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TEORIA LITERÁRIA IIWilma Martins de Mendonça

Expedito Ferraz Júnior

Caríssimo (a) Aluno (a), Parabéns!

Você está ingressando na terceira etapa do Curso de Licenciatura em Letras

Virtual, tendo vencido as etapas anteriores, em sua trajetória de Aprendente das letras

literárias. Agora, estamos iniciando a componente curricular denominada de Teoria

Literária II, disciplina que se volta para os estudos da literatura, especialmente de

suas formas narrativas, isto é, das manifestações literárias formalizadas em prosa.

Objetivando a exposição e a discussão do aparato teórico que tradicionalmente

norteia a leitura de obras literárias, essa componente curricular revisitará, como

estratégia de reforço ao já apreendido e como chave privilegiada de abertura ao que se

está por aprender, alguns conceitos e formulações básicas da Teoria Literária. Nessa

perspectiva, de revisão e de inserção de novos conhecimentos acerca do literário,

a disciplina Teoria Literária II se estrutura em três unidades, conforme dispomos a

seguir.

Na primeira unidade, a disciplina focalizará, essencialmente, os conceitos

básicos da Teoria Literária, o seu objeto de estudo, atentando para a diversidade e a

pluralidade que caracterizam os estudos literários, em nossa contemporaneidade. Em

face da universalidade desses estudos, nossa disciplina trilhará um caminho que vai do

geral (perspectivas européias) ao particular (perspectivas brasileiras). Nessa trajetória,

essa unidade se debruçará sobre o processo de aclimatação da Teoria Literária no

Brasil e de sua transformação em disciplina acadêmica em nosso país. A segunda

unidade se constituirá dos estudos sobre a narrativa, seus modos de realização ou

gêneros, como também de seus elementos constitutivos. A terceira unidade consistirá,

essencialmente, da leitura e da discussão orientada do texto, “O direito à literatura”,

de Antonio Candido. Inspirador desse Curso, esse texto se constitui como leitura-base

para a avaliação de nossa disciplina, pelo seu caráter abrangente, se prestando, assim,

a uma ampla revisão do que foi discutido nas duas primeiras partes. Nesse caminho, o

Curso está assim distribuído:

I. PRIMEIRA UNIDADE: DA TEORIA LITERÁRIA

1. O que vem a ser Teoria Literária

1.1. Teoria Literária ou Teorias literárias?

1.2. A Teoria Literária no Brasil

TEORIA LITERÁRIA IIWilma Martins de Mendonça

Expedito Ferraz Júnior

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1.3. A Teoria Literária como disciplina do Curso de Letras

II. SEGUNDA UNIDADE: ESTRUTURA DA NARRATIVA DE FICÇÃO

Identificando os elementos estruturais1.

Alguns modos de narrar e suas implicações teóricas2.

O foco narrativo e suas principais abordagens3.

3.1. A terminologia de Gérard Genette

3.2. Pouillon: a teoria das “visões”

3.3. Norman Friedman: “pontos de vista”

3.4. Wayne Booth: ingredientes para uma polêmica

Características da personagem de ficção4.

4.1. A personagem como “ser fictício”

4.2. Como a realidade entra nessa estória?

4.3. Outros tipos, funções e significados da personagem

A representação do discurso das personagens5. 5.1. Discurso direto, indireto, indireto livre 5.2. Monólogo interior e fluxo de consciência

Tempo e espaço na narrativa de ficção6. 6.1. As funções do espaço 6.2. O tempo e os tempos da narrativa

A questão dos gêneros da narrativa7.

III. TERCEIRAUNIDADE: ESTUDO DO TEXTO: O DIREITO À

LITERATURA Tópico 1: Reflexões prévias a respeito dos direitos humanos em nossa contemporaneidadeTópico 2:. A fruição da literatura como um direito humano inalienável.Tópico 3: O caráter universal e humanizador da literatura

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UNIDADE I DA TEORIA LITERÁRIA

É claro que a essa crítica, destinada a produzir tamanha reforma, devem-se exigir as condições e as virtudes que faltam à crítica dominante.

Machado de Assis

1. Teoria Literária ou Teorias Literárias?

Não obstante constituir-se como a disciplina dedicada sistematicamente ao estudo da literatura, a Teoria Literária não reina sozinha no campo das abordagens literárias. Durante todo o século XX, notadamente em suas últimas décadas, se desenvolveram inúmeras disciplinas dedicadas ao estudo da literatura. Ante a pluralidade e a diversidade que caracterizam os atuais estudos literários, alguns autores, como Richard Freadman e Roberto Acízelo de Souza, têm optado por denominar, indistintamente, essas diversas disciplinas de teorias literárias. Outros, a exemplo de Roberto Schwarz, problematizam essa sucessiva e vertiginosa irrupção de novas modalidades de estudo do literário, questionando a própria eficácia desse emaranhado de disciplinas no entendimento da literatura.

1. 2. A Teoria Literária no Brasil

No mundo ocidental, a reflexão sobre a literatura, longe de se constituir como

novidade, é um exercício que se verifica desde a Antiguidade, como atesta a Poética de Aristóteles (século IV a.C.), o mais antigo tratado sistemático sobre a literatura do qual se tem notícia.

No Brasil, a preocupação teórica com a literatura seria iniciada no século XIX, período em que se desenvolveu o nosso Romantismo. Escola literária favorável à expressão própria das nações recém-fundadas, essa vertente literária se adequava às aspirações dos escritores da época: a de acrescentar, à recente soberania política, a nossa autonomia literária e, assim, afirmar a nossa identidade cultural, em oposição

ao passado colonial. Nesse desejo de autonomia espiritual, os românticos brasileiros adotariam a nova escola literária em voga na Europa e, com ela, iniciariam a discussão, entre nós, acerca do literário. Essas primeiras elaborações descartariam os princípios estabelecidos pelos clássicos, vendo a obra literária como uma criação singular de um indivíduo dotado de genialidade.

Apoiados nessa concepção do literário, os estudos da literatura ora se apresentavam como pesquisa historicista com pretensões científicas, ora se propunham

como apenas como impressões da fruição dos textos literários, numa atitude distante do estudo rigoroso e sistemático da atual Teoria Literária. Essa mesma época, contudo, assistiria ao declínio das concepções que alicerçavam os estudos especulativos e impressionistas da literatura. No final do século XIX, os indícios de superação dessas

UNIDADE IDA TEORIA LITERÁRIA

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análises se apresentam na forma de questionamento do positivismo e do historicismo. Nesse questionamento, as décadas finais do século dezenove criariam as condições para a profunda alteração nos estudos da literatura que se verificaria no século XX. Nesse novo ambiente, o texto literário é pressentido como uma organização específica e particular da linguagem à serviço da arte. Verifica-se, então, um descontentamento com as maneiras usuais de se observar o literário. Desse descontentamento adviria a reivindicação de um novo olhar, imanente ao texto literário, como revela Machado de Assis, em “O ideal do crítico” publicado em de 1865.

Exemplar da exigência de um novo olhar sobre a literatura, o texto de Machado de Assis procede a uma dura crítica aos modelos analíticos dominantes no século XIX, enquanto reivindica, profeticamente, para o futuro, um exame do literário que se deixe conduzir pelo sentido íntimo da obra e pela aplicação das leis poéticas. Nessa formulação, Machado de Assis estende sua grandeza de artífice do literário ao campo da investigação, numa inequívoca demonstração de domínio sobre a arte à qual se dedicava:

E para melhor definir o meu pensamento, eis o que eu exigiria no crítico do futuro. O crítico atualmente aceito não prima pela ciência literária; creio até que uma das condições para desempenhar tão curioso papel, é despreocupar-se de todas as questões que entendem com o domínio da imaginação. Outra, entretanto, deve ser a marcha do crítico [...] o julgamento de uma obra, cumpre-lhe meditar profundamente sobre ela, procurar-lhe o sentido íntimo, aplicar-lhe as leis poéticas, ver enfim até que ponto a imaginação e a verdade conferenciaram para aquela produção. Deste modo as conclusões do crítico servem tanto à obra concluída como à obra embrião. Crítica é análise. (Op. cit., p. 798-801)

1. 3. A Teoria Literária como disciplina do Curso de Letras

De uso recente, o termo “teoria da literatura” foi empregado, inicialmente, pelo russo Alexander Potebnia através de sua obra Notas para uma teoria da literatura, publicada em 1905. Vinte anos depois, Boris Tomachevski, também russo, publicaria a sua Teoria da literatura (1925), reatualizando a expressão inaugurada por Potebnia. Mais tarde, em 1942, o tcheco René Wellek e o estadunidense Austin Warren publicariam, também sob o título de Teoria da Literatura, uma sistematização das diversas correntes de estudos literários desenvolvidos na primeira metade do século XX. A partir dessa publicação, a expressão se expandiria e se consagraria como designação da disciplina que investiga, de forma sistemática, a literatura.

No Brasil, a disciplina Teoria Literária tomaria assento em nossos currículos oito anos após a difusão da obra de Wellek e Warren. Em 1950, o Professor Afrânio Coutinho apresenta à antiga Faculdade de Filosofia do Instituto La-Fayette, do Rio de Janeiro, um projeto de criação dessa disciplina, tornando-a obrigatória à 1ª série de todos os cursos de Letras. Em seu projeto, Afrânio Coutinho definia a Teoria Literária como uma disciplina autônoma, independente da História e da Lingüística, cujo objetivo era o estudo do fenômeno literário em si e de seus problemas fundamentais, e a metodologia da pesquisa literária.

Em 1959, a Teoria Literária entraria no currículo do curso de Letras da USP,

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através da iniciativa do Professor Antonio Candido. Este solicita à congregação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo – USP, a criação de uma área de estudos sobre literatura com o nome de Teoria Geral da Literatura. Acatada a sua solicitação, Antonio Candido, dois anos depois, se encarregaria da docência da Teoria da Literatura na Universidade de São Paulo.

Duas linhas-mestras nortearam o Curso de Antonio Candido: a utilização da teoria em oposição às especulações e/ou ao impressionismo crítico, e a escolha dos textos, majoritariamente colhidos do nosso Modernismo. Em relação ao manuseio da teoria, o Curso privilegiava uma leitura mais aproximada ao texto-obra, no intuito de demonstrar a importância da teoria e como os conceitos lucram quando apresentados como instrumentos de prática imediata, isto é da análise. Quanto às obras, o Curso explicitava, claramente, o propósito de valorização dos escritos contemporâneos, reconhecidamente de parca presença nas universidades brasileiras, à época. Dessas primeiras experiências, do Rio de Janeiro e de São Paulo, se sedimentaria, em nosso meio acadêmico, a exemplo da Europa e dos Estados Unidos, a disciplina Teoria Literária.

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UNIDADE IIA ESTRUTURA DA NARRATIVA DE FICÇÃO

Uma das formas mais dinâmicas e estimulantes de aproximar-se da literatura é investigar os procedimentos empregados na criação de uma boa estória. O desafio de ler, debater e produzir comentários críticos sobre narrativas de ficção pode converter-se num método de estudo prazeroso, capaz de tirar o leitor de sua costumeira passividade e indiferença em relação à arte literária. A análise dos elementos estruturais de uma narrativa é a primeira etapa que devemos cumprir na descrição do processo criativo que lhe deu origem. Seu objetivo é facilitar a interpretação dos sentidos possíveis da obra estudada. Pensando nisto, vamos sintetizar a seguir alguns conceitos importantes para a descrição do gênero narrativo, buscando articular esses conceitos com alguns exemplos práticos de análise, que servem ao mesmo tempo como indicações de leitura.

1. Identificando os elementos estruturaisO que você vai ler a seguir é o início de um conhecido conto do escritor

carioca Machado de Assis, que viveu entre os anos de 1839 e 1908. A estória chama-se Singular ocorrência e foi publicada em 1884, num livro intitulado Histórias sem data. Escolhemos esse fragmento para ilustrar este capítulo porque ele traz bem nítidas algumas características que gostaríamos de destacar como exemplos de técnicas que podem ser empregadas na construção de uma narrativa de ficção.

— Há ocorrências bem singulares. Está vendo aquela dama que vai entrando na igreja da Cruz? Parou agora no adro para dar uma esmola.

— De preto?— Justamente; lá vai entrando; entrou.— Não ponha mais na carta.1 Este olhar está dizendo que a dama é uma recorda-

ção sua de outro tempo, e não há de ser de muito tempo, a julgar pelo corpo: é moça de truz.2

— Deve ter quarenta e seis anos.— Ah! conservada. Vamos lá; deixe de olhar para o chão, e conte-me tudo...

1. “Não ponha mais na carta”, isto é, “não acrescente mais detalhes, deixe que eu adivinhe”.2. “De truz”: excelente, da melhor qualidade.

Neste pequeno excerto, já podemos perceber a presença de três personagens. Dois homens iniciam uma conversa quando um deles chama a atenção do outro para certa dama de luto que vai entrando numa igreja. Essa senhora é a terceira personagem e, ao que tudo indica, um episódio do seu passado será o tema da estória que desperta tanta curiosidade.

UNIDADE IIA ESTRUTURA DA NARRATIVA DE FICÇÃO

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Vejamos agora mais um trecho dessa conversa:

— [...] Está viúva, naturalmente?— Não.— Bem; o marido ainda vive. É velho?— Não é casada.— Solteira?— Assim, assim. Deve chamar-se hoje Dona Maria de tal. Em 1860 florescia

com o nome familiar de Marocas. Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará. Morava na Rua do Sacramento. Já então era esbelta, e, seguramente, mais linda do que hoje...

Quando o primeiro homem começa enfim a contar o episódio, temos um efeito interessante: surge uma narrativa dentro de outra, cada uma com características específicas. O teórico alemão Wolfgang Kayser* chamou essa técnica de “moldura” ou “enquadramento” narrativo, situando-a numa longa tradição que remontaria, entre outras origens, aos contos orientais das Mil e uma noites.

Na primeira situação narrativa — isto é, na estória dos dois homens que vemos conversar na rua —, não distinguimos o discurso de um narrador, porque a cena nos é apenas mostrada através da técnica do diálogo. Percebemos que se trata de um diálogo por alguns indícios e convenções: a pontuação que o autor utilizou (parágrafos introduzidos por travessões); a escolha do vocabulário; a forma do discurso, que reproduz diretamente as falas das personagens. O tempo dessa estória corresponderá à duração do diálogo (provavelmente não mais do que alguns minutos) e situa-se historicamente numa época em que as mulheres eram chamadas de “damas” e os homens usavam coloquialmente certas expressões, como “pôr mais na carta” e “de truz” (veja as notas explicativas). O espaço onde se desenvolve essa primeira estória é o ambiente urbano de uma cidade até aqui não nomeada, onde há certa “igreja da Cruz”. As personagens, como já dissemos, são os dois homens que conversam e a dama de quem falam.

Já na estória que envolve o passado da mulher, o narrador será esse que fala ao amigo sobre uma “singular ocorrência”. O amigo assumirá, portanto, a função de narratário (personagem a quem se dirige o relato). O tempo dessa segunda narrativa será reconstituído pela memória do narrador, e pode ter qualquer duração: dias, meses, pois toda a estória será condensada para caber na duração do diálogo. O espaço consistirá, provavelmente, nas ruas daquela mesma cidade, já que o narrador menciona com certa familiaridade a “rua do Sacramento”. Outras personagens certamente tomarão parte no enredo, além da mulher e do próprio narrador, mas não o interlocutor que agora ouve a narração.

Estas observações sobre o conto de Machado de Assis servem de ensejo para refletirmos sobre as múltiplas formas como pode ser organizado um relato ficcional. Começaremos pela definição dos elementos que mais constantemente identificamos em qualquer estória. Atente para as palavras grifadas nos parágrafos anteriores: narrador, narratário, diálogo, tema, enredo, personagem, mostrar e contar, tempo, espaço: elas dão nome a alguns dos conceitos que um leitor especializado (um estudante de Letras, por exemplo) deve manusear na análise de uma narrativa literária. Alguns já estão amplamente disseminados na linguagem corrente e, praticamente, dispensam

(*) Wolfgang Kayser, Análi-se e interpreta-ção da obra li-terária. Citado por CARVA-LHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco nar-rativo e fluxo

da consciên-cia: Questões de teoria literá-ria. São Paulo: Pioneira, 1981, p. 25-29.

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definições; outros envolvem certas sutilezas e ambigüidades, e por isso exigem constantes revisitações teóricas.

2. Alguns modos de narrar e suas implicações teóricas

Estórias de ficção podem ser apresentadas ao leitor de muitas maneiras. Uma primeira e elementar situação que podemos imaginar é aquela em que a estória parece não ter narrador, como acontece no conto citado de Machado de Assis: o leitor acompanha um diálogo entre personagens, sem que nenhum comentário se interponha às suas falas. Nestes casos, a perspectiva que temos da estória é bastante limitada, e só sabemos do enredo aquilo que as personagens disserem umas às outras. Alguns autores (entre eles Norman Friedman e Percy Lubbock) chamam essa forma de narrar de modo ou tratamento dramático, porque lembra a técnica utilizada nos dramas isto é, nas peças de teatro, em que toda a ênfase recai na ação das personagens. O modo dramático opõe-se ao modo pictórico, que se caracteriza pela reconstituição de um episódio através do discurso de um narrador.

Destaca-se também, a propósito dessas duas técnicas, a interessante oposição entre mostrar e narrar — quanto menos percebermos a presença do narrador, mais perto estaremos do “mostrar”, e mais longe da “narração”. Lubbock relaciona ainda esses conceitos, respectivamente, aos de cena e sumário. Assim, uma cena é o que se representa objetivamente, através do modo dramático, ou seja, com a mínima interferência possível do narrador. Um sumário, por sua vez, é a versão que um narrador nos dá de uma estória, sintetizando uma seqüência de acontecimentos, segundo o modo pictórico.* Estas formas de apresentação do enredo podem aparecer isoladamente ou combinadas num mesmo texto. Em qualquer caso, a escolha por uma delas, ou por sua combinação, não é aleatória.

Singular ocorrência é exemplar neste aspecto: toda a estória é “enquadrada”, como vimos, no contexto de uma cena — neste caso, de uma conversa fortuita entre amigos. Esse artifício dá ao conto certa leveza, ou certo tom despretensioso de conversa jogada fora, de anedota sobre a vida alheia. Mostrada em primeiro plano, a cena cria uma impressão de proximidade entre o leitor e as personagens presentes. É nesse contexto que se introduz o sumário, já na voz da personagem: “Em 1860 florescia com o nome familiar de Marocas...” Trata-se de uma exímia manipulação das técnicas de mostrar e narrar. Sem se dar conta, o leitor, a quem talvez pouco interessasse a história de uma desconhecida, vai sendo seduzido pelas expectativas geradas daquele comentário indiscreto. O sabor dessa indiscrição é, afinal, o que magnetiza a atenção do narratário, “espectador ideal” (Kayser) que vai pontuando o relato com comentários, perguntas, conjecturas — talvez os mesmos que gostaríamos de fazer. Resta saber se o verdadeiro tema do conto não é esse fascínio da inconfidência; e se o seu verdadeiro propósito não é justamente nos fazer sorrir desse senão da natureza humana que alimenta, de alguma forma, a arte da ficção.

3. O foco narrativo e suas principais abordagens

Excetuando-se o modo dramático, uma estória pressupõe, em geral, a presença de “alguém” que conta uma seqüência de “fatos”. Enquanto criação do autor, o narrador pode dar-se a conhecer como personagem (dizemos então que a narrativa é

(*) Ibidem. p. 13-15.

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de primeira pessoa), ou simplesmente se restringir a uma “voz” que conduz o relato, sem ter participado dos eventos, e sem que o leitor tenha dele qualquer informação além dos traços de sua linguagem (neste caso, dizemos que a narrativa é de terceira pessoa). Ele pode também intervir com opiniões e digressões (mudanças de assunto) ou apenas registrar objetivamente os “acontecimentos”. Pode deixar falarem as personagens ou resumir o que elas dizem. Pode inclusive saber o que elas pensam e sentem. Supõe-se que, ao escolher um tipo de narrador, um autor pondera todas as possibilidades expressivas que sua escolha implicará, e os efeitos que produzirá sobre o leitor. Não por acaso, as principais teorias modernas sobre o foco narrativo se desenvolveram a partir das reflexões de escritores, como o anglo-americano Henry James.

A seguir, veremos uma síntese do trabalho de alguns teóricos que se propuseram classificar essa variedade de situações narrativas.

3.1. A terminologia de Gérard GenetteSegundo a classificação proposta por Gérard Genette*, dizemos que um

narrador é intradiegético quando está dentro (intra) da estória (diegese), sendo também chamado de homodiegético, uma vez que se situa no mesmo plano que as demais personagens (o mundo representado), com quem convive e interage. Um narrador homodiegético pode ainda classificar-se como autodiegético, se ele é o protagonista, isto é, a personagem principal da estória. Nos casos em que se posiciona fora dos acontecimentos que relata, diz-se que o narrador é extradiegético, ou ainda heterodiegético, porque narra o que se passou com outros, não com ele mesmo.

Embora seja pouco utilizada atualmente, a classificação de Genette vale ser

lembrada, pelo menos por uma qualidade: a especificidade de sua terminologia, que,

repelindo analogias com outros sistemas semióticos, evita confusões e imprecisões em torno dos conceitos que define.

3.2. Pouillon: a teoria das “visões”Outra classificação, esta elaborada pelo teórico francês Jean Pouillon (1916-

2002), refere-se mais diretamente aos ângulos de visão de que desfrutamos através da perspectiva do narrador. Propõe assim a existência de três categorias: a visão com, a visão por trás e a visão de fora. No primeiro caso, o ângulo assumido coincide com a perspectiva de uma das personagens, de quem o narrador conhece (e nos permite conhecer) pensamentos e sentimentos, mesmo que não verbalizados. Toda a estória é apreendida do ponto de vista dessa personagem. Na segunda categoria, o narrador detém o conhecimento de todas as ações e da interioridade de cada personagem. Na terceira e última posição, o narrador não tem acesso à introspecção das personagens, limitando-se à representação de suas ações e discursos, vale dizer: daquilo que é perceptível apenas de um ângulo externo.

3.3. Norman Friedman: “pontos de vista”Um dos teóricos mais citados nos estudos sobre o foco narrativo é Norman

Friedman, que elaborou uma tipologia bastante abrangente. Para facilitar a apresentação das categorias de Friedman, vamos dividi-las em dois conjuntos:

No contexto dos narradores-personagens, Friedman identifica duas categorias:

“Eu” como protagonistaa) : neste caso, o narrador esteve (ou está) no centro dos acontecimentos representados. Ele é o herói, nas estórias de feição épica. No romance moderno, é o indivíduo injustiçado ou em desajuste com

(*) Apud SIL-VA, Vítor Ma-nuel de Aguiar e. Teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1976. p.268-272.

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o seu meio social, com o qual o leitor tende a identificar-se. Quase sempre é também um dos pólos de um conflito amoroso. Como narra aquilo que “vive” (ou “viveu”), ele nos permite conhecer aspectos subjetivos de sua “experiência”, que é a de maior significado para o relato. Entretanto, através dele, não conhecemos o que sentem intimamente as demais personagens, pois (ao menos num contexto realista) esse atributo lhe seria incoerente. É justamente essa visão parcial, em que as motivações dos outros seres parecem sempre enigmáticas, que faz do narrador-protagonista um excelente recurso para criar o chamado efeito de realidade.

Leia abaixo um exemplo de narrador-protagonista, extraído do romance Estorvo, de Chico Buarque de Holanda*.

Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, não consigo definir aquele sujeito través do olho mágico. Estou zonzo, não entendo o sujeito ali parado de terno e gravata, seu rosto intumescido pela lente. Deve ser coisa impor-tante, pois ouvi a campainha tocar várias vezes, uma a caminho da porta e pelo menos três dentro do sonho. Vou regulando a vista, e começo a achar que conheço aquele rosto de um tempo distante e confuso. Ou senão cheguei dormindo ao olho mágico, e conheço aquele rosto de quando ele ainda per-tencia ao sonho...

“Eu” como testemunhab) : a estória é contada de um ângulo situado, não no centro, mas à margem dos acontecimentos; por um narrador que participou efetivamente daquilo que narra, sem, no entanto, confundir-se com um protagonista. Com este recurso, o autor pode tirar proveito das vantagens do relato de primeira pessoa (maior efeito de realidade, por exemplo), ao mesmo tempo em que mantém, entre a ação narrada e o olhar do narrador, certo distanciamento, e, portanto, certa objetividade, que são características de um foco narrativo de terceira pessoa. Preservado dos conflitos em que se enredam, em geral, os protagonistas, o narrador-testemunha pode exercer suas principais funções, que são a observação e o comentário dos fatos.

Observe a construção de um narrador-testemunha, retornando, ainda uma vez, à narrativa enquadrada de Singular ocorrência. Note que o personagem que conta a história de Marocas teve papel apenas secundário nos fatos que a envolveram no passado, como fica evidente no trecho seguinte:

— [Marocas] Morava na rua do Sacramento. Já então era esbelta, e, seguramente, mais linda do que hoje; modos sérios, linguagem limpa. Na rua, com o vestido afogado, escorrido, sem espavento, arrastava a muitos, ainda assim.

— Por exemplo, ao senhor.— Não, mas ao Andrade, um amigo meu, de vinte e seis anos, meio

advogado, meio político, nascido nas Alagoas, e casado na Bahia, donde vie-ra em 1859...

(*) HOLANDA, Chico Buarque de. Estorvo. São Paulo: Compa-nhia das Letras, 1991.

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Nos contextos de focalização extradiegética, Friedman destaca outras seis categorias:

Modo dramático: a) como definimos no início desta unidade, o modo ou tratamento dramático está relacionado com a opção do autor por mostrar ao invés de narrar. Centrado no recurso do diálogo, esse foco narrativo cria a impressão de que a estória “acontece” diante do leitor, sem mediação, alcançando um efeito de máxima objetividade.

Além do conto Singular ocorrência, já comentado, outro exemplo colhido na obra de Machado de Assis é Teoria do medalhão, publicado em Papéis avulsos (1882).*

— Estás com sono?— Não, senhor.— Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?— Onze.— Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu

peralta, chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...

— Papai...— Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sé-

rios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conver-semos...

Narrador onisciente intruso: b) o termo originalmente empregado por Friedman (editorial omniscience) tem recebido traduções variadas em língua portuguesa: “autor onisciente intruso”, “onisciência do autor-editor”, “onisciência interpretativa”.* Talvez porque as traduções mais fiéis ao sentido literal da expressão tendem a alimentar confusões entre os conceitos de autor e narrador, consagrou-se, dentre todas, a expressão “narrador onisciente intruso”. Trata-se de um narrador heterodiegético, que detém um conhecimento ilimitado (onisciência) sobre o passado e o presente das personagens, sobre os seus pensamentos e reações íntimas. Mas o que caracteriza principalmente esse foco narrativo é a intervenção do narrador no curso do relato para expressar opiniões (pertinentes ou não aos fatos narrados). Se estranhamos essa intromissão (e a própria semântica da expressão “intruso” o confirma) é porque a presença de um narrador, comentando e julgando por nós, parece desnecessária e até perturbadora, na medida em que rompe certa convenção objetivista segundo a qual a estória deveria “acontecer” por si mesma diante do leitor. Não obstante, também é fato que nem todos os teóricos da narrativa subscrevem essa exigência de objetividade.

O romance Ensaio sobre a cegueira, do escritor português José Saramago, pode nos servir como ilustração.*

(*) Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br.

(*) Termos em-pregados, res-pectivamente, por Lígia Chia-ppini Moraes Leite, Vítor Ma-nuel de Aguiar e Silva e Alfre-do Leme C. de Carvalho. Cf. referências bi-bliográficas.

(*) SARAMA-GO, José. En-saio sobre a cegueira. São Paulo: Compa-nhia das Letras, 2007. Na trans-crição manti-vemos a grafia portuguesa do original.

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Ao oferecer-se para ajudar o cego, o homem que depois roubou o car-ro não tinha em mira, nesse momento preciso, qualquer intenção malévola, muito pelo contrário, o que ele fez não foi mais que obedecer àqueles senti-mentos de generosidade e altruísmo que são, como toda a gente sabe, duas das melhores características do género humano, podendo ser encontradas até em criminosos bem mais empedernidos do que este, simples ladrãozeco de automóveis sem esperança de avanço na carreira, explorado pelos verdadei-ros donos do negócio, que esses é que se vão aproveitando das necessidades de quem é pobre.

A propósito desse fragmento, podemos detectar a onisciência do narrador no fato de ele saber o que pensava o “ladrão” num exato momento, conhecer as motivações íntimas do personagem. O aspecto da intrusão se manifesta a partir do comentário sobre “a generosidade e o altruísmo”: observe que o discurso vai se afastando cada vez mais do relato e sendo tomado pela exposição das opiniões do narrador, cuja subjetividade se manifesta inclusive no tom depreciativo e irônico com que ele se refere ao personagem.

Narrador onisciente neutro: c) como o próprio nome indica, esta categoria compartilha com a anterior o atributo da onisciência; porém, distingue-se daquela pelo artifício da “neutralidade”, que, tomado ao pé da letra, consistiria em alcançar a impessoalidade do narrador, privando-o de emitir opinião diretamente. O resultado, por vezes, é um relato aparentemente destituído de posicionamentos éticos ou morais, diante do qual cabe apenas ao leitor tomar posição.

Vamos exemplificar essa categoria com um fragmento do conto Eis a primavera,* do paranaense Dalton Trevisan. Observe a impassibilidade do narrador diante do quadro trágico que descreve.

João saiu do hospital para morrer em casa — e gritou três meses antes de morrer. Para não gastar, a mulher nem uma vez chamou o médico. Não lhe deu injeção de morfina, a receita azul na gaveta. Ele sonhava com a primave-ra para sarar do reumatismo, nos dedos amarelos contava os dias...

Onisciência seletiva:d) embora a onisciência do narrador represente um poderoso recurso para a análise das personagens, nem sempre é interessante para a estória a exploração de todas elas em profundidade. Muitas vezes, aquilo que nós não sabemos sobre o enredo ou sobre algumas personagens assume importância fundamental na construção das tensões e incertezas que servirão para prender a nossa atenção. A onisciência seletiva é o artifício empregado como termo médio entre a focalização externa (a visão de fora, segundo Pouillon), a onisciência neutra e a onisciência interpretativa; entre o narrador que só pode reproduzir o que vê e ouve, e os narradores que conhecem em profundidade todas as dimensões do mundo por eles representado. Consiste em exercer a onisciência em relação a apenas uma das personagens, com a qual é inevitável que o leitor se identifique, uma vez que é dela o ângulo de visão privilegiado.

(*) TREVISAN, Dalton. Eis a primavera. In: BOSI, Alfredo (org.). O conto brasileiro con-t e m p o r â n e o . São Paulo: Cul-trix; Editora da Univers idade de São Paulo, 1975, p. 193-195.

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Observe o exemplo abaixo, que reproduz o início da obra O processo (1925), do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924).*

Alguém devia ter caluniado Josef K., pois, sem que tivesse feito mal algum, ele foi detido certa manhã. A cozinheira da senhora Grubach, sua se-nhoria, que lhe trazia o café-da-manhã todos os dias bem cedo, por volta das oito horas, desta vez não aparecera. Isso jamais havia acontecido. K. esperou mais um instantinho, de seu travesseiro viu a velha senhora que morava na casa em frente e que o observava com uma curiosidade que não lhe era nada comum, para, em seguida, estranhado e faminto ao mesmo tempo, fazer soar a campainha. De imediato bateram à porta, e entrou um homem que ele ja-mais havia visto naquela moradia...

Atente para o fato de que o narrador de O Processo tem ciência da sensação de estranhamento que atinge o personagem, e sabe inclusive que ele está faminto, embora ele não tenha externado tal circunstância. E, no entanto, esse narrador não sabe explicar aquilo que também é incompreensível para Josef K.. Sobre a causa da detenção, por exemplo, sugere apenas uma hipótese: a de que “alguém devia ter caluniado” o protagonista, uma vez que este não cometera mal algum. Sua onisciência, embora presumida, só se manifesta em relação a esse personagem. Repare que o fato de não conhecermos as motivações das demais personagens acentua o clima de conspiração que tomará conta de toda a estória.

Onisciência seletiva múltiplae) : diferentemente da onisciência seletiva, em que a sondagem do narrador incide fixamente numa personagem, neste caso

o efeito buscado é o da multiplicidade dos pontos de vista. A onisciência nunca incidirá ao mesmo tempo sobre duas personagens, o que faz desse foco narrativo o ideal para sugerir relativismo, mediante a representação de um mesmo aspecto da realidade a partir de ângulos diversos.

O exemplo mais conhecido dessa categoria, em língua portuguesa, é a obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Recentemente, a mesma técnica foi empregada no romance Benjamin (1995), de Chico Buarque de Holanda* como podemos constatar nos fragmentos abaixo. Observe que os dois excertos se referem à mesma cena, primeiro vista da perspectiva do protagonista Benjamin, depois do ângulo de visão da personagem Ariela.

[Ariela] passa rente à mesa de Benjamin e chega a fitá-lo sorrindo,

mas é um sorriso residual, estagnado. E quando ela acaba de passar, o sorriso não é mais dela, é de outra mulher que Benjamin fica aflito para recordar,

como uma palavra que temos na ponta da língua e nos escapa. Ou como um nome que de pronto brilha na memória, mas não podemos ler porque as letras se mexem. Ou como um rosto que se projeta nítido na tela, e dissolve-se a tela. Benjamin precisaria rever a moça, pedir para ela repetir o sorriso e lhe reconstituir a lembrança. Mas ela já deve estar chegando à porta e Benjamin não gostaria de virar o pescoço.

(*) KAFKA,

Franz. O pro-cesso. Porto Alegre: L&PM, 2007. p. 13.

(*) HOLAN-DA, Chico Bu-arque de. Benja-min. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 11-12.

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Ariela Masé sai afobada do restaurante e só na esquina se dá conta de que não se despediu do Zorza, que tinha parado para comprar cigarros no balcão. Volta-se e ainda o vê sair à rua com dois maços na mão, apertar e revirar os olhos sem exergá-la, depois seguir até seu carro embicado sobre a calçada oposta...

O narrador câmera: f) o surgimento de novas tecnologias audiovisuais de produção e reprodução de linguagem proporcionou à arte do nosso tempo um interessante intercâmbio entre os códigos verbais e não-verbais — e, particularmente, entre os contextos literário e cinematográfico. Se, por um lado, há grandes obras do cinema que são adaptações de enredos literários, por outro lado, a literatura contemporânea busca com freqüência a analogia com os recursos daquela arte. De uma estilização das técnicas cinematográficas surge a última categoria narrativa de Friedman, chamada significativamente de “a câmera”. Trata-se de uma focalização externa, em que a simulação da ausência do narrador é levada ao extremo, resumindo-se ao registro de informações visuais — efeito semelhante ao obtido no manuseio do referido equipamento ótico.

Uma experiência sempre lembrada de narrador câmera é a da seqüência de contos intitulada Circuito fechado (1978),* do alagoano Ricardo Ramos (1929-1992), de que transcrevemos o primeiro conto.

Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme den-tal, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina, sabonete, água fria, água quente, toalha. Creme para cabelo, pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça, meias, sapatos, gravata, paletó. Carteira, níqueis, documentos, caneta, chaves, lenço, relógio, maço de cigarros, caixa de fósfo-ros. Jornal. Mesa, cadeiras, xícara e pires, prato, bule, talheres, guardanapo. Quadros. Pasta, carro. Cigarro, fósforo...

3.4. Wayne Booth: ingredientes para uma polêmica

Evitando sempre as tendências normativistas das teorias da narrativa, o norte-americano Wayne Clayson Booth (1921-2005) procurou abordar o foco narrativo como um problema retórico, isto é, como uma questão de adequação entre as técnicas escolhidas e os efeitos desejados. Desse modo, combateu posições disseminadas desde Henry James, e secundadas por Percy Lubbock, que tomavam a objetividade como critério de apreciação, considerando como ideais as formas de narrativa que simulam o desaparecimento do narrador. Booth contestou, portanto, teses como a da superioridade intrínseca da cena sobre o sumário, e conseqüentemente, do mostrar (modo dramático) sobre o narrar (modo pictórico), além de reabilitar o narrador intruso.

A teoria mais conhecida de Wayne Booth é a do autor implícito. Segundo este conceito, mesmo nos casos em que nenhum narrador é dramatizado, há certa presença subjetiva subentendida, espécie de desdobramento (um “segundo ser”) do autor, que dele se distingue, pois é “a imagem que ele cria de si próprio”. O autor implícito é, nas

(*) In: LADEI-RA, Julieta de Godoy. Op. cit. p.71.

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palavras de Booth, aquele que está sempre “atrás das cenas, seja como diretor de palco, como controlador de bonecos, ou como um Deus indiferente, que silenciosamente apara as unhas”. *

A categoria do autor implícito está longe de ser um consenso entre os teóricos. O propósito de distinguir, metodologicamente, o “mundo real” do “mundo ficcional”, resulta bastante produtivo na reflexão de Booth, na medida em que previne o leitor contra dois possíveis equívocos: a tentativa de explicar os textos baseando-se em informações biográficas do “autor real”, e a de explicar aspectos da vida do escritor, baseando-se nas estórias que ele criou. Não há, portanto, grande dificuldade em se aceitar, por princípio, essa separação dos dois “mundos”. A concepção de uma entidade mediadora entre eles é que ainda parece problemática.

Encerrado este resumo das principais tipologias do foco narrativo, convém lembrarmos que todas essas categorias só têm importância se nos ajudarem na compreensão das obras estudadas. De nada vale dar nome aos conceitos se não soubermos manuseá-los em favor da interpretação dos sen-tidos possíveis de uma obra literária.

(*) Citado por CARVALHO, Alfredo Leme C. de. Op. cit. p. 31.

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ATIVIDADES

Compare as classificações estudadas. Indique os casos em que a mesma técnica 1) narrativa aparece com nomes diferentes.Elabore um esquema contendo as vantagens e desvantagens de cada um dos 2) pontos de vista descritos por Norman Friedman.Valendo-se da(s) teoria(s) do foco narrativo que achar pertinente(s), comente 3) o trecho a seguir, retirado do romance As intermitências da morte,* de José Saramago:

Com o seu vestido novo comprado ontem numa loja do centro, a mor-te assiste ao concerto. Está sentada, sozinha, no camarote de primeira ordem, e, como havia feito durante o ensaio, olha o violoncelista. Antes que as luzes da sala tivessem sido baixadas, quando a orquestra esperava a entrada do maestro, ele reparou naquela mulher. Não foi o único dos músicos a dar pela sua presença.

Leia na íntegra o conto 4) Singular ocorrência, transcrito no final desta unidade. Em seguida, demonstre, nessa obra, a aplicação das classificações propostas por Friedman, Pouillon e Genette.Faça uma pesquisa mais aprofundada sobre o conceito de “autor implícito” 5) (Booth) e sua aplicação em análises literárias. Comente a pertinência desse conceito.Faça um levantamento sobre o emprego das técnicas conhecidas como 6) mostrar e narrar nos principais romances brasileiros do século XIX. Comente os resultados obtidos.

ATIVIDADES

(*) SARAMA-GO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Compa-nhia das Letras, 2005.

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TIPOLOGIAS DO FOCO NARRATIVO: QUADRO-RESUMO

Autor Categoria Definição

Gen

ette

Narrador intradiegético e homodiegético

O narrador faz parte do mundo representado; narra o que “viveu”, situando-se no mesmo plano das demais personagens. Será chamado autodiegético se for a personagem central da estória.

Narrador extradiegético e heterodiegético O narrador não se inscreve no mundo representado. Narra o que outros “viveram”.

Pou

illo

n

Visão com O foco narrativo coincide com o ponto de vista de um dos personagens.

Visão por trás O narrador vê tudo e sabe tudo sobre todas as personagens.

Visão de fora

O narrador conhece apenas o plano exterior, isto é, as ações e discursos das personagens, mas não tem acesso a sua interioridade.

Fri

edm

an

Eu como protagonista O narrador é também o personagem central da estória.

Eu como testemunha

A estória é contada por alguém que participou efetivamente dos acontecimentos, mas não como personagem central.

Narrador onisciente intruso

O narrador conhece o passado e o presente das personagens, sabe o que elas pensam e sentem; intervém no curso do relato para expressar opiniões.

Narrador onisciente neutro

O narrador possui onisciência (conhecimento ilimitado sobre os fatos e personagens a que se refere); narra de forma impessoal, sem interferir com comentários subjetivos.

Onisciência seletiva A onisciência do narrador se manifesta em relação a apenas uma das personagens.

Onisciência seletiva múltipla A onisciência do narrador incide em mais de uma personagem, mas sempre numa delas por vez.

Câmera A narrativa se resume ao registro de informações visuais, imitando a linguagem cinematográfica.

Modo dramático Narrativa construída a partir de diálogos, sem a mediação explícita de um narrador.

Boo

th

Autor implícito

Desdobramento do autor no plano da ficção; presença subjetiva implícita (subentendida) na organização do relato.

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SINGULAR OCORRÊNCIA

— Há ocorrências bem singulares. Está vendo aquela dama que vai entrando na igreja da Cruz? Parou agora no adro para dar uma esmola.

— De preto?— Justamente; lá vai entrando; entrou.— Não ponha mais na carta. Esse olhar está dizendo que a dama é uma sua

recordação de outro tempo, e não há de ser de muito tempo, a julgar pelo corpo: é moça de truz.

— Deve ter quarenta e seis anos.— Ah! conservada. Vamos lá; deixe de olhar para o chão, e conte-me tudo. Está

viúva, naturalmente?— Não.— Bem; o marido ainda vive. É velho?— Não é casada.— Solteira?— Assim, assim. Deve chamar-se hoje D. Maria de tal. Em 1860 florescia com

o nome familiar de Marocas. Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará. Morava na rua do Sacramento. Já

então era esbelta, e, seguramente, mais linda do que hoje; modos sérios, linguagem limpa. Na rua, com o vestido afogado, escorrido, sem espavento, arrastava a muitos, ainda assim.

— Por exemplo, ao senhor.— Não, mas ao Andrade, um amigo meu, de vinte e seis anos, meio advogado,

meio político, nascido nas Alagoas, e casado na Bahia, donde viera em 1859. Era bonita a mulher dele, afetuosa, meiga e resignada; quando os conheci, tinham uma filhinha de dois anos.

— Apesar disso, a Marocas...?— É verdade, dominou-o. Olhe, se não tem pressa, conto-lhe uma coisa

interessante.— Diga.— A primeira vez que ele a encontrou, foi à porta da loja Paula Brito, no Rocio.

Estava ali, viu a distância uma mulher bonita, e esperou, já alvoroçado, porque ele tinha em alto grau a paixão das mulheres. Marocas vinha andando, parando e olhando como quem procura alguma casa. Defronte da loja deteve-se um instante; depois, envergonhada e a medo, estendeu um pedacinho de papel ao Andrade, e perguntou-lhe onde ficava o número ali escrito. Andrade disse-lhe que do outro lado do Rocio,

e ensinou-lhe a altura provável da casa. Ela cortejou com muita graça; ele ficou sem

saber o que pensasse da pergunta.— Como eu estou.— Nada mais simples: Marocas não sabia ler. Ele não chegou a suspeitá-lo. Viu-a

atravessar o Rocio, que ainda não tinha estátua nem jardim, e ir à casa que buscava, ainda assim perguntando em outras. De noite foi ao Ginásio; dava-se a Dama das Camélias; Marocas estava lá, e, no último ato, chorou como uma criança. Não lhe digo nada; no fim de quinze dias amavam-se loucamente. Marocas despediu todos os seus

namorados, e creio que não perdeu pouco; tinha alguns capitalistas bem bons. Ficou só, sozinha, vivendo para o Andrade, não querendo outra afeição, não cogitando de nenhum outro interesse.

— Como a dama das Camélias.

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— Justo. Andrade ensinou-lhe a ler. Estou mestre-escola, disse-me ele um dia; e foi então que me contou a anedota do Rocio. Marocas aprendeu depressa. Compreende-se; o vexame de não saber, o desejo de conhecer os romances em que ele lhe falava, e finalmente o gosto de obedecer a um desejo dele, de lhe ser agradável... Não me encobriu nada; contou-me tudo com um riso de gratidão nos olhos, que o senhor não imagina. Eu tinha a confiança de ambos. Jantávamos às vezes os três juntos; e... não sei por que negá-lo, — algumas vezes os quatro. Não cuide que eram jantares de gente pândega; alegres, mas honestos. Marocas gostava da linguagem afogada, como os vestidos. Pouco a pouco estabeleceu-se intimidade entre nós; ela interrogava-me acerca da vida do Andrade, da mulher, da filha, dos hábitos dele, se gostava deveras dela, ou se era um capricho, se tivera outros, se era capaz de a esquecer, uma chuva de perguntas, e um receio de o perder, que mostravam a força e a sinceridade da afeição... Um dia, uma festa de São João, o Andrade acompanhou a família à Gávea, onde ia assistir a um jantar e um baile; dois dias de ausência. Eu fui com eles. Marocas, ao despedir-se, recordou a comédia que ouvira algumas semanas antes no Ginásio — Janto com minha mãe — e disse-me que, não tendo família para passar a festa de São João, ia fazer como a Sofia Arnoult da comédia, ia jantar com um retrato; mas não seria o da mãe, porque não tinha, e sim do Andrade. Este dito ia-lhe rendendo um beijo; o Andrade chegou a inclinar-se; ela, porém, vendo que eu estava ali, afastou-o delicadamente com a mão.

— Gosto desse gesto.— Ele não gostou menos. Pegou-lhe na cabeça com ambas as mãos, e, paternalmente,

pingou-lhe o beijo na testa. Seguimos para a Gávea. De caminho disse-me a respeito da Marocas as maiores finezas, contou-me as últimas frioleiras de ambos, falou-me do projeto a que tinha de comprar-lhe uma casa em algum arrabalde, logo que pudesse dispor de dinheiro; e, de passagem, elogiou a modéstia da moça, que não queria receber dele mais do que o estritamente necessário. Há mais do que isso, disse-lhe eu; e contei-lhe uma coisa que sabia, isto é, que cerca de três semanas antes, a Marocas empenhara algumas jóias para pagar uma conta da costureira. Esta notícia abalou-o muito; não juro, mas creio que ficou com os olhos molhados. Em todo o caso, depois de cogitar algum tempo, disse-me que definitivamente ia arranjar-lhe uma casa e pô-la ao abrigo da miséria. Na Gávea ainda falamos da Marocas, até que as festas acabaram, e nós voltamos. O Andrade deixou a família em casa, na Lapa, e foi ao escritório aviar alguns papéis urgentes. Pouco depois do meio-dia apareceu-lhe um tal Leandro, ex-agente de certo advogado a pedir-lhe, como de costume, dois ou três mil-réis. Era um sujeito reles e vadio. Vivia a explorar os amigos do antigo patrão. Andrade deu-lhe três mil-réis, e, como o visse excepcionalmente risonho, perguntou-lhe se tinha visto passarinho verde. O Leandro piscou os olhos e lambeu os beiços: o Andrade, que dava o cavaco por anedotas eróticas, perguntou-lhe se eram amores. Ele mastigou um pouco, e confessou que sim.

— Olhe; lá vem ela saindo: não é ela?— Ela mesma; afastemo-nos da esquina.— Realmente, deve ter sido muito bonita. Tem um ar de duquesa.— Não olhou para cá; não olha nunca para os lados. Vai subir pela rua do

Ouvidor...— Sim, senhor. Compreendo o Andrade.— Vamos ao caso. O Leandro confessou que tivera na véspera uma fortuna rara,

ou antes única, uma coisa que ele nunca esperara achar, nem merecia mesmo, porque se conhecia e não passava de um pobre diabo. Mas enfim, os pobres também são filhos

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de Deus. Foi o caso que, na véspera, perto das dez horas da noite, encontrara no Rocio uma dama vestida com simplicidade, vistosa de corpo, e muito embrulhada num xale grande. A dama vinha atrás dele, e mais depressa; ao passar rentezinha com ele, fitou-lhe muito os olhos, e foi andando devagar, como quem espera. O pobre diabo imaginou que era engano de pessoa; confessou ao Andrade que, apesar da roupa simples, viu logo que não era coisa para os seus beiços. Foi andando; a mulher, parada, fitou-o outra vez, mas com tal instância, que ele chegou atrever-se um pouco; ela atreveu-se o resto... Ah! um anjo! E que casa, que sala rica! Coisa papa-fina. E depois o desinteresse...

“Olhe, acrescentou ele, para Vossa Senhoria é que era um bom arranjo.” Andrade abanou a cabeça; não lhe cheirava o comborço. Mas o Leandro teimou; era na rua do Sacramento, número tantos...

— Não me diga isso!— Imagine como não ficou o Andrade. Ele mesmo não soube o que fez nem o

que disse durante os primeiros minutos, nem o que pensou nem o que sentiu. Afinal

teve força para perguntar se era verdade o que estava contando; mas o outro advertiu que não tinha nenhuma necessidade de inventar semelhante coisa; vendo, porém, o alvoroço do Andrade, pediu-lhe segredo, dizendo que ele, pela sua parte, era discreto. Parece que ia sair; Andrade deteve-o e propôs-lhe um negócio; propôs-lhe ganhar vinte mil-réis.

— “Pronto!”— “Dou-lhe vinte mil-réis, se você for comigo à casa dessa moça e disser em

presença dela que é ela mesma.”— Oh!— Não defendo o Andrade; a coisa não era bonita; mas a paixão, nesse caso, cega

os melhores homens. Andrade era digno, generoso, sincero; mas o golpe fora tão profundo, e ele amava-a tanto que não recuou diante de uma tal vingança.

— O outro aceitou?— Hesitou um pouco, estou que por medo, não por dignidade; mas vinte mil-

réis... Pôs uma condição: não metê-lo em barulhos... Marocas estava na sala, quando o Andrade entrou. Caminhou para a porta, na intenção de o abraçar; mas o Andrade advertiu-a, com o gesto, que trazia alguém. Depois, fitando-a muito, fez entrar o

Leandro; Marocas empalideceu. — “É esta senhora?” perguntou ele. — “Sim, senhor”, murmurou o Leandro com voz sumida, porque há ações ainda mais ignóbeis do que o próprio homem que as comete. Andrade abriu a carteira com grande afetação, tirou uma nota de vinte mil-réis e deu-lha; e, com a mesma afetação, ordenou-lhe que se retirasse. O Leandro saiu. A cena que se seguiu, foi breve, mas dramática. Não a soube inteiramente, porque o próprio Andrade é que me contou tudo, e, naturalmente, estava tão atordoado, que muita coisa lhe escapou. Ela não confessou nada; mas estava fora de si, e, quando ele, depois de lhe dizer as coisas mais duras do mundo, atirou-se para a porta, ela rojou-se-lhe aos pés, agarrou-lhe as mãos, lacrimosa, desesperada, ameaçando matar-se; e ficou atirada ao chão, no patamar da escada; ele desceu vertiginosamente

e saiu.— Na verdade, um sujeito reles, apanhado na rua; provavelmente eram hábitos

dela?— Não.— Não?— Ouça o resto. De noite seriam oito horas, o Andrade veio à minha casa, e esperou

por mim. Já me tinha procurado três vezes. Fiquei estupefato; mas como duvidar, se ele tivera a precaução de levar a prova até à evidência? Não lhe conto o que ouvi, os

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planos de vingança, as exclamações, os nomes que lhe chamou, todo o estilo e todo o repertório dessas crises. Meu conselho foi que a deixasse; que, afinal, vivesse para a mulher e a filha, a mulher tão boa, tão meiga... Ele concordava, mas tornava ao furor. Do furor passou à dúvida; chegou a imaginar que a Marocas, com o fim de o experimentar, inventara o artifício e pagara ao Leandro para vir dizer-lhe aquilo; e a prova é que o Leandro, não querendo ele saber quem era, teimou e lhe disse a casa e o número. E agarrado a esta inverossimilhança, tentava fugir à realidade; mas a realidade vinha — a palidez de Marocas, a alegria sincera do Leandro, tudo o que lhe dizia que a aventura era certa. Creio até que ele arrependia-se de ter ido tão longe. Quanto a mim, cogitava na aventura, sem atinar com a explicação. Tão modesta! maneiras tão acanhadas!

— Há uma frase de teatro que pode explicar a aventura, uma frase de Augier, creio eu: “a nostalgia da lama”.

— Acho que não; mas vá ouvindo. Às dez horas apareceu-nos em casa uma criada de Marocas, uma preta forra, muito amiga da ama. Andava aflita em procura do Andrade, porque a Marocas, depois de chorar muito, trancada no quarto, saiu de casa sem jantar, e não voltara mais. Contive o Andrade, cujo primeiro gesto foi para sair logo. A preta pedia-nos por tudo que fôssemos descobrir a ama. “Não é costume dela sair?” perguntou o Andrade com sarcasmo. Mas a preta disse que não era costume. “Está ouvindo?” bradou ele para mim. Era a esperança que de novo empolgara o coração do pobre diabo. “E ontem?...” disse eu. A preta respondeu que na véspera sim; mas não lhe perguntei mais nada, tive compaixão do Andrade, cuja aflição crescia, e cujo pundonor ia cedendo diante do perigo. Saímos em busca da Marocas; fomos a todas as casas em que era possível encontrá-la; fomos à polícia; mas a noite passou-se sem outro resultado. De manhã voltamos à polícia. O chefe ou um dos delegados, não me lembra, era amigo do Andrade, que lhe contou da aventura a parte conveniente; aliás a ligação do Andrade e da Marocas era conhecida de todos os seus amigos. Pesquisou-se tudo; nenhum desastre se dera durante a noite; as barcas da praia Grande não viram cair ao mar nenhum passageiro; as casas de armas não venderam nenhuma; as boticas nenhum veneno. A polícia pôs em campo todos os seus recursos, e nada. Não lhe digo o estado de aflição em que o pobre Andrade viveu durante essas longas horas, porque todo o dia se passou em pesquisas inúteis. Não era só a dor de a perder; era também o remorso, a dúvida, ao menos, da consciência, em presença de um possível desastre, que parecia justificar a moça. Ele perguntava-me, a cada passo, se não era natural fazer o que fez, no delírio da indignação, se eu não faria a mesma coisa. Mas depois tornava a afirmar a aventura, e provava-me que era verdadeira, com o mesmo ardor com que na véspera tentara provar que era falsa; o que ele queria era acomodar a realidade ao sentimento da ocasião.

— Mas, enfim, descobriram a Marocas?— Estávamos comendo alguma coisa, em um hotel, eram perto de oito horas,

quando recebemos notícia de um vestígio: — um cocheiro que levara na véspera uma senhora para o Jardim Botânico, onde ela entrou em uma hospedaria, e ficou. Nem acabamos o jantar; fomos no mesmo carro ao Jardim Botânico. O dono da hospedaria confirmou a versão; acrescentando que a pessoa se recolhera a um quarto, não comera nada desde que chegou na véspera; apenas pediu uma xícara de café; parecia profundamente abatida. Encaminhamo-nos para o quarto; o dono da hospedaria bateu à porta; ela respondeu com voz fraca, e abriu. O Andrade nem me deu tempo de preparar nada; empurrou-me, e caíram nos braços um do outro. Marocas chorou muito e perdeu os sentidos.

— Tudo se explicou?

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— Coisa nenhuma. Nenhum deles tornou ao assunto; livres de um naufrágio, não quiseram saber nada da tempestade que os meteu a pique. A reconciliação fez-se depressa. O Andrade comprou-lhe, meses depois, uma casinha em Catumbi; a Marocas deu-lhe um filho, que morreu de dois anos. Quando ele seguiu para o norte, em comissão do governo, a afeição era ainda a mesma, posto que os primeiros ardores não tivessem já a mesma intensidade. Não obstante, ela quis ir também; fui eu que a obriguei a ficar. O Andrade contava tornar ao fim de pouco tempo, mas, como lhe disse, morreu na província. A Marocas sentiu profundamente a morte, pôs luto, e considerou-se viúva; sei que nos três primeiros anos, ouvia sempre uma missa no dia do aniversário. Há dez anos perdi-a de vista. Que lhe parece tudo isto?

— Realmente, há ocorrências bem singulares, se o senhor não abusou da minha ingenuidade de rapaz para imaginar um romance...

— Não inventei nada; é a realidade pura.— Pois, senhor, é curioso. No meio de uma paixão tão ardente, tão sincera... Eu

ainda estou na minha; acho que foi a nostalgia da lama.— Não: nunca a Marocas descera até aos Leandros.— Então por que desceria naquela noite?— Era um homem que ela supunha separado, por um abismo, de todas as suas

relações pessoais; daí a confiança. Mas o acaso, que é um deus e um diabo ao mesmo tempo... Enfim, coisas!

Machado de Assis(Fonte: http://www.dominiopublico.gov.br)

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4. Características da personagem de ficção

O emprego que fazemos do termo personagem em teoria literária tem sua origem relacionada principalmente ao teatro. Refere-se, a princípio, à persona do ator, isto é, à máscara que se utilizava para representar um papel numa obra dramática, estendendo-se daí aos próprios seres que figuram nas obras de ficção em geral. Mas o termo persona também está na raiz das palavras pessoa e personalidade, por exemplo, que usamos para nos referir aos seres do “mundo real”. Com efeito, as personagens de ficção muitas vezes possuem tal aparência de realidade que, fora da ótica do leitor especializado, não é raro testemunharmos discussões sobre suas motivações não manifestas, conjecturas sobre o seu passado e até mesmo sobre o seu futuro, como se elas vivessem de fato uma existência autônoma em relação às obras de que são parte.

4.1. A personagem como “ser fictício”

No ensaio A personagem do romance,* o crítico literário Antonio Candido define a personagem como “um ser fictício”. E questiona-se: “De fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe?”, para desenvolver, em seguida, uma aguda reflexão sobre essa natureza paradoxal da personagem. Antonio Candido explica que “há afinidades e diferenças essenciais entre o ser vivo e os entes de ficção, e que as diferenças são tão importantes quanto as afinidades para criar o sentimento de verdade, que é a verossimilhança.” (op. cit., p.55). Para ele, o conhecimento que temos dos seres (sejam eles reais ou ficcionais) é sempre fragmentário e, portanto, a literatura moderna teria se antecipado de alguma forma às investigações científicas, ao reproduzir essa percepção incompleta do outro na construção de suas personagens.

O romance, ao abordar as personagens de modo fragmentário, nada mais faz do que retomar, no plano da técnica de caracterização, a maneira fragmentária, insatisfatória, incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes. Todavia, há uma diferença básica entre uma posição e outra: na vida, a visão fragmentária é imanente à nossa própria experiência; é uma condição que não estabelecemos, mas a que nos submetemos. No romance, ela é criada, é estabelecida e racionalmente dirigida por um escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é, na vida, o conhecimento do outro. Daí a necessária simplificação, que pode consistir numa escolha de gestos, de frases, de objetos significativos, marcando a personagem para a identificação do leitor, sem com isso diminuir a impressão de complexidade e riqueza. (Op.cit., p.58)

A linha da comparação entre a personagem de ficção e as “pessoas reais” conduz o crítico à interessante observação de que o “ser fictício” não é apenas mais simples, mas (ao contrário do que poderíamos supor) é também necessariamente mais lógico do que uma pessoa de verdade, na medida em que “a narrativa é obrigada a ser mais coerente do que a vida”. (p.76)

Na vida, estabelecemos uma interpretação de cada pessoa, a fim de podermos conferir certa unidade à sua diversificação essencial, à sucessão dos seus modos-de-ser. No romance, o escritor estabelece

(*) CANDI-DO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 5. ed. São Paulo: Pers-pectiva, 1976. p. 51-80

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algo mais coeso, menos variável, que é a lógica da personagem. A nossa interpretação dos seres vivos é mais fluída, variando de acordo

com o tempo ou as condições da conduta. No romance, podemos variar relativamente a nossa interpretação da personagem; mas o escritor lhe deu desde logo uma linha de coerência fixada para

sempre, delimitando a curva da sua existência e a natureza do seu modo-de-ser. Daí ser ela relativamente mais lógica, mais fixa do

que nós. E isto não quer dizer que seja menos profunda; mas que a profundidade é um universo cujos dados estão todos à mostra, foram pré-estabelecidos pelo seu criador, que os selecionou e limitou em busca de lógica. A força das grandes personagens vem do fato de o sentimento que temos de sua complexidade é máximo; mas isso devido à unidade, à simplificação estrutural que o romancista lhe

deu. (Op. cit., p.58-59)

É nessa perspectiva que o autor nos apresenta a tipologia proposta pelo teórico inglês E. M. Forster (1879-1070) na obra Aspectos do romance.* Entre as personagens que representam seres humanos, Forster distingue duas categorias: as personagens planas e as redondas (ou esféricas).

Uma personagem plana é aquela cujo caráter se mostra integralmente, e de uma só vez, ao leitor, que o apreende com relativa facilidade. Ela tem poucos traços de comportamento. Não padece de hesitações, não sofre transformações essenciais ao longo da estória. Sua atitude em face dos acontecimentos é praticamente invariável, e por isso ela é incapaz de nos surpreender.

As personagens planas eram chamadas “humorous” [temperamentos] no século XVII, às vezes chamam-nas tipos, às vezes, caricaturas. Em sua forma mais pura são construídas ao redor de uma única idéia ou qualidade: quando há mais de um fator, atingimos o início da curva em direção às redondas. A personagem realmente plana pode ser expressa por uma só frase, como “Nunca irei desamparar Mr. Micawber”. Essa é Mrs. Micawber* — diz que não vai desamparar Mr. Micawber, e age assim. (FORSTER, op. cit., p.54)

O contrário disso — deduzimos — é o que caracteriza a personagem redonda: grande complexidade e riqueza na caracterização psicológica, comportamento variável, sujeito a transformações. “O teste para uma personagem redonda está nela ser capaz de surpreender de modo convincente. Se ela nunca surpreende, é plana. Se não convence, é plana pretendendo ser redonda.”* As personagens redondas, afirma ainda Forster,

possuem “a incalculabilidade da vida — a vida dentro das páginas de um livro”,* sendo, portanto, esteticamente superiores às planas. E, não obstante, estas últimas possuem, para ele, ao menos duas vantagens:

Uma grande vantagem das personagens planas é serem reconhecidas com facilidade sempre que aparecem. [...] Uma segunda vantagem é que mais tarde são facilmente lembradas pelo leitor. Permanecem inalteráveis em sua mente pelo fato de não terem sido transformadas pelas circunstâncias, movendo-se através delas. Isso é que lhes dá, num retrospecto, uma qualidade confortante, e as preserva, quando o livro que as produziu poderá decair. (p.55. Grifos nossos)

(*) FORSTER, E. M., Aspectos do romance. Porto Alegre: Globo, 1969.

(*) Wilkins Mi-cawber e sua es-posa, Emma (o Sr. e a Sra. Mi-cawber mencio-nados no exem-plo de Forster), são personagens do romance David Copper-field (1850), do inglês Charles Dickens (1812-1870).

(*) Op. cit., p. 61.

(*) Ibidem.

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Está claro que a dicotomia entre planas e redondas não esgota as possibilidades de análise da personagem. A própria evolução da arte literária trata de desdobrar e multiplicar categorias. Há, portanto, outras classificações, como a que distingue entre indivíduo, tipo, e caricatura. O indivíduo, como o próprio termo indica, apresenta personalidade e comportamento específicos, que evidenciam o seu modo de ser singular. Já o tipo se constrói a partir da síntese das características que o definem como integrante de um grupo ou comportamento social, que ele passa a simbolizar: o político desonesto, o malandro, a beata são exemplos de personagens típicas. Diante de uma delas, o leitor tende a visualizar, por um processo metonímico, não um determinado malandro, mas todos os malandros; não uma beata em específico, mas todas as beatas, etc. Quando esse comportamento é marcado pelo exagero, adquirindo traços extravagantes e muitas vezes cômicos, temos uma caricatura.

Antonio Candido, no ensaio já citado, propõe ainda uma segunda abordagem, baseada nos estudos de François Mauriac.* Segundo este autor, nascidas da memória e da experiência do escritor — isto é, da observação de pessoas reais —, as personagens se afastariam em maior ou menor grau dos modelos originais, podendo realizar-se como: (1) um disfarce leve do escritor; (2) uma cópia fiel de pessoas reais; ou (3) personagens inventadas.* O crítico brasileiro prefere, entretanto, reformular a proposta de Mauriac, partindo dessas duas últimas categorias como “pólos ideais” e desdobrando-as em variações intermediárias. Sua conclusão enfatizará o componente da invenção, isto é, o trabalho de composição da personagem, que ele sobrepõe a qualquer intuito de imitação direta da realidade, uma vez que a narrativa possui leis de funcionamento específicas e internas, que determinam sua construção.

Poderíamos, então, dizer que a verdade da personagem não depende apenas, nem sobretudo, da relação de origem com a vida, com modelos propostos pela observação, interior ou exterior, direta ou indireta, presente ou passada. Depende, antes do mais, da função que exerce na estrutura do romance, de modo a concluirmos que é mais um problema de organização interna que de equivalência à realidade exterior. (Op. cit., p.75. Grifos nossos)

4.2. Como a realidade entra nessa estória?O estudo das obras de ficção, e conseqüentemente de suas personagens,

fundamentado no modo como apreendemos a realidade não se deve à simples preferência por um método: as tensões entre o “mundo real” e o “mundo ficcional” refletem a própria natureza da narrativa literária. A propósito disso, o escritor e teórico Umberto Eco, numa das conferências reunidas em Seis passeios pelos bosques da ficção,* desenvolve a afirmação de que “o mundo ficcional é parasita do mundo real”. Ele quer dizer com isso que, mesmo sabendo que as pessoas, os lugares e os acontecimentos referidos em um conto ou romance são, em geral, inventados pelo autor, precisamos construir representações mentais desses elementos quando lemos uma obra literária. E, nestes casos, tomamos essas representações emprestadas da memória de nossas experiências da realidade. Portanto, essa hesitação entre os dois mundos (o real e o ficcional) não ocorre eventualmente, por circunstâncias que dependam do leitor; ela constitui uma característica essencial da ficção: as pequenas lacunas de informação que existem no texto literário têm a função de propiciar a interação do leitor, que as preenche com sua imaginação e seu conhecimento do mundo.

Umberto Eco afirma ainda que, ao iniciar a leitura de uma narrativa de ficção,

(*) CANDIDO, Antonio. Op. cit. p. 66-69.

(*) Ibidem, p. 67-68.

(*) ECO, Um-berto. Bosques possíveis. In: ______. Seis passeios pelos bosques da fic-ção. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 81-102.

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o leitor estabelece com ela um “acordo ficcional”, também denominado “suspensão da descrença”.* Esse pacto consiste em que ele aceitará que, em alguns aspectos (mas não em qualquer aspecto!), o mundo da ficção possa desobedecer às leis lógicas e naturais

que regem o mundo real — desde que essas pequenas incoerências sejam vitais para o efeito de coerência interna da obra. Mas esse mesmo leitor rejeitará, por outro lado, uma narrativa perfeitamente fiel à representação da realidade e que, no entanto, se mostre falsa ou inconsistente no que se refere à lógica das relações entre seus elementos internos (vale dizer: à sua verossimilhança). Disto podemos concluir que, na análise das complexas relações entre realidade e ficção, a posição de Umberto Eco converge com a de Antonio Candido, para quem “o aspecto mais importante para o estudo do romance é o que resulta da análise de sua composição, não da sua comparação com o mundo.” (Op. cit., p.75)

4.3. Outros tipos, funções e significados da personagem

Considerada em face da configuração interna das obras, a personagem pode ensejar muitas outras interpretações. O ponto de partida mais comum nas teorias da narrativa é aquele que distingue entre as funções do herói (ou protagonista) e das personagens secundárias. O termo herói é empregado, neste caso, em sentido amplo, não se referindo apenas aos seres extraordinários das narrativas épicas — aqueles que possuem força, habilidade e coragem superiores, e realizam feitos excepcionais. Na verdade, o protagonista nem sempre apresentará esses traços de superioridade, podendo acontecer justamente o contrário (neste caso, teremos um “anti-herói”). Justo ou cruel, nobre ou ridículo, o que o caracteriza como protagonista é o fato de exercer função essencial no enredo, e a circunstância de ter sua visão de mundo privilegiada na interpretação dos fatos. Afirmando ou desafiando códigos éticos, estéticos e culturais, o que parece invariável em relação ao herói é a identificação que ele suscita no leitor. Mesmo quando a sua conduta é repreensível, o olhar do leitor o acompanha com certa simpatia (o que não se confunde com ratificação moral ou ideológica). É o que ocorre, por exemplo, nas Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, estória da vida e morte de um narrador tão antiético quanto o conjunto da sociedade que ele espelha e representa.

A personagem que se contrapõe aos objetivos do herói, e conseqüentemente não desperta no leitor essa mesma simpatia, será denominada antagonista. Basta aparecer, por exemplo, um segundo pretendente para rivalizar com o herói numa conquista amorosa, que logo o enquadraremos nessa categoria. Por exemplo, no romance acima citado, torcemos incondicionalmente pelo narrador Brás Cubas e contra o seu antagonista, Lobo Neves, que lhe frustrou a intenção de casar-se com Virgília. Essa inclinação do leitor pelo herói independe absolutamente dos méritos ou virtudes da personagem. Tanto mais simples será se o antagonista for verdadeiramente vil, se nos inspirar uma justa antipatia, mas essa não é uma condição necessária.

A função de protagonista, numa narrativa de ficção, não é exclusiva das personagens “humanas”, nem tampouco dos indivíduos. Também acontece de essa função incidir sobre a representação de um animal (veja-se o conhecido caso da cachorra Baleia, de Vidas Secas), de um elemento da natureza (O iniciado do vento, de Aníbal Machado), de um grupo socialmente definido (os Capitães da areia, de Jorge Amado), de um espaço físico ou ambiente social (O Cortiço, de Aluísio Azevedo), de um processo natural personificado (As intermitências da morte, de José Saramago) etc. Num caso ilustrativo das infinitas possibilidades criativas da ficção, o romancista

(*) A expres-são “suspensão da descrença” é creditada ao poeta e teórico inglês Samuel Taylor Colerid-ge (1772-1834).

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Italo Calvino transformou em enredo a aquisição e leitura do próprio romance, e em protagonista ninguém menos que o leitor.*

Você vai começar a ler o novo romance de Ítalo Calvino, Se um via-jante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros: “Não, não quero ver televisão!”. Se não ouvirem, levante a voz: “Estou lendo! Não quero ser perturbado!” Com todo aquele barulho, talvez ainda não o tenham ouvido; fale mais alto, grite: “Estou começando a ler o novo romance de Ítalo Calvino!”. Se preferir, não diga nada; tomara que o deixem em paz.

5. A representação do discurso das personagens

Conhecemos uma personagem pelo modo como ela age, mas também pelo que diz ou pensa, isto é, pelo discurso particular que o narrador lhe atribui. A fala e o pensamento são elementos fundamentais de uma narrativa de ficção. Tanto assim que alguns teóricos do romance consideram esse gênero, sobretudo, como resultado do choque entre as várias vozes que emanam das personagens, de suas visões de mundo e posições sociais.

A seguir, vamos conhecer as técnicas mais freqüentemente utilizadas para que o leitor tenha acesso a essa polifonia.

5.1. Discurso direto, indireto, indireto livre. Existem diversas maneiras de representar o discurso das personagens, e cada

uma pode produzir ou reforçar efeitos específicos. Para distingui-las, vamos retomar um trecho do conto Singular ocorrência, e imaginar duas variações sobre a forma original. Compare os fragmentos, atentando para os elementos em destaque.

Exemplo 1 (excerto do original) - discurso indireto:

Marocas vinha andando, parando e olhando como quem procura al-guma casa. Defronte da loja deteve-se um instante; depois, envergonhada e a medo, estendeu um pedacinho de papel ao Andrade, e perguntou-lhe onde ficava o número ali escrito.

No texto original, só temos acesso à fala pronunciada pela personagem Marocas através de uma versão que o narrador nos dá. Daí chamarmos a essa técnica de discurso ou estilo indireto. Observe que as palavras do narrador não reproduzem exatamente as da personagem, ocorrendo inclusive mudanças nas referências temporais (o verbo “ficar” no pretérito imperfeito) e espaciais (o advérbio “ali”), que sugerem a distância entre enunciado (quando a ação ocorreu) e enunciação (o momento da narração). Outra marca do discurso indireto é a presença necessária de um verbo de elocução (“perguntou”), que introduz a versão da fala representada.

(*) CALVINO, Italo. Se um via-jante numa noi-te de inverno. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 11

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Exemplo 2 - discurso direto:

Marocas vinha andando, parando e olhando como quem procura al-guma casa. Defronte da loja deteve-se um instante; depois, envergonhada e a medo, estendeu um pedacinho de papel ao Andrade, e perguntou-lhe:

— Por favor, o senhor pode me explicar onde fica esse número?

O segundo fragmento, uma adaptação do texto machadiano para efeito de exemplificação, distingue-se deste por reproduzir a fala da personagem na forma exata como ela teria sido pronunciada, o que se deduz do uso do pronome de primeira pessoa (“me”) e dos tempos verbais (“pode”, “fica“) coerentes com o instante da ação narrada. Nessa modalidade, denominada discurso direto, é freqüente — embora não seja regra — o emprego de parágrafo e travessões indicando o início da fala da personagem. O uso do verbo de elocução, que no estilo indireto é obrigatório, aqui se torna facultativo, como podemos constatar no exemplo abaixo.

Exemplo 3 - discurso direto sem verbo de elocução:

Marocas vinha andando, parando e olhando como quem procura al-guma casa. Defronte da loja deteve-se um instante; depois, envergonhada e a medo, estendeu um pedacinho de papel ao Andrade.

— Por favor, o senhor pode me explicar onde fica esse número?

Exemplo 4 – discurso indireto livre:

Marocas vinha andando, parando e olhando. Onde será que ficava

aquela casa? Defronte da loja deteve-se um instante; depois, envergonhada e a medo, estendeu um pedacinho de papel ao Andrade. Talvez ele lhe ensi-nasse o endereço.

O quarto exemplo é marcado pela ausência de fronteiras nítidas entre o discurso do narrador e o da personagem. Não existem verbos de elocução e, embora os tempos verbais (“ficava”, “ensinasse”) e a pontuação do texto indiquem que, formalmente, a palavra pertence ao narrador, a perspectiva lógica da personagem está parcialmente assimilada ao relato. Quem necessita encontrar certo endereço? Quem tem dúvidas sobre a disposição do Andrade em indicá-lo? Certamente não é o narrador. Em contrapartida, podemos atribuir a ele as referências a Marocas em terceira pessoa (“deteve-se”, “estendeu”). Temos assim um discurso misto, que recebe o nome de estilo indireto livre ou semi-indireto.

5.2. Monólogo interior e fluxo de consciência

Boa parte da ficção produzida no século XX, bem como de seus desdobramentos atuais, privilegia a exploração em profundidade das dimensões psicológicas de suas personagens. Para tanto lança mão, freqüentemente, de uma técnica de representação conhecida como monólogo interior. Como a própria expressão indica, trata-se de

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uma conversa da personagem consigo mesma, ou seja, de uma seqüência de discurso não pronunciado, formulado apenas em pensamento, a que, no entanto, o leitor terá pleno acesso. O monólogo interior simula a representação das idéias que desfilam na mente da personagem, sem que a elas se interponham explicações ou comentários do narrador. Mas quando, de tal registro, resulta uma seqüência de fragmentos mais ou menos ilógicos, dispostos caoticamente, dando-nos a impressão de que o narrador se limitou de fato a mostrá-los, então chamamos a técnica de corrente ou fluxo de consciência. Analise o exemplo seguinte, extraído do romance Estorvo, de Chico Buarque (op. cit., p. 140-141), e veja como a coerência das idéias da personagem vai se perdendo gradativamente.

Não haverão de me negar uma ficha telefônica na rodoviária. Ligarei para minha mãe, pois preciso me deitar num canto, tomar um banho, lavar a cabeça. Quando minha irmã chegar de viagem, de bom grado me adiantará seis meses do aluguel de um apartamento. Se mamãe não atender, andarei até a casa do meu amigo; ele não se importará de me hospedar até a volta da minha irmã. Se meu amigo tiver morrido, baterei à porta da minha ex-mulher. Ela sem dúvida estará atarefada, e poderá se embaraçar com a visita impre-vista. Poderá abrir uma nesga da porta e fincar o pé atrás. Mas quando olhar a mancha viva na minha camisa, talvez faça uma careta e me deixe passar.

ATIVIDADES

Utilizando a distinção de E. M. Forster entre personagens planas e redondas, 1) analise cada uma das personagens do conto Singular ocorrência.Transcreva do mesmo conto dois exemplos de discurso direto e indireto, 2) respectivamente. Retorne ao exemplo extraído da obra 3) O processo, de Kafka, no item 3.3 desta unidade, e classifique a modalidade do discurso empregada. Justifique sua resposta com base em elementos textuais.Identifique, entre as personagens de 4) Singular ocorrência, uma que possa ser classificada como típica.É correto afirmar que o último fragmento transcrito do romance 5) Estorvo constitui fluxo de consciência? Justifique sua resposta.

ATIVIDADES

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6. Tempo e espaço na narrativa de ficção

O exemplo de enquadramento narrativo com que abrimos esta unidade é bastante propício para ilustrarmos a variedade de configurações que os elementos estruturais podem adquirir num relato ficcional. Em Singular ocorrência, encontramos associadas duas técnicas ou modos de narrar e, conseqüentemente, dois focos narrativos e duas formas de caracterização das personagens. Essa complexidade estrutural nos permite ainda visualizar o relativismo que caracteriza as noções de tempo e espaço numa narrativa. Em outras palavras, através da dinâmica que ali se dá entre a cena e o sumário, constatamos que um longo período, ou um percurso de distâncias consideráveis, podem inscrever-se na pequena duração e no espaço limitado de um diálogo. De fato, o tempo e o espaço ficcionais não obedecem rigorosamente à percepção que temos desses elementos no “mundo real”, servindo antes às estratégias que o autor constrói para o desenvolvimento de sua estória.

6.1. As funções do espaçoQuanto à análise do espaço, é bastante compreendermos que ele pode variar

desde a neutralidade — reduzindo-se à função de cenário, ou pano de fundo, onde se desenvolve uma ação — até a mais efetiva expressividade, quando se torna de fato um elemento dramático, seja porque se associa aos chamados estados psicológicos das personagens; ou porque o autor o emprega como indício de certos sentidos que pretende evidenciar; ou ainda por estar associado a um ambiente, isto é, às características de um grupo ou estrato social.

A propósito dessas duas últimas funções, considere-se, em Singular ocorrência, a ambigüidade de que se reveste o conjunto dos espaços associados à ação da personagem. Parte da “singularidade” da ocorrência que a envolve está sintetizada na simbologia, entre cristã e profana, que emana desses índices espaciais: a rua era, a princípio, o lugar de trabalho de Marocas; acolhida pelo Andrade, ela passou a residir, ironicamente, na “rua do Sacramento”, onde se deu o incidente com o Leandro; é vista agora, treze anos depois da morte do amante, trajando luto e dando esmolas no adro da “igreja da Cruz”: o conto sugere assim, na chave da ironia machadiana, uma trajetória que vai do pecado à contrição.

6.2. O tempo e os tempos da narrativaEntre as primeiras informações que buscamos numa narrativa talvez estejam

aquelas relacionadas ao elemento tempo. Em geral, procuramos nos situar quanto à época em que se desenrola a ação. A descrição dos lugares, dos modos de vestir, dos meios de transporte; a linguagem das personagens; a existência ou não de certos índices de modernidade ou de antiguidade podem nos servir de orientação. Se, como afirmou Umberto Eco, “o mundo ficcional é parasita do mundo real”, isto é, se tomamos emprestadas certas referências da realidade, para construir nossos modelos na ficção, então faz muita diferença sabermos se uma estória teria se passado, por exemplo, no século dezenove, ou na semana passada. Esses elementos servem inclusive para definir alguns subgêneros de narrativas, como o romance histórico e a ficção científica.

Uma vez situados em relação à época, passamos a acompanhar a seqüência dos eventos, pressupondo, a princípio, que ela reproduzirá a nossa experiência do tempo “real”. Segundo essa experiência, o registro dos fatos deveria ir-se acumulando numa linha infinita, os mais recentes sucedendo aos mais antigos. É assim que representamos o tempo no relógio, no calendário, em certa concepção de História. Quando o relato

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segue essa mesma ordem, dizemos que a narrativa é linear. Mas nem sempre a melhor maneira de se contar uma estória é começando do começo. E, na verdade, nem mesmo a nossa memória obedece fielmente a essa sucessão linear. Em sua função de construir estratégias para prender a nossa atenção, o autor pode, portanto, romper a linearidade, produzindo saltos para frente ou para trás na ordem cronológica da ação, antecipando ou retardando o seu desenvolvimento, ou combinando vários planos de narrativas simultâneas, numa estruturação não-linear.

Observe a seqüência dos eventos em Singular ocorrência. A conversa que se inicia nas proximidades da igreja da Cruz, entre o narrador e o narratário, corresponde ao presente da narrativa. A mulher que eles vêem entrar na igreja tem agora, aproximadamente, quarenta e seis anos. O narrador-testemunha nos remete, entretanto, ao ano de 1860, quando ela, mais jovem, conheceu o Andrade. A narrativa evolui desde o primeiro encontro até a morte desse último, após o que se passaram cerca de treze anos. Essa técnica de recuo da ação no tempo é conhecida como flashback ou analepse, e quase sempre é atribuída à reconstituição dos fatos na memória de alguma personagem. O inverso do flashback é denominado flashforward ou prolepse e consiste na antecipação de um acontecimento ao leitor, quer seja na forma de uma projeção mental ou conjectura de uma das personagens, ou simplesmente como uma pista, fornecida pelo autor, de algo que se revelará posteriormente.

Fica claro assim que, além de arbitrar sobre a disposição dos acontecimentos na organização do relato, o narrador também pode oscilar entre uma cadeia de eventos experienciada por uma personagem, e a representação de situações que ela apenas imagina, ou sonha, ou rememora. Temos assim a distinção entre o tempo cronológico, que pertence ao plano objetivo da ação narrada, e o tempo psicológico, pertencente ao nível subjetivo, isto é à interioridade da personagem.

7. A questão dos gêneros da narrativa

Embora os elementos estruturais da narrativa sejam sempre os mesmos, seu significado pode variar conforme a extensão e a complexidade da estória contada. A teoria literária costuma distinguir, nos limites do gênero narrativo, algumas modalidades, das quais destacaremos as três principais: o conto, a novela e o romance.

O conto é uma estória curta, normalmente o relato de um episódio trivial, a que o autor empresta uma significação mais ampla que a do mero fato descrito. Como conseqüência de sua brevidade, possui uma estrutura menos complexa (no sentido quantitativo) do que a da novela e a do romance. Isto não quer dizer que o conto seja mais fácil; apenas que tende a apresentar menor número de personagens que as outras formas narrativas; a desenvolver-se em torno de apenas um conflito; e a recobrir um intervalo de tempo cronológico relativamente mais curto. Em contrapartida, por estar reduzido ao essencial, obrigando-se à síntese, essa forma literária apresenta grande condensação (concentração de significados) em seus elementos estruturais: personagens, tempo, foco narrativo, espaço e enredo — tudo é escolhido e combinado de modo a produzir um efeito de intensidade na percepção do leitor, compensando assim a própria brevidade do gênero.* Já a novela, nada mais é do que um conto longo, tanto assim que, muitas vezes, nem se faz distinção, na prática, entre as duas formas. Teoricamente, a novela está a meio caminho entre o conto e o romance, no que se refere à extensão e à complexidade. Pode organizar-se como um conjunto limitado de pequenas narrativas encadeadas. Para tanto, a técnica do enquadramento, de que

(*) Os concei-tos aqui referi-dos de significa-ção, intensidade e tensão estão no ensaio Al-guns aspectos do conto, de Ju-lio Cortázar. In: Valise de cronó-pio. São Paulo: P e r s p e c t i v a , 1974. p. 147-163.

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tivemos exemplo nesta unidade, se tornará um recurso muito útil.Conto e novela distinguem-se, por fim, da estrutura de maior complexidade

e extensão que caracteriza o romance. Por tradição, o romance foi o gênero a que se atribuiu a função de compor o vasto painel das relações sociais da época moderna. Ele tende a apresentar muitas personagens e alguns conflitos secundários em torno de um conflito central, podendo estender-se por períodos relativamente longos de tempo cronológico. Wolfgang Kayser propôs uma classificação desse gênero em três categorias: o romance de ação, em que a sucessão dos eventos e suas relações causais toma o primeiro plano do relato; o romance de personagem, centrado na minuciosa construção e análise do comportamento de uma figura central; e o romance de espaço, caracterizado pelo privilégio do enfoque no meio físico e no ambiente social onde se desenvolve o enredo. A aplicação desse ou de outros esquemas tipológicos pode ser útil para a compreensão da variedade existente nos limites do gênero, desde que não se perca de vista que a função da teoria é apenas descrever, e não normatizar a criação literária.

A narrativa Singular ocorrência, que vimos analisando ao longo desta unidade, constitui um conto. Seu enredo é simples e se desenvolve, basicamente, em torno de três personagens, além do narrador: Marocas, Andrade e Leandro. Embora compreenda um período de alguns anos na vida dos protagonistas, todo o ocorrido está condensado, ou emoldurado, como dissemos, na breve duração de um diálogo. Para manter a tensão do relato, o autor sintetiza em algumas linhas as passagens menos intensas, atendo-se ao que é essencial para o desenvolvimento do enredo. Por fim, o episódio banal acaba transcendendo o nível descritivo da leitura e ensejando uma reflexão bastante corrosiva e desveladora sobre a hipocrisia que perpassa as relações sociais.

Na seqüência, vamos exemplificar os gêneros novela e romance. Faremos isto propondo a leitura de um trecho inicial de um romance e de alguns fragmentos de uma novela. O romance chama-se Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), e foi escrito por Machado de Assis, o mesmo autor do conto acima referido. A novela, do escritor romântico Álvares de Azevedo, chama-se Noite na Taverna e foi publicada em 1855. Sugerimos que, a partir da leitura atenta desses fragmentos, desenvolva-se uma comparação entre os exemplos de conto, novela e romance estudados nesta unidade.

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Memórias Póstumas de Brás Cubas

Capítulo IÓbito do Autor

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco.

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava — uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferiu à beira de minha cova: — “Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”

Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei.

E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, — a filha, um lírio-do-vale, — e... Tenham paciência! daqui a

pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.

— Morto! morto! dizia consigo.É a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem

o vôo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, — a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranqüilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte

foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-

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se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma.

Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.

Capítulo IIO emplasto

Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.

Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto antihipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos,

esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de

reconhecer os hábeis. Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado,

sede de nomeada. Digamos: — amor da glória.Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória

temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória

era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.

Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.

(Fonte: http://www.dominiopublico.gov.br)

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NOITE NA TAVERNAÁlvares de Azevedo

How now, Horatio? You tremble, and look pale. Is not this something more than phantasy?

What think you of it?Hamlet. Ato I. Shakespeare

IUMA NOITE DO SÉCULO

Bebamos! nem um canto de saudade!Morrem na embriaguez da vida as dores!Que importam sonhos, ilusões desfeitas?

Fenecem como as flores!

José Bonifácio

— Silêncio, moços! acabai com essas cantilenas horríveis! Não vedes que as mulheres dormem ébrias, macilentas como defuntos? Não sentis que o sono da embriaguez pesa negro naquelas pálpebras onde a beleza sigilou os olhares da volúpia?

— Cala-te, Johann! enquanto as mulheres dormem e Arnold — o louro, cambaleia e adormece murmurando as canções de orgia de Tieck, que música mais bela que o alarido da saturnal? Quando as nuvens correm negras no céu como um bando de corvos errantes, e a lua desmaia como a luz de uma lâmpada sobre a alvura de uma beleza que dorme, que melhor noite que a passada ao reflexo das taças?

— És um louco, Bertram! não é a lua que lá vai macilenta: e o relâmpago que passa e ri de escárnio as agonias do povo que morre... aos soluços que seguem as mortalhas do cólera!

— O cólera! e que importa? Não há por ora vida bastante nas veias do homem? Não borbulha a febre ainda as ondas do vinho? não reluz em todo o seu fogo a lâmpada da vida na lanterna do crânio?

— Vinho! Vinho! Não vês que as taças estão vazias, bebemos o vácuo, como um sonâmbulo?

— É o Fichtismo na embriaguez! Espiritualista, bebe a imaterialidade da embriaguez!

— Oh! vazio! meu copo esta vazio! Olá taverneira, não vês que as garrafas estão esgotadas? Não sabes, desgraçada, que os lábios da garrafa são como os da mulher: só valem beijos enquanto o fogo do vinho ou o fogo do amor os borrifa de lava?

— O vinho acabou-se nos copos, Bertram, mas o fumo ondula ainda nos cachimbos! Após os vapores do vinho os vapores da fumaça! Senhores, em nome de todas as nossas reminiscências, de todos os nossos sonhos que mentiram, de todas as nossas esperanças que desbotaram, uma última saúde! A taverneira ai nos trouxe mais vinho: uma saúde! O fumo e a imagem do idealismo, e o transunto de tudo quanto há mais vaporoso naquele espiritualismo que nos fala da imortalidade da alma! e pois, ao fumo das Antilhas, a imortalidade da alma!

— Bravo! bravo!Um urrah! tríplice, respondeu ao moço meio ébrio.Um conviva se ergueu entre a vozeria: contrastavam-lhe com as faces de moço as

rugas da fronte e a rouxidão dos lábios convulsos. Por entre os cabelos prateava-se-lhe o reflexo das luzes do festim. Falou:

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— Calai-vos, malditos! a imortalidade da alma!? pobres doidos! e porque a alma é bela, por que não concebeis que esse ideal posse tornar-se em lodo e podridão, como as faces belas da virgem morta, não podeis crer que ele morra? Doidos! nunca velada levastes porventura uma noite a cabeceira de um cadáver? E então não duvidastes que ele não era morto, que aquele peito e aquela fronte iam palpitar de novo, aquelas pálpebras iam abrir-se, que era apenas o ópio do sono que emudecia aquele homem? Imortalidade da alma! e por que também não sonhar a das flores, a das brisas, a dos

perfumes? Oh! não mil vezes! a alma não é como a lua, sempre moça, nua e bela em sue virgindade eterna! a vida não é mais que a reunião ao acaso das moléculas atraídas: o que era um corpo de mulher vai porventura transformar-se num cipreste ou numa nuvem de miasmas; o que era um corpo do verme vai alvejar-se no cálice da flor ou na

fronte da criança mais loira e bela. Como Schiller o disse, o átomo da inteligência de Platão foi talvez para o coração de um ser impuro. Por isso eu vo-lo direi: se entendeis a imortalidade pela metempsicose, bem! talvez eu a creia um pouco; pelo platonismo, não!

— Solfieri! és um insensato! o materialismo é árido como o deserto, é escuro

como um túmulo! A nós frontes queimadas pelo mormaço do sol da vida, a nós sobre cuja cabeça a velhice regelou os cabelos, essas crenças frias? A nós os sonhos do espiritualismo.

— Archibald! deveras, que é um sonho tudo isso! No outro tempo o sonho da minha cabeceira era o espírito puro ajoelhado no seu manto argênteo, num oceano de aromas e luzes! Ilusões! a realidade é a febre do libertino, a taça na mão, a lascívia nos lábios, e a mulher seminua, trêmula e palpitante sobre os joelhos.

— Blasfêmia! e não crês em mais nada? teu ceticismo derribou todas as estátuas do teu templo, mesmo a de Deus?

— Deus! crer em Deus!?... sim! como o grito íntimo o revela nas horas frias do medo, nas horas em que se tirita de susto e que a morte parece roçar úmida por nós! Na jangada do náufrago, no cadafalso, no deserto, sempre banhado do suor frio do terror e que vem a crença em Deus! Crer nele como a utopia do bem absoluto, o sol da luz e do amor, muito bem! Mas, se entendeis por ele os ídolos que os homens ergueram banhados de sangue e o fanatismo beija em sua inanimação de mármore de há cinco mil anos... não creio nele!

— E os livros santos?— Miséria! quando me vierdes falar em poesia eu vos direi: aí há folhas inspiradas

pela natureza ardente daquela terra como nem Homero as sonhou, como a humanidade inteira ajoelhada sobre os túmulos do passado nunca mais lembrará! Mas, quando me falarem em verdades religiosas, em visões santas, nos desvarios daquele povo estúpido, eu vos direi: miséria! miséria! três vezes miséria! Tudo aquilo é falso: mentiram como as miragens do deserto!

— Estás ébrio, Johann! O ateísmo é a insânia como o idealismo místico de Schelling, o panteísmo de Spinoza — o judeu, e o esoterismo crente de Malebranche nos seus sonhos da visão em Deus. A verdadeira filosofia e o epicurismo. Hume bem

o disse: o fim do homem é o prazer. Daí vede que é o elemento sensível quem domina.

E pois ergamo-nos, nos que amanhecemos nas noites desbotadas de estudo insano, e vimos que a ciência é falsa e esquiva, que ela mente e embriaga como um beijo de mulher.

— Bem! muito bem! é um toast de respeito!— Quero que todos se levantem, e com a cabeça descoberta digam-no: Ao Deus

Pã da natureza, aquele que a antigüidade chamou Baco o filho das coxas de um deus e

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do amor de uma mulher, e que nos chamamos melhor pelo seu nome — o vinho!...— Ao vinho! ao vinho!Os copos caíram vazios na mesa.— Agora ouvi-me, senhores! entre uma saúde e uma baforada de fumaça, quando

as cabeças queimam e os cotovelos se estendem na toalha molhada de vinho, como os braços do carniceiro no cepo gotejante, o que nos cabe é uma historia sanguinolenta, um daqueles contos fantásticos como Hoffmann os delirava ao clarão dourado do Johannisberg!

— Uma história medonha, não, Archibald? falou um moço pálido que a esse reclamo erguera a cabeça amarelenta. Pois bem, dir-vos-ei uma historia. Mas quanto a essa, podeis tremer a gosto, podeis suar a frio da fronte grossas bagas de terror. Não é um conto, é uma lembrança do passado.

— Solfieri! Solfieri! aí vens com teus sonhos!

— Conta! Solfieri falou: os mais fizeram silêncio.

IISOLFIERI

...Yet one kiss on your pale clayAnd those lips once so warm — my heart! my heart!

Cain. Byron

— Sabei-lo. Roma é a cidade do fanatismo e da perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia, no leito da vendida se pendura o Crucifixo lívido. É um requintar de gozo blasfemo que mescla o sacrilégio à convulsão do amor, o beijo lascivo à embriaguez da crença!

— Era em Roma. Uma noite a lua ia bela como vai ela no verão pôr aquele céu morno, o fresco das águas se exalava como um suspiro do leito do Tibre. A noite ia bela. Eu passeava a sós pela ponte de... As luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as ruas se faziam ermas, e a lua de sonolenta se escondia no leito de nuvens. Uma sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma forma branca. — A face daquela mulher era como a de uma estátua pálida à lua. Pelas faces dela, como gotas de uma taça caída, rolavam fios de lágrimas.

Eu me encostei a aresta de um palácio. A visão desapareceu no escuro da janela... e daí um canto se derramava. Não era só uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi, um como gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento a noite nos cemitérios cantando a nênia das flores murchas da morte.

Depois o canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém nas ruas. Não viu a ninguém: saiu. Eu segui-a. A noite ia cada vez mais alta: a lua sumira-se no céu, e a chuva caía as gotas pesadas: apenas eu sentia nas faces caírem-me grossas lágrimas de água, como sobre um túmulo prantos de órfão.

Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim ela parou: estávamos num campo. Aqui, ali, além eram cruzes que se erguiam de entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno dela passavam as aves da noite. Não sei se adormeci: sei apenas que quando amanheceu achei-me a sós no cemitério. Contudo a criatura pálida não fora uma ilusão: as urzes, as cicutas do campo-santo estavam quebradas junto a uma cruz.

O frio da noite, aquele sono dormido à chuva, causaram-me uma febre. No meu delírio passava e repassava aquela brancura de mulher, gemiam aqueles soluços e todo

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aquele devaneio se perdia num canto suavíssimo...Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres nada me saciava: no sono

da saciedade me vinha aquela visão...Uma noite, e após uma orgia, eu deixara dormida no leito dela a condessa Bárbara.

Dei um último olhar àquela forma nua e adormecida com a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos, gemendo ainda nos sonhos como na agonia voluptuosa do amor. Saí. Não sei se a noite era límpida ou negra; sei apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez. As taças tinham ficado vazias na mesa: nos lábios daquela criatura eu bebera até a última gota o vinho do deleite...

Quando dei acordo de mim estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abri-o: era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez lívida e embaçada, o vidrento dos olhos mal apertados... Era uma defunta! ... e aqueles traços todos me lembraram uma idéia perdida. . — Era o anjo do cemitério? Cerrei as portas da igreja, que, ignoro por que, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como chumbo...

Sabeis a historia de Maria Stuart degolada e o algoz, “do cadáver sem cabeça e o homem sem coração” como a conta Brantôme? — Foi uma idéia singular a que eu tive. Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo as despe a noiva. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela. A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra os mármores antigos. O gozo foi fervoroso — cevei em perdição aquela vigília. A madrugada passava já frouxa nas janelas. Àquele calor de meu peito, à febre de meus lábios, à convulsão de meu amor, a donzela pálida parecia reanimar-se. Súbito abriu os olhos empanados. Luz sombria alumiou-os como a de uma estrela entre névoa, apertou-me em seus braços, um suspiro ondeou-lhe nos beiços azulados... Não era já a morte: era um desmaio. No aperto daquele abraço havia contudo alguma coisa de horrível. O leito de lájea onde eu passara uma hora de embriaguez me resfriava. Pude a custo soltar-me daquele aperto do peito dela... Nesse instante ela acordou…

Nunca ouvistes falar da catalepsia? É um pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que emparedam num sepulcro; sonho gelado em que sentem-se os membros tolhidos, e as faces banhadas de lágrimas alheias sem poder revelar a vida!

A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar desmaiara. Embucei-me na capa e tomei-a nos braços coberta com seu sudário como uma criança. Ao aproximar-me da porta topei num corpo; abaixei-me, olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja que aí dormira de ébrio, esquecido de fechar a porta.

Saí. Ao passar a praça encontrei uma patrulha.— Que levas aí?A noite era muito alta: talvez me cressem um ladrão.— É minha mulher que vai desmaiada...— Uma mulher!... Mas essa roupa branca e longa? Serás acaso roubador de

cadáveres?Um guarda aproximou-se. Tocou-lhe a fronte: era fria.— É uma defunta...Cheguei meus lábios aos dela. Senti um bafejo morno. — Era a vida ainda.— Vede, disse eu.O guarda chegou-lhe os lábios: os beiços ásperos roçaram pelos da moça. Se eu

sentisse o estalar de um beijo... o punhal já estava nu em minhas mãos frias...

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— Boa noite, moço: podes seguir, disse ele.Caminhei. — Estava cansado. Custava a carregar o meu fardo; e eu sentia que a

moça ia despertar. Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem, corri com mais esforço. Quando eu passei a porta ela acordou. O primeiro som que lhe saiu da boca foi um grito de medo...

Mal eu fechara a porta, bateram nela. Era um bando de libertinos meus companheiros que voltavam da orgia. Reclamaram que abrisse. Fechei a moça no meu quarto, e abri.

Meia hora depois eu os deixava na sala bebendo ainda. A turvação da embriaguez fez que não notassem minha ausência. Quando entrei no quarto da moça, vi-a erguida. Ria de um rir convulso como a insânia, e frio como a folha de uma espada. Trespassava de dor o ouvi-la. Dois dias e duas noites levou ela de febre assim... Não houve como sanar-lhe aquele delírio, nem o rir do frenesi. Morreu depois de duas noites e dois dias de delírio.

A noite saí; fui ter com um estatuário que trabalhava perfeitamente em cera, e paguei-lhe uma estátua dessa virgem.

Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de mármore do meu quarto, e com as mãos cavei aí um túmulo. Tomei-a então pela última vez nos braços, apertei-a a meu peito muda e fria, beijei-a e cobri-a adormecida do sono eterno com o lençol de seu leito. Fechei-a no seu túmulo e estendi meu leito sobre ele.

Um ano — noite a noite — dormi sobre as lajes que a cobriam. Um dia o estatuário me trouxe a sua obra. Paguei-lha e paguei o segredo...

— Não te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entreviste pelo véu do meu cortinado? Não te lembras que eu te respondi que era uma virgem que dormia?

— E quem era essa mulher, Solfieri?— Quem era? Seu nome?— Quem se importa com uma palavra quando sente que o vinho lhe queima

assaz os lábios? quem pergunta o nome da prostituta com quem dormia e que sentiu morrer a seus beijos, quando nem há dele mister por escrever-lho na lousa?

Solfieri encheu uma taça e bebeu-a. Ia erguer-se da mesa quando um dos convivas tomou-o pelo braço.

— Solfieri, não é um conto isso tudo?— Pelo inferno que não! Por meu pai que era conde e bandido, por minha mãe

que era a bela Messalina das ruas, pela perdição que não! Desde que eu próprio calquei aquela mulher com meus pés na sua cova de terra, eu vo-lo juro — guardei-lhe como amuleto a capela de defunta. Ei-la!

Abriu a camisa, e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas.—Vede-la murcha e seca como o crânio dela!

(Fonte: http://www.dominiopublico.gov.br)

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UNIDADE IIIESTUDO DE TEXTO: O DIREITO À LITERATURA

1. Leitura e discussão orientada do texto “O direito à literatura”, de Antonio Candido.

1.1. Tópico 1: Reflexões prévias a respeito dos direitos humanos em nossa

contemporaneidade

1.2. Tópico 2:. A fruição da literatura como um direito humano inalienável.

Tópico 3: O caráter universal e humanizador da literatura

Tópico 4: Da natureza da literatura

Tópico 5: Literatura e desmascaramento social

1.5.1. A literatura no Brasil como libelo contra a escravidão1.5.2. O romance social europeu do século XIX1. 5.3. O romance modernista do Nordeste

UNIDADE IIIESTUDO DE TEXTO: O DIREITO À LITERATURA

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