é, absurda. Ao contrário, a ideia de criação é, em primeiro lugar, inteligível em si mesma, já que atribui a Deus a omnipotência que lógica e necessariamente corresponde ao Ser perfeito e infinito; e é por outra parte, fonte de inteligibilidade, já que, por ela, o universo se explica ante a razão, na sua existência e nas suas propriedades. Ao contrário, a negação da criação equivale a erigir o absurdo em lei universal. A razão rejeita este suicídio.b) Sentido da expressão ex nihilo. Quando se diz que do nada não vem nada, enuncia-se uma grande verdade se se quer dizer que o nada não é uma causa ou uma matéria. Mas a noção de criação não supõe que o ser venha do nada, mas que vem depois do nada. Em realidade, vem de Deus e de seu infinito poder. Deus não fez o mundo com nada, como com uma matéria preexistente, senão que o fez absolutamente com o seu poder, o fez não tendo antes nada.

A conservação do mundo

16. A noção de conservação .- Temos visto que a permanência dos seres

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contingentes não se explica adequadamente pelo facto de ter-lhes sido transmitida a existência e a vida. Em todo momento, esses seres e o universo inteiro dependem da Causa primeira: a esta dependência, que não é outra coisa que a continuação do acto criador, chama-se conservação. A actividade criadora de Deus não cessa, pois, de penetrar até a mesma raiz do nosso ser, para mantê-lo na existência.

17. Conservação e duração .- A conservação, desde o ponto de vista divino, não é um acto temporal: confunde-se com o acto criador, que não está no tempo. Mas, desde o nosso ponto de vista, é o aspecto temporal sob o qual se traduz para nós, que estamos no tempo, o único acto pelo qual nos cria Deus.

A Providência

18. Definição .- Tudo o que até aqui temos dito de Deus se reduz a afirmar a realidade divina Providência, isto é, da acção que Deus exerce sobre a criatura para conservá-la e dirigi-la para seu fim com sabedoria e bondade, segundo a ordem por Ele estabelecida na criação. Deus, de facto, é infinitamente sábio, e a sabedoria exige que vele sobre o mundo que criou, para conduzi-lo ao fim por Ele próprio fixado; Deus é infinitamente bom, e sua bondade exige que proteja com seu amor às criaturas que são o fruto do seu amor; Deus é infinitamente poderoso, e seu poder quer que Ele governe soberanamente a obra saída das suas mãos.

19. Modo da Providência .- a) A Providência e a natureza das coisas. A Providência não pode em nenhum caso ser concebida como uma acção caprichosa, que modificaria arbitrariamente o curso das coisas. Ela deve ser pensada como a acção de uma Vontade soberana e infinitamente sábia, conforme com a natureza de cada criatura, e, portanto, no homem, com a liberdade; acção na qual o essencial consiste em orientar o curso das coisas em vista do bem de todas as criaturas, segundo o lugar e função de cada uma na arquitectura universal.b) A Providência divina e a actividade das criaturas. A acção providencial é (a não ser em caso de milagre) como o sustém da actividade das criaturas e não justaposta a essa actividade. Ela a utiliza e a penetra, como a vida utiliza o mecanismo e penetra a matéria. Está em todas partes e em todas as coisas, nas revoluções das esferas celestes e no desenvolvimento dos gérmenes, na vida e no movimento do nosso coração, nas aspirações da nossa alma e nos voos da nossa boa vontade. O universo inteiro, em tudo o que contém e em cada um dos seus instantes, não é senão o desenvolvimento visível do Amor.

20. Os factos extraordinários: os milagres .- a) Definição. A palavra milagre significa etimologicamente uma coisa maravilhosa, que provoca a admiração e o espanto, geralmente porque sua causa nos é desconhecida. Quando se diz: «Isto é algo miraculoso», quer-se significar que o

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acontecimento é impossível de explicar por uma causa ordinária. Em sentido próprio, chama-se milagre a todo facto sensível e extraordinário produzido por Deus fora do curso ordinário das coisas. O milagre é, pois, um facto insólito, não no sentido de que seja raro, senão no sentido de que exclui toda explicação pelo curso ordinário da natureza.b) Possibilidade do milagre. O milagre é possível. O é por parte das leis da natureza, que dependem do autor da natureza. E o é também por parte de Deus, ao que não contradiz nem em sua sabedoria, nem em sua imutabilidade, já que o milagre, embora suspende a ordem da natureza sensível, entra na ordem total, que é espiritual, e foi previsto por Deus como um elemento desta ordem.

O problema do mal

21. A existência do mal e a Providência .- A existência do mal no mundo é a miúde invocada para negar a existência de Deus ou a realidade da divina Providência.a) A existência de Deus e a realidade do mal. A negação da existência de Deus, longe de resolver ao problema do mal, o faria totalmente insolúvel. De facto, se os males que sofremos foram sem remédio nem compensação, o mundo seria definitivamente absurdo, carente de sentido e radicalmente mau. Mas neste caso, como compreender a ordem física que reina nele? Se existe uma ordem física, como não existirá com maior razão uma ordem moral? Quer dizer, como o mal não teria um sentido e uma explicação?b) O dualismo maniqueu. A explicação do mal não deveremos procurá-la na hipótese de que exista um Princípio do mal ao lado ou frente a um Princípio do bem, como supuseram os maniqueus (discípulos de Manes ou Mani, no século III depois de Cristo). A hipótese dualista é contradita, por um lado, pela unidade interna do universo e, por outra parte, pelo que implica de ininteligibilidade o supor dois Princípios absolutamente primeiros, autónomos e infinitos que se limitariam reciprocamente.

22. Mal físico e mal moral .- Para resolver o problema do mal, deve-se distinguir primeiro o mal físico, que pertence à ordem corporal e se traduz pelo sofrimento, e o mal moral, que é essencialmente a violação voluntária e livre da ordem querida por Deus e que se chama falta ou pecado. Um e outro são, não simples ausência de um bem superior à natureza, senão privação de um bem que convém a natureza. Desta distinção derivam as seguintes observações:a) O mal, físico ou moral, não é natural, quer dizer que não pode ter cabimento na definição da natureza. Deus, criador de todas as naturezas, não pode querer senão o bem. Nenhuma natureza pode, pois, encerrar, como tal, nem o mal moral, nem o mal físico (entendidos como privações dum bem moral ou físico devido à natureza).É certo que a ordem corporal leva consigo, como tal, dor e penalidades. Mas esta dor e penalidades estão naturalmente ordenas ao bem e felicidade do homem. Por isso, o nome de mal não lhes convém realmente.b) A possibilidade do mal moral resulta do nada original da criatura. A criatura

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racional é, de facto, graças a sua finitude, capaz de cometer o pecado e pelo mesmo de introduzir no mundo os males que se seguem ao pecado. Mas esta capacidade não é uma necessidade. O homem é livre, e Deus que o criou, respeita e garante esta liberdade. Se pois o homem pecou, o fez voluntária e livremente.c) A liberdade, mesmo falível, é um bem. Não se pode culpar a Deus ter dado ao homem o perigoso bem da liberdade. É uma maravilhosa prerrogativa ser capaz de determinar-se por própria eleição, conformar-se, por um acto livre da vontade, com a ordem divina, e colaborar assim em certa maneira com a actividade criadora de Deus. Esta perfeição não é absoluta, já que encerra a falibilidade. Mas a justiça exige somente que o homem seja dono do seu querer e da sua eleição, de tal maneira que se peca carregue sozinho com a responsabilidade da sua falta, e dos males que dela derivam.d) A realidade do mal no mundo presente. O mal propriamente dito, ao não poder vir de Deus, só pode ser efeito de uma desordem moral na criatura; e o mal físico, se existe, deriva necessariamente de um pecado; de tal modo que, como diz Santo Agostinho, o mal é o pecado e a consequência do pecado.Não obstante, para que esta argumentação (que es de Pascal) fosse totalmente convincente, seria preciso evidentemente estabelecer que os males a que está sujeita a humanidade, ultrapassam realmente o que é compatível com uma natureza íntegra, tal como Deus deveu criá-la. Nem mesmo será possível, por uma prova deste género, senão chegar a conjecturar que o mal provenha de uma espécie de desordem que pesa sobre todos os homens. A razão, somente com suas próprias luzes, não nos permitirá ir mais longe. Só a fé cristã é capaz de definir as modalidades da queda da humanidade.e) Deus faz que o mal sirva para o bem. Deus faz que o mal ocupe seu lugar na ordem, não essencialmente, já que não foi querido por Deus, senão acidentalmente, em virtude das exigências da bondade, da sabedoria e do poder divinos. O qual equivale a dizer que Deus faz que o sofrimento seja útil. Só seria absurdo e um mal absoluto, um sofrimento que não servisse para nada, que não fosse ou a expiação de um pecado ou a condição de um bem.Pois bem, justamente o mal físico e o sofrimento, tal qual provém do pecado, pode ser um médio de reparação e uma fonte de mérito, e servir para volver o homem à observância do dever. No mesmo pecado, Deus coloca, para o pecador, uma possibilidade de bem: por ele é dado ao homem conhecer sua miséria, humilhar-se diante de Deus e invocar sua protecção.

Conclusão

23. Desta maneira vemos, dentro da perspectiva destes princípios gerais de solução, que a Divina Providência está livre de qualquer culpa. Há muitas coisas que para nós são um mistério. Mas não é possível que deixemos de entender que se bem há um mistério, injustiça não há.

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