17
1 João Ricardo Zacarquim Siqueira, discente do curso de Direito do Centro Universitário da Fundação Assis Gurgacz, [email protected]. 2 Guilherme Rezende, docente do curso de Direito do Centro Universitário da Fundação Assis Gurgacz. [email protected]. 1 A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA E SUA APLICAÇÃO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO ZACARQUIM SIQUEIRA, João Ricardo 1 REZENDE, Guilherme² RESUMO: A teoria da cegueira deliberada, originada na Inglaterra, busca solucionar conflitos em que o agente, ignorando de forma deliberada dados penalmente relevantes à sua conduta, provoca a realização de um resultado ilícito. A teoria vem sendo aplicada em diversos países, especialmente nos Estados Unidos. No Brasil, a doutrina e jurisprudência aplicam a teoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito penal brasileiro, a fim de se verificar a possibilidade de sua aplicação. PALAVRAS-CHAVE: teoria, cegueira, deliberada, dolo, direito, penal. THE THEORY OF WILFUL BLINDNESS AND ITS APPLICATION IN BRAZILIAN CRIMINAL LAW ABSTRACT: The theory of deliberate blindness, originated in England, seeks to resolve conflicts in which the agent, deliberately ignoring data criminally relevant to his conduct, causes an illicit result to be achieved. The theory has been applied in several countries, especially in the United States. In Brazil, doctrine and jurisprudence apply the theory of deliberate blindness in a timid manner. It is necessary to make a study about the compatibility of the theory of deliberate blindness with Brazilian criminal law, in order to verify the possibility of its application. KEYWORDS: theory, blindness, criminal, law.

Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

  • Upload
    others

  • View
    6

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

1João Ricardo Zacarquim Siqueira, discente do curso de Direito do Centro Universitário da Fundação Assis Gurgacz, [email protected].

2 Guilherme Rezende, docente do curso de Direito do Centro Universitário da Fundação Assis Gurgacz. [email protected].

1

A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA

E SUA APLICAÇÃO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

ZACARQUIM SIQUEIRA, João Ricardo1

REZENDE, Guilherme²

RESUMO:

A teoria da cegueira deliberada, originada na Inglaterra, busca solucionar conflitos em que o agente, ignorando de

forma deliberada dados penalmente relevantes à sua conduta, provoca a realização de um resultado ilícito. A teoria vem

sendo aplicada em diversos países, especialmente nos Estados Unidos. No Brasil, a doutrina e jurisprudência aplicam a

teoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da

cegueira deliberada com o direito penal brasileiro, a fim de se verificar a possibilidade de sua aplicação.

PALAVRAS-CHAVE: teoria, cegueira, deliberada, dolo, direito, penal.

THE THEORY OF WILFUL BLINDNESS

AND ITS APPLICATION IN BRAZILIAN CRIMINAL LAW

ABSTRACT:

The theory of deliberate blindness, originated in England, seeks to resolve conflicts in which the agent, deliberately

ignoring data criminally relevant to his conduct, causes an illicit result to be achieved. The theory has been applied in

several countries, especially in the United States. In Brazil, doctrine and jurisprudence apply the theory of deliberate

blindness in a timid manner. It is necessary to make a study about the compatibility of the theory of deliberate blindness

with Brazilian criminal law, in order to verify the possibility of its application.

KEYWORDS: theory, blindness, criminal, law.

Page 2: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

2

1. INTRODUÇÃO

Principal rota do tráfico e contrabando entre Paraguai e os estados do sul e sudeste, o Paraná é

líder de apreensões de uma série de produtos ilícitos. Entre eles, o crack ganha cada vez mais

destaque – sua presença na sociedade inchou 12 vezes nos últimos cinco anos, segundo números do

governo do estado. O estado do Paraná, especialmente a região oeste, é uma rota querida pelos

contrabandistas e traficantes, haja vista a extensa fronteira e a geografia de ligação do sudeste com a

região sul. Oriundos principalmente do Paraguai, através do Paraná, os produtos abastecem

principalmente as regiões sudeste e sul, que concentra maior riqueza entre a população e também

tem um potencial de consumo de drogas muito grande, segundo a Polícia Federal.

No dia a dia do Poder Judiciário vemos constantemente a presença desses crimes e, de quando

em quando, pessoas alegam desconhecimento do que estariam levando em suas malas, bagagens ou

cargas. Partindo desse ponto, visualizamos três hipóteses: 1) a pessoa realmente foi enganada e não

sabia o que estaria carregando; 2) a pessoa está mentindo e sabia o que estaria carregando; ou 3) a

pessoa não sabia, mas também não queria saber, ou seja, deliberadamente evita o conhecimento de

eventual ilícito, com o fim de obter alguma vantagem. De fato, a linha entre essas hipóteses é tênue,

cabendo ao juiz com base nas provas colhidas e a lei resolver a questão.

Nessa perspectiva, a teoria da cegueira deliberada funciona como ferramenta buscando

auxiliar nos casos em que o agente comete um crime ignorando, contudo, dados penalmente

relevantes à sua conduta, ou seja, deliberadamente não quer enxergar a ilicitude, visando eventual

vantagem. Face à crescente adoção da teoria em ordenamentos jurídicos diversos, o presente

trabalho se propõe a analisar a compatibilidade da ignorância deliberada com o direito penal

brasileiro. Para tanto, iniciar-se-á fazendo um apanhado da origem e também evolução histórica da

teoria. Em seguida, passar-se-á ao estudo do dolo no direito penal brasileiro e finalmente, analisar-

se-á a entrada que a teoria da cegueira deliberada no direito penal brasileiro.

Page 3: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

3

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A idéia de cegueira deliberada surgiu em 1861, na Inglaterra, no caso Regina vs. Sleep, no

qual se revisava a condenação de um sujeito acusado de gestão ruinosa - infração esta que requer o

conhecimento por parte do autor de que se trata de bens de titularidade estatal. Sleep entregou para

que fosse embarcado em um navio um barril que continha parafusos de cobre, alguns dos quais

marcados com um sinal em forma de flecha que indicava que eram de propriedade estatal.

Condenado em primeiro grau, recorreu alegando não ter consciência de que se tratava de bem

estatal, sendo que o tribunal decidiu revogar sua condenação já que o Júri não considerou se o

agente sabia que os bens estavam marcados ou nem que se abstivera intencionalmente de obter este

conhecimento.

A partir desta ilustração pode-se concluir que, caso restasse comprovada a intenção do

indivíduo de abster-se, mereceria ele uma resposta punitiva semelhante à dada em caso de

conhecimento certo. Assim, com base nesse primeiro julgado desenvolveu-se a chamada willful

blindness.

As decisões que se seguiram, ressalte-se, não esclarecem se para aplicar a equiparação

sustentada no precedente citado é necessário demonstrar que o sujeito suspeitava da possibilidade

de uma atividade ilícita, ou se esta equiparação só poderia ser utilizada às alegações de

desconhecimento absolutamente inverossímeis por parte de alguns acusados. Fato é que no final do

século XIX a referida equiparação estava plenamente assentada na doutrina inglesa.

A Teoria da Cegueira Deliberada, também conhecida por outros nomes como “Ostrich

Instructions” (instruções de avestruz), “Conscious Avoidance Doctrine” (doutrina da ignorância

consciente), teoria do avestruz ou teoria da evitação da consciência, foi elaborada na tentativa de

atingir o agente que, propositalmente, não quer enxergar a ilicitude da origem de bens, direitos ou

valores, comportando-se como um avestruz, escondendo a cabeça na terra, quando o perigo ou algo

de errado está próximo, visando eventual vantagem.

Para que seja possível a aplicação da referida teoria, é preciso que o indivíduo tenha noção da

alta probabilidade de que os bens, valores ou direitos sejam oriundos de crimes, além disso, o

agente precisa se manter inerte, ou seja, de modo indiferente à origem dos produtos (MONTEIRO,

2009).

Page 4: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

4

Essa teoria vem se desenvolvendo principalmente em países que adotam o “Common Law”,

como Inglaterra e Estados Unidos da América, ou seja, que baseiam suas decisões

predominantemente na jurisprudência. Aqui no Brasil, adotamos o “Civil Law”, onde as decisões

são principalmente fundadas na lei. Nesse sentido, a questão seria como encaixar essa teoria no

direito penal brasileiro.

Guido Fernando Silva Soares em sua obra “Common Law: Introdução ao Direito dos EUA”

ensina que o leading case é uma decisão que tenha se constituído em regra importante, em torno da

qual outras gravitam, criando precedente para casos futuros.

Sobre o tema do presente trabalho, afirma-se que o leading case brasileiro deu-se em torno da

sentença que julgou o furto ocorrido no Banco Central do Brasil em Fortaleza/CE, na madrugada de

05 para 06 de agosto de 2005. Quando uma quadrilha escavou um túnel de 89 metros e furtou a

quantia de R$ 164.755.150,00 em notas de R$ 50,00.

Os agentes do crime foram denunciados como incursos nos crimes de furto qualificado,

formação de quadrilha, ocultação de bens e valores, uso de documento falso, falsa identidade, posse

ilegal de arma de fogo de uso restrito e lavagem de dinheiro.

Segundo narra a sentença proferida pelo juiz de primeiro grau, com a finalidade de “lavar” o

dinheiro oriundo do referido furto, dois dos acusados, sócios da empresa de veículos Brilhe Car

Automóveis, venderam aos ladrões do banco, por intermédio de uma terceira pessoa, onze veículos

no valor de R$ 730.000,00, deixando um saldo de R$ 230.000,00 para aquisição futura de veículos

na revenda, perfazendo a monta de R$ 980.000,00, que foram levados ao estabelecimento pelo

próprio intermediador, em notas de R$ 50,00, armazenadas em sacos de náilon.

Para o magistrado, o intermediário, de fato, possuía conhecimento quanto à origem ilícita do

numerário utilizado para a aquisição dos automóveis. No que se refere aos vendedores (ora

acusados), o julgador entendeu que, embora não tivessem pleno conhecimento da origem ilícita dos

valores, tinham elementos suficientes para desconfiar da origem do dinheiro, aplicando, desta

forma, a teoria da cegueira deliberada ao caso, condenando os vendedores.

Antes de nos aprofundarmos no mérito desse caso, vamos primeiramente relembrar o conceito

de dolo e seus pormenores.

Page 5: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

5

2.1 O DOLO E ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Para que possamos conceituar o elemento dolo, necessário se faz remetermos a algumas

teorias da conduta, eis que esta tarefa conceitual exige uma análise doutrinária minuciosa.

Para tanto, segundo o doutrinador Guilherme de Souza Nucci, são três as correntes

conceituais do dolo. De acordo com a visão finalista da conduta, a estrutura do dolo, também chamado

pelos adeptos desta concepção de dolo natural, o elemento em estudo nada mais é do que a vontade

consciente de praticar a conduta criminosa.

Entretanto, para os seguidores da corrente causalista, o dolo é considerado normativo, ou seja,

além da vontade consciente de praticar a conduta criminosa, exige-se, para tanto, a consciência do

agente de que ele está praticando uma ação ou omissão tipificada pelo Código Penal Brasileiro.

Por fim, tem-se o dolo axiológico, conforme exposto por Miguel Reale, o qual aduz que o

dolo seria a vontade e a intenção de praticar a conduta criminosa, compreendendo o desvalor que a

conduta representa.

De acordo com o artigo 18, inciso I do Código Penal, ocorre o dolo “quando o agente quis o

resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. Portanto, o conceito adotado pela teoria finalista é o

que mais se adéqua ao dolo pretendido pelo legislador.

O elemento subjetivo em análise, de acordo com a teoria adotada, qual seja, a finalista, possui,

conforme os ensinamentos de Cezar Roberto Bittencourt, dois elementos essenciais para sua

concretização.

O primeiro elemento que deve estar presente na conduta do agente que praticou qualquer tipo

penal doloso chama-se elemento cognitivo ou intelectual. O elemento cognitivo do dolo refere-se,

por sua vez, à consciência do executor do evento e aduz que este conhecimento da prática da

conduta típica deve ser atual, ou seja, no instante do cometimento do delito faz-se necessário o

perfeito entendimento por parte do agente da conduta criminosa executada. Portanto, entende-se

como elemento cognitivo ou intelectual do dolo a consciência atual do fato que constitui a ação

típica. O segundo elemento, chamado de elemento volitivo, faz menção à vontade do agente de

praticar o fato típico almejando o resultado, e, existindo entre ambos, o nexo causal.

Assim, para a ocorrência do dolo, é necessário observar além da existência da consciência

(elemento cognitivo), a existência da vontade do agente (elemento volitivo) de praticar a conduta

tipificada no Código Penal Brasileiro.

Page 6: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

6

Após entendermos como se verifica a existência do elemento subjetivo do dolo, trataremos, a

seguir, de duas espécies de dolo, quais sejam o dolo direto e o dolo eventual.

O dolo direto, de fácil percepção pelos operadores do direito, ocorre quando a vontade do

agente é direcionada à realização do fato típico, ou seja, o autor se propõe à prática da conduta

delituosa.

De outra banda, a segunda espécie de dolo, é o chamado dolo eventual, o qual, assim como o

dolo direto, está previsto no Código Penal (artigo, 18, inciso I). Acerca deste tema, poderíamos

defini-lo como sendo o resultado criminoso provável assumido pelo agente, ou seja, o dolo eventual

ocorre quando o agente assume o risco de produzir o resultado.

Segundo Nelson Hungria, assumir o risco de produzir a conduta criminosa não seria apenas a

consciência e a aceitação das conseqüências prováveis, mas, sim, consentir previamente o resultado.

No mesmo sentido, Magalhães Noronha afirma: “É indireto quando, apesar de querer o

resultado, a vontade não se manifesta de modo único e seguro em direção a ele, ao contrário do que

sucede com o dolo direto”.

Comporta duas formas: o alternativo e o eventual. Dá-se o primeiro quando o agente deseja

qualquer um dos eventos possíveis, por exemplo: a namorada ciumenta surpreende seu amado

conversando com a outra e, revoltada, joga uma granada no casal, querendo matá-los ou feri-los.

Ela quer produzir um resultado e não “o” resultado.

No dolo eventual, conforme já dissemos, o sujeito prevê o resultado e, embora não o queira

propriamente atingi-lo, pouco se importa com a sua ocorrência (“eu não quero, mas se acontecer,

para mim tudo bem, não é por causa deste risco que vou parar de praticar minha conduta – não

quero, mas também não me importo com a sua ocorrência”). É o caso do motorista que se conduz

em velocidade incompatível com o local e realizando manobras arriscadas. Mesmo prevendo que

pode perder o controle do veículo, atropelar e matar alguém, não se importa, pois é melhor correr

este risco, do que interromper o prazer de dirigir (“não quero, mas se acontecer, tanto faz”).

Por este motivo, entendemos que o melhor caminho seria equiparar a teoria da cegueira

deliberada ao dolo eventual (quando agente assume o risco de produzir o resultado), ou seja, o

agente procura evitar o conhecimento da origem dos bens ou valores que estão envolvidos no

negócio, sendo que pode prever o resultado lesivo de sua conduta, mas não se importa.

Tendo como exemplo o crime de lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/98), o qual exige uma

infração penal antecedente (assim como na receptação), extrai-se que na hipótese de o agente

Page 7: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

7

desconhecer a origem ilícita dos valores, não haveria o dolo de lavagem, resultando na atipicidade

da conduta do agente, pois não se reconhece a modalidade culposa (artigo 20 do CP). Em função

disso, é habitual que o terceiro responsável pela lavagem do dinheiro, propositalmente, evite tomar

conhecimento acerca da origem ilícita dos valores, pois, caso seja acusado do referido crime, poderá

se “esconder” na ausência de dolo: “eu não sabia”.

Percebe-se então a relevância dessa teoria para o fim de ser aplicada quando o agente tem

consciência da “alta probabilidade” da origem ilícita dos bens, direitos ou valores (mascarados,

ocultados, dissimulados), mas ainda assim, furta-se à ciência dos fatos. Nesta hipótese, por força da

Teoria da Cegueira Deliberada, considerando que o agente renuncia a consciência do ilícito para

subsidiar a imputação dolosa do crime, responderia pelo crime como se tivesse conhecimento.

Ora, não se pode dizer que o sujeito que atua em situação de cegueira deliberada lança mão de

mera previsibilidade do resultado: o fato de ter ele optado por ignorar dados penalmente relevantes

demonstra que consegue antever a realização do ilícito naquela situação.

Além do mais, a cegueira deliberada é incompatível com a idéia de que o agente confia na não

realização do resultado, pois para confiar deveria buscar as informações relevantes àquela situação.

Quem decide desconhecer dados penalmente relevantes, portanto, está assumindo o risco de

realização do ilícito. Daí que os casos de cegueira deliberada só podem integrar, invariavelmente, as

hipóteses de dolo eventual.

Christian Laufer afirma que, ainda que o legislador tenha priorizado o elemento volitivo, o

elemento cognitivo é exigido pelo legislador de maneira implícita, cabendo, assim, à doutrina

determinar o alcance necessário destes componentes para que se possa falar em dolo.

Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli lecionam que atua com dolo eventual o

sujeito que não tem certeza acerca da existência de elementos que o tipo objetivo requer e, mesmo

assim, age, de modo que aceita a possibilidade de que efetivamente existam.

Ainda, Fernando Rodrigues Martins, em sua obra “Controle do patrimônio público” afirma

que a exigência de dolo, ou seja, a comprovação cabal da intenção do sujeito em descumprir os

mandamentos proibitivos, se levada às últimas conseqüências, não apenas reduz, como aniquila o

espírito da norma, isto porque a comprovação do estado anímico nessas dimensões é quase uma

quimera: nenhum agente público (nesta era pós-positiva) age ou se omite deixando rastros de sua

vontade.

Page 8: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

8

Outrossim, em relação ao conhecimento, parece correto afirmar que basta a representação do

resultado como possível, uma vez que o dolo se configura já na assunção do risco de produção

deste. Ora, a situação em que o sujeito, deliberadamente ignorante em relação a determinados dados

relevantes à prática delitiva em questão, prossegue atuando mesmo que as circunstâncias fáticas

sejam peculiares, alertando-o acerca do perigo de realização efetiva do resultado criminoso, consiste

em verdadeira hipótese de dolo eventual.

Isto significa dizer que a previsão legal do artigo 18, inciso I, do Código Penal, não é óbice à

aplicação da teoria da cegueira deliberada no ordenamento jurídico brasileiro. Muito pelo contrário,

a definição de dolo eventual trazida pelo legislador é ampla o suficiente para incluir casos de

ignorância deliberada.

Page 9: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

9

3. ANÁLISES E DISCUSSÕES

Como já dito, essa teoria surge quando o indivíduo deliberadamente não quer enxergar a

eventual ilicitude da origem de bens, direitos ou valores, com o intuito de obter vantagens.

Nos Estados Unidos, no início do surgimento dessa teoria, várias pessoas que transportavam

drogas ilícitas fingindo não conhecer o conteúdo das bagagens. Porém, essas alegações de

desconhecimento do conteúdo da bagagem não prosperaram, pois as Cortes foram rápidas em

reconhecer que o acusado deveria saber o conteúdo das bagagens que transporta, aplicando-se assim

a referida teoria (MONTEIRO, 2009).

A teoria objeto deste trabalho é relativamente nova no cenário jurídico brasileiro, tendo sido

já utilizada em pelo menos dois importantes casos no país: envolvendo o caso do furto de

aproximadamente R$ 160 milhões de reais do cofre do Banco Central em Fortaleza/CE em 2005 e

na Ação Penal nº 470 do Supremo Tribunal Federal (Mensalão) em 2013.

No primeiro caso (versado no início deste trabalho), foram acusados dois vendedores de

veículos que realizaram negócios com os supostos ladrões, efetuando a venda de 11 (onze) veículos

pela quantia de aproximadamente um milhão de reais em espécie, em notas de cinqüenta, agindo

com indiferença à estranha negociação e assumindo o risco em troca do dinheiro “sujo”, haja vista

que receberiam atrativos valores em comissão na venda dos veículos.

Os vendedores foram condenados em primeira instância por lavagem de dinheiro, com

fundamento na teoria da cegueira deliberada. Confira um trecho da sentença:

Merecem destaque as construções jurisprudenciais norte-americanas relativamente ao tema.

A lei norte-americana não é explícita quanto à admissão ou não do dolo eventual no crime

de lavagem de dinheiro. Não obstante, por construção jurisprudencial, tal figura vem sendo

admitida nos tribunais norte-americanos através da assim denominada willful blindness ou

conscious avoidance doctrine, literalmente a doutrina da "cegueira deliberada" e de "evitar

a consciência". As instruções dirigidas ao júri em casos da espécie são ilustrativamente

denominadas de ostrich instructions, literamente "as instruções da avestruz".

A idéia é a de que: "A justificação substantiva para a regra é que ignorância deliberada e

conhecimento positivo são igualmente culpáveis. A justificativa textual é que, segundo o

entendimento comum, alguém 'conhece' fatos mesmo quando ele está menos do que

absolutamente certo sobre eles. Agir 'com conhecimento', portanto, não é necessariamente

agir apenas com conhecimento positivo, mas também agir com indiferença quanto à

elevada probabilidade da existência do fato em questão. Quando essa indiferença está

presente, o conhecimento 'positivo' não é exigido." (...)

Eu previno vocês que uma acusação de cegueira deliberada não os autoriza a concluir que o

acusado agiu com conhecimento porque ele deveria saber o que estava ocorrendo quando da venda da propriedade ou que, em exercício de adivinhação, ele deveria saber o que

estava ocorrendo ou porque ele foi negligente em reconhecer o que estava ocorrendo ou

Page 10: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

10

porque ele foi incauto ou tolo em reconhecer o que estava ocorrendo. Ao contrário, o

Governo deve provar acima de qualquer dúvida razoável que o acusado motivadamente e

deliberadamente evitou descobrir todos os fatos. (...)

Resta incontroverso, pois, que ocorreu a venda de onze veículos por parte da Brilhe Car e

com a intervenção de José Charles. Recorde-se, aqui, os conceitos de dolo eventual e a

doutrina da cegueira deliberada (willful blindness ou conscious avoidance doctrine)

expostos anteriormente, sendo que, pelo exposto, convenço-me que José Charles Machado

de Morais sabia que a origem do numerário utilizado era do furto ao Banco Central (art. 1º,

V e VII, §1º, I, §2º, I e II da Lei 9.613/98), não sendo o caso dos irmãos José Elizomarte e Francisco Dermival que, ao que tudo indica, não possuíam tal percepção, mas certamente

sabiam ser de origem ilícita. (...)

Recorde-se, aqui e uma vez mais, os conceitos de dolo eventual e a doutrina da cegueira

deliberada (willful blindness ou conscious avoidance doctrine) expostos anteriormente, no

que pese entendermos que José Charles sabia da ocorrência do furto e, conseqüentemente,

da origem do dinheiro, bem como as condutas dos proprietários da Brilhe Car José

Elizomarte e Francisco Dermival ao não se absterem de tal negociação suspeita, nem

comunicarem às autoridades responsáveis. (...).

Poder Judiciário - Justiça Federal de primeiro grau da 5ª Região - Seção Judiciária do Ceará

– 11ª Vara - Sentença prolatada em 28/06/2007 pelo Juiz Titular Danilo Fontenelle

Sampaio - Processo nº 0014586-40.2005.4.05.8100 (2005.81.00.014586-0) - Ação Penal

Pública - Autor: Ministério Público Federal - Réu: Antônio Jussivan Alves dos Santos e

outros.

No entanto, em segunda instância, o Tribunal Regional Federal absolveu esses acusados

afirmando que “a doutrina da cegueira deliberada é aplicável a todos os delitos que admitam o dolo

eventual”, porém, afirmaram que no caso concreto, a respeito do crime de lavagem de dinheiro

(artigo 1º, §2º, inciso I, da Lei nº 9.613/98), aquela corte não reconhecia o dolo eventual, sendo

necessário o dolo direto para o referido crime (ACR 5520 CE, Relator: ROGÉRIO FIALHO

MOREIRA, Data de Julgamento: 09/09/2008 data de Publicação DJE/TRF 5ª Região: 22/10/2008).

Ora, há de se presumir que uma pessoa ao chegar a uma loja com R$ 1.000.000,00 em

espécie, com o intuito de comprar veículos, tenha conseguido tais valores de forma no mínimo

duvidosa, além disso, os proprietários deveriam ter buscado saber a origem dos valores, mas se

mantiveram inertes. “Sujeitam-se às obrigações referidas nos artigos 10 e 11 as pessoas jurídicas

que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória,

cumulativamente ou não”, conforme previsto no artigo 9º da Lei 9.613/98. Assim, a concessionária

de automóveis pode ser perfeitamente enquadrada como pessoa jurídica que tem atividade

permanente, estando descrita no inciso XII do mesmo dispositivo: “as pessoas físicas ou jurídicas

que comercializem bens de luxo ou de alto valor ou exerçam atividades que envolvam grande

volume de recursos em espécie” (MONTEIRO, 2009).

No segundo caso, da Ação Penal nº 470 do Supremo Tribunal Federal, a cegueira deliberada

foi também tangenciada. O Ministro Celso de Mello acompanhou o voto do relator (Min. Joaquim

Page 11: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

11

Barbosa), votando pela condenação dos acusados: “admito a possibilidade de configuração do crime

de lavagem de valores, mediante o dolo eventual, exatamente com o apoio no critério denominado

por alguns como teoria da cegueira deliberada”, explicando que conforme essa teoria, o agente finge

não perceber determinada situação de ilicitude para alcançar a vantagem pretendida (STF, 2012).

No mesmo sentido, a ministra Rosa Weber à folha 1.273 do acórdão, discorreu sobre a teoria,

admitindo sua utilização. Em seu voto na Ação Penal em estudo, afirmou que é prudente a adoção de

critérios para a aplicação da cegueira deliberada, dentre os quais, i) a ciência do agente quanto a elevada

probabilidade de que bens, direitos ou valores provenham de crimes; ii) o atuar de forma indiferente a

esse conhecimento; iii) a escolha deliberada do agente em permanecer ignorante a respeito de todos os

fatos, quando possível a alternativa (STF, 2012).

Assim, a cegueira deliberada parece encontrar espaço potencial na jurisprudência pátria. Embora a

teoria tenha sido mencionada de passagem por poucos ministros, seus fundamentos não foram

rechaçados, apontando para uma possível incorporação ao conceito de dolo das situações em que o

agente não conheça os elementos típicos por deliberação expressa.

Atualmente, o país está atento ao andamento da operação Lava-Jato, que envolve diversos

crimes, sobretudo o de lavagem de dinheiro. Nesse sentido, muito se tem discutido acerca da

aplicação da teoria da cegueira deliberada.

De acordo com Badaró e Bottini (2012), o agente deve ter consciência clara da origem ilícita

dos bens para a configuração do delito de lavagem de dinheiro, sendo o dolo eventual admitido

apenas para os casos descritos no artigo 1º, §2º, inciso I, da Lei 9613/98.

Contudo, no julgamento da Ação Penal 470 do STF, houve entendimento que o dolo eventual

pode ser aplicado em todas as formas do crime de lavagem de capitais. Pois bem, é visível que a

existência de posicionamentos diversos acerca do assunto, por isso a importância do

aprofundamento no estudo dessa teoria.

A aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada vem sendo admitida também no crime de

corrupção eleitoral. Vejamos:

CORRUPÇÃO ELEITORAL. ELEIÇÕES 2006. FORNECIMENTO CONTÍNUO DE

SOPA, CESTAS BÁSICAS E PATROCÍNIO DE CURSO. PROPÓSITO DE VOTO EM

CANDIDATO À REELEIÇÃO A DEPUTADO ESTADUAL. PERÍODO ELEITORAL.

FILANTROPIA. DESVIRTUAMENTO. OPORTUNISTO ELEITOREIRO.

MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. FATOS CONHECIDOS E

PROVADOS REVELADORES DO ILÍCITO. ARTICULAÇÃO À PROVA ORAL. INTELIGÊNCIA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, ARTIGO 239.

PRESCINDÊNCIA DE PROVA DIRETA QUANTO À PRÁTICA ILÍCITA.

Page 12: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

12

MANOBRAS SUB-RECEPTÍCIAS E “MISE-EN-SCÈNE”. DELIMITAÇÃO DE

AUTORIA: CRITÉRIO DO DOMÍNIO DO FATO. PRINCÍPIO DO LIVRE

CONVENCIMENTO MOTIVADO. DOLO CONFIGURADO. TEORIA DA

CEGUEIRA DELIBRADA. CRIME FORMAL. ACOLHIMENTO DA PRETENSÃO

PUNITIVA ESTATAL. CONDENAÇÃO. CONTINUIDADE DELITIVA. REGIME

ABERTO. PENAS SUBSTITUTIVAS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À

COMUNIDADE E PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. MULTA (89 RO, Relator: ÉLCIO

ARRUDA, Data de Julgamento: 23/11/2010, Data de Publicação: DJE/TRE-RO - Diário

Eletrônico da Justiça Eleitoral, Data 30/11/2010).

EMBARGOS INFRINGENTES. CORRUPÇÃO ELEITORAL. ELEIÇÕES 2004.

OFERECIMENTO DE ALIMENTAÇÃO, DOAÇÃO DE BONÉS, CAMISETAS E

CANETAS, A TROCO DE VOTO EM CANDIDATOS A PREFEITO E VEREADOR.

MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. CONFISSÃO. DELAÇÃO.

PROVA DIRETA CONJUGADA À INDIRETA. MANOBRAS SUB-REPTÍCIAS E

“MISE-EN-SCÈNE: “REUNIÃO”. PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO

MOTIVADO. DOLO CONFIGURADO. TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA.

CRIME FORMAL. EMBARGOS DESPROVIDOS.

Neste terreno, os agentes, por si ou interpostas pessoas, atuam de modo sub-reptício,

dissimuladamente, sem deixar vestígios cabais. E, permitidas. Do “mise-en-scène”, da

encenação, o julgador há de extrair as nuanças permissivas ao descortino do verdadeiro

escopo do agente. “Dolusdirectus” presente. Imputação viável, no mínimo, a título “doluseventualis” (CP, artigo 18, I, 2ª parte): mesmo seriamente considerando a

possibilidade de realização do tipo legal, os agentes não se detiveram, conformando-se ao

resultado. Teoria da “cegueira deliberada” (“willfulblindness” ou

“consciousavoidancedoctrine”). A corrupção eleitoral, em qualquer de sua modalidades,

inclui-se no rol dos crimes formais. Para configurá-la, “basta o dano potencial ou o perigo

de dano ao interesse jurídico protegido, cuja segurança fica, destarte, pelo menos,

ameaçada”, segundo Nélson Hungria. (65 RO, Relator: ÉLCIO ARRUDA, Data de

Julgamento: 13/12/2007, Data de Publicação: DJ - Diário de justiça, Volume 003, Data

7/1/2008, Página 37) .

Nesses dois casos, reconheceu-se a possibilidade de aplicação da teoria ao se considerar a

possibilidade de realização do tipo legal e a conformação com ela. A cegueira deliberada está no

fato de alguns candidatos à eleição fecharem os olhos à ilicitude da distribuição de bens e serviços

como meio de angariar votos. “Enterram” as cabeças com a vontade de se esquivar de eventual

responsabilidade. No entanto, a teoria abordada admite que se o indivíduo tem noção da alta

probabilidade de que os bens, valores ou direitos eram oriundos de ilícitos e mesmo assim agiu de

modo indiferente, então deverá responder na esfera criminal.

No Brasil, essa teoria tem se apresentado mais no crime de lavagem de dinheiro, porém

também vem sendo reconhecida em outros crimes, como na corrupção eleitoral, tráfico de drogas e

receptação (GARCIA, 2013).

A princípio, o crime de lavagem de dinheiro no Brasil é punido somente quando o agente age

com dolo, diferente de outros países, como Alemanha, Luxemburgo e Espanha, os quais

Page 13: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

13

reconhecem a modalidade culposa. Nesses países, o agente que tem conhecimento da elevada

probabilidade de que os bens, valores ou direitos eram oriundos de crime e finge não saber com o

intuito de auferir lucro responde por dolo eventual, eis que assumiu o risco de produzir o resultado.

Além do mais, é conveniente mencionar a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos

sobre a Conscious Avoidance Doctrine, no caso “In reaimster Copyright Litigation”. A Corte

firmou o entendimento de que, na hipótese de violação de direitos autorais, o réu não poderia alegar

que não tinha ciência que os arquivos que tinha disponibilizado violavam direitos autorais. Dessa

maneira, a Suprema Corte afastou a alegação de ignorância do réu no que tange aos fatos, por

entender que o réu, de forma proposital, manteve-se inerte e um desconhecimento deliberado e por

isso responderia pelo respectivo crime (contributory infringement - conduta de contribuir com a

violação de direitos autorais - ESTADOS UNIDOS, 2003). Vejamos:

Nós também rejeitamos o argumento de Aimster no sentido de que o recurso de criptografia

do serviço oferecido por Aimster o impedia de saber quais músicas estavam sendo copiadas

pelos usuários de seu sistema. Dessa forma, não pode prosperar a alegação de que ele não

tinha o conhecimento da atividade ilícita, o que é uma exigência para a responsabilização

pela conduta de contribuir para a infração de direitos autorais. Cegueira voluntária é o

conhecimento (...) é a situação em que o agente, sabendo ou suspeitando fortemente que ele

está envolvido em negócios escusos ou ilícitos, toma medidas para se certificar que ele não

vai adquirir o pleno conhecimento ou a exata natureza das transações realizadas para um

intuito criminoso. Em United States v. Giovannetti (1990) restou estabelecido que o esforço

deliberado para evitar o conhecimento da ilicitude é tudo que a lei exige para estabelecer a

culpa do acusado. Em United States v. Josefik (1985), restou estabelecido que não querer

saber porque se suspeita, pode ser, se não for o mesmo estado de espírito, o mesmo que a

prática de uma conduta culposa. Em United States v. Diaz, o acusado deliberadamente

isola-se da transação de drogas real para que pudesse negar o conhecimento da transação

ilícita, o que fez, por vezes, ao se afastar da entrega efetiva da droga (...). O acusado não pode fugir as suas responsabilidades pela manobra, não pode sustentar a alegação de que o

software de criptografia o impede de ter conhecimento da violação de direitos autorais, que

ele fortemente suspeita que ocorre (...) suspeita essa de que todos os usuários do seu serviço

são, de fato, infratores de direitos autorais”.

Observa-se que a Suprema Corte dos Estados Unidos, ao aplicar a doutrina da willful

blindness no caso “In reAimster Copyright Litigation”, firmou o entendimento de que os acusados

não podem escapar dos crimes estabelecidos em lei (lavagem de capitais, tráfico de drogas,

receptação, corrupção eleitoral, violação de direitos autorais) quando propositalmente criam uma

espécie de escudo de proteção, ou seja, as circunstâncias do caso mostram nítidas evidências de que

o réu poderia ter ciência da situação, mas mesmo assim ele age propositalmente para se manter em

estado de ignorância (CABRAL, 2012).

Page 14: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

14

Por fim, outro julgado proveniente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em que a

teoria da cegueira deliberada foi aplicada no âmbito da sonegação tributária:

O apelante Celso ainda declarou que desde 1994 trabalhava com Alberto Youssef

prestando-lhe serviços como de contabilidade, declaração de imposto de renda da pessoa

jurídica e física (fl. 215-6). Desta forma, Celso tinha amplo conhecimento sobre as finanças

de seu contratante, no entanto, sequer alegou que desconfiou dos montantes declarados em

nome de Cristina. A disparidade entre os rendimentos da declarante Cristina e os valores

por ela mantidos em moeda estrangeira são flagrantes, o que causa estranheza para qualquer

leigo no assunto, quanto mais deveria causar a perito em tal matéria. Como bem analisaram

os Procuradores da República (fl. 1561), na declaração de 1994 constou renda anual

declarada de R$ 69.268,76, sem qualquer outro rendimento, acompanhada da declaração de

disponibilidade de moeda estrangeira no valor de US$ 5.777.828,43. Para os anos

seguintes, os números são similares [...]. Outrossim, não constam nas declarações quaisquer

outros bens, exceto pequenas disponibilidades em moeda nacional. O magistrado a quo

assim concluiu (fl. 1487): „[...] afigura-se evidente a disparidade, pois pessoa com renda de

cerca de cinqüenta mil reais usualmente não dispõe de milhões de dólares no exterior. Tal

disparidade era suficiente para indicar a existência de fraude na declaração, com omissão

ou falsidade de dados. Quer o acusado tenha sido informado diretamente da fraude ou não

por Alberto Youssef. parece óbvio que fechou deliberadamente os olhos para ela. O crime é doloso não só quando o agente deseja o resultado, mas também quando assume o risco de

produzi-lo (artigo 18, 1, do CP). Adotando-se a terminologia consagrada no Direito norte-

americano, pode-se afirmar que o acusado agiu com 'cegueira deliberada' (willful

blindness) [...].‟ Desta forma, evidente que Celso tinha plenas condições - ainda mais

sendo profissional experiente nessa área - para evidenciar que os dados fornecidos por

Alberto eram fraudulentos ou pelo menos desconfiar de sua licitude, e, assim, não participar

do ato para exatamente evitar sua responsabilização em um futuro processo criminal. No

entanto, preferiu assumir o risco, o que por conseqüência gerou sua responsabilização pelo

ato, por dolo eventual, por dar abrigo à sonegação tributária de Alberto. Tribunal Regional

Federal da 4ª Região, Sétima Turma, Apelação Criminal 2003.70.00.056661-8, Relator

Márcio Antônio Rocha, Publicado no D.E. 12/08/2010.

Page 15: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

15

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após explorar os problemas que poderiam impedir a importação da teoria da cegueira

deliberada para o ordenamento jurídico brasileiro, entre eles supostas barreiras colocadas pelo

legislador, concluiu-se que no cenário jurídico-penal brasileiro há espaço para a teoria da cegueira

deliberada. Tais casos integram o dolo eventual.

No Brasil, a aplicação dessa teoria é ainda nascente, não existindo posicionamento pacífico

da jurisprudência. Entretanto, é provável que a aplicação desta teoria no Brasil encontre um

caminho difícil, haja vista que sugere uma espécie de responsabilidade penal objetiva (CABRAL,

2012).

Em nosso cotidiano verificamos que é muito acessível para o oportunista se fazer de ignorante

para não tomar conhecimento sobre eventuais ilegalidades. Por esta razão, levando-se em conta o

que foi observado, defendemos a ampliação da aplicação da teoria em estudo, pois facilita a

persecução penal pelo Estado, garantindo mais segurança para a sociedade e reduzindo a

impunidade daqueles que querem auferir vantagens ilícitas

Page 16: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

16

5. REFERÊNCIAS

BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: Aspectos

Penais e Processuais Penais. São Paulo: Editos Revista dos Tribunais, 2012. P. 92.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ministro Celso de Mello acompanha voto do relator no

item VII da AP 470, sobre lavagem de dinheiro. 2013. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/cms/vernoticiadetalhe.asp?idconteudo=221405> acesso em: 13 nov.

2016.

______. Tribunal Regional Eleitoral de Rondônia. 89 RO, Relator: ÉLCIO ARRUDA, Data de

Julgamento: 23/11/2010, Data de Publicação: DJE/TRE-RO - Diário Eletrônico da Justiça Eleitoral,

Data 30/11/2010. Disponível em:

<http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=TEORIA+DA+CEGUEIRA+DELIBERADA

+%28WILLFUL+BLINDNESS%29&s=jurisprudencia> acesso em: 15 nov. 2016.

______. Tribunal Regional Eleitoral de Rondônia. 65 RO, Relator: ÉLCIO ARRUDA, Data de

Julgamento: 13/12/2007, Data de Publicação: DJ - Diário de justiça, Volume 003, Data 7/1/2008,

Página 37. Disponível em:

<http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=TEORIA+DA+CEGUEIRA+DELIBERADA

+%28WILLFUL+BLINDNESS%29&s=jurisprudencia> acesso em: 15 nov. 2016.

______. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. ACR 5520 CE 0014586-40.2005.4.05.8100.

Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira. 09/09/2008. Fonte: Diário da Justiça - Data:

22/10/2008 - Página: 207 - Nº: 205 - Ano: 2008. Disponível em:

<http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8249976/apelacao-criminal-acr-5520-ce-0014586-

4020054058100-trf5> acesso em: 15 nov. 2016.

CABRAL, Bruno Fontenele. Breves comentários sobre a teoria da cegueira deliberada (willful

blindness doctrine). 2012. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/21395/breves-comentarios-

sobre-a-teoria-da-cegueira-deliberada-willful-blindness-doctrine> acesso em: 14 nov. 2016.

Page 17: Teoria da Cegueira Deliberadateoria da cegueira deliberada de forma tímida. É necessário fazer um estudo acerca da compatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o direito

17

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 1, parte geral: (arts. 1º ao 120) / Fernando

Capez. – 17. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2013.

DELMANTO, Celso. Código penal comentado / Celso Delmanto... [et al]. – 7. Ed. Atual. e ampl.

– Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte dos Estados Unidos. In re Aimster Copyright Litigation.

2003. Disponível em: <http://homepages.law.asu.edu/~dkarjala/cyberlaw/inreaimster(9c6-30-

03).htm>. Acesso em: 10 nov. 2016.

GARCIA, Simone. Teoria da cegueira deliberada e seus desdobramentos no Direito Penal

Comparado e Brasileiro. 2016. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/45718/teoria-da-

cegueira-deliberada-e-seus-desdobramentos-no-direito-penal-comparado-e-brasileiro>. Acesso em:

14 nov. 2016.

MARTINS, Fernando Rodrigues. Controle do patrimônio público: comentários à Lei de

improbidade administrativa / Fernando Rodrigues Martins - 4. ed. rev. – São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2010

MONTEIRO, Taiana Alves. Aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no Brasil. 2009.

Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-set-28/necessario-dolo-especifico-caracterizacao-

corrupcao-eleitoral> acesso em: 12 nov. 2016.

______. Teoria da Cegueira Deliberada X Corrupção Eleitoral. 2009. Disponível em:

<http://taizifonteles.blogspot.com.br/2009/09/teoria-da-cegueira-deliberada-x.html> acesso em:

17/11/2016.