Teoria Dos Jogos Judiciario Direito

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    A TEORIA DOS JOGOS COMO ESTRATGIA

    QUALITATIVAMENTE MELHOR NO TRATAMENTO DACOMPLEXIDADE CONFLITIVA ATUAL

    Fabiana Marion Spengler1

    Theobaldo Spengler Neto2

    RESUMO:Atualmente, evidencia-se a preocupao com a efetividade/qualidade da prestaojurisdicional cujo modelo conflitual se caracteriza pela oposio de interesses entre as partes,que esperam pelo Estado, o qual deve dizer a quem pertence o Direito. Para o tratamento deconflitos, o Estado prope tradicionalmente o Judicirio que, em caso de no-cumprimentoespontneo das prescries normativas por parte dos indivduos, chamado a dizer oDireito. O tema desenvolvido no presente texto envolve as possibilidades de construir umnovo modelo de tratamento de conflitos a partir das concepes incorporadas pela teoriados jogos de John Nash diante do exaurimento das formas tradicionais de agir da jurisdio,incapaz de lidar com a complexidade multifacetria das relaes sociais contemporneas,marcada por um ambiente de crise(s) das instituies modernas.

    PALAVRAS-CHAVE: jurisdio, teoria dos jogos, conflito.

    ABSTRACT: Currently, is clear the concern about the effectiveness/quality in the court provideswhich have the contention model characterised by opposition of interests between the parties,who expect by the State that must say whom has reason. For the treatment of conflicts, theState traditionally proposes the Judiciary, that should say the Right when render a judgement,in case of non-accomplishment spontaneous of the regulatory laws by the individuals. Thetheme of this article involves the possibilities of build a new model to deal with conflicts fromthe ideas incorporated by the game theory of John Nash front the prostration of the traditionalforms of action in the jurisdiction, unable to deal with the complexity of the contemporaneous

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    social relations, marked by an atmosphere of crisis in the modern institutions.KEYWORDS: jurisdiction, game theory, conflict.

    1. NOTAS INTRODUTRIAS

    Atualmente as relaes sociais denotam profundas mudanas em sua configurao,colocando em xeque as tradicionais instituies modernas, o prprio Estado e sua(s)estratgia(s) organizativa(s) sob o modelo da especializao de funes. Tal fato, de formainexorvel, tem demandado a essas instituies uma profunda reviso dos seus papis eprticas. Nesse cenrio, transforma-se e fragiliza-se o desempenho de suas atribuies,

    determinando um quadro de crises profundas. Essas crises podem ser traduzidas pelacrescente distncia entre a legislao e a realidade, na dificuldade de produo e aplicaodos programas estatais e na interpenetrao entre as esferas pblica e privada, o quereflete a necessidade de novas prticas administrativas, jurisdicionais, legislativas epolticas.

    Nesse contexto, evidencia-se a preocupao com a efetividade/qualidade da prestaojurisdicional cujo modelo conflitual se caracteriza pela oposio de interesses entre as partes,que esperam pelo Estado (terceiro autnomo, neutro e imparcial), o qual deve dizer a quempertence o Direito. Para o tratamento de conflitos, o Estado prope tradicionalmente oJudicirio que, em caso de no-cumprimento espontneo das prescries normativas por

    parte dos indivduos, chamado a dizer o Direito. Atualmente, a tarefa de dizer o Direitoencontra limites na precariedade da jurisdio moderna, incapaz de responder s demandascontemporneas produzidas por uma sociedade que avana tecnologicamente, permitindoo aumento da explorao econmica, caracterizada pela capacidade de produzir riscos sociaise pela incapacidade de oferecer-lhes respostas a partir dos parmetros tradicionais.

    Assim, ignorando que o conflito um mecanismo complexo derivado de mltiplos fatores,nem sempre definidos na sua regulamentao, espera-se pelo Judicirio para que diga sobrequem tem melhor direito, mais razo ou quem o vencedor da contenda. Ainda, no atualcontexto, o Judicirio representa uma instituio garantidora de segurana em espao e

    tempo precisos, restabelecendo a ordem jurdica mediante expedientes racionais/legaisdefinidores de padres meramente formais, decidindo sobre conflitos sociais sem valorizarseu contedo.

    De outro lado, o Judicirio foi organizado para atuar dentro de determinados limitesestruturais, tecnolgicos, pragmticos e metodolgicos, muito aqum da complexidadeconflitiva que lhe acorre. Conseqentemente, em meio aos aspectos multifacetrios quemarcam as relaes sociais atuais, preciso buscar estratgias consensuadas de tratamentodas demandas, no operando somente com a lgica do terceiro estranho s partes (juiz),mas buscando a instituio de outra cultura que trabalhe com a concepo de fomento reconstituio autonomizada do litgio.

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    Nesse sentido, o tema desenvolvido no presente texto envolve as possibilidades deconstruir um novo modelo de tratamento3 de conflitos a partir das concepes incorporadas

    pela teoria dos jogos de John Nash diante do exaurimento das formas tradicionais de agirda jurisdio, incapaz de lidar com a complexidade4 multifacetria das relaes sociaiscontemporneas, marcada por um ambiente de crise(s) das instituies modernas.

    Partindo do tema exposto, o texto, num primeiro momento, delimitou e discutiu odesempenho da funo jurisdicional do Estado, para, em seguida, identificar outras formasde tratamento que se abrem em face da complexidade dos conflitos sociais contemporneos,propondo-se, para tanto, um modelo de abordagem desses conflitos assentado numaperspectiva voltada para a teoria dos jogos.

    Esse , pois, o texto que agora se apresenta.

    2. A (RE)SOLUO JUDICIAL DE CONFLITOS E A CULTURA DA GUERRA: ANECESSIDADE DE BUSCAR ALTERNATIVAS

    Em Hobbes, possvel discutir o contrato de sujeio firmado pelos homens entre si(fugindo do estado de natureza e da guerra de todos contra todos), criador do poder supremode um governante. Esse contrato social consiste numa transferncia mtua de prerrogativase vem baseado nas leis da natureza, que primeiramente determinam a busca pela paz,possibilitando que se contrate para obt-la. Essa contratao garantiria segurana aos homens

    que estariam obrigados a cumprir os pactos que tivessem celebrado. Segundo Hobbes, nelareside a fonte e a origem da justia, determinando que justo o cumprimento do pacto einjusto seu descumprimento.

    Mas, no se pode perder de vista que o pacto assim vigente entre as criaturas eraartificial, e que, para se tornar duradouro, foi preciso um poder comum que as mantivesseem respeito e dirigisse as suas aes para o benefcio de todos. Nesse contexto, adeterminao era conferir toda a fora e poder a um homem, ou a uma assemblia quepudesse reduzir todas as vontades humanas, por pluralidade de votos, a uma s vontade.Estava criada a Repblica, que poderia assumir trs formas distintas: Monarquia, Democracia

    e Aristocracia.5

    Conseqentemente, o contrato social que fez nascer a Repblica e com ela a Democraciadeterminou o surgimento de regras de racionalizao das disputas, objetivando cessar aviolncia e o caos. Surgiu como meio de garantir segurana e certeza aos homens,protegendo-os dos demais. Pretendeu, assim, evitar a discrdia original e a transgresso,perdendo, no entanto, a capacidade de, ao invs de recalcar a luta de todos contra todos,super-la atravs da deliberao consensuada entre homens livres e autnomos.

    Assim, o que os membros de uma unidade poltica esperam do poder que ele assegure,como proclamava Hobbes, sua proteo contra as diversas ameaas que possam sacudir asociedade. Mais exatamente, esperam no estar expostos luta, ou seja, violncia arbitrria

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    de uns contra os outros e ao temor permanente prprio do estado natural. O mnimo que sepode ganhar com a poltica transformar a luta indistinta em combate regulamentado. Uma

    das maneiras de cumprir o papel de proteo consiste precisamente na transformao, dentroda sociedade, da luta indistinta e confusa em combate graas regulamentao dos conflitospor convenes ou leis. Desse modo, o Estado tende a eliminar, na medida do possvel, ocombate, substituindo-o pela competio regrada pelo Direito, fora de toda a violncia. 6

    O Estado toma para si o monoplio da violncia legtima, alando-se no direito de decidirlitgios e chamando possibilidade de aplacar a violncia atravs de um sistema diverso doreligioso, denominado Sistema Judicirio. Este ltimo se diferencia do primeiro porque nose trata de decidir a propsito do bem ou do mal, no se trata de fazer respeitar uma justiaabstrata, se trata de preservar a segurana do grupo afastando a vingana, de preferncia

    com uma reconciliao baseada na composio ou em qualquer outra que resulte possvel,mediante um encontro predisposto de modo tal que a violncia no volte a ocorrer. Tal encontrose desenvolver em campo fechado, de forma regulada entre adversrios bem determinados.7

    Nestes termos, o Estado-Juiz objetiva a submisso da vida regulamentao e ao Direito.Busca no procedimento judicial a soluo de rivalidades e de divergncias. Contudo, asdvidas nascem da incerteza de que a instaurao do procedimento judicial seja sempredesejvel/aconselhvel, temendo que ele possa determinar um conservadorismo social aoimpor regras de flexibilidade e plasticidade rgidas que no atendam complexidade socialna qual esto inseridas.8

    No momento em que o Sistema Judicirio passa a reinar absoluto como nico meio de

    impor regras de tratamento de conflitos, ele racionaliza a vingana, a subdivide e limita comomelhor lhe parece e a manipula sem perigo, buscando uma tcnica eficaz de preveno daviolncia. Essa racionalizao da vingana se apia sobre a independncia da autoridadejudiciria que recebeu tal encargo, atribuio que ningum discute. Assim, o Judicirio nodepende de ningum em particular, um servio de todos e todos se inclinam diante de suasdecises.9

    Somente ao Poder Judicirio se atribui o direito de punir a violncia porque possui sobreela um monoplio absoluto. Graas a esse monoplio, consegue sufocar a vingana (assimcomo exasper-la, estend-la, multiplic-la). Nestes termos, o sistema sacrifical e o Judicirio

    possuem a mesma funo, porm o segundo se mostra mais eficaz, desde que associado aum poder poltico forte.Todavia, ao delegar a tarefa de tratamento dos conflitos ao Poder Judicirio num perfeito

    modelo hobbesiano de transferncia de direitos e de prerrogativas o cidado ganha, de umlado, a tranqilidade de deter a vingana e a violncia privada/ilegtima para se submeter vingana e violncia legtima/estatal, mas perde, por outro, a possibilidade de tratar seusconflitos de modo mais autnomo e no violento, atravs de outras estratgias.10

    Por conseguinte, a sociedade atual permanece inerte enquanto suas contendas sodecididas pelo juiz. Da mesma forma, como o cidado de outrora que esperava pelo Leviatpara que resolvesse os litgios e trouxesse segurana ao encerrar a luta de todos contra

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    todos, atualmente vemos o tratamento e a regulao dos litgios serem transferidos aoJudicirio, esquecidos de que o conflito um mecanismo complexo que deriva da

    multiplicidade dos fatores, que nem sempre esto definidos na sua regulamentao; portanto,no s normatividade e deciso.11

    Unidos pelo conflito, os litigantes esperam por um terceiro que o solucione. Espera-sepelo Judicirio para que diga quem tem mais direitos, mais razo ou quem o vencedor dacontenda. Trata-se de uma transferncia de prerrogativas que, ao criar muros normativos,engessa a soluo da lide em prol da segurana, ignorando que a reinveno cotidiana e aabertura de novos caminhos so inerentes a um tratamento democrtico.12

    Assim, observa-se uma oferta monopolista de justia incorporada aosistema da jurisdio,delegado a receber e a regular uma conflitualidade crescente. Atualmente, chamamos essa

    conflitualidade crescente de exploso da litigiosidade, que tem muitas causas, mas quenunca foi analisada de forma mais profunda. notrio como a estrutura jurdico-poltica foisempre muito atenta aos remdios e quase nunca s causas, deixando de lado anlisesmais profundas sobre a litigiosidade crescente, que constantemente traduzida nalinguagem jurdica e que se dirige jurisdio sob a forma irrefrevel de procedimentosjudicirios.

    A exploso de litigiosidade se d quanto quantidade e qualidade das lides que batems portas do Poder Judicirio, especialmente observando a existncia de uma cultura doconflito. Em face de tal fato, a direo da poltica do Direito deve ser no sentido de umajurisdio mnima, contra uma jurisdio ineficaz.13

    Pormenorizando, possvel afirmar que a vida social gera as suas prprias relaes. Seem qualquer uma destas relaes sociais nascer um conflito e uma deciso sobre o mesmofor demandada ao Judicirio, este poder dar uma sentena sobre aquele tipo especial derelao social. Por conseguinte, no pelo fato do Judicirio decidir a respeito de divrcio ouseparao, de uma ao de despejo ou homologar um dissdio coletivo entre patres eempregados, que deixaro de existir vnculos familiares ou trabalhistas, convergentes oudivergentes.14

    Conseqentemente, o Judicirio funcionaliza (no sentido de que institucionaliza) ouprocessa conflitos sociais, mas suas decises no eliminam relaes sociais. Na verdade,

    ele decide sobre aquela relao social especificamente demandada, o que no impede,todavia, que outras tantas, com novas caractersticas, se manifestem ou que continue existindoa prpria relao social enquanto relao social. O ato do Poder Judicirio interrompe apenasaquela relao conflitiva, mas no impede o desenvolvimento de outras tantas.15

    No se pode perder de vista que os modos por meio dos quais um sistema social regulaos conflitos que nascem no interior da sociedade so, de fato, muito diversos, mudam notempo e no espao, no so nada eternos.16

    A lei substitui a violncia privada ou sacrifical, determinando posies e tornando-seexigvel e coercvel. A ordem e a segurana dependem, assim, no s da validade da soluoadotada como do consenso entre as partes e, principalmente, da eficcia do seu aparato de

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    coero. Contudo, os contendentes podem no estar satisfeitos e as razes do conflito noestarem extirpadas, mas a paz do Direito funcionar repousando sobre a sua capacidade

    impositiva. Como certos remdios, o Direito parece capaz de tratar, sobretudo, os sintomase no as causas de um mal-estar.17

    claro que a regulao dos conflitos dentro de uma sociedade se transforma no tempoe no espao, criando os remdios a serem aplicados, sendo que a ineficcia em sua aplicaoproduz a noo equivocada de que a causa a falta de recursos estruturais, materiais epessoais, dentre outros. Porm, o remdio age apenas sobre a ferida, no atacando a causa.

    justamente nesse contexto que se faz necessrio reportar ao problema do vnculosocial exposto em Freud18, definido pelo jogo das competies e rivalidades geradoras doconflito. Esses podem ser inter-individuais e/ou sociais (aqui encontramos os litgios tnicos,

    culturais, econmicos, blicos, dentre outros), e, ao mesmo tempo em que rompem, reafirmamo vnculo social, merecendo regulao e deciso.Na busca de tratamento da grande maioria dos conflitos, ocorre a demanda processual,

    na qual os dois lados da batalha podero vencer ou perder, mas no podem e/ou no queremdesistir do confronto. por isso que quem freqenta as salas dos tribunais reconhecer,muitas vezes, no rosto neutro das partes, verdadeiros e prprios duelantes que esto ali ademonstrar com a sua presena e com seu comportamento processual - do qual muitasvezes tambm outros so cmplices - que a verdadeira razo do conflito judicirio no umdireito controverso, mas simplesmente a contraparte, como se diz na linguagem doprocesso.

    Cada motivo suprfluo: as causas em matria de separao e divrcio, que noterminam nunca, mesmo quando so concludas, so seu emblema mais evidente, tanto verdade que, melancolicamente, a teoria sugere que somos adultos quando litigamos bem.19

    Todavia, tratar o conflito judicialmente significa recorrer ao magistrado e atribuir a ele opoder de dizer quem ganha e quem perde a demanda.

    Paralelamente s formas jurisdicionais tradicionais, existem possibilidades nojurisdicionais de tratamento de disputas, nas quais se atribui legalidade voz de umautocompositor/mediador, que auxilia os conflitantes a compor o litgio. No se quer aquinegar o valor do Poder Judicirio, o que se pretende discutir uma outra maneira de

    tratamento dos conflitos, convencionada entre as partes litigantes.Esse novo modelo de composio dos conflitos possui base na criao de regras decompartilhamento e de convivncia mtua que vo alm dos litgios judiciais, determinandoformas de incluso e de proteo dos direitos fundamentais. Existem outros mecanismos detratamento das demandas, podendo-se citar a conciliao, a arbitragem e a mediao. Tratam-se de elementos que possuem como ponto comum o fato de serem diferentes, porm noestranhos ao Judicirio, operando na busca de uma relao de cooperao pactuada econvencionada, definindo uma justia de proximidade e, sobretudo, uma filosofia de justiado tipo restaurativo que envolve modelos de composio e gesto do conflito menos

    autoritariamente decisrios.20

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    por isso que precisam ser pensados outros mecanismos de tratamento dos litgios -tais como a autocomposio, enquanto locus democrtico que trabalhe com a concepo de

    auto-regulamentao dos conflitos por parte do sistema social - redefinindo, de forma radical,o modelo de terceiro e a forma de deciso, reconhecendo, ainda que de forma indireta, opapel no exclusivo da jurisdio. Para que tal possibilidade ganhe foras preciso discutira possibilidade de utilizao da teoria dos jogos de John Nash como estratgia democrticae autnoma de gesto e deciso de conflitos.

    3. A TEORIA DOS JOGOS E SUA UTILIZAO NAS PRTICASAUTOCOMPOSITIVAS: POSSIBILIDADE DE GANHO MTUO

    A teoria dos jogos consiste fundamentalmente na definio de um modelo decomportamento racional frente a um conflito de interesses. Seu estudo oferece subsdiostericos que demonstram como a anlise matemtico-formal pode facilitar a tomada dedecises em grupo. Nessa linha, ela traz subsdios para o entendimento de mtodos degesto e resoluo de conflitos.

    Trata-se de um dos ramos da matemtica cujo desenvolvimento deu-se no Sculo XX,em especial aps a Primeira Guerra Mundial. Ela estuda o conflito originado de pessoas,grupos ou naes. No entanto, o estudo dos jogos a partir de uma concepo matemticaremonta pelo menos ao sculo XVII, com o trabalho de dois franceses, Blaise Pascal e

    Pierre de Fermat.Em 1921, com quatro trabalhos de mile Borel, matemtico francs, os jogos de mesa

    passaram novamente a ser objeto de estudo da matemtica. Borel partiu das observaesfeitas a partir do pquer, tendo dado especial ateno ao problema do blefe, bem como dasinferncias que um jogador deve fazer sobre as possibilidades de jogada do seu adversrio.Essa idia imanente e central teoria dos jogos: um jogador baseia suas aes nopensamento que ele tem da jogada do seu adversrio que, por sua vez, baseia-se nas suasidias das possibilidades de jogo do oponente. Essa idia comumente formulada da seguinteforma: eu penso que voc pensa que eu penso que voc pensa que eu penso.... 21

    A teoria dos jogos consiste, assim, em uma argumentaoad infinitum, que s viria a serparcialmente solucionada por John F. Nash, na dcada de 1950, por meio do conceito deEquilibrium. Apesar de ter sido o primeiro matemtico a vislumbrar o sistema sobre o qual seconsolidou a teoria dos jogos, Borel no considerado o pai da teoria, por no ter desenvolvidocom profundidade suas idias.22

    A histria deu a John von Neumann o ttulo de pai da teoria dos jogos, por ter ele sido oprimeiro a sistematizar e a formular com profundidade os principais arcabouos tericossobre os quais a teoria foi construda. Embora tenha publicado trabalhos desde 1928 sobrea teoria, apenas em 1944 sua obra maior, Theory of Games and Economic Behavior, escritaem conjunto com Oskar Morgenstern, foi publicada. Neste livro, demonstrou-se que problemas

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    tpicos do comportamento econmico podem ser analisados como jogos de estratgia. Almdisso, nesta obra tambm foram formulados diversos conceitos bsicos da teoria dos jogos

    e para a prpria economia, tais como a noo de utilidade, de jogos de soma zero e de somano-zero e jogos de duas ou mais pessoas, alm do conceito de minimax.23

    Outro grande nome da teoria dos jogos, depois de John von Neumann, o norte- americanoJohn Forbes Nash, trouxe novos conceitos para a teoria dos jogos e revolucionou a economiacom o seu conceito deEquilibrium. Nash, aluno de Neumann em Princeton, rompeu com umparadigma econmico que era pressuposto bsico da teoria de Neumann e da prpriaeconomia, desde Adam Smith.24

    No obstante John von Neumann ter considerado o papel da comunicao entre osenvolvidos (para produzir coalizes e garantir que cada jogo possa ser transformado em

    jogos de duas pessoas), sua teoria totalmente no-cooperativa. John Nash, a seu turno,partiu de outro pressuposto. Enquanto Neumann partia da idia de competio, John Nashintroduziu o elemento cooperativo na teoria dos jogos. A idia de cooperao no totalmenteincompatvel com o pensamento de ganho individual, j que, para Nash, a cooperao traza noo de que possvel maximizar ganhos individuais cooperando com o adversrio. No uma idia ingnua, pois, ao invs de introduzir somente o elemento cooperativo, traz doisngulos sob os quais o jogador deve pensar ao formular sua estratgia: o individual e ocoletivo. Se todos fizerem o melhor para si e para os outros, todos ganham.25

    Entretanto, apesar de ter surgido com objetivos eminentemente militares, a teoria dosjogos se aplica a muitas outras reas do conhecimento humano, dentre elas a biologia,

    gentica, a fsica e a cincias sociais. Em linhas gerais ela considerada uma anlisematemtica de qualquer situao que envolva um conflito de interesses com a finalidade deencontrar as melhores opes que associadas a determinadas condies devem conduzirao objetivo desejado por um jogador racional.

    Por isso, estudar a teoria dos jogos traz algumas vantagens: a) ela ajuda a entenderteoricamente o processo de deciso de agentes que interagem entre si, a partir dacompreenso da lgica da situao em que esto envolvidos; b) a teoria dos jogos ajuda adesenvolver a capacidade de raciocinar estrategicamente, explorando as possibilidades deinterao dos agentes, possibilidades estas que nem sempre correspondem intuio.26

    Neste sentido ela se fundamenta em alguns pressupostos axiomticos que podem serassim delineados:a) o conceito de utilidade: este conceito reflete o objetivo de cada jogador, qual seja, o

    de garantir a maior satisfao possvel com o jogo. Utilidade sensao imediata depreferncia, por parte de um jogador, em relao aos resultados.27

    b) a presuno de racionalidade: Conforme John Von Neumann, o individuo que tentaobter este respectivo mximo (de utilidade) tambm o que age racionalmente .28

    Assim, o jogador racional aquele que age para atingir a maior utilidade possvel.c)jogos de estratgia pura e de estratgia mista: estratgia, na teoria dos jogos, deve

    ser entendida como o conjunto de opes de ao que os jogadores tm para chegar

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    a todos os resultados possveis. Jogos de estratgia pura so aqueles nos quais osjogadores no baseiam suas estratgias em aleatoriedade. Em uma dada negociao,

    v.g., uma estratgia pura seria a de no cooperar nunca com a outra parte. J asestratgias mistas so aquelas nas quais os jogadores escolhem suas aes com ouso da aleatoriedade, porque conhecem as probabilidades.29

    d)jogos de estratgia dominante e de estratgia dominada: Diz-se que uma estratgia dominante quando a melhor escolha para um jogador, quando se leva em contatodas as escolhas possveis do outro jogador. Uma estratgia dominada, por sua vez, a que nunca melhor que outra disponvel. Quando uma estratgia sempre piorque outra, diz-se que estritamente dominada.30

    e)jogos de forma extensiva e de forma normal: Jogos de forma normal so consistidos

    por trs elementos: 1) os jogadores; 2) as estratgias disponveis aos jogadores; 3) autilidade que cada jogador recebe para as estratgias dadas. De outro lado, jogos deforma extensiva so constitudos por cinco elementos: 1) os jogadores; 2) as estratgiasdisponveis para cada jogador; 3) as informaes sobre as jogadas anteriores; 4) omomento em que cada jogador pode agir; e 5) a utilidade de cada jogada.31

    f)jogos de soma zero e de soma no-zero: Jogos de soma zero so aqueles em que hdois jogadores cujos interesses so totalmente opostos.32 Estes jogos so aquelesnos quais o ganho de um jogador significa sempre a derrota do outro: no podehaver, por exemplo, em um jogo de xadrez, a vitria por parte dos dois lados. Umacaracterstica importante destes jogos que eles so, necessariamente, jogos no-

    cooperativos: um jogador no agregar valor algum de utilidade se cooperar com ooutro.

    Jogos de soma no-zero, por sua vez, representam a maior parte dos conflitos reais,motivo pelo qual o estudo dos jogos de soma zero teriam pouca importncia para as cinciassociais. Nestes jogos, os participantes tm interesses comuns e opostos. Um exemplo dejogo de soma no-zero a compra e venda: o comprador e o vendedor tm interessesopostos o comprador quer um preo baixo e o vendedor, um preo alto e um interessecomum: ambos querem fazer o negcio. Uma caracterstica destes jogos a possibilidade

    de comunicao e cooperao: s vezes, importante para um dos jogadores que o outroseja bem informado.33

    g)jogos de informao perfeita, de informao imperfeita e a assimetria de informao:jogos de informao perfeita so aqueles nos quais todos os jogadores conhecem osacontecimentos do jogo at ento, tais como ganhos, perdas e as jogadas feitas portodos. H tambm os jogos de informao imperfeita nos, quais a informao a respeitodo jogo at o momento em que se encontra no completa. Nestes jogos um dosparticipantes pode ter informaes que os outros jogadores no possuem: neste caso,diz-se que h assimetria de informao. Em razo desta discrepncia, um dos

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    jogadores pode agregar valor informao que o outro jogador no tem, seja blefandoou mesmo no comunicando ao outro jogador esta informao.34

    h) o princpio Minimax e o Equilibrium de Nash: os jogos de soma zero com informaoperfeita tm sempre um ponto minimax. Esse o ponto no qual um jogador nuncaganhar menos que um valor X, isto , garante que seu mnimo mximo seja aquelevalor, e o outro jogador garante que o seu ganho nunca ser menor que um valor Y,ou seja, seu mximo mnimo. Um par de estratgias (minimax; maximin) garante que,enquanto um dos jogadores mantiver sua estratgiaminimax, no importa o que faao outro jogador, o resultado do jogo ser o do equilbrio.35

    Diz-se que uma combinao de estratgias constitui um equilbrio de Nash quandocadaestratgia

    a melhor resposta possvel s estratgias dos demais jogadores e isso verdade para todos osjogadores.36

    Exemplo: duas irms esto brigando por causa da diviso de um pedao de bolo, por nosaberem como dividi-lo de forma eqitativa. A me das duas, ao tentar resolver o conflito, diz a umadelas: filha, voc cortar o bolo e a sua irm escolher o pedao. Com esta orientao, a meninapensa no seguinte dilema: se eu cortar um pedao grande, a minha irm o escolher e a mimrestar o menor pedao. Assim, ela tem um incentivo real para cortar o bolo o mais prximo possvelda metade, ou seja, buscar assegurar o ponto maximin (o maior mnimo possvel, j que a irmdecerto escolher o maior pedao), enquanto irm restar ominimax (o mnimo mximo, ou seja,a metade do bolo mais uma pequena porcentagem, j que muito difcil cortar exatamente na

    metade um pedao de bolo e deve-se considerar que ela dever escolher o maior pedao, mesmoque a quantia maior que a do outro pedao seja mnima). Note-se que o equilbriominimaxs ocorreem jogos de duas pessoas com soma zero, nos quais a colaborao deveras impossvel.37

    De outro lado, Nash parte de pressuposto contrrio ao de Neumann: possvel agregar valor aoresultado do jogo por meio da cooperao. A cooperao, noEquilibrium proposto por Nash, no bilateral, necessariamente. O princpio do equilbrio pode ser assim exposto:

    a combinao de estratgias que os jogadores preferencialmentedevem escolher aquela na qual nenhum jogador faria melhor

    escolhendo uma alternativa diferente dada a estratgia que o outroescolhe. A estratgia de cada jogador deve ser a melhor respostas estratgias dos outros.38

    Em outras palavras, o equilbrio um par de estratgias em que cada uma a melhorresposta outra: o ponto em que, dadas as estratgias escolhidas, nenhum dos jogadoresse arrepende, ou seja, no teria incentivo para mudar de estratgia, caso jogasse novamente.

    O princpio do equilbrio proposto por Nash , dentro dos pressupostos anteriormentevistos, aquele de maior aplicao na composio e resoluo de conflitos. Utilizando a teoriade Nash, observa-se que o

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    processo judicial contencioso um jogo no cooperativo. De fato,at pelo prprio fato de ser a conciliao uma das causas de extino

    do processo com julgamento de mrito, se as partes no conciliarammuito provavelmente no colaboraro com a parte ex adversa nodecorrer do processo judicial.39

    O processo judicial tambm pode ser descrito como um jogo de soma zero. A no-cooperao, uma das suas principais caracterstica porque a cooperao implicaria a vitriado adversrio.

    Contudo, mesmo tratando-se de um jogo de soma zero, o processo judicial no tem,necessariamente, um pontominimax, em que ambos os adversrios conseguem assegurar

    uma utilidade mnima. Isto se d porque, embora sendo considerado um jogo, no processojudicial quem decide um terceiro, o juiz, e no as partes. Alm disso, o juiz no poderdecidir a lide de modo que os interesses das partes sejam ressalvados porque julgar deacordo com o direito e no com interesses. A deciso fundamentada em regras normativasno permite a composio da lide em termos de interesses, mas to somente em termos dedireito e, sendo assim, para cada ponto controvertido, uma das duas partes necessariamenteser vitoriosa e a outra, derrotada (ou ambas parcialmente derrotadas no caso de procednciaparcial).40

    A impossibilidade de que se encontre, no processo judicial, um ponto deequilibrium deNash ou mesmo um ponto de equilbriominimax fator que proporciona grandes insatisfaes

    da sociedade civil em relao ao Poder Judicirio. Assim, no de se surpreender o fato deque, no mnimo, uma das partes a derrotada saia decepcionada.

    A diferenciao entre o procedimento judicial contencioso e as tcnicas deautocomposio, tambm chamadas cooperativas - nas quais pode-se aplica a Teoria deNash ocorrem porque o primeiro sempre trabalha com a lgica de ganhador/perdedor,enquanto que no segundo caso o que se pretende restabelecer a comunicao entre osconflitantes, trabalhando com a lgica ganhador/ganhador.41

    Alm de prtica no cooperativa, o processo judicial possui como caracterstica ainformao perfeita uma vez que se desenvolve a sombra de princpios tais como a publicidade

    e o livre convencimento motivado dos juzes. Assim, as partes tm conhecimento pleno dasregras do jogo, o que gera certeza e seguranas jurdicas.A falta de certeza e de segurana jurdica dos procedimentos de autocomposio uma

    das suas principais crticas.42A argumentao possui dois pontos principais: 1) a certeza e asegurana jurdica vm acompanhadas da possibilidade de um conhecimento certo das normaspor parte dos destinatrios, estes podem manejar a informao sobre o que proibido,determinado ou permitido. Isso permite organizar a sua conduta programando as expectativasde sua atuao jurdica futura segundo modelos razoveis de previsibilidade. 2) O segundocritrio diz respeito ao papel atribudo certeza e segurana jurdicas que se encontra vinculado realizao de certos bens dos seus destinatrios. Em resumo, a certeza como percepo de

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    previsibilidade das aes dos outros permite organizar a conduta presente dos destinatrios,assim como estabelecer projetos de vida futura sob um plano de liberdade e justia.43

    Nesse mesmo contexto, o tratamento de conflitos baseado na certeza busca soluesobjetivas e no posicionamentos que expressem preferncias, crenas ou desejos das partesenvolvidas. Em resumo, os mtodos jurisdicionais so ligados realidade inevitvel dasoluo. O processo (aqui classificado como um jogo de forma normal) termina com umasoluo para o conflito, na qual o juiz diz a ltima palavra. Na autocomposio no assim,o princpio da autonomia no vem substitudo pela autoridade de um terceiro. Ao contrrio,as partes buscam o tratamento adequado de seu conflito. Nestes termos, ela corresponde aum jogo sem rbitro e sem pontuao: so sempre os jogadores que controlam a partida.44

    De fato, o que a autocomposio (jogo cooperativo, de soma no-zero, imperfeito e de

    forma extensiva) prope um modelo de justia que foge da determinao rigorosa dasregras jurdicas, abrindo-se participao e liberdade de deciso entre as partes, comunicao de necessidades e de sentimentos, reparao do mal mais que a punio dequem o praticou.

    Contudo, esse modelo diferenciado que prope uma outra forma de tratar os conflitos,buscando no s uma soluo para o Poder Judicirio (cujo modelo de jurisdio encontra-se esgotado), mas tambm a autonomia das partes, possui, na pessoa do autocompositor oponto de equilbrio capaz de levar as partes a encontrar um acordo mutuamente satisfatriodo qual ambas no se arrependero.

    Porm, a teoria dos jogos enfrenta algumas crticas, ainda que conte com modelos

    capazes de lidar com situaes que no so necessariamente adversariais e que buscamidentificar solues de maximizao dos ganhos para todas as partes envolvidas, tal como aidia doequilibrium de Nash. A principal crtica salienta que esses modelos de maximizaode ganhos para o conjunto dos interessados no ultrapassam os limites de um pensamentoestratgico-indiferente aos interesses do outro, pois reduzem todos os interesses envolvidosa interesses individuais.

    A sugesto que se v alm da teoria dos jogos e sua viso do individual para alcanarum agir comprometimento pelo fato de que o outro percebido como uma pessoa cujosdesejos no nos so indiferentes. Porm, no existe apenas o que poderamos chamar de

    um comprometimento positivo (voltado satisfao da parte), mas tambm h umcomprometimento que poderamos qualificar como negativo, pois ele voltado para dificultara satisfao, ou mesmo causar sofrimento, ao outro. De um modo ou de outro, ocomprometimento insere no conflito uma dimenso afetiva que deixada de lado por ummodelo descritivo meramente estratgico, pois a felicidade ou o sofrimento do outro no indiferente para as partes em conflito. 45

    As relaes humanas, contudo, no podem ser divididas binariamente emcomportamentos indiferentes e comprometidos, pois raramente algum abnegado osuficiente para no pensar no seu bem-estar prprio nem individualista ao ponto de no terqualquer compromisso com os sentimentos das outras pessoas. H vrios graus de

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    comprometimento, ou seja, as pessoas esto dispostas a abrir mo de alguns de seusinteresses pessoais perante determinados interesses das partes, mas apenas at um certo

    nvel, que varia de acordo com as partes em conflito, os interesses contrapostos, os valoresticos e ideolgicos envolvidos, etc.46

    E, para tornar ainda mais complexa a anlise, devemos admitir que h casos em quesatisfazer o interesse do outro pode ser relevante de um ponto de vista estratgico (pense-se, por exemplo, em uma sociedade comercial que pretende garantir a fidelidade e a satisfaode seus clientes), o que geraria um agir estratgico que teria caractersticas exteriores muitosemelhantes (talvez indistinguveis) aos de um agir comprometido.47

    Por conseguinte, a melhor opo oferecer uma outra possibilidade de tratamento aosconflitantes que mediante a participao de uma terceira pessoa o autocompositor pode,

    utilizando posturas no judicatrias, ultrapassar a barreira da cultura da guerra para conquistaro espao da aucomposio. Tal espao, gerador da negociao - que fomenta e restabelecea comunicao - oferece autonomia aos conflitantes para compor o seu conflito, sem esquecera figura e a presena do outro na sua alteridade.

    4. CONSIDERAES FINAIS

    Por conseguinte, a tarefa do jurista est em debruar-se sobre a realidade conflituosada sociedade e encontrar frmulas institucionais adequadas para viabilizar o tratamento do

    conflito, sem a pretenso de resolv-lo (o que se sabe, dificilmente acontece), e sim de trat-lo, preocupado, basicamente, em oferecer meios viveis para tanto.

    Esses mecanismos consensuais de tratamento de conflitos precisam ter como escopo(alm da celeridade, da proximidade entre o cidado e a justia, da informalidade e dadiminuio de custos), principalmente, o rompimento da barreira de carter tridico dajurisdio tradicional (partes mediadas por um terceiro que impe a deciso) para assumiruma postura dicotmica, na qual a resposta demanda seja construda pelos prprioslitigantes.

    Para tanto que se props a construo de um modelo de tratamento de conflitos capaz

    de lidar com a atual complexidade, que possibilite sociedade a reapropriao do conflitono para neg-lo, uma vez que inerente aos homens, mas para responder a ele por meiode construes autnomas e consensuadas.

    Tais construes dizem respeito teoria dos jogos enquanto estratgia de ganho mximopara ambos os conflitantes substituindo o ganha X perde do processo judicial pelo ganha Xganha das decises consensuadas entre as partes.

    A convivncia poltica pacfica e regrada se funda no reconhecimento da necessidadeftica do consentimento social. Com o tratamento dos conflitos ocorre o mesmo. As prticasde tratamento dos conflitos aqui propostas dependem, essencialmente, da adeso social. Otratamento de um conflito somente ser considerado democrtico se os arranjos concretos

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    que lhe do forma, alm de preencherem os requisitos objetivos do modelo cidado, foremaceitos pelos conflitantes enquanto tal.

    Em resumo, a proposta a construo de uma estratgia de tratamento de conflitos queparta de uma matriz do Direito relacionada com sujeitos histricos e no apenas com sujeitosprocessuais; que possibilite ultrapassar a barreira de carter tridico (juiz, autor e ru),permitindo que o conflito seja visto como um evento fisiolgico tratvel, mas nem sempresolucionvel; que possibilite dar um salto quantitativo no tratamento da conflitualidade atualmediante a instaurao de uma nova cultura que v alm da dicotomia positivista ganhador/perdedor para revisitar a possibilidade de ganho para ambas as partes, comungando de umestar com o outro e no contra o outro, fazendo do espao comum no o momento dojuiz decisor, mas das partes mutuamente consensuadas, autonomizadas e

    responsabilizadas.

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    NOTAS

    1 Doutora em Direito pelo Programa de Ps-Graduao stricto sensu da Universidade do Vale do Riodos Sinos UNISINOS, mestre em Desenvolvimento Regional, com concentrao na rea PolticoInstitucional da Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC, docente dos cursos de Graduao e PsGraduao lato e stricto sensu da ltima instituio, advogada.

    2Mestre em Direito pelo Programa de Ps-Graduao da Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC,docente dos cursos de Graduao e Ps-Graduao lato sensu da mesma Universidade, advogado.

    3 BOBBIO, Norberto; PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de poltica. Traduo de Carmem C. Varriale,et al. 12. ed. Braslia: Universidade de Braslia, 2004. p. 228. Aqui, utilizar-se- a expresso tratamentoem vez de resoluo de conflitos, justamente por entender que os conflitos sociais no sosolucionados pelo Judicirio no sentido de resolv-los, suprimi-los, elucid-los ou esclarec-los. Issoporque a supresso dos conflitos relativamente rara. Assim como relativamente rara a plenaresoluo dos conflitos, isto , a eliminao das causas, das tenses, dos contrastes que os originaram(quase por definio, um conflito social no pode ser resolvido). Nesse sentido, ver tambm BOLZANDE MORAIS, Jos Luis; SPENGLER, Fabiana Marion.Mediao e arbitragem: alternativas jurisdio!2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. Por conseguinte, a expresso tratamento torna-semais adequada enquanto ato ou efeito de tratar ou medida teraputica de discutir o conflito buscandouma resposta satisfativa.

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    4 CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Claudio. Glosario sobre la teora social de NiklasLuhmann. Traduccin de Miguel Romero Prez, Carlos Villalobos. Mxico: Iberoamericana, 1996. p.

    43. Importante ressaltar que a expresso complexidade vem aqui utilizada como maneira de qualificara sociedade atual destacando os diversos elementos diferenciados que a compem e que lhe conferemuma forma intrincada e multifacetada. Assim, no se pretende trabalhar com categorias da Teoria dosSistemas, dentre as quais est a complexidade, sendo l entendida como aquilo que indica elhecho de que no todos los elementos de dicha unidad pueden estar simultneamente en relacin conelles mismos. As, la complejidad significa que para actualizar las relaciones entre los elementos esnecesaria una seleccin....

    5 HOBBES, Thomas. Leviat ou a matria, forma e poder de uma repblica eclesistica e civil. SoPaulo: Martins Fontes, 2003, p. 148.

    6 FREUND, Julien. Sociologa del conflicto. Traduccin de Juan Guerrero Roiz de la Parra. Madrid:Ministerio de Defensa, Secretara General Tcnica. D.L., 1995b, p. 69-70

    7 GIRARD, Ren. La violenza e il sacro. Traduzione di Ottavio Fatica e Eva Czerkl. Milano: Adelphi,2005, p. 39.

    8 Ibidem, p. 75-76.9 Ibidem, p. 40-41.10 SPENGLER, Fabiana Marion. O Estado-jurisdio em crise e a instituio do consenso: por uma

    outra cultura no tratamento de conflitos. 2007. 476 f. Tese (Programa de Ps-Graduao em Direitoda Universidade do vale dos Sinos, So Leopoldo, 2007), p. 289.

    11 RESTA, Eligio. Il diritto fraterno. Roma-Bari: Laterza, 2005, p. 74-75.12SPENGLER, op. cit., p. 289-290.

    13Ibidem, p. 290-291.14COSI, Giovanni. Interessi, diritti, potere. Gestione dei conflitti e mediazione. In:Ars Interpretandi. n. 9.

    Padova: CEDAM, 2004, p. 26.15BASTOS, Marco Aurlio Wander. Conflitos Sociais e Limites do Poder Judicirio. 2. ed. rev. e atual.

    Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001, p. 104.16RESTA, op. cit., p. 70.17COSI, op. cit., p. 25.18 FREUD, Sigmund. O mal estar da civilizao. Traduo de Jos Octvio de Aguiar Breu. Rio de

    Janeiro: Imago, 1997.19RESTA, op. cit., p. 78-79.20Ibidem, p. 82-83.21 NASAR, Sylvia. Uma mente Brilhante. Traduo de Srgio Moraes Rego. Rio de Janeiro: Record,

    2002, p. 121 e ALMEIDA, Flvio Portela Lopes de. A teoria dos jogos: uma fundamentao tericados mtodos de resoluo de disputas. In: AZEVEDO, Andr Gomma de (Org.)Estudos em Arbitragem,Mediao e Negociao. v. 2. Braslia: Ed. Grupos de Pesquisa, 2003, p. 177.

    22ALMEIDA, op. cit., 177.23Ibidem, p. 177.24NASAR, op. cit., p. 64.25ALMEIDA, op. cit., p. 178.

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    26FIANI, Ronaldo. Teoria dos Jogos. Com aplicaes em economia, administrao e cincias sociais.2. ed. Rio de Janeiro. Elseiver, 2006, p. 09-10.

    27NEUMANN, John von; MOGENSTEIN, Oskar. Theory of games and economic behavior. Princeton,NJ: Princeton University Press, 1953, p. 15-16.28Ibidem, p. 09.29ALMEIDA, op. cit., p. 184.30BAIRD, Douglas; GERTNER, Robert; PICKER, Randal.Game Theory and the Law. Cambridge (MA):

    Harvard University Press, 1994, p. 1131ALMEIDA, op. cit., p. 185.32NASAR, op. cit., p. 106.33ALMEIDA, op. cit., p. 186.34

    Ibidem, p. 186.35Ibidem, p. 187.36FIANI, op. cit., p. 93.37ALMEIDA, op. cit., p. 188.38BAIRD; GERTNER; PICKER, op. cit., p. 21.39ALMEIDA, op. cit., p. 188.40Ibidem, p. 190.41SPENGLER, op. cit., p. 338-339.42TARUFFO, Michele. Aspetti della giustizia civile: frammentazione e privatizzazione. In:Anurio de la

    Faculdad de Derecho de la Universidad Autnoma de Madrid. 3, 1999, p. 73-74.43SOLER, Ral Cavo. I Giochi senza arbitro n segnapunti. La mancanza di certezza nella risoluzione

    dei conflitti. Traduzione di Caterina Briguglia. In:Ars Interpretande. n. 9. Padova: CEDAM, 2004.44Ibidem45 AZEVEDO, Andr Gomma de (Org.). Estudos em Arbitragem, negociao e mediao. v. 3.

    Braslia:Grupos de Pesquisa, 2004, p. 167-168.46Ibidem, p. 167-168.47Ibidem, p. 167-168.