Teoria Do Direito e Discricionariedade Fundamentos Teóricos e Crítica Do Positivismo

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  • CAROLINE MLLER BITENCOURT

    EDUARDO DANTE CALATAYUD

    JANRI RODRIGUES RECK

    Teoria do Direito e

    Discricionariedadefundamentos tericos e crtica

    do positivismo

    1 Edio

    Santa Cruz do Sul - RS

    2014

  • CONSELHO EDITORIAL

    Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa Direito UFSC e UNIVALI/BrasilProf. Dr. Alvaro Sanchez Bravo Direito Universidad de Sevilla/Espanha

    Prof. Dr. Angela Condello Direito - Roma Tre/ItliaProf. Dr. Carlos M. Carcova Direito UBA/Argentina

    Prof. Dr. Demtrio de Azeredo Soster Cincias da Comunicao UNISC/BrasilProf. Dr. Doglas Csar Lucas Direito UNIJUI/Brasil

    Prof. Dr. Eduardo Devs Direito e Filosofia USACH/ChileProf. Dr. Eligio Resta Direito Roma Tre/Itlia

    Prof. Dr. Gabriela Maia Rebouas Direito UNIT/SE/BrasilProf. Dr. Gilmar Antonio Bedin Direito UNIJUI/Brasil

    Prof. Dr. Giuseppe Ricotta Sociologia SAPIENZA Universit di Roma/ItliaProf. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa Direito UNIFOR/UFC/Brasil

    Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho Direito UERJ/UNESA/BrasilProf. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet Direito PUCRS/Brasil

    Prof. Dr. Jane Lcia Berwanger Direito UNISC/BrasilProf. Dr. Joo Pedro Schmidt Cincia Poltica UNISC/Brasil

    Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais Direito UNISINOS/BrasilProf. Dr. Kathrin Lerrer Rosenfield Filosofia, Literatura e Artes UFRGS/BrasilProf. Dr. Katia Ballacchino Antropologia Cultural Universit del Molise/Itlia

    Prof. Dr. Lilia Maia de Morais Sales Direito UNIFOR/BrasilProf. Dr. Lus Manuel Teles de Menezes Leito Direito Universidade de Lisboa/

    PortugalProf. Dr. Luiz Rodrigues Wambier Direito UNIPAR/Brasil

    Prof. Dr. Nuria Belloso Martn Direito Universidade de Burgos/EspanhaProf. Dr. Sidney Csar Silva Guerra Direito UFRJ/Brasil

    Prof. Dr. Silvia Virginia Coutinho Areosa Psicologia Social UNISC/BrasilProf. Dr. Ulises Cano-Castillo Energia e Materiais Avanados IIE/Mxico

    Prof. Dr. Virgnia Appleyard Biomedicina University of Dundee/ EscciaProf. Dr. Virgnia Elizabeta Etges Geografia UNISC/Brasil

    COMIT EDITORIAL

    Prof. Dr. Fabiana Marion Spengler Direito UNISC e UNIJUI/BrasilProf. Me. Theobaldo Spengler Neto Direito UNISC/Brasil

  • Essere nel MondoRua Borges de Medeiros, 76Cep: 96810-034 - Santa Cruz do SulFones: (51) 3711.3958 e 9994. 7269www.esserenelmondo.comISBN 978-85-67722-04-7

    Catalogao: Fabiana Lorenzon PratesCorreo ortogrfica: Fabiano FeltenCapa e Diagramao: Joo Paulo Wayhs

  • Perguntais-me como me tornei louco. Aconteceu assim: Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de um sono profundo e notei que todas as minhas mscaras tinham sido roubadas as sete mscaras que eu havia confeccionado e usado em sete vidas e corri sem mscara pelas ruas cheias de gente, gritando: Ladres, ladres, malditos ladres!. Homens e mulheres riram de mim e alguns correram para casa, com medo de mim. E quando cheguei praa do mercado, um garoto trepado no telhado de uma casa gritou: um louco!. Olhei para cima, para v-lo. O sol beijou pela primeira vez minha face nua. Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e no desejei

    mais minhas mscaras. E, como num transe, gritei: Benditos, benditos os ladres que roubaram minhas mscaras!. Assim me tornei louco. E encontrei tanto liberdade como segurana em minha loucura: a liberdade da solido e a segurana de no

    ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em ns.

    GIBRAN, Khalil. O Profeta.

  • AGRADECIMENTOS

    Aos livros, constantes interlocutores, cujo saber inesgotvel. Aos alunos, fonte de inspirao que nos impulsiona a avanar. Unisc, por nos propiciar o espao fsico e intelectual para

    nossas reflexes.

    Ao Departamento de Direito, por acreditar e financiar nossa

    obra. A todos que acreditam que as teorias nos ajudam a explicar e

    compreender o mundo. amizade desprendida e paixo pela Teoria do Direito, que

    nos trouxe at aqui.

  • Prefcio

    Notas introdutrias

    PARTE I -ASPECTOS FUNDACIONAIS NA LEITURA DE KELSEN, HART E DWORKIN: CONHECENDO OS ELEMENTOS CONCEITUAIS

    1 A TEORIA DO DIREITO EM KELSEN E O PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL1.1 Kelsen e o projeto de construo de uma Teoria Pura do Direito1.1.2 Purificao no domnio daquilo que deve ser1.1.3 Purificao no domnio da tica (dever ser moral)1.1.4 Purificao em relao Poltica Jurdica (dever ser poltico)1.1.5 Purificao em relao ao Direito Natural (dever ser ideal)1.2 A Cincia do Direito1.3 Os conceitos fundamentais do aparato conceitual da TPD1.3.1 Norma1.3.2 Sentido subjetivo e sentido objetivo1.3.3 Ato de vontade1.3.4 Validade1.3.5 Validade e eficcia1.4 A estrutura escalonada do ordenamento jurdico: norma superior e inferior1.5 A cadeia de validade e seu limite: a norma fundamental1.5.1 Caractersticas da norma fundamental1.6 A interpretao na TPD

    2 A REFORMULAO POSITIVISTA EM HART: OS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE SUA TEORIA ANALTICA E O PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL2.1 A crtica ao modelo paradigmtico de Austin

    SUMRIO

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    18

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    25

    262829

    30

    3133333637383939

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    5356

  • 2.2 A diferenciao entre hbitos e regras: uma distino fundamental2.2.1 O ponto de vista interno e o ponto de vista externo2.2.2 A classificao do Direito em regras primrias e secundrias2.2.3 A regra do reconhecimento como ltimo fundamento de validade, na teoria de Herbert L. A. Hart2.3 A estrutura hierarquizada do ordenamento jurdico em Hart: a regra de reconhecimento e suas implicaes conceituais2.4 A teoria da interpretao de Hart e a discricionariedade judicial

    3 DWORKIN E O CONTROLE DA DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL COMO CRTICA AO POSITIVISMO: EXPONDO CONCEITOS FUNDACIONAIS3.1 Levando os direitos a srio: as crticas de Dworkin s teses centrais do positivismo jurdico3.2 A distino fundamental entre regras e princpios3.3 Os princpios, as regras e a regra de reconhecimento

    PARTE II REFLETINDO SOBRE OS ESPAOS DE DISCRICIONARIEDADE A PARTIR DOS ELEMENTOS FUNDACIONAIS: O DIREITO DECIDINDO

    1. UM OLHAR CRTICO SOBRE O MODELO MITOLGICO DO JUIZ HRCULES1.1 Retomando mais atentamente a metfora de Hrcules1.2 Refletindo criticamente e ampliando as dimenses observveis do modelo1.3 possvel refletir a partir do modelo?

    2 EXISTE ESPAO PARA UMA ARGUMENTAO QUE CONSIDERE ASPECTOS MORAIS NA DECISO?2.1 Lembrando o que aprendemos com o positivismo para responder a essa pergunta2.3 A crtica ao espao da moral no positivismo: para Warat apenas uma questo encoberta2.4 Outras contribuio anlise dos argumentos morais: a crtica de Ronald Dworkin x Richard Posner

    5960

    62

    64

    66

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    88

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    130

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    166

    170

  • PARTE III RECORRENDO-SE A WARAT E S CONTRIBUIES DA SEMITICA E DA SEMIOLOGIA PARA DENUNCIAR OS EXPEDIENTES RETRICOS POSITIVISTAS E SITUAR O PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADE

    1. Mtodo2. Semiologia e semitica3. Cincia da linguagem4. Signos5. Relaes6. Silogismo7. Linguagem-objeto e metalinguagem8. Definies9. Falcias10. Senso comum terico dos juristas

    CONCLUSO

    REFERNCIAS

    180

    182183185190194202208210218223

    228

    232

  • Prefcio

    Em novembro de 1961, H. L. A. Hart, o mais expressivo

    expoente da filosofia jurdica anglo-sax de corte positivista, fez a

    Hans Kelsen, na Universidade da Califrnia, uma visita acadmica motivada pelo desejo de aclarar vrios pontos divergentes entre as ideias de ambos. Na palestra, Kelsen, pensador de esprito aberto e confessadamente antiabsolutista, declarou que a discusso entre ambos seria bastante original, de um tipo inteiramente novo, pois embora ele mesmo estivesse de inteiro acordo com Hart, o mesmo discordava das ideias de Kelsen. A histria divertiu Hart, que achou importante cont-la em seu relato da viagem, publicado entre ns com o singelo ttulo de Visita a Kelsen.

    Noutra histria igualmente reveladora, Luis Recasns Siches conta-nos da visita que Kelsen fez UNAM Universidad Nacional Autonoma de Mxico , em abril de 1960. Pouco antes da palestra, ao perceber o auditrio lotado, com trs mil ouvintes aguardando sua fala, Kelsen perguntou a Siches como era possvel que no Mxico

    houvesse tantas pessoas interessadas em assunto to rido e abstrato como a Teoria Pura do Direito. Siches respondeu que na Amrica Hispnica havia trs tipos de juristas: os kelsenianos fanticos, que defendiam com unhas e dentes a doutrina do mestre de Viena, os antikelsenianos, igualmente fanticos, que passam a vida combatendo as ideias kelsenianas, consideradas como fruto de um grupo maligno, e um ltimo grupo, formado por juristas crticos, que absorvem aspectos importantes da teoria do mestre de Viena, mas que buscam ngulos novos, capazes de alargar os horizontes para a teoria do direito.

    O relato nos mostra atitude espiritual do pensador vienense,

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck15

    sempre atencioso com discpulos e colegas universitrios e sempre cuidadoso no exame de ideias alheias, buscando muito mais a

    correta reconstruo de linhas argumentativas que a simplificao

    e rebaixamento das opinies alheias, processo de que foi vtima

    durante dcadas, na condio de vilo preferencial da teoria do direito, responsabilizado (ele e sua teoria) pelos mais diversos desvios tomados pela claudicante humanidade europeia (e no s!) durante o conturbado sculo XX.

    Igual esprito ilustrado e aberto encontramos em Hart. O

    grande jurista anglo-saxo ministrou uma conferncia, certa feita, na

    Universidade de Jerusalm e l um jovem estudante de nome Joseph Raz pediu a palavra e apontou falhas na concepo do sistema jurdico hartiano. Hart no somente convidou Raz para aprofundar os estudos em Oxford como depois recomendou seu ingresso como professor na

    multissecular universidade inglesa, num magistrio que haveria de durar 21 anos. Antes disso, Hart j havia indicado como seu sucessor na ctedra ningum menos que Ronald Dworkin, o jurista que dedicou um esforo considervel de sua obra justamente em demonstrar os equvocos tericos de seu antecessor, naquele que ficaria conhecido

    como Hart-Dworkin debate.

    Na academia brasileira, to cheia de escolinhas e grupos fechados, onde as disputas de poder se sobressaem e por vezes sufocam a livre investigao acadmica, esses so exemplos que deveriam

    ser seguidos. Se uma autntica ao comunicativa, desprovida de intenes manipulatrias e instrumentais, to difcil na sociedade

    da diferenciao funcional estruturada, na academia, no entanto, esta deveria ser a regra, pressupondo sempre que o interesse dos envolvidos to somente no avano da cincia e na problematizao das teorias, atitude cujo valor heurstico reside justamente na possibilidade de suscitar novas leituras e novas solues para os dilemas centrais da

    teoria do direito. Luis Warat, o terceiro convidado ao debate que o leitor

    encontra nas pginas deste livro, to bem escrito por Janri Rodrigues

  • 16Teoria do Direito e discricionariedade

    Reck, Caroline Mller Bitencourt e Eduardo Dante Calatayud, jovens professores da Universidade de Santa Cruz do Sul, foi um leitor atento das obras de Kelsen e Hart. Herdeiro das tradies da filosofia analtica

    em sua melhor e mais rigorosa escola latino-americana, da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, Warat dedicou inmeros textos de compreenso do pensamento kelseniano, construindo uma

    viso singular do pensamento do mestre de Viena, que buscava pensar uma crtica da dogmtica jurdica a partir da Teoria Pura do Direito, lendo-a numa profundidade at ento desconhecida entre ns. De Warat emerge um Kelsen singular, nico, que pe contra a parede

    muitas das verdades cannicas do mundo jurdico. Tambm Warat, como mestre e educador, mantinha a atitude

    aberta e dialgica que pressupunha a relao mestre-aluno como uma autntica relao amorosa, em que o envolvimento pressupunha

    o exerccio da capacidade de seduzir. Nas suas provocaes, sempre

    carinhosas, Warat perguntava a seus discpulos mais prximos, que

    tiveram a grata oportunidade de conviver com o autor do Manifesto do Surrealismo Jurdico, porque se obstinavam em querer salvar o direito? (entre outras de igual jaez)... Provocaes que me lembravam,

    pessoalmente, as sesses de psicanlise que frequentei, ao me deparar,

    na casa dos trinta, com muitos dos dilemas existenciais que sufocamos

    na primeira juventude. Ao invs da figura dominadora e controladora

    dos professores tradicionais, Warat estendia a seus alunos um tapete

    mgico, em que podiam viajar pelo conhecimento, adotando uma

    postura socrtica. Como bem observou Leonel Severo Rocha, seu mais prximo colaborador e amigo dileto, Warat fazia com que todos os seus

    alunos se sentissem especiais, mesmo que, de fato, no o fossem. De tal seduo surgia uma imensa abertura para novas ideias.

    Em seus ltimos anos, Warat retomou os temas da sua trajetria inicial e organizou um curso intitulado Kelsen 30 x 30

    (trinta ideias-chave em trinta horas!), ministrado em salas de aula abarrotadas de interessados. E o que se acompanhava em tais aulas era uma leitura absolutamente heterodoxa do pensamento kelseniano.

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck17

    Num dos seus ltimos escritos, Kelsen e o Estado de Exceo, Warat

    apontava para um aspecto pouco lembrado da teoria do mestre de Viena: a possibilidade de o juiz julgar fora da moldura, que teima em colocar

    em xeque o prprio Estado de Direito, aquele que se diz governo de

    leis, como se estas governassem sem o protagonismo humano, e, ao

    faz-lo, por conta das dobras da linguagem em que o direito trafega, torna-se o seu contrrio, o Estado de Exceo. Muito antes de Giorgio

    Agamben ter tornado moda falar em Estado de Exceo, dizia Warat

    que Kelsen j o havia feito dcadas atrs. Como na metfora platnica, em que nos extremos do amor encontramos o dio ou nos extremos

    do prazer encontramos a dor, tambm no seu limite, no momento da deciso, o Estado de Direito pode transmutar-se em Estado de Exceo,

    no como um outro, mas simplesmente como a segunda face da mesma moeda.

    Entre esses trs gigantes do pensamento jurdico contemporneo h um fio condutor temtico que percorre os temas

    clssicos da teoria do direito: a interpretao, a normatividade, o papel da moral, a autonomia do jurdico. Tais temticas so desenvolvidas

    com maestria na obra que o leitor tem em mos. Sentados nos ombros de tais gigantes, os autores nos descortinam a cena grandiosa de uma discusso ainda em aberto sobre a deciso jurdica. Vale a pena ler o que segue.

    Arnaldo Bastos Santos Neto

    Doutor em Direito pela UNISINOS-RS

    Professor adjunto da Universidade Federal de Gois

  • Notas introdutrias

    O livro que ora apresentamos ao leitor reflete muito das

    angstias encontradas ao longo dos anos em que nos debruamos sobre alguns clssicos da Teoria do Direito. Podemos dizer que tais

    autores e temas estiveram no centro de muitas discusses acadmicas

    que vivenciamos e compartilhamos enquanto inquietaes tericas.

    Escrevemos nossas angstias para que a crtica gere o debate e o debate traga avanos s inmeras discusses que circundam a Teoria do Direito.

    Se avanarmos minimamente nesse eterno debate, podemos ento dizer que nosso objetivo foi atingido. No pretendemos resolver nada, mas apenas clarear alguns pontos que em nosso entender merecem ser referidos na academia em todos os seus nveis. Escrevemos juntos, pensamos juntos e, mesmo quando discordamos, concordamos que isso tambm faz parte da vida no Direito.

    A primeira pergunta que essa obra poderia enfrentar : para que tratar de positivismo, quando a moda jurdica tanto se refere a

    ps-positivismo, neopositivismo e outros ismos? A resposta to

    simples que beira o absurdo. Os anos vivenciados nas salas de aulas

    nos mostraram que existem tanto os positivismos quanto as confuses

    que se reproduzem em torno de alguns de seus conceitos. Entendemos que o positivismo no foi superado e muito menos compreendido, pois acreditamos que os juristas esto submersos em conceitos, esteretipos e crenas positivistas que desconhecem. Est ele to impregnado na cultura jurdica que passa despercebido. No novidade o que estamos dizendo, mas reforar as crticas to denunciadas por Warat, Leonel Severo Rocha, Roberto Lyra Filho, Trcio Sampaio e outros nunca

    demasiado. Nesse sentido que achamos necessrio compreender

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck19

    o positivismo para critic-lo, e critic-lo naquilo que merece ser criticado, bem como avanar naquilo que possvel, no a partir de sua refutao, mas sim a partir de suas contribuies. Na verdade,

    acreditamos que o positivismo propiciou muitas bengalas aos medos

    dos juristas, que nada mais so do que humanos. Como bom imaginar o mito da segurana jurdica... Mas em algum momento precisamos nos emancipar de determinados conceitos que nos enrijecem e nos

    aprisionam. Necessrio rever os dizeres de Rocha:

    A teoria jurdica dominante encontra-se determinada por uma metodologia positivista. As abordagens jurisdicistas so eminentemente analticas, voltadas aos aspectos emprico-lgicos das normas. O normativismo, apesar do fracasso da teoria purificadora de Hans Kelsen, continua sendo a matriz terica preferida dos juristas. Apenas foram acrescentados alguns pressupostos tericos jusnaturalistas, com a necessidade de justia social e direitos humanos (que tm fornecido um importante topos questionador do regime poltico-dominante), para responder a questo da legitimidade. Ou seja, a epistemologia jurdica dominante utiliza um instrumental positivista, fundamentado em um jusnaturalismo crtico, mas que, em ltima instncia, privilegia a doxa o senso comum terico dos juristas1.

    Por essas e outras, o positivismo, mais uma vez, um dos temas centrais do debate que nos propomos. Mais especificamente, o

    positivismo analtico, pois ele o responsvel pela eterna tentativa de separar teoria e prtica.

    Entendemos tambm necessrio antever e explicar outra

    pergunta que pode estar na mente do leitor: o que levou seleo dos referidos autores?Parece-nos que, em se tratando de estudo

    de Teoria do Direito na academia brasileira, dois nomes assumem

    maior revelo nas obras publicadas em mbito nacional: Hans Kelsen

    1 ROCHA, Leonel. Epistemologia jurdica e democracia. So Leopoldo: Unisinos, 1995, p. 34.

  • 20Teoria do Direito e discricionariedade

    e Herbert Hart. Por que no Austin ou Ross? Essa uma indagao

    a qual no conseguimos responder, e nem parece um resultado bvio pela adoo do sistema, haja vista termos instrumentos e mecanismos que remontam s teorias austro-germnicas, bem como americana, como ocorre no controle de constitucionalidade, no misto controle difuso e concentrado. Qui explicar a influncia de Hart em nossas

    reflexes quando o mesmo observa a realidade Inglesa, que em

    muito se difere do civil law (se que ainda podemos assim referir

    o sistema brasileiro),o qual, em tese, rege nosso sistema. Se a escolha doutrinria em algum momento justificou-se ou mesmo foi aleatria

    para observar o sistema brasileiro (que, ao fim e ao cabo, encontra

    mais Pontes de Miranda em sua fidelidade), no sabemos, mas fato

    que no podemos desconhecer e negar a importncia que tais autores assumiram na academia brasileira, enquanto ditos precursores do

    positivismo analtico. Teorias modernas, como a de Neil MacCormick

    em sua obra L.A Hart, chegam a classific-lo como um possvel ps-positivista, dado o espao de discricionariedade que o mesmo teria atribudo a um Tribunal. No entanto, ressaltamos novamente: na

    maioria dos manuais sobre teoria do direito no Brasil esto os referidos positivistas Kelsen e Hart, influenciando nossos conceitos sobre norma

    fundamental, normas primrias e secundrias e tantos outros.E quanto a Dworkin? Qual seu papel em tudo isso? Mais uma

    vez, impossvel negar que a obra de Dworkin, cujo autor classificado

    como um ps-positivista, nasce de uma crtica ao sistema analtico/

    descritivo de Hart, e da segue sua importncia e influncia na doutrina

    brasileira. O fato que, para se falar em regras e princpios hoje,

    praticamente condio sine qua non falar nesse autor. Mas aqui seu papel est um pouco alm do senso comum, pois, como entendemos que o solipsismo o elo entre as teorias analisadas, acreditamos que o combate discricionariedade propiciou abertura ou margem prpria discricionariedade. Sob esse aspecto, acreditamos que tambm Dworkin (e seu Hrcules solipsista) caiu no mesmo erro que fez questo de apontar em Hart, ao buscar velar os argumentos morais, dando-lhes

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck21

    jurisdicidade atravs dos princpios.Da entra o aspecto do espao da discusso dos argumentos

    morais para o positivismo, mostrando que os argumentos possveis para um sistema analtico assumem diferentes denominaes, seja

    moldura, seja textura aberta, sejam princpios cada teoria adota

    o argumento que melhor lhe convm. A importncia de estudar Warat que ele, mais do que ningum, denuncia essas questes atravs

    dos expedientes retricos que identificou por meio da semitica e da

    semiologia.Assim, em uma primeira parte, o livro vai trazer os conceitos

    fundamentais e fundacionais das selecionadas obras de Kelsen, Hart e Dworkin, escolhidos pelo fio condutor da discricionariedade. Esse

    ser o momento mais analtico/descritivo. Na segunda parte, duas

    questes centrais sero levantadas consegue o positivismo afastar

    os argumentos morais? Dworkin incorre na mesma crtica que faz a

    Hart, agindo solipsistamente ao dar resposta aos problemas da vida no Direito? Impossvel, aps refletir tais questes, no recorrer a Warat

    para organizar a crtica atravs das categorias por ele apresentadas.Selecionamos esse autor para criticar, na terceira parte do livro, o senso comum terico dos juristas.

    Em todos esses momentos o debate sobre o espao e o controle da discricionariedade conduz a discusso e passa tanto a denunciar quanto a criticar como essa questo tratada pelo positivismo analtico.

    Eis a proposta do texto: criticar para ser criticado, com o

    intuito de avanar.

  • PARTE I

    ASPECTOS FUNDACIONAIS NA LEITURA DE KELSEN, HART E

    DWORKIN: CONHECENDO OS ELEMENTOS CONCEITUAIS

  • 24Teoria do Direito e discricionariedade

    Estudaremos o modelo terico desenvolvido por Kelsen, na sua clebre obra Teoria Pura do Direito, e mostraremos os problemas decorrentes da concepo kelseniana em relao interpretao judicial. No segundo momento da primeira parte, a anlise focalizar a teoria jurdica de Hart, evidenciando um avano em relao primeira teoria desenhada. A seguir, o estudo abordar a concepo de Dworkin sobre a interpretao de regras e princpios, com o intuito de, segundo o autor, obter um maior controle sobre a discricionariedade judicial.

    Que o leitor no deixe de observar o fio condutor dos debates

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck25

    propostos: o espao da discricionariedade judicial nas referidas obras, pois, em um segundo momento, esse espao, antes descritivo, passa a ter um carter reflexivo e mais crtico.

    1 A TEORIA DO DIREITO EM KELSEN E O PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL

    Hans Kelsen (1881-1973) , sem sombra de dvida, um dos juristas mais influentes do sculo XX e sua obra, Teoria Pura do Direito2, at os dias atuais, reverbera no horizonte jurdico. No dizer de Trcio Sampaio Ferraz Jr., jurista de extraordinrio valor, dele

    pode-se dizer que foi um divisor de guas para toda a teoria jurdica contempornea3.

    Sobre os trs tipos de pensar o Direito, conforme Carl Schmitt4 - decisionismo, normativismo e instituio -, o pensamento kelseniano se constitui, no sculo XX, como o maior expoente que define o Direito

    como norma, de tal forma que a mesma ocupa um lugar central na sua obra, notadamente na sua busca para desenvolver um projeto moderno para a Cincia do Direito5.

    Nesse sentido, o projeto kelseniano contrape-se frontalmente

    ao jusnaturalismo moderno, na medida em que neste se busca reconhecer o Direito como algo dado ao conhecimento humano, no

    como fatos, mas como um projeto inteligvel que poderia ser obtido atravs da capacidade humana de pensar e conhecer racionalmente.

    2 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998.

    3 FERRAZ JR., Trcio Sampaio. Prlogo. In: COELHO, Fabio Uchoa. Para entender Kelsen. So Paulo: Saraiva, 2001, p. XIII.

    4 RONALDO JR., Porto Macedo. Carl Schmitt e a fundamentao do Direito: Sobre os trs tipos do pensamento jurdico; o Fhrer protege o Direito de Carl Schmitt. Traduo de Peter Naumann. So Paulo: Max Limonad, 2001, p. 164-178.

    5 MICHELON JR., Cludio Fortunatto. Aceitao e objetividade: uma comparao entre as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento do direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 92.

  • 26Teoria do Direito e discricionariedade

    Da resulta a distino de que no Direito Natural no h a preocupao de isolar o Direito do campo extranormativo, que a inquietao

    epistemolgica basilar buscada pelo positivismo jurdico. Essa angstia positivista, que vai ser traduzida na tentativa de isolar o Direito da Moral (Justia) e do Poder (Poltica)6, em ltima anlise, permeabilizar in totem as preocupaes epistemolgicas kelsenianas no seu projeto de construo de uma Teoria Pura do Direito, como se observar a seguir.

    1.1 Kelsen e o projeto de construo de uma Teoria Pura do Direito

    O projeto kelseniano caracteriza-se por erigir-se como um

    projeto epistemolgico que tem por objetivo purificar a Cincia do

    Direito, estabelecendo como premissa primeira a delimitao do seu objeto de conhecimento, a saber, o Direito, para, a partir do mesmo, ser capaz de descrev-lo objetivamente. A aferio de tal assertiva pode ser comprovada tanto no prefcio da primeira edio da Teoria Pura do Direito7 (1934), como tambm no incio de sua segunda edio (1960), a qual, por se tratar de uma obra mais completa e enriquecida pelo autor, utilizaremos para o presente trabalho.

    com esse objetivo que pontifica Kelsen:

    H mais de duas dcadas que empreendi desenvolver uma teoria jurdica pura, isto , purificada de toda ideologia poltica e de todos os elementos da cincia natural, uma teoria jurdica consciente de sua especificidade porque consciente da legalidade especfica do seu objeto. Logo, desde o comeo foi meu intento elevar a Jurisprudncia, que aberta ou veladamente se esgotava quase por completo em raciocnios de poltica jurdica, altura de uma genuna cincia, de uma cincia do esprito. Importava explicar, no as suas tendncias endereadas formao do Direito, mas as suas tendncias

    6 Cf. BARZOTTO, Luis Fernando. O Positivismo Jurdico contemporneo: uma introduo a Kelsen, Ross e Hart. So Leopoldo: UNISINOS, 1999, p. 29.

    7 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998.

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck27

    exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possvel os seus resultados do ideal de toda cincia: objetividade e exatido.8

    O autor reafirma esse projeto na segunda edio da TPD, ao

    explicitar:

    Quando a si prpria se designa como pura teoria do Direito, isso significa que ela se prope garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto no pertena ao seu objeto, tudo quanto no se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isso dizer que ela pretende libertar a cincia jurdica de todos os elementos que lhe so estranhos. Esse o seu princpio metodolgico fundamental.9

    Como se depreende do pensamento de Kelsen, o mesmo buscou, desde sua base, instituir na cincia jurdica um mtodo e um objeto prprio (direito positivo em geral) e, dessa forma, ao apartar-se do sincretismo metodolgico, permitir ao jurista uma autonomia cientfica que o possibilitasse descrever o Direito, limitado anlise

    do mesmo como sendo a nica realidade jurdica. Da o porqu do desenvolvimento do princpio da pureza que se consubstancia na tese

    da separao (de todos os elementos estranhos cincia jurdica),

    em que as demais cincias e suas questes alheias Cincia do Direito

    devero ser respondidas e investigadas em suas prprias esferas de adequao, que, embora legtimas, no pertencem ao campo da cincia jurdica. No outra sua afirmativa:

    De um modo inteiramente acrtico, a jurisprudncia tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a tica e a teoria poltica. Essa confuso pode, porventura, explicar-se pelo fato de estas cincias se referirem a objetos que indubitavelmente tm uma estreita conexo com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, f-lo- no por ignorar ou, muito menos, por negar esta

    8 ibidem, p. 1.

    9 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 1.

  • 28Teoria do Direito e discricionariedade

    conexo, mas porque intenta evitar um sincretismo metodolgico que obscurece a essncia da cincia jurdica e dilui os limites que lhe so impostos pela natureza do seu objeto.10

    Para tal finalidade a de construir um projeto autnomo

    do Direito com um mtodo e objeto prprio da cincia jurdica ,

    Kelsen vai estabelecer uma concepo do Direito em que somente se estabelecem tais condies atravs de um enfoque normativo. Em

    outras palavras, o Direito, seja como objeto de anlise para o jurista ou como o mtodo a ser aplicado por este, apenas se constitui como referencial normativo, excluindo os fatos sociais (brutos), como

    tambm uma axiologia transcendente. desse modo que o enfoque

    kelseniano coloca as normas como premissa bsica do conhecimento do Direito e de seu mtodo.

    Em sntese, situando-se o Direito no plano do dever ser,

    sob o prisma do mtodo purificador, ser necessrio diferenci-lo

    tanto do plano ontolgico (ser) como tambm de outros fenmenos que se incluem no plano do dever ser, mas que, contudo, no se

    confundem com o mesmo. Uma vez realizada tal tarefa, nos deteremos na anlise do enfoque jurdico normativo e, por ltimo, na teoria da interpretao, como corolrio da concepo kelseniana, e suas implicaes na problemtica da discricionariedade judicial. Esse o

    traado que percorreremos no caminho a seguir.

    1.1.1 A purificao no domnio daquilo que : a Sociologia

    Com o propsito de separar o mbito jurdico da sociologia, preceitua o autor:

    A sociologia do Direito no pe os fatos da ordem do ser cujo conhecimento lhe compete em relao com normas vlidas, mas pe-nos em relao com outros fatos da ordem do ser, como causas e efeitos. Ela pergunta, por exemplo, por que causas foi determinado um legislador a editar precisamente essas normas e no outras, e que

    10 Ibid., pp. 1-2.

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck29

    efeitos tiveram seus comandos. Pergunta por que forma os fatos econmicos e as representaes religiosas influenciam, de fato, a atividade do legislador e dos tribunais, por que motivos os indivduos adaptam ou no a sua conduta ordem jurdica. Assim, no , a bem dizer, o prprio Direito que forma o objeto desse conhecimento: so, antes, certos fenmenos paralelos da natureza.11

    Na mesma linha de raciocnio, reafirma Kelsen:

    A Teoria Pura do Direito, como especfica Cincia do Direito, concentra como j se mostrou a sua visualizao sobre normas jurdicas e no sobre os fatos da ordem do ser, quer dizer: no a dirige para o querer ou para o representar das normas jurdicas, mas para as normas jurdicas como contedo de sentido querido ou representado.12

    Percebe-se, na assertiva do autor, que, para o mesmo, h um significado autnomo do Direito em relao sociologia jurdica.

    Nesse sentido, necessrio separar as duas cincias, na medida em que a ltima no se relaciona com a primeira (com normas vlidas) e sim apenas estabelece uma relao de fatos concretos (como objeto de sua investigao sociolgica) com outros fatos concretos. Essa relao de causa e efeito, para Kelsen, no se coaduna com a significao jurdica,

    pois esta deve ser determinada apenas pelo sistema jurdico.

    1.1.2 Purificao no domnio daquilo que deve ser

    Ao dar continuidade ao seu mtodo purificador, Kelsen

    tambm passa a utiliz-lo para diferenciar o Direito das demais ordens sociais que se constituem no domnio do dever ser, mas que,

    entretanto, no se confundem com aquele. Nesse contexto, a finalidade

    buscada pela concepo kelseniana, consubstanciada na purificao,

    11 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 113

    12 idem, p. 113.

  • 30Teoria do Direito e discricionariedade

    delimitar o referencial que torne possvel a cognio jurdica. Para tanto, faz-se necessrio articular as condies desse conhecimento

    jurdico, contrapostas a outros planos do dever ser (tica, Poltica e

    Direito Natural). So os tpicos que desenvolveremos seguir.1.1.3 Purificao no domnio da tica (dever ser moral)

    Kelsen afirma:

    [...] A exigncia de separar o Direito da Moral e a cincia jurdica da tica significa que a validade das normas jurdicas positivas no depende do fato de corresponderem ordem moral, que, do ponto de vista de um conhecimento dirigido ao Direito Positivo, uma norma jurdica pode ser considerada vlida ainda que contrarie a ordem moral. [...] O que sobretudo importa, porm o que tem que ser sempre acentuado e nunca ser o suficiente a ideia de que no h uma nica Moral, a Moral, mas vrios Sistemas de Moral profundamente diferentes uns dos outros e muitas vezes antagnicos, e que uma ordem jurdica positiva pode muito bem corresponder [...] s concepes morais de determinado grupo [...] e contrariar, ao mesmo tempo, as concepes morais de outro grupo ou camada da populao.13

    No campo mencionado, verifica-se que, se por um lado, para

    Kelsen, ao existir uma pluralidade de sistemas morais (dspares entre

    si) e, portanto, relativos, essa relatividade torna inqua a legitimao da Cincia do Direito pela ordem moral, na medida em que tal valorao dependeria do padro moral que seria estabelecido. Por outro lado, ao conceber o Direito como um sistema de normas que regula a conduta humana, para esse modelo a norma jurdica torna-se o elemento central do ordenamento jurdico.

    Nesse diapaso, para a significao normativa, o decisivo

    a validade da mesma (conceito que abordaremos mais adiante). Da porque, estando uma norma em conformidade com a norma superior e o rgo que a autoriza, o dever ser jurdico que a mesma implica

    13 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 77.

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck31

    indiferente tica e ao dever ser moral. Assim, se no negada

    pelo autor a legitimidade da moral ou da religio, feita uma separao contundente entre aquelas e o Direito, de tal forma que este no depende do valor moral, mas apenas da validade, que delimitada intranormativamente (ou seja, conceituada no interior do sistema jurdico), numa estrutura hierarquicamente escalonada at o pice da cadeia de validade a norma fundante pressuposta.

    Essa separao, que torna independente o Direito da Moral, em que o valor desta no condio de juridicidade de uma norma, se constitui num dos alicerces epistemolgicos do positivismo e sofre, at o presente, crticas agudas (como se analisar na concepo de Direito em Dworkin e na sua crtica ao modelo positivista em geral). De outro lado, Kelsen preceitua inequivocamente que a coao (apesar de no ser muito claro na distino entre coao e sano) um elemento de distino essencial do Direito em relao a outras ordens sociais e, portanto, frente ordem moral. Nesse sentido, afirma o autor:

    Como ordem coativa, o Direito distingue-se de outras ordens sociais. O momento coao, isto , a circunstncia de que o ato institudo pela ordem como consequncia de uma situao de fato considerada socialmente prejudicial pode ser executado mesmo contra a vontade da pessoa atingida e em caso de resistncia mediante o emprego da fora fsica, o critrio decisivo [sic].14

    Por sua vez, esse critrio da organizao da fora, determinado pelo ordenamento jurdico, vai proteger os indivduos a ele submetidos do uso da fora por parte dos outros.

    1.1.4 Purificao em relao Poltica Jurdica (dever ser poltico)

    Nas palavras de Kelsen:

    A Teoria Pura do Direito uma teoria do Direito Positivo

    14 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 37.

  • 32Teoria do Direito e discricionariedade

    [...]. Como teoria, quer unicamente conhecer o seu prprio objeto. Procura responder a esta questo: o que e como o Direito? Mas j no lhe importa a questo de saber como deve ser o Direito, ou como deve ser feito. cincia jurdica e no poltica do Direito.15

    No projeto de purificao relativo ao dever ser poltico,

    so dois os objetivos principais da concepo kelseniana: alijar do objeto terico (Direito Positivo) todas as axiologias derivadas do

    campo ideolgico e imunizar a cincia jurdica de tais valoraes

    extranormativas, buscando que a mesma cumpra sua funo de

    analisar estruturalmente o Direito atravs de construes descritivas

    sobre seu objeto. Para tanto, percebe-se, no mtodo purificador aplicado

    ao plano em questo, o afastamento de um direito ideal, uma meta da poltica, para aplicar no centro da questo unicamente o Direito Positivo, real, que a Cincia do Direito toma como objeto de seu conhecimento. Nesse contexto, se a poltica tem como um dos seus fins

    primordiais a justia e se no h uma norma de justia unvoca, ento h a necessidade de isol-la do conhecimento jurdico. Por consequncia, Kelsen reconhece a legitimidade do campo poltico, mas o circunscreve sua esfera prpria.16

    Tambm nesse plano do dever ser poltico, Kelsen opera

    um reducionismo epistemolgico. O Direito deve ser descrito como

    ele , em que apenas o direito positivado deve ser o objeto da Cincia

    do Direito, afastando-se qualquer contedo ideolgico. Objetivo que,

    para inmeros crticos de sua obra, no foram alcanados, pois valores e contedos axiolgicos entram sub-repticiamente numa pretensa

    objetividade que, em ltima anlise, depende de uma considerao ftica (eficcia) ou de um axioma metafsico (a norma fundamental).17

    15 KELSEN, Hans. Fundamentos da Democracia. Trad. de Marcelo Brando Cippola. So Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 1.

    16 ibid., p. 264.

    17 BARZOTTO, Luis Fernando, op. cit., p. 71. A validade objetiva da ordem jurdica,

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck33

    1.1.5 Purificao em relao ao Direito Natural (dever ser ideal)

    Nos termos do autor: Ela (TPD) quer representar o Direito

    como ele , no como deve ser: pergunta pelo Direito real e possvel, no sobre o Direito ideal ou justo.18 Verificamos, atravs da assertiva

    de Kelsen, que o Direito ideal ou justo relaciona-se com a indagao de como o Direito deve ser. Entretanto, do ponto de vista kelseniano, que busca elaborar uma teoria jurdica unicamente centralizada no Direito Positivo, como expresso normativa, o Direito Natural (dever ser

    ideal) afastado de suas preocupaes.

    Dessa forma, todo o vis epistemolgico volta-se a separar nitidamente as concepes jusnaturalistas da validade normativa.

    Assim, desenvolve-se uma fundamentao jurdica de tal forma que o Direito se autofundamenta atravs de uma derivao jurdica positiva, formando uma cadeia de validade que, no seu vrtice, pressupe a

    norma fundamental. Nessa dinmica, o critrio de validade do Direito Positivo em nada se relaciona com os postulados do Direito Natural, que, em ltima instncia, se identificam com a justia, para assim

    validar o Direito Positivo. Conforme Kelsen, essa situao inaceitvel do ponto de vista do Direito Positivo.19

    1.2 A Cincia do Direito

    Como verificamos anteriormente, Kelsen, ao desenvolver e aplicar

    seu mtodo de purificao aos demais planos do dever ser e do ser que

    no se confundem com o Direito, buscou essencialmente eliminar de sua TPD

    diz Kelsen, est apoiada pela hiptese [...] de uma norma suprema, a Grundnorm, mas esta norma no outra coisa seno a hiptese [...] da validade objetiva da ordem jurdica! A definio em crculos salta aos olhos.

    18 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, p. 1.

    19 KELSEN, Hans. O que Justia? A Justia, o Direito e a Poltica no espelho da cincia. Trad. de Lus Carlos Borges. So Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 252.

  • 34Teoria do Direito e discricionariedade

    toda e qualquer relao extranormativa, tanto no que se refere ao prprio

    Direito como tambm em relao Cincia do Direito, que o toma como objeto de seu conhecimento. Em outras palavras, descreveu o Direito fundando sua cincia num marco terico independente dos valores morais ou polticos.

    Nesse recorte efetuado, sua finalidade foi, antes de tudo, a de

    delimitar com preciso o objeto de conhecimento da cincia jurdica (normas jurdicas) para definir com clareza sua funo. Esse foi o corte epistemolgico

    utilizado por Kelsen, em que unicamente o foco no dever ser prescritivo do

    Direito (entendido como sistema normativo) se torna o objeto da Cincia do Direito e passa a ser descrito pela mesma atravs de proposies jurdicas.20

    Da destacaram-se trs caractersticas fundamentais da Cincia do Direito:

    a) Carter descritivo:

    Nas palavras do autor:

    A cincia jurdica, porm, apenas pode descrever o Direito; ela no pode, como o Direito produzido pela autoridade jurdica (atravs de normas gerais ou individuais), prescrever seja o que for. Nenhum jurista pode negar a distino essencial que existe entre uma lei publicada no jornal oficial e um comentrio jurdico a essa lei, entre o cdigo penal e um tratado de Direito Penal.21

    Como se observa, para a concepo kelseniana a cincia jurdica deve no apenas isolar o Direito Positivo como seu objeto de conhecimento, mas tambm no confundir as proposies jurdicas

    (descritivas) enunciadas sobre o Direito com as proposies prescritivas

    de um sistema de normas positivas (prescritivas). A Cincia do Direito descreve o Direito Positivo atravs de enunciados (proposies)

    20 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito. 6. ed, p. 89. Conforme o autor, particularmente, a proposio jurdica no um imperativo, mas um juzo: a afirmao sobre um objeto dado ao conhecimento. E tambm no implica qualquer espcie de aprovao da norma jurdica por ela descrita. O jurista cientfico que descreve o Direito no se identifica com a autoridade que pe a norma jurdica.

    21 Ibid., p. 82.

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck35

    jurdicos; o Direito Positivo vlido, por seu turno, prescreve normas jurdicas. 22

    b) Carter neutro:

    Observa o autor:

    Se bem que a cincia jurdica tenha por objeto normas jurdicas e, portanto, os valores jurdicos atravs delas constitudos, as suas proposies so, no entanto, uma descrio do seu objeto alheia aos valores (wert freie). Quer dizer: essa descrio se realiza sem qualquer aprovao ou desaprovao emocional.23

    De acordo com Kelsen, a Cincia do Direito, ao ser purificada

    dos elementos extrajurdicos, incumbiria ao jurista apenas a tarefa de

    descrever normas jurdicas de forma objetiva e axiologicamente neutra

    sobre o Direito vigente.

    c) Carter produtivo:

    Pontifica o autor da TPD:

    [...] No sentido da teoria do conhecimento de Kant, a cincia jurdica como conhecimento do Direito, assim como todo conhecimento, tem carter constitutivo e, por conseguinte, produz o seu objeto na medida em que o apreende como um todo com sentido. Assim como o caos das sensaes, que s atravs do conhecimento ordenador da cincia se transforma em cosmos, isto , em natureza como um sistema unitrio, assim tambm a pluralidade de normas jurdicas gerais e individuais postas pelos rgos jurdicos, isto , o material dado cincia do Direito, s atravs do conhecimento da cincia jurdica se transforma num sistema unitrio isento de contradies, ou seja, numa ordem jurdica.24

    22 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998.

    23 Ibid., p. 89.

    24 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed.

  • 36Teoria do Direito e discricionariedade

    Nesse tpico, observa-se que Kelsen determina como misso da cincia jurdica sistematizar o contedo das normas jurdicas dispersas, construindo um sistema consistente e coerente nas relaes das partes com o todo. Em sntese: construir, atravs

    da Cincia do Direito, um sistema completo e, portanto, organizado hierarquicamente. Essas trs caractersticas principais da cincia jurdica (descritiva, neutra e produtiva) coadunam-se para diferenci-la do Direito Positivo, que, sendo seu objeto, no se confunde com aquela. Observa-se, dessa forma, que esses dois campos (Cincia do

    Direito e Direito Positivo) compartilham sua inteno metodolgica mas diferenciam-se nitidamente.

    A funo da cincia jurdica conhecer. Para tanto, formula proposies jurdicas que so juzos: enunciados relacionados a um

    objeto de conhecimento. J o Direito no descreve normas (no possui uma funo descritiva). Por outro lado, enuncia normas jurdicas em que a funo no conhecer,mas prescrever, em sentido amplo (ordem, imperativos, assim como permisses e habilitaes). Assim,

    se a Cincia do Direito tem como funo o conhecimento, o Direito evidencia-se, em Kelsen, como deciso, autoridade. A primeira opera pelo binmio verdadeiro/falso; o segundo, pela validade (normas

    jurdicas no podem ser verdadeiras ou falsas, mas apenas vlidas ou invlidas).

    1.3 Os conceitos fundamentais do aparato conceitual da TPD

    No projeto de desvelamento do conhecimento jurdico realizado atravs do mtodo purificador, que Kelsen desenvolveu na

    TPD, verificou-se que o mesmo se detm precipuamente em definir

    o Direito de tal forma que este encontre seu fundamento no mbito

    So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 81-82.

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck37

    estritamente jurdico. Desse modo, torna-se fundamental, para o modelo kelseniano, a definio de norma jurdica, bem como de seu

    pressuposto de validade, ao buscar responder por que a mesma vlida, at chegar ao fechamento do sistema normativo (a norma fundante

    pressuposta). So os tpicos abordados a seguir, na continuao do tema proposto.

    1.3.1 Norma

    A norma jurdica definida, em Kelsen, como o sentido

    objetivo de um ato de vontade25. Conforme o autor:

    O fato externo [...] no constitui objeto de um conhecimento especificamente jurdico [...]. O que transforma esse fato num ato jurdico (lcito ou ilcito) no sua facticidade, no o seu ser natural, isto , o seu ser tal como determinado pela lei da casualidade [...] mas o sentido objetivo que est ligado a esse ato, a significao que ele possui. O sentido jurdico especfico, a sua particular significao jurdica, recebe o fato em questo por intermdio de uma norma que a ele se refere com seu contedo, que lhe empresta a significao jurdica, por forma que pode ser interpretado segundo esta norma. A norma jurdica funciona como esquema de interpretao.26

    Note-se, na compreenso do autor, que, para um sentido de ser jurdico (objetivo), este deve ser dado por uma norma jurdica que,

    ao prever um fato, lhe atribua efeitos jurdicos. Em outras palavras, o ato humano que se dirige conduta de outrem (dever ser subjetivo),

    para se tornar jurdico (objetivo), exige uma previso normativa. Assim,

    a norma jurdica pressupe que o ato de vontade realizado (sentido

    subjetivo) coincida com uma previso normativa, pois no qualquer

    25 Seguimos aqui a lio da traduo lusitana: KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. da 2 edio alem de 1960 por Joo Baptista Machado. 3. ed. Coimbra: Armnio Amado, 1974. p. 3.

    26 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1998, p. 4.

  • 38Teoria do Direito e discricionariedade

    ato de vontade que tem como sentido uma norma.

    1.3.2 Sentido subjetivo e sentido objetivo

    Esses termos, na acepo kelseniana, tornam-se mais claros a partir das seguintes afirmaes do autor:

    Na verdade, o indivduo que, atuando racionalmente, pe o ato, liga a este um determinado sentido que se exprime de qualquer modo e entendido pelos outros. Esse sentido subjetivo, porm, pode coincidir com o significado objetivo que o ato tem do ponto de vista do Direito, mas no tem que necessariamente ser assim.27

    Tal assertiva entrelaa-se com o seguinte exemplo dado por Kelsen:

    A ordem para um gangster para que lhe seja entregue uma determinada soma de dinheiro tem o mesmo sentido subjetivo que a ordem de um funcionrio de finanas, a saber, que o indivduo a quem a ordem dirigida deve entregar uma determinada soma de dinheiro. No entanto, s a ordem do funcionrio de finanas, e no a do gangster, tem o sentido de uma norma vlida, vinculante para o destinatrio; apenas o ato do primeiro, e no o do segundo, um ato produtor de uma norma, pois o ato do funcionrio de finanas fundamentado numa lei fiscal, enquanto o ato do gangster no se apoia em qualquer norma que para tal lhe atribua competncia.28

    Com essa afirmao, Kelsen busca documentar que no

    necessrio utilizar a dimenso tica para diferenciar a ordem de um bandido das normas vlidas que pertencem a um determinado ordenamento jurdico. Desse modo, por derivao hierrquica da ordem de um fiscal, pode-se chegar Constituio e norma fundamental

    que a autoriza. Fica implcita a ideia do Direito como um sistema de normas. O ato do bandido no pode ter um sentido objetivo, pois, ao

    27 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1998, p. 3.

    28 Ibid., p. 9.

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck39

    no estar integrado num sistema jurdico, no norma vlida.

    1.3.3 Ato de vontade

    Trata-se de um conceito que se relaciona com a norma e pode

    ser traduzido atravs da seguinte pontificao de Kelsen:

    A funo especfica da razo o conhecimento dos objetos que lhe so dados ou propostos. A criao de normas no , porm, uma funo do conhecimento. Com a criao de uma norma no se conhece um objeto j dado, tal como ele , mas exige-se algo que deve ser. Nesse sentido, a norma uma funo do querer ser, no do conhecer.29

    Desse modo, ao definir norma como sentido objetivo de um

    ato de vontade, Kelsen passa a desenvolver o conceito de validade.

    1.3.4 Validade

    Coerente com os fundamentos epistemolgicos desenvolvidos na TPD, Kelsen vai buscar elaborar um conceito de validade das

    normas jurdicas de tal forma que o mesmo se imunize das

    concepes extranormativas. Para tanto, o autor buscou estabelecer

    um fundamento objetivo de validade para as normas jurdico-positivas, com referncia apenas ao prprio sistema normativo. Nesse contexto,

    o conceito de validade apresenta quatro notas distintivas, a saber:

    a) Existncia:

    Compreendida como o modo especfico de existncia da

    norma. Dessa forma, afirma Kelsen:

    29 KELSEN, Hans. Justia e Direito Natural. Trad. de Joo Baptista Machado, do Apndice da 2 edio alem da Reine Rechtslere. 2. ed. Coimbra: Armnio Amado, 1970, p. 115.

  • 40Teoria do Direito e discricionariedade

    [...] Podemos exprimir a vigncia (validade) de uma norma dizendo que certa coisa deve ou no deve ser, deve ou no deve ser feita. Com a palavra vigncia designamos a existncia especfica de uma norma, [...] diferentemente do ser dos fatos naturais.30

    b) Pertinncia:

    Aqui se trata de perceber que as normas no possuem uma existncia isolada, mas fazem parte de um todo que o ordenamento

    jurdico. Pontifica o autor: Uma norma singular uma norma jurdica

    enquanto pertence a uma determinada ordem jurdica [...].31

    c) Obrigatoriedade:

    Essa noo explicitada no sentido de que a norma vlida

    a norma obrigatria. Nesse intuito, assevera: Dizer que uma norma

    que se refira conduta de um indivduo vale ( vigente) significa que

    vinculativa, que o indivduo se deve conduzir do modo prescrito pela norma.32

    d) Legalidade:

    Aqui o essencial perceber que uma norma jurdica s jurdica se foi produzida em conformidade com outra norma de ordenamento. o que estabelece Kelsen:

    O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de outra norma. Uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma figurativamente designada como norma superior, por

    30 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 11.

    31 Ibid., p. 33

    32 Ibid., p. 215.

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck41

    confronto com uma norma que , em relao a ela, inferior.33

    Adicionalmente, Kelsen considera que a eficcia geral das

    normas outra condio necessria para reconhecer a existncia de um

    sistema jurdico. Desse modo, torna-se necessrio fazer uma relao entre validade e eficcia, como exposto na continuao a seguir.

    1.3.5 Validade e eficcia

    No referencial terico kelseniano, um sistema normativo eficaz se, em geral, suas normas so eficazes, isto , se obedecidas

    por seus destinatrios ou, no caso de descumprimento, aplicadas pelos rgos habilitados. Assim, o fato de que uma norma se aplique ou se cumpra no , em princpio, um critrio para estabelecer sua pertinncia ao sistema. Contudo, um sistema no poderia ser vlido, existente e real sem um mnimo de eficcia. Assim, a eficcia tambm

    se torna condio de validade, como aclara o autor:

    Uma norma que nunca e em parte alguma aplicada e respeitada, isto , uma norma que como costuma dizer-se no eficaz em uma certa medida, no ser considerada como norma vlida (vigente). Um mnimo de eficcia (como se costuma dizer) a condio de sua vigncia.34

    Sem adentrar em especificidades e duras batalhas tericas

    travadas at o presente, diante dessa tentativa de isolar o Direito em uma simples estrutura normativa, em que todos os problemas devem ser postos e solucionados intranormativamente, observa-se que a validade torna-se um conceito essencial, demarcatrio, na TPD.

    Na obra extensa e densa que a TPD, para o objetivo do

    33 Ibid., p. 215.

    34 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 12.

  • 42Teoria do Direito e discricionariedade

    presente trabalho (o problema da discricionariedade na concepo kelseniana de interpretao), so suficientes os seguintes aspectos

    da validade como critrio decisrio das normas jurdicas: a validade a relao que comporta as normas como elementos de um sistema jurdico. Assim, afirmar que uma norma existe o equivalente a afirmar

    que uma norma vlida e, por sua vez, afirmar que uma norma vlida

    equivale a dizer que pertence a um determinado sistema, porque nenhuma norma vlida por si s. Temos, ento, que, na concepo

    kelseniana, uma norma pode pertencer ao sistema, seja porque se deduz de outra norma que pertence ao sistema (relao esttica) ou porque foi produzida de acordo com o procedimento estabelecido por uma norma superior (relao dinmica). Contudo, a nota relevante nesta sua concepo do Direito que, em ambos os casos, deve existir

    uma norma ltima que determina a validade das normas restantes (a cadeia de validao).35

    Essa norma Kelsen denominou de norma fundamental

    (Grundnorm), e seu procedimento de criao e pertinncia ao sistema torna-a no posta, mas pressuposta, tendo uma funo equivalente dos axiomas na geometria. Esse o plano de anlise sobre o qual nos

    deteremos a seguir.

    1.4 A estrutura escalonada do ordenamento jurdico: norma

    superior e inferior

    A distino das normas jurdicas em superiores e inferiores encontrou sua fundamentao na concepo de um sistema jurdico estruturado em hierarquias distintas. Da decorre a afirmao de que

    o ordenamento jurdico se compe de normas de superior ou inferior

    hierarquia. Entretanto, preciso analisar, no modelo proposto por Kelsen, qual o critrio que as diferencia. Como ponto de partida na

    35 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998.

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck43

    busca a essa resposta, necessrio ressaltar que, para esse autor, o Direito tem uma peculiaridade essencial: ele regula sua prpria produo e aplicao36. Dessa forma, se algumas normas regulam o processo de produo de outras normas, a norma reguladora, conforme a qual outra norma produzida, representa o fundamento de validade desta ltima.

    esse o sentido da afirmao do autor:

    [...] Dado o carter dinmico do Direito, uma norma somente vlida porque e na medida em que foi produzida de determinada maneira, isto , pela maneira determinada por outra norma. Esta outra norma representa o fundamento imediato de validade daquela.37

    No mesmo diapaso, complementa Kelsen:

    A ordem jurdica no um sistema de normas jurdicas ordenadas no mesmo plano, situadas uma ao lado das outras, mas uma construo escalonada de diferentes camadas ou nveis de normas jurdicas. A sua unidade produto da conexo de dependncia que resultado do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produo, por sua vez, determinada por outra; e assim por diante, abicar finalmente na norma fundamental hipottica, nestes termos , portanto, o fundamento de validade ltimo que constitui a unidade dessa interconexo criadora.38

    Assim, observa-se que, conforme o modelo de Kelsen, o ordenamento jurdico um sistema de normas em que as mesmas encontram-se dispostas numa estrutura escalonada, sendo que o ltimo fundamento de validade (o pice da pirmide numa imagem

    36 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 80. Segundo Kelsen: , com efeito, uma caracterstica muito significativa do Direito regular sua prpria produo [...].

    37 Ibid., p. 246.

    38 ibid., p. 246.

  • 44Teoria do Direito e discricionariedade

    virtual) repousa na norma fundamental, que meramente pressuposta. Retendo essas ideias, neste momento possvel analisar a cadeia de validade, que tem por decorrncia, no modelo kelseniano, o limite dado pela norma fundamental.

    1.5 A cadeia de validade e seu limite: a norma fundamental

    Como analisado anteriormente, segundo Kelsen o Direito regula sua prpria produo de tal forma que uma norma regula como outra norma produzida e a norma reguladora, por sua vez, regulada por outra (na medida em que o fundamento de validade de uma norma somente pode ser outra norma). Desse modo, essa cadeia de validade (processo de validao) deve ter um fim. Vale dizer, a

    cadeia formada por normas superiores (reguladoras) e inferiores (reguladas) deve encontrar um limite nesta busca pelo fundamento de validade, sob pena de tornar invivel a delimitao do Direito. A soluo encontrada por Kelsen para tal problemtica, coerente com o seu princpio metodolgico fundamental de delimitar com rigor o

    campo do Direito, foi instituir, como fechamento do sistema de normas, a norma fundamental. Dito de outra forma, a norma fundamental o fundamento da unidade e da validade de um ordenamento jurdico. Ela a resposta de Kelsen para as seguintes questes que ele prprio

    formulou:

    O que que fundamenta a unidade de uma pluralidade de normas, por que que uma norma determinada pertence a uma determinada ordem? Essa questo est intimamente ligada com esta outra: por que que uma norma vale, o que que constitui o seu fundamento de validade?39

    Dessa forma, se indagarmos sobre o fundamento de validade

    39 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 215

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck45

    da experincia jurdica, poderamos recorrer aos seguintes degraus

    escalonados: Por que uma sentena vlida? Porque foi produzida

    em conformidade com um decreto. Por que o decreto vlido? Porque

    foi produzido em conformidade com uma lei. Por que a lei vlida?

    Porque foi produzida em conformidade com a Constituio. Por que a Constituio vlida? Este o momento em que surge, de acordo com

    o modelo kelseniano, a norma fundamental como ltimo fundamento de validade. Nesse sentido, pontifica o autor: Apenas uma autoridade

    competente pode estabelecer normas vlidas; e uma tal competncia somente se pode apoiar sobre uma norma que confira poder para fixar

    normas [...]40. Complementando:

    Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental a fonte comum de validade de todas as normas pertencentes a uma mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum. O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que o seu ltimo fundamento de validade a norma fundamental dessa ordem. a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa o fundamento de validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa.41

    Como se nota, a resposta para por que devemos obedecer

    Constituio de um ordenamento jurdico? dada por Kelsen atravs

    da formulao da norma fundamental, sendo esta a que, em ltima instncia, autoriza o constituinte.

    1.5.1 Caractersticas da norma fundamental

    Na anlise da TPD, depreendem-se quatro notas distintivas

    que consubstanciam a norma fundamental. So elas:

    40 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 216-217.

    41 Ibid., p. 217.

  • 46Teoria do Direito e discricionariedade

    a) Norma pensada:

    O prprio autor afirma: Como a norma mais elevada, ela tem

    de ser pressuposta, visto que no pode ser posta por uma autoridade, cuja competncia seria de se fundar numa norma ainda mais elevada [...]42

    Verifica-se que, ao no ser uma norma posta, mas

    pressuposta, a mesma no uma norma positiva, mas uma norma pensada.43Contudo, importante ressaltar que, se por um lado a norma fundamental pensada, por outro lado isso no significa que

    h liberdade para pressup-la de qualquer modo.44Nesse sentido, possvel afirmar que a mesma pressuposta em relao a uma ordem

    coercitiva globalmente eficaz.

    b) Norma hipottica:

    hipottica no sentido de ter um carter fictcio45, embora tenha a finalidade de analisar uma determinada ordem jurdica como

    um sistema de normas vlidas que determine o sujeito a pressupor a norma fundamental. Da porque no uma mera opinio poltica ou momentnea;

    42 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 217.

    43 Ibid., p. 10. Nesse raciocnio, deve notar-se que uma norma pode ser no s o sentido de um ato de vontade, mas tambm como contedo de sentido o contedo de um ato de pensamento [...]. Quer isto dizer que uma norma no tem de ser efetivamente posta pode estar pressuposta no pensamento.

    44 Ibid., p. 224. Conforme Kelsen, se queremos conhecer a natureza da norma fundamental, devemos ter em mente que ela se refere imediatamente a uma Constituio determinada, efetivamente estabelecida, [...] eficaz em termos globais, enquanto fundamenta a validade da mesma Constituio e a ordem coercitiva de acordo com ela criada [...].

    45 Ibid., p. 221-243, passim. No mesmo sentido, afirma o autor: [...] Todo e qualquer contedo pode ser Direito. [...] A norma fundamental, como norma pensada ao fundamentar a validade do Direito Positivo, apenas a condio lgico-transcendental.

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck47

    c) Norma formal:

    Sobre esse tpico, Kelsen predica:

    [...] A norma fundamental, como norma pensada ao fundamentar a validade do Direito Positivo, apenas a condio lgico-transcendental desta interpretao normativa; ela no exerce qualquer funo tico-poltica, mas to s uma funo teortico-gnoseolgica.46

    Nesse mesmo raciocnio, afirma:

    O sistema de normas que se apresenta como uma ordem jurdica tem essencialmente carter dinmico. Uma norma jurdica no vale porque tem um determinado contedo, quer dizer, porque o seu contedo pode ser deduzido pela via de um raciocnio lgico de uma norma fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso, pertence ela ordem jurdica cujas normas so criadas em conformidade com esta norma fundamental. Por isso, todo e qualquer contedo pode ser Direito.47

    Nesse contexto, percebe-se que, para o autor, a norma

    fundamental de uma ordem jurdica no uma norma material, e sim o ponto de partida de um processo que vai permitir a criao do Direito Positivo.

    d) Norma jurdica:

    Se o Direito deve buscar seu fundamento no prprio Direito48 e a cincia jurdica deve descrev-lo de maneira a compreender seu objeto

    46 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 243.

    47 Ibid., p. 221.

    48 Ibid., p. 80. Pontifica Kelsen, como j afirmado anteriormente: , com efeito, uma caracterstica muito significativa do Direito regular a sua prpria produo [...].

  • 48Teoria do Direito e discricionariedade

    juridicamente49, por decorrncia a norma fundamental tambm pode ser considerada uma norma jurdica. Como acabamos de verificar, a

    cadeia de validade construda no modelo kelseniano para identificar a

    validade de uma norma inferior remonta at Constituio, que, por sua vez, referenciada por uma norma bsica pressuposta a norma

    fundamental. Assim, essa norma fundante do ordenamento jurdico cumpre sua funo de conferir poderes jurdicos aos constituintes para que a estrutura hierrquica encontre um limite, sob pena de ser infinita.

    Note-se que, para Kelsen, a norma fundamental no uma questo subjetiva de preferncia momentnea (poltica) ou moral (justia), mas a condio jurdico-gnoseolgica que possibilita fundar a cadeia de validade e descrever um sistema jurdico diante de uma ordem globalmente eficaz. A ideia de norma fundamental apresenta, no

    entanto, uma srie de complicaes. A principal delas consiste em uma

    mera suposio do discurso jurdico, ainda que estabelecida por razes

    objetivas. Isso levou os juristas a buscarem outras solues, como se

    verificar em Hart. Por ora, adentraremos no tpico da interpretao

    da TPD, no qual nos parece haver aguda discrepncia entre seu projeto

    purificador e as concepes desenvolvidas por Kelsen a respeito da

    hermenutica.

    1.6 A interpretao na TPD

    Conforme vimos anteriormente, para Kelsen o Direito concebido como um sistema de normas que regula a conduta humana. Assim, a norma o elemento bsico do sistema jurdico. Por sua vez, norma o sentido objetivo de um ato de aplicao (vontade). objetivo

    49 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 79. Nesse entendimento, predica o autor: A cincia jurdica procura apreender o seu objeto juridicamente, isto , do ponto de vista do Direito. Aprender algo juridicamente no pode, porm, significar seno aprender algo como Direito, o que quer dizer: como norma jurdica, como determinado atravs de uma norma jurdica [...].

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck49

    porque o sentido que um fato tem, na medida em que o contedo de uma norma, que, por seu turno, o contedo de sentido de outra norma que lhe d validade. A, atravs da cadeia de validade dessa estrutura escalonada, se chega ao conceito de norma fundamental, no vrtice da pirmide.

    Por outro lado, Kelsen, ao sustentar a integridade do sistema jurdico sem indagar acercados valores e fatos que no tenham uma previso normativa, faz uma distino entre normas gerais e abstratas e norma individual e concreta, mas admitindo as ltimas como tambm fazendo parte do ordenamento jurdico como um todo. Nesse sentido, afirma o autor:

    A norma geral, que liga a um fato abstratamente determinado uma consequncia igualmente abstrata, precisa, para poder ser aplicada, de individuao. [...] Portanto, a aplicao de uma norma geral em um caso concreto consiste na produo de uma individual, na individualizao (ou concretizao) da norma geral [sic]50.

    Para Kelsen, as normas gerais estabelecem uma moldura em que, no seu interior, podem ser verificadas vrias possibilidades

    de aplicao51. Quando o juiz aplica o Direito, pode optar por mais de um sentido autorizado pela norma. Contudo, Kelsen enftico quando afirma que no h uma nica vinculao a ser determinada dentro da

    moldura, mas uma pluralidade de determinaes a fazer. este o

    caminho traado pelo autor:

    Esta determinao nunca , porm, completa. A norma do escalo superior no pode vincular em todas as direes (sob todos os aspectos) o ato atravs do qual aplicada. Tem sempre de ficar uma margem ora maior, ora menor, de livre apreciao [...]. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possvel tem de deixar quele que

    50 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 256.

    51 Ibid., p. 390. Kelsen afirma: O Direito a aplicar forma [...] uma moldura dentro da qual existem vrias possibilidades de aplicao [...].

  • 50Teoria do Direito e discricionariedade

    a cumpre ou executa uma pluralidade de determinaes a fazer.52

    Da o porqu de afirmar a liberdade relativa do juiz:

    [...] Tambm este ltimo um criador de Direito e tambm ele , nesta funo, relativamente livre. Justamente por isso, a obteno da norma individual no processo de aplicao da Lei , na medida em que nesse processo seja preenchida a moldura da norma geral, uma funo voluntria.53

    Por outro lado, Kelsen critica a jurisprudncia tradicional (formalista), que acreditaria na possibilidade de a norma abstrata oferecer condies que a vinculariam de tal forma na qual a mesma

    pudesse oferecer, em todos os casos, apenas uma soluo e, portanto, a soluo correta. Esse o sentido de sua assertiva: De um ponto de

    vista orientado para o Direito Positivo, no h qualquer critrio no qual uma das possibilidades inscritas na moldura do Direito a aplicar possa ser preferida em lugar de outra [...].54

    No mesmo entendimento, para esse jurista as decises dos

    juzes so tambm decises polticas, na medida em que, ao constitu-

    las, os mesmos implementam uma lei, assim como o legislador a elabora em nvel diferente. Da afirmar:

    A questo de saber qual , entre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a correta, no sequer segundo o prprio pressuposto de que se parte uma questo de conhecimento dirigido ao Direito Positivo no um problema de Teoria do Direito, mas um problema de Poltica do Direito. A tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a nica sentena justa (certa) ou o nico ato administrativo correto , no essencial, idntica tarefa de quem se proponha, nos quadros da

    52 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 388.

    53 Ibid., p. 393.

    54 Ibid., p. 391.

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck51

    Constituio, a criar as nicas leis justas (certas).55

    Com tal concepo da interpretao, ao permitir que os rgos habilitados a aplicar as normas gerais (juzes) possam escolher (relativamente livres) entre vrias significaes possveis, Kelsen

    soluciona a problemtica em relao especfica discricionariedade

    do magistrado, mas permanece aberta a questo sob a tica material. o que se analisar a seguir. Interpretar, para este jurista, consiste

    em determinar a significao de um texto. Como a determinao dessa

    significao pode ser realizada de duas formas, Kelsen as diferencia,

    denominando-as de interpretao cientfica e interpretao autntica.

    A interpretao cientfica aquela realizada por toda a

    pessoa que tem um ponto de vista sobre a significao do Direito

    (especialmente o cientista do Direito), buscando determinar todas as significaes possveis de um texto. Desse modo, ela consiste num ato

    de conhecimento. A interpretao autntica aquela produzida por um rgo habilitado pelo sistema normativo a determinar sua significao

    e, portanto, institui-se no como um ato de conhecimento, mas como ato de vontade. Da resulta sua validade, independentemente de estar ou no em conformidade com a significao insinuada pelo texto, ou

    com a vontade conhecida do legislador. Essa teoria da interpretao tem consequncias graves

    no modelo kelseniano. Em primeiro lugar, porque a interpretao realizada pelo juiz (interpretao autntica) se torna literalmente livre, na medida em que ser instituda, seja qual for o mtodo selecionado no processo de escolha. De tal premissa decorre que toda a anlise sobre os mtodos de interpretao utilizados no Direito se torna sem objeto. Vale dizer, qualquer que seja o mtodo empregado pelo aplicador do Direito (juiz), assim que sua interpretao for instituda ser vlida e passar a fazer parte da ordem jurdica. Essa consequncia percebida por Kelsen, embora no veja nenhuma contradio nesse processo, por

    55 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 393.

  • 52Teoria do Direito e discricionariedade

    considerar que a funo da Cincia do Direito no a de prescrever. Por outro lado, se a norma jurdica funciona como esquema de

    interpretao, operando atravs da significao jurdica de um ato de

    vontade, por consequncia a interpretao, em tal modelo, consistir em determinar a significao de um texto normativo a ser atribuda

    por um ato de vontade aplicado. Da resulta que a norma jurdica, em ltima anlise, no vai ser determinada pelo autor aparente do texto.

    Dito de outra forma, nessa dinmica no ser o legislador (autoridade legislativa) que vai estabelecer a norma, mas o aplicador (intrprete autntico), na medida em que a determinao de sentido atribuda pelo juiz se incorpora norma e inclui sua validade na ordem jurdica.

    Tal ordem de coisas parece subverter o conjunto da obra na

    TPD. Isso porque traz uma segunda consequncia (no prevista por

    Kelsen): a cadeia de validade (o processo de validao) das normas no se verifica, como afirma Kelsen, do pice para baixo, mas, em realidade,

    de baixo para cima. Tal problemtica apresentar a questo do controle

    de constitucionalidade. Nesse sentido, a crtica de Troper:

    A ideia de um controle de constitucionalidade das leis pressupe que a constituio um standart de referncia objetivo em relao ao qual examinamos as leis. Ora, se adotamos at o fim a teoria da interpretao de Kelsen, perceberemos que o intrprete que determina a significao da constituio. A norma constitucional no posta, pois, de modo objetivo, intangvel pelo poder constituinte, e, sim, uma norma que recriada permanentemente pelo intrprete autntico, isto , pelo controlador da constituio. por isso que a ideia de um controle muito mais difcil de justificar com essa teoria da interpretao.56

    A resposta kelseniana a tal crtica poderia passar pela construo de um raciocnio segundo o qual o controle da constitucionalidade da lei um ato poltico e, portanto, em ltima instncia, o rgo de controle tambm se caracterizaria como um rgo poltico que, por sua vez,

    56 TROPER, Michel. Un systme pur du droit: le positivisme de Kelsen. In: BOURETZ, Pirre (Diy.). La Force du Droit. Trad. de Alfredo Storck. Paris: ditions Esprit, 1991, pp. 133-134.

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck53

    retiraria sua legitimidade de outros rgos polticos que o designariam. Contudo, mesmo admitindo que a funo do rgo controlador (juiz constitucional) uma funo poltica, como Kelsen dispe, o problema

    do controle material da discricionariedade permanece. Dito de outro modo, o fato de o rgo controlador ser

    poltico no elide a necessidade de que a corte constitucional julgue as controvrsias, respeitando um ncleo objetivo de sentido colocado pelo constituinte, em relao ao qual a lei deve ser mensurada. Assim, o rgo controlador tem por finalidade primordial manter o respeito

    a este ncleo duro, no devendo desbordar do cnone constitucional estabelecido por esse ncleo irredutvel de sentido.

    Dessa forma, se admitirmos que no h mais esse ncleo duro de sentido, como o faz implicitamente a teoria da interpretao na TPD, o problema da legitimidade das cortes constitucionais se torna

    intransponvel e, com ele, se fragiliza toda a concepo do Estado Democrtico de Direito. Em ltima anlise, o mtodo purificador se

    contamina e se subverte de baixo para cima, aproximando Kelsen dos

    realistas, na problemtica hermenutica, para os quais o Direito ser o que os juzes afirmarem que . Premissa que proporciona enorme

    insegurana jurdica. Em nosso entender, coube ao jurista ingls H. L. A. Hart

    desenvolver esse ponto, razo pela qual passaremos a expor sua

    doutrina no prximo captulo.

    2 A REFORMULAO POSITIVISTA EM HART: OS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE SUA TEORIA ANALTICA E O PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL

    H. L. A. Hart57(1907-1994), jusfilsofo ingls, professor de

    57 ARGELES, Juan Ramon de Pavamo. H. L. A. Hart e a Teoria Analtica do Direito. Madrid: Centro de Estudos Constitucionais, 1984, p. 5, nota 12. Segundo o autor,

  • 54Teoria do Direito e discricionariedade

    Oxford, esclarece desde logo, na sua obra mxima, O Conceito de Direito58, que seu objetivo foi aprofundar a compreenso do Direito, da coero e da moral como fenmenos sociais diferentes mas relacionados [...].59Nessa sua assertiva encontra-se delimitado o propsito de descrever analiticamente60 o Direito (no como um sistema particular, mas sim em termos de sistemas jurdicos em geral), relacionando-o com as ordens coercitivas e com a moral. Nesse horizonte conceitual, trs questes recorrentes permeiam sua teoria jurdica, como afirma o

    autor:

    Como difere o direito de ordens baseadas em ameaas e como se relaciona com estas? Como difere a obrigao jurdica da obrigao moral e como est relacionada com esta? O que so regras e em que medida o direito uma questo de regras?61

    Na elaborao das respostas a tais indagaes, o jurista vai

    construir uma teoria jurdico-analtica que reformula o positivismo jurdico ao introduzir na descrio de um sistema normativo a noo de que o mesmo se fundamenta numa prtica social institucionalizada de aceitao das regras. Assim, se por um lado Hart visualiza o Direito como um sistema de normas (aproximando-se da concepo de

    Kelsen), por outro lado o rigor analtico de suas ponderaes sobre a

    natureza do Direito no prescinde de uma premissa ftica, ao inclu-

    Herbert L. A. Hart no deve ser confundido com outros estudiosos do Direito, como H. Hart e H. L. Hart. Portanto, o hbito de Hart antepor ao seu sobrenome as trs iniciais no devido a nenhum esnobismo, nem tampouco a uma imitao do costume norte-americano, mas simplesmente por uma questo de identificao.

    58 HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961. De agora em diante, CD.

    59 Ibid., prefcio.

    60 Idem. O jurista considerar o livro como um ensaio sobre teoria analtica, porque diz respeito clarificao do quadro geral do pensamento jurdico, em vez de respeitar a crtica do direito ou da prtica legislativa.

    61 Ibid., p. 18.

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck55

    la na descrio e fundamentao do Direito (afastando-se da pureza

    pretendida por Kelsen). Hart reelabora o positivismo jurdico ao buscar manter uma objetividade analtica na descrio do sistema jurdico, embora no abra mo de mant-la centrada numa prtica social. Em outras palavras, o jurista vai edificar uma teoria jurdica buscando

    visualizar o Direito como um sistema de regras jurdicas, organizadas hierarquicamente, sem contudo desarticul-lo da sua realidade social subjacente refletida no campo normativo.62

    Essa concepo de Hart permeia toda a dinmica conceitual desenvolvida no seu modelo terico, ao estabelecer profundas razes numa base sociolgica na qual se detm seu olhar e se desenvolve sua Teoria do Direito. A partir desse ponto convergente, que entrelaa a

    descrio do sistema de regras jurdicas com sua base social, derivam as questes centrais de seu modelo jurdico, como se observar na

    exposio de seu pensamento. E, mais especificamente, as implicaes

    de sua Teoria do Direito com a deciso judicial e, no interior desta, o

    tema proposto da discricionariedade. De outro lado, nessa mesma base conceitual convergentee

    paralelamente ao seu enfoque analtico, o autor tambm inclui, em sua teoria jurdica, investigaes sobre o significado das palavras, atravs

    da averiguao do uso padro de expresses relevantes do contexto

    social. Desse modo, desvela distintas situaes sociais (como, por

    exemplo, a diferena de meros comportamentos sociais convergentes

    hbitos e de uma regra social). Da seu entendimento de que a teoria

    analtica tambm pode ser percebida como um ensaio de Sociologia Descritiva.63

    Nesse denso panorama conceitual, o jurista dedicar boa parte de sua obra a demonstrar as insuficincias e incapacidades de

    62 HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961.

    63 Ibid., prefcio. No obstante sua preocupao com a anlise, o livro pode ser tambm encarado como um ensaio de sociologia descritiva; porque a sugesto de que as investigaes sobre os significados das palavras apenas lanam luz sobre as palavras falsa [...].

  • 56Teoria do Direito e discricionariedade

    um modelo de Direito baseado essencialmente em regras simples, conforme Austin constituiu em sua Teoria Imperativa do Direito.64Na crtica a esse modelo, Hart elabora respostas que vo compor os alicerces de sua Teoria Analtica do Direito, como se verificar a seguir.

    2.1 A crtica ao modelo paradigmtico de Austin65

    Hart, como j apontado inicialmente66, ao analisar as trs questes subjacentes recorrente indagao sobre o que o Direito?67, reconhece que nenhuma resposta suficientemente concisa e definitiva

    possa ser dada. Entretanto, pondera que possvel agrupar um ncleo de elementos formando um denominador comum nas respostas a essas trs questes (relaes do Direito com a coero, com a moral e com as

    regras). Nesse sentido, para realizar essa tarefa, relevando o lugar que ocupa em sua obra, vai analisar as deficincias do modelo imperativo

    proposto por Austin. Portanto, para a compreenso de sua crtica e das solues que sero elaboradas posteriormente, faz-se necessrio

    um entendimento preliminar da significao do modelo em questo.

    Assim, essa teoria consiste na tese de que, segundo Hart:

    [...] devem existir, sempre que exista um sistema jurdico, algumas pessoas ou corpos de pessoas que emitem ordens gerais baseadas em ameaas, que so geralmente obedecidas, e deve acreditar-se em geral que estas ameaas sero geralmente levadas a cabo, em caso de

    64 HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 21. Conforme Hart, [...] os erros da teoria imperativa simples so uma melhor bssola para a verdade, do que os de suas rivais mais complexas [...].

    65 ARGELES, Juan Ramon de Pavamo, op. cit. Segundo este autor, John Austin (1790-1859) foi o fundador oficial da Teoria Analtica do Direito durante os sculos XIX e XX. Nesse sentido, o nome de John Austin no pode ser confundido com o de J. L. Austin, filsofo da linguagem que teve uma influncia direta na obra de Hart.

    66 Ver nota de rodap n 57.

    67 HART, Herbert L. A., O Conceito de Direito, op. cit., p. 21.

  • Caroline Mller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janri Rodrigues Reck57

    desobedincia.68

    Explicitando: Essa teoria consiste na pretenso de que

    a chave para a compreenso do direito se encontra na noo simples de uma ordem baseada em ameaas, que o prprio Austin denominou comandos.69Esse o ponto de partida utilizado por Hart para demonstrar, ao longo de sua obra (na crtica a esse modelo explicativo), que o conceito de regra fundamental para descrever o

    Direito analiticamente. Para tanto, inicialmente Hart vai elaborar trs crticas dirigidas concepo de Austin, em que o Direito somente se caracterizaria por ordens baseadas em ameaas. A primeira refere-se ao contedo das leis, ao demonstrar que o Direito no pode se fundamentar, num Estado Moderno, apenas em regras jurdicas simples, de ordem coercitiva, na medida em que existem outros tipos

    de regras (por exemplo, leis que estabelecem condies de validade a

    negcios jurdicos ou as que conferem poderes de jurisdio).70 Desse modo, afirma o autor:

    [...] Isto porque a preocupao das regras que conferem tais poderes no consiste em impedir aos juzes a prtica de vetos imprprios, mas em definir as condies e limites em que as decises do tribunal sero vlidas.71

    Assim, verifica-se que as funes dessas regras so totalmente

    distintas e no podem ser explicadas no modelo de Austin. A segunda

    crtica dirigida ao mbito de aplicao das regras jurdicas. Nesta, como se trata tambm de interpretao das regras ao se aplicarem, Hart define como alvo a concepo de um carter auto-obrigatrio da

    68 HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 31.

    69 Ibid., p. 21.

    70 Ibid.

    71 Ibid., p. 37.

  • 58Teoria do Direito e discricionariedade

    legislao, ao entender que o legislador tambm deve se autovincular s ordens dadas aos sditos.

    Da afirmar o autor:

    [...] As palavras ditas ou escritas pelas pessoas para tal qualificadas por estas regras, e que seguem o procedimento nelas especificado, criam obrigaes para todos dentro do mbito explcita ou implicitamente designado pelas palavras.72

    Para Hart, no modelo de ordens coercitivas o soberano (pessoa ou conjunto de pessoas)73no tem carter autovinculativo e, sem o mesmo, no se pode compreender o Estado Moderno (ao no se submeter, a prpria autoridade legislativa, s regras que cria). A terceira crtica ao modelo imperativo de Austin dirige-se ao modo de origem das regras jurdicas. Ela diz respeito questo do costume, com o intuito de criticar o referido modelo em questo, na medida em que a produo normativa, ao ser concebida como o conjunto de ordens coercitivas emanadas do soberano, no explica essa situao.

    Explicitados esses alvos da crtica ao modelo de Austin, o

    autor passa a analisar suas insuficincias derivadas do conceito de

    hbito, que no d conta de dois problemas fundamentais do sistema jurdico. O primeiro trata da incapacidade de descrever a continuidade

    da autoridade, qual seja, a inaptido da ideia de obedincia habitual

    para explicar o fenmeno da sucesso da autoridade legislativa74, dramatizado