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Parte 1

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1Conceito e classificações

das ConstituiçõesSumário: 1. O que é uma Constituição? Conceito de Constituição e Constitucionalismo. Uma advertência inicial – 2. Um ponto de partida: o conceito histórico-universal e a primeira defini-ção de Constituição: a Constituição material como Constituição real: 2.1. A Constituição mate-rial e o seu sentido jurídico – Normativo. O movimento do Constitucionalismo na Inglaterra do Século XVII. A definição de Constitucionalismo; 2.2. O surgimento das Constituições formais no movimento do constitucionalismo. A Constituição (moderna) como a ordenação sistemática e racional da comunidade política, plasmada em um documento escrito; 2.3. Mas o que aconte-ce com a Constituição material? Ela deixa de existir juridicamente com o surgimento das Cons-tituições formais?; 2.4. A Constituição formal e a sua relação com a constituição material no decorrer do tempo. Uma rápida advertência!; 2.5. Última digressão: o que é mesmo a Consti-tuição Formal? A definição de supralegalidade desenvolvida e explicitada nos EUA no começo do século XIX – 3. Classificações das Constituições: teorias tradicionais e usuais na doutrina pátria – 4. Classificação ontológica (ou essencialista) das Constituições de Karl Löewenstein – 5. Reflexões sobre as classificações tradicionais; o conceito de bloco de constitucionalidade; e o entendimento sobre a denominação intitulada de Neoconstitucionalismo – 6. Última di-gressão sobre a classificação das Constituições. O nosso ponto de vista (que nós defendemos e não apenas descrevemos): a classificação paradigmática das Constituições, com base na teoria discursiva da Constituição de Jürgen Habermas: uma abordagem crítico-reflexiva das Constituições Clássicas (Estado Liberal), Sociais (Estado Social) e de Estado Democrático de Direito – 7. Sentidos ou concepções do termo Constituição: sentidos clássicos e contempo-râneos: 7.1. A Constituição dirigente de J. J. Gomes Canotilho: o debate sobre a constituição dirigente e o constitucionalismo moralmente reflexivo; 7.2. A Constituição para a Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann; 7.3. A Constituição na Teoria Discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito de Jürgen Habermas; 7.4. A sociedade aberta de intérpretes da Cons-tituição de Peter Häberle: Constituição como cultura e processo público; 7.5. A Força normati-va da Constituição e a Constituição Aberta de Konrad Hesse; 7.6. A Constituição Simbólica de Marcelo Neves e as digressões sobre o Transconstitucionalismo (Tese do Transconstituciona-lismo); 7.7. O conceito Pluridimensional de Constituição de José Adércio Leite Sampaio; 7.8. O (novo) Constitucionalismo Plurinacional da América Latina e sua ruptura paradigmática – 8. Classificação quanto à aplicabilidade das Normas Constitucionais: Teoria de José Afonso da Silva – 9. Classificação quanto à aplicabilidade das normas constitucionais de Carlos Ayres Britto e Celso Ribeiro Bastos – 10. Classificação quanto à aplicabilidade das normas constitu-cionais de Maria Helena Diniz – 11. Classificação quanto à aplicabilidade das normas consti-tucionais de Luís Roberto Barroso – 12. Classificação trabalhada por Uadi Lammêgo Bulos das normas constitucionais de eficácia exaurida – 13. Estrutura e Elementos das Constituições.

1. O QUE É UMA CONSTITUIÇÃO? CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO E CONSTITU-CIONALISMO. UMA ADVERTÊNCIA INICIAL

Estabelecer o conceito de Constituição1 é, sem dúvida, uma tarefa árdua, pois, conforme iremos observar, o termo é multifacetado, não havendo uma linearidade

1. Em sentido lato (senso comum), a palavra Constituição é entendida costumeiramente como o ato de instituir, formar, estabelecer, criar, enfim, constituir: algo, alguma coisa, algum objeto, um ato, uma ideia, uma ação, ou

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e univocidade em torno de sua base semântica. Sem dúvida, não há, na literatura constitucionalista atual, um conceito único de Constituição, e nem mesmo que se possa considerar, tendencialmente, como dominante.2

Obviamente, qualquer conceito desenvolvido partirá de uma pré-compreen-são subjacente, fruto da tradição na qual o autor está inserido. E, aqui, nossa primeira crítica a autores que citam, apenas por citar, conceitos e definições que vão do nada ao simplesmente nada aparecendo, sem uma devida contex-tualização do porque estão ali inseridos. É bem verdade que somos forçados a memorizar algumas definições que dizem respeito ao sentido (ou concepção) das Constituições. Os alunos de graduação e já graduados que se preparam para con-cursos públicos (Magistratura, Ministério Público etc.) são compelidos a conhecer tais conceitos, sem nenhuma reflexão crítica ou mesmo enquadramento teórico minimamente sustentável.

Conceitos, definições, classificações não surgem do nada! O cientista do direito, como qualquer outro cientista, seja de qual ciência for, não é, como se pensava ou-trora (iluministicamente), um ser neutro e indiferente ao seu contexto (descontex-tualizado) e ao seu tempo (a-histórico), que produz com o fruto de sua neutralidade e distanciamento, de suas digressões puras, inquestionáveis e absolutas.

Pois bem, o século passado (século XX) nos ensinou que as verdades produzi-das na ciência só são realmente científicas se passíveis de refutação (falibilismo) e que, portanto, são verdades datadas, históricas e eminentemente contingenciais. Ou seja, apreendemos com H. G. Gadamer3 (entre outros autores pós-giro hermenêuti-co e linguístico) que o nosso olhar é sempre socialmente condicionado, pois nunca temos acesso direto a um objeto (seja ele qual for, incluindo as normas jurídicas), que é sempre mediatizado por nossas vivências e tradições (pré-compreensões), às quais, querendo ou não, estamos imersos.

mesmo um ser vivo. Se há uma (seja em qualquer dos sentidos apresentados) Constituição em algo (entendido esse algo como um ser, seja concreto ou abstrato) é porque o mesmo existe em detrimento do não constituído, do não formado, do carente de formação, ou mesmo do que está em vias de formação. Embora de cunho ontoló-gico (essencialista), essa perspectiva é usual nos manuais pátrios.

2. Nesse sentido são as análises de J. J. Gomes Canotilho, que aponta, inclusive, os motivos principais de tais di-vergências na doutrina constitucionalista. Segundo o autor de Coimbra, os motivos (explicações) para as dis-crepâncias doutrinárias seriam das mais diversas ordens, tais como: 1) aqueles que se relacionam com as próprias concepções de direito e de Estado, surgindo, por isso, concepções positivistas, concepções decisionistas e concepções materiais de Constituição. 2) outros que dizem respeito à função e estrutura da Constituição e nesses termos teríamos as Constituições garantia, Constituições programa, Constituições processuais além das “famosas” Constituições diri-gentes. 3) outros que se relacionam com a abertura ou com o caráter cerrado dos documentos constitucionais, aludin-do a Constituições ideológicas e Constituições neutrais dotadas de uma “pretensa” neutralidade; 4) outros envolveriam o “modus” do compromisso ou consenso constituinte e, daí, a alusão a Constituições compromissórias, consensuais ou pactuadas; 5) teríamos, também, motivos que diriam respeito a perspectiva ideológica dominante nos textos constitu-cionais, surgindo daí Constituições de cunho socialista, social-democrata e liberais, bem como Constituições sociais (de Welfare State) e de Estado Democrático de Direito. (Direito constitucional e teoria da Constituição, 2003).

3. GADAMER, Hans Georg, Verdade e método. v. I e II.

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2. UM PONTO DE PARTIDA: O CONCEITO HISTÓRICO-UNIVERSAL E A PRIMEIRA DEFINIÇÃO DE CONSTITUIÇÃO: A CONSTITUIÇÃO MATERIAL COMO CONSTI-TUIÇÃO REAL

Conforme observado, se quisermos saber o que é uma Constituição e o que ela pode vir a significar, será sempre necessário adotarmos (convencionalmente) um ponto de partida. Entre diversos (existentes), iremos escolher um que, didaticamen-te, irá facilitar o entendimento básico sobre o que seja uma Constituição e, a partir daí, das classificações das Constituições adotadas, majoritariamente, no Brasil.

Essas classificações, que de há muito fazem parte dos manuais de Direito Cons-titucional brasileiros, já foram abandonadas em boa parte da Europa, na primeira metade do século XX.4 Mas, por incrível que pareça, apesar de inadequadas e com alto grau de inconsistência, são cobradas, ainda hoje, em provas (da OAB e das principais carreiras jurídicas nacionais) e são trabalhadas nas graduações. É mister construirmos uma base lógica em torno delas para que possamos apresentá-la de-vidamente. Senão, vejamos!

Iremos, então, partir da seguinte digressão: “Em todos os lugares do mundo e em todas as épocas sempre existiu e sempre existirá isso que chamamos de Cons-tituição.”5

Ora, mesmo não definindo o que seja uma Constituição e seu significado, par-timos de uma digressão de que ela sempre existiu e sempre existirá (perspectiva temporal) e em todos os lugares (perspectiva espacial-universal). No entanto, como a Constituição (que ainda não sabemos o que é) sempre existiu? E que tipo de Cons-tituição é essa que existe desde os primórdios? Ela se confunde com as atuais que conhecemos? As Constituições escritas que conhecemos e que ora encontramos na maioria dos países não são uma criação tipicamente moderna? Como então falar em Constituição em períodos arcaicos?

Bem, para provar a existência da Constituição devemos nos ater à seguinte per-gunta: o que necessitamos para vislumbrar uma determinada comunidade, socieda-de ou (modernamente falando) um Estado? Ou seja, quais as matérias fundamentais

4. Temas de debate como: Constituições formais, materiais, rígidas, flexíveis, escritas, não escritas etc., não fazem parte do ambiente doutrinário de inúmeros países da Europa na atualidade. Os autores não trabalham com classi-ficações de cunho nem mesmo semântico, mas ainda sintático! São conceitos esvaziados de sentido à luz de uma Teoria da Constituição não só ontológica (à qual já criticava essas classificações), mas atualmente pós-ontológica nas pegadas de um constitucionalismo discursivo que foge ao objetivo da obra esmiuçar, mas que aqui será de-fendido ainda que como pano de fundo paradigmático. A dicotomia Constituição formal X Constituição material que marcará o início de nossa abordagem também sofre críticas de outras importantes vertentes (embora não atreladas a teoria discursiva da Constituição) do constitucionalismo nacional e internacional. Nesses termos, em excelente abordagem José Adércio Leite Sampaio nos afirma que “as teorias formais e materiais da Constituição se revestiriam de uma visão unilateral de Constituição”, causando, com isso um “déficit constante de eficácia e prestígio constitucional.” (SAMPAIO, José Adércio Leite, Teorias constitucionais em perspectiva, 2004, p. 8 e 54).

5. Digressão desenvolvida propedeuticamente por Ferdinand Lassalle (1863) em seus estudos.

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(fundantes, basilares) para que consigamos enxergar determinadas comunidades (sociedades ou Estados)?

Entre vários elementos (matérias) podemos trabalhar com três:

a) Identidade: ideia de “nós e outros” (alteridade), noção de pertencimento. Aqui-lo que, por exemplo, me permite afirmar que sou cidadão de Esparta e não de Atenas.

b) Organização social e especialização (hierárquica e de linha sucessória): quem detêm o poder (mando), como manda e como se dá a reprodução social nessa estrutura.

c) Valores subjacentes (regras): preestabelecidos e naturalizados a partir de um processo construtivo que permitiu, inclusive e sobretudo, desenvolver um tipo de organização social e especialização de poder, bem como possibilitou a cons-trução de uma identidade, diferenciando-se de outras identidades.

Pois bem, com a junção desses elementos (matérias) o que temos? O que vis-lumbramos? O que enxergamos? Temos, sem dúvida, o nascimento, a formação ou criação de comunidades, sociedades ou sociedades políticas, denominadas Estados. Ou seja, essas matérias explicitam como os Estados existem e se reproduzem como tais com os seus respectivos “modos de ser”. E se existem como comunidades, so-ciedades ou Estados é porque foram constituídos e, portanto, a partir daí eles têm uma determinada Constituição.

Nesses termos, a Constituição poderia ser definida, a priori, como “o modo de ser” de uma comunidade, sociedade ou Estado.6 Ou seja, como ele (a) é e está cons-tituído (a), formado (a), e, portanto, existe em relação com outras (o) comunidades, sociedades ou Estados. No entanto, que definição é essa? Ora é fácil! Se estamos diante de matérias que constituíram essas sociedades e sem elas não seriam vis-lumbradas como sociedades, conforme observamos, essa Constituição só pode ser definida sociologicamente como uma Constituição material (real).

Voltando ao ponto de partida: se sempre existiu Constituição no mundo, sempre existiu Constituição material (real), ou seja, matérias que constituíram comunidades, sociedades e Estados que se diferenciaram (com seus respectivos “modos de ser”) fazendo com que cada um sociologicamente tivesse uma determinada Constituição. Portanto, a conclusão é que todos os países (Estados ou mesmo comunidades)

6. Aristóteles, em A Política, afirma ser a Constituição (politeia) o modo de ser da polis. Nesses termos a mesma seria a “totalidade da estrutura social da comunidade”. Ver: ARISTÓTELES, A política. 2. ed. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1988. [Clássicos da Filosofia]. Fioravanti (Constitución, p. 19), compreende a politeia gre-ga como um instrumento conceitual que busca definir uma forma de governo adequada à realidade do século IV, ao mesmo tempo que reforce a unidade da polis, dissolvendo as crises que se insurgem. Por isso mesmo, uma tradução, para nossos tempos, como sinônimo de “Constituição” não é apenas correto, mas apropriado do ponto de vista hermenêutico.

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possuíram em todos os momentos de sua história Constituições reais e efetivas à luz, sobretudo, de uma perspectiva eminentemente sociológica.

Nesse sentido, é mister afirmar que a Constituição material, num primeiro mo-mento, é entendida como Constituição real.7 Sendo assim, trata-se de um conceito de cunho sociológico, afeto à sociologia e, porque não dizer, hodiernamente, à sociologia do direito.

Entretanto, o conceito de Constituição material como Constituição real e efe-tiva não resolve nosso problema, na medida em que apenas demonstra que a reprodução social de diferentes comunidades constituídas (forjadas ou criadas), no decorrer dos séculos, com suas peculiaridades e fatores (reais) de poder, as dife-renciaram de outras comunidades.

No entanto, como, então, trabalhar um conceito de Constituição que não seja apenas sociológico? Se há milênios sempre existiu Constituição, quando a mesma deixou de ser algo, em regra, implícito (às costas da comunidade como seu “modo de ser”, muitas vezes naturalizado) e passou a ser algo explícito (expresso) e “cons-titutivo” das comunidades, ou melhor, daquilo que poderíamos chamar juridicamen-te de “novas” comunidades?

2.1. A Constituição material e o seu sentido jurídico – Normativo. O movimento do Constitucionalismo na Inglaterra do Século XVII. A definição de Constitucio-nalismo

Se a Constituição real é o modo ser de uma comunidade, na medida em que carrega as matérias constitutivas de um modo de ser de Estado e de Sociedade, a partir dos séculos XVII e XVIII ela ganha contornos tipicamente jurídico-normati-vos. Sem dúvida, a ideia de organização constitucional formal (formalizada) dos Estados se estabelece (se funda), de forma solene, no século XVIII com o denomi-nado “movimento do constitucionalismo” que guarda íntima relação com as revo-luções americana e francesa. No entanto, apesar daquilo que chamamos de ordem

7. J. J. Gomes Canotilho, em antiga edição de sua monumental Teoria da Constituição e Direito Constitucional, definiu a Constituição material como Constituição real nos seguintes termos: “Constituição real (material) entendi-da como o conjunto de forças políticas, ideológicas e econômicas, operantes na comunidade e decisiva-mente condicionadoras de todo o ordenamento jurídico.” Noutros termos pertencentes a autores contem-porâneos: “a constituição real é o conjunto de valores e de escolhas políticas de fundo, condivididas pelas forças políticas da maioria ou pelas forças políticas hegemônicas num determinado sistema Constitucional (BARTOLE)”; “a constituição real é conjunto de valores, princípios e praxes que constituem à visão ético-político essencial em torno da qual se agregam as forças hegemônicas da comunidade (BOGNETTI)”. (6. ed. 1993, p. 67). Famosa também é a definição de Constituição real de Ferdinand Lassalle (1825-1864) em sua obra (citada acima) de 1863, intitulada A Essência da Constituição, na qual entende a mesma como os “fatores reais de poder que regem e determinam um país”. Teríamos, segundo o jurista Prussiano do século XIX, um conjunto de forças que atuam para manter as instituições vigentes em uma dada época histórica formando uma Constituição muito maior do que aquela estabelecida na “folha de papel” (Constituição escrita) sendo esta sim a Constituição por excelência “real e efetiva”.

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constitucional formal surgir apenas no constitucionalismo americano e francês, não podemos desconsiderar a existência de um constitucionalismo britânico.

Este, apesar de não estabelecer a formalização das constituições (Constituições formais), consolidou-se no século XVII com a Revolução Gloriosa de 1688-89 e a afir-mação da Supremacia do Parlamento, após um longo processo de sedimentação que teve início no século XIII (com a Magna Carta de 1215). Nesse sentido, passamos a ter a Constituição material como efetivamente jurídica, nos moldes modernos (constitucionalismo moderno).

A Constituição material passou a ser, a partir da experiência inglesa, enten-dida como o conjunto de normas juridicamente instituidoras de uma comunidade (tipicamente constitutivas do Estado e da Sociedade).8 Nesses termos, podemos afirmar, repita-se, que, como resultado de um longo processo, o século XVII condu-ziu ao surgimento de uma (“nova”) ordem constitucional material, ou seja, de uma Constituição material normativamente institucionalizada com matérias tipicamente constitutivas do Estado e da Sociedade.

Nesse sentido, urge salientar algo pouco explorado na doutrina pátria que se refere ao que comumente chamamos de constitucionalismo ou de movimento do Constitucionalismo. Parafraseando o magistral escritor mineiro Guimarães Rosa que dizia que “Minas são muitas”, também os constitucionalismos, ou, de forma mais rigorosa,9 “os movimentos constitucionais são muitos” e não podem ser reduzidos (como não raro ocorre) ao fervor revolucionário americano e, posteriormente, o francês.

O constitucionalismo (moderno) pode ser entendido como um movimento que traz consigo objetivos que, sem dúvida, irão fundar (constituir) uma nova ordem, sem precedentes na história da constituição das sociedades, formando aquilo que Rogério Soares chamou de “conceito ocidental de Constituição”. Nesse diapasão, se perguntássemos sobre os dois grandes objetivos do constitucionalismo, qual seria a resposta? Ora, não tenhamos dúvidas que seriam:

8. Não se poderia furtar de mencionar o exercício de reconstrução histórica do constitucionalismo inglês trazido por Cristiano Otávio Paixão Araújo Pinto em sua primeira parte de sua tese de doutoramento junto ao programa de Pós-graduação da UFMG, intitulada “A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro de 2001 e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: um estudo a partir da teoria da diferenciação do direito”.

9. Concordamos com J. J. Gomes Canotilho quando o mesmo se posiciona no sentido de afirmar que é mais rigo-roso falar de vários movimentos constitucionais do que de vários constitucionalismos (embora o próprio autor, em passagem anterior de sua obra, cite a existência de pelo menos três Constitucionalismos: inglês, americano, francês). Segundo o autor in verbis: “E dizemos ser mais rigoroso falar de vários movimentos constitucionais do que de vários constitucionalismos porque isso permite recortar uma noção básica de constitucionalismo. Cons-titucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Nesse sentido o constitu-cionalismo representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos.” (Direito constitucio-nal e teoria da Constituição, 2003).

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1) A limitação do poder com a necessária organização e estruturação do Estado (Estados nacionais que já eram, mas a partir daí se afirmam como, não mais absolutos). Em consequência disso, se desenvolveram teorias consubstanciadas na praxis, como a “teoria da separação dos poderes”, além de uma redefinição do funcionamento organizacional do Estado;

2) A consecução (com o devido reconhecimento) de direitos e garantias funda-mentais (num primeiro momento, com a afirmação em termos pelo menos for-mais da: igualdade, liberdade e propriedade de todos).

Concluindo, com Canotilho, os temas centrais do constitucionalismo se relacio-nam com a fundação e legitimação do poder político (em contraponto a um poder absoluto) e a constitucionalização das liberdades individuais.

No entanto, o constitucionalismo moderno, com esses traços marcantes, se apresenta, conforme já salientado, de forma diferenciada na tradição inglesa (e também na tradição francesa e americana, embora ambas trabalhem de forma semelhante com o que chamaremos, logo a seguir, de constituições formais). Nesse sentido, o constitucionalismo moderno (com seu intitulado conceito ocidental de constituição) é também tributário de uma “dimensão histórico-constitucional” de viés inglês (English Constitution) que se desenvolveu por meio de momentos consti-tucionais desde a Magna Carta de 1215 à Petition of Rights, de 1628, do Habeas Cor-pus Act de 1679 ao Bill of Rights de 1689, que acabaram por sedimentar “dimensões estruturantes” de um Constitucionalismo ocidental.10

2.2. O surgimento das Constituições formais no movimento do constitucionalis-mo. A Constituição (moderna) como a ordenação sistemática e racional da comu-nidade política, plasmada em um documento escrito

Conforme trabalhado alhures, é certo que, após séculos de sedimentação e con-solidação, podemos observar nitidamente a constituição material normativamente

10. Nesse sentido, temos o que J. J. Gomes Canotilho chamará de cristalizações jurídico-constitucionais do mo-vimento do constitucionalismo de viés inglês, que passaram a fazer parte do patrimônio criador (formador) do modelo ocidental de Constituição. Sendo as mesmas: 1º) a noção de que a liberdade estaria radicada subje-tivamente como liberdade pessoal de todos os ingleses e como segurança das pessoas e dos bens de que se é proprietário no sentido indicado pelo art. 39 da Magna Carta; 2º) a garantia da liberdade e da segurança jurídica impôs a criação de um processo justo regulado por lei (due process of law), no qual se estabeleceria as regras disci-plinadoras da privação da liberdade e da propriedade; 3º) as leis do país (laws of the land) reguladoras das tutelas das liberdades são dinamicamente interpretadas e reveladas pelos juízes – e não pelo legislador – que assim vão consubstanciando o chamado direito comum (common law) de todos os ingleses; e 4º) a partir, sobretudo, da Revolução Gloriosa (1688-89) ganha (adquire) estatuto constitucional a ideia de representação e soberania parlamentar indispensável à estruturação de um governo moderado. O poder deixa de ser concentrado nas mãos do monarca e passa a ser de forma mista perfilhado por outros órgãos do governo (conjunção: Rei – parlamento com a supremacia deste). Nesses termos (apesar de alguns resquícios medievais só vencidos posteriormente com as revoluções francesa e americana), a intitulada soberania do parlamento na Inglaterra do século XVII exprimirá (também) a ideia de que o poder supremo deveria exercer-se através da forma da lei do parlamento. Essa ideia estará na gênese de um princípio básico do constitucionalismo: the rule of law. (Direito constitucional e teoria da Constituição, 2003).

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consubstanciada por meio de um conjunto de documentos que estabeleceriam uma verdadeira Constituição britânica materialmente verificável à luz, sobretudo, da Revolução Gloriosa.

Contudo, também, é certo que, logo em seguida, no século XVIII, teremos o constitucionalismo moldado por teóricos e revolucionários norte-americanos e fran-ceses, nos seus respectivos contextos, levado às últimas consequências como pac-to fundador de um novo Estado e de uma nova sociedade. Temos então: a “era das Constituições formalizadas (formais) em um documento escrito”. A Constituição passa a ser entendida como “a ordenação sistemática e racional da comunidade política plasmada em um documento escrito, no qual se fixam os limites do poder político e declaram-se direitos e liberdades fundamentais.” A Constituição deixa de ser um “modo de ser” da comunidade (como ela simplesmente é) para se tornar o “ato constitutivo” (criador, formador, fundante) da (nova) comunidade.11

É claro que esse conceito moderno (ou ocidental de constituição), típico do constitucionalismo iluminista (oitocentista) é ideal (dotado de uma idealidade),12 mas, nem por isso, deixa de ser paradigmático, apresentando-se como fruto das pré-compreensões subjacentes ao contexto revolucionário de ideologia liberal-bur-guesa, que propugnou a ruptura com cânones de um Estado nacional absoluto (ou até mesmo, ainda, estamental).

Vejam bem: inicia-se a noção da constituição como algo que funda uma nova sociedade, como um documento escrito que se projeta para o futuro a partir da sua criação (produção) e que todos devem respeito, independentemente de sua posição social (status) ou até mesmo de sua colocação na estrutura organizacional do Estado (ideia do governo das leis e não dos homens).13

Nesses termos, concluímos explicitando, mais uma vez, as bases da Constituição formal reduzida à forma (fôrma ou formato), escrita no fim do século XVIII. Essas constituições vão: 1) ordenar em termos jurídico–políticos o Estado, agora, por meio

11. SOARES, Rogério, O conceito ocidental de Constituição.12. Trata-se de uma definição que, conforme J. J. Gomes Canotilho, não se apresenta perfeita a nenhum dos mo-

delos históricos de constitucionalismo. Exemplifica o autor que: um Englishman sentir-se-á arrepiado ao falar de uma ordenação sistemática e racional da comunidade através de um documento escrito. Para ele – The English Constitution – será a sedimentação histórica de direitos adquiridos pelos ingleses e o alicerçamento, também histórico, de um governo balanceado e moderado (the balanced constitution). A um Founding Father (e a um qual-quer americano) não repugnaria a ideia de uma carta escrita garantidora de direitos e reguladora de um governo com freios e contrapesos feita por um poder constituinte, mas já não se identificará com qualquer sugestão de uma cultura projetante traduzida na programação racional e sistemática da comunidade. Aos olhos de um cito-yen revolucionário ou de um “vintista exaltado” português a constituição teria de transportar necessariamente um momento de ruptura e um momento construtivista. Momento de ruptura com a ordem “histórico-natural das coisas”, outra coisa não era senão os privileges do ancien regime. Momento construtivista porque a Constituição, feita por um novo poder – o poder constituinte –, teria de definir os esquemas ou projetos de ordenação de uma ordem racionalmente construída. (Direito constitucional e teoria da Constituição. 2003).

13. Hannah Arendt (Da Revolução) e Bernard Bailyn (As origens ideológicas da Revolução americana) relatam bem como o movimento revolucionário norte-americano encontrou no processo de elaboração da Constituição o seu ápice, consagrando uma abertura para o futuro no sentido da inauguração de uma “nova ordem” político-jurídica.

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de um documento (pacto) escrito; 2) declarar nessa carta escrita um conjunto de di-reitos fundamentais e o respectivo modo de garantia; 3) organizar o poder político segundo esquemas tendentes a tornar um poder limitado e moderado.

2.3. Mas o que acontece com a Constituição material? Ela deixa de existir juridi-camente com o surgimento das Constituições formais?

Com a ruptura que envolve o nascimento das Constituições (formais), explici-tadas sob a forma escrita, o que ocorre com a Constituição material (em sentido normativo)? É mister afirmar que, conforme discorremos anteriormente, a constitui-ção material, sedimentada juridicamente, após longo processo, envolve as matérias tipicamente constitutivas (normativamente fundantes) do Estado e da sociedade e, obviamente, não vão desaparecer com a efetivação das Constituições formais. Mas o que será feito delas?

Ora, a Constituição formal é fruto de um Poder Constituinte originário que a produz, inserindo as matérias que considera fundamentais para a constituição de um Estado. Então, acreditamos que, pelo menos num primeiro momento, as maté-rias (realmente) constitucionais (típicas da Constituição material) vão ser alocadas na Constituição formal, sendo reduzidas a termo escrito. Mas, uma pergunta sem-pre nos vem à mente: quais seriam essas matérias em pleno século XVIII? Momento justamente de ruptura (iluminista, cientificista, racionalista, de ideologia liberal--burguesa) com Estados absolutos (e a falta de limite para o exercício poder) e com os privilégios de nascimento (estamentais)?

Sem dúvida, as matérias tipicamente constitutivas do Estado e da Sociedade (constituição material), alocadas na Constituição formal, vão envolver claramen-te a organização do Estado (sua estruturação) e os direitos e garantias funda-mentais. Nunca é demais lembrar que esses foram os dois grandes objetivos do movimento do Constitucionalismo (moderno) que formalizou às constituições no século XVIII.

Isso pode ser, inclusive, referendado (provado) pelo teor de um famoso artigo da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, no qual fica claro a força da ideologia dominante do paradigma de Estado liberal de então, bem como no constitucionalismo forjado no seu seio. Nesse sentido, o art. 16 da Decla-ração acaba inclusive determinando os Estados que teriam Constituição (formal) e os Estados que não teriam Constituição (formal), na medida em que afirma literal-mente nesse sentido: “os Estados que não tivessem o princípio da separação de poderes (limitação de poder) e os direitos e liberdades fundamentais, plasmados em um documento escrito não teriam Constituição (formal).”

Portanto, a Constituição material acaba sendo, à luz da própria ideologia do-minante, abarcada pela constituição formal produzida pelo movimento constitucio-nalista de então.

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2.4. A Constituição formal e a sua relação com a constituição material no decor-rer do tempo. Uma rápida advertência!

Como iremos, posteriormente, estudar, a Constituição é produto de um poder constituinte, e será reflexo de uma época, espelho de um momento, contextual, fruto de um “pano de fundo intersubjetivamente compartilhado” de Estado e de Sociedade que são sempre inafastáveis de nossa epocalidade e de nossa condi-ção humana. Nesses termos, na sua elaboração é confrontada com diversos jogos de poder (políticos), grupos de interesses (pressão) que participam do poder constituinte e, portanto, acabam influenciando na feitura do documento consti-tucional, que será o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico posterior a ele.

Nesses termos, numa perspectiva dinâmica, a constituição formal, no decorrer da história do constitucionalismo moderno, aumenta (“incha”) de tamanho. Seus assuntos (temas) são acrescidos de matérias não fundamentais, não tipicamente constitutivas do Estado e da sociedade, que acabam não guardando uma relação direta com a organização e a separação de poderes do Estado e os direitos e ga-rantias fundamentais.

O que temos a partir daí? A percepção de que a constituição formal passa a abarcar matérias não tipicamente constitucionais (fundantes, fulcrais, importantes), mas, também, matérias apenas formalmente constitucionais, que não são material-mente constitucionais. Esse fenômeno, que não teve data específica, é fruto da com-plexidade social que permeia os arranjos políticos que envolvem a elaboração de uma constituição e o contexto no qual está sendo produzida. Como rápido exemplo, citamos o peculiar art. 242 § 2º, da atual Constituição da República, que preleciona: “O Colégio Pedro Segundo localizado na cidade do Rio de Janeiro será mantido na órbita Federal.” Definitivamente, essa norma constitucional faz parte da Constitui-ção formal porque presente (inserida) na Constituição, mas não é materialmente constitucional, sendo constitucional apenas pela perspectiva formal.

2.5. Última digressão: o que é mesmo a Constituição Formal? A definição de su-pralegalidade desenvolvida e explicitada nos EUA no começo do século XIX

Até agora trabalhamos com um conceito de constituição formal só localizado historicamente. Apenas colocamos que, com o advento do constitucionalismo, as constituições, até então apenas materiais, se formalizam, ganham uma forma, por meio de um documento escrito que será o “ato constitutivo” de uma nova socieda-de. No entanto, o que é uma constituição tipicamente formal, dotada daquilo que poderíamos chamar de formalidade constitucional propriamente dita?

A Constituição formal, num primeiro momento do constitucionalismo, foi, sem dúvida, confundida com a constituição escrita, na medida em que se afirmava ser a constituição explicitada na forma (fôrma) escrita. Acontece que, a partir do início do século XIX, precisamente em 1803, a Constituição formal não poderia mais ser

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entendida apenas pela sua forma escrita. Aliás, esse passa a ser um equívoco que alguns manuais pátrios ainda incorrem!

No famoso julgamento Marbury x Madison (1803) realizado pela Suprema Cor-te Americana por meio do Chief Justice Marshall foi decidido pela primeira vez um conflito entre a Constituição e a legislação infraconstitucional. Nesse horizonte, sem adentrar no caso concreto e suas especificidades, surgiram duas possibili-dades de atuação da mais alta corte de magistrados americanos: 1) a adoção do critério cronológico, no qual Lei posterior (ordinária originada do parlamento ou de ato executivo) revoga Lei anterior (no caso, norma consubstanciada na Cons-tituição); ou 2) a adoção do critério hierárquico, no qual Lei posterior (inferior originada do parlamento ou de ato do executivo) não prevalece sobre Lei anterior (superior consubstanciada na Constituição).

O problema é que, se adotada a primeira tese, a Constituição recém-criada (1787) estaria, logo no início de sua vida, assinando sua sentença de morte, pois sempre que o parlamento resolvesse modificá-la, ele conseguiria sem nenhum tipo de possibilidade de controle (defesa) das normas constitucionais sobre a atuação do Poder Legislativo (ou até mesmo do Poder Executivo). A Constituição estaria, portanto, fadada ao desaparecimento, ao alvedrio do legislador e de suas vicissitudes.

Adotando a segunda tese, contudo, o Chief Justice Marshall acabou afirmando que o judiciário deveria defender a Constituição em todos os embates e conflitos de normas infraconstitucionais (produzidas pelo legislador ordinário) e constitu-cionais, pois estas deveriam sempre prevalecer. Sendo, a maneira pela qual, com base na doutrina dos freios e contrapesos, o judiciário deveria controlar a atua-ção dos outros poderes (legislativo e executivo) ante os ataques à Constituição americana.

Portanto, do caso Marbury x Madison podemos retirar duas digressões que, até hoje, são atuais na Teoria da Constituição e que vão nos ajudar a entender a Constituição Formal desde então:

1) A Constituição prevalece sobre todo o ordenamento ordinário, mesmo o pos-terior a ela, porque dotada de supralegalidade (doutrina da supremacia da Constituição); e

2) Se a Constituição prevalece e não sucumbe às normas ordinárias contrárias a ela, os ataques (as infringências) serão defendidos, em regra, na maioria dos países, pelo Poder Judiciário. (doutrina do controle de constitucionalidade das leis).

Nesses termos, a Constituição formal não é, e nem pode ser, somente escrita. Muito mais que isso, a Constituição formal atualmente (ou pelo menos, a partir do século XIX) é aquela dotada de supralegalidade (supremacia) e que, portanto, não pode, de maneira nenhuma, ser modificada por normas ordinárias, na medi-da em que essas não prevalecem num embate com as normas constitucionais. Ou

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seja, a formalidade tipicamente constitucional (Constituição formal) é observada quando uma Constituição é dotada de supralegalidade (supremacia) em relação a todo restante do ordenamento. Nesses termos, a única forma de modificação de uma Constituição formal seria por procedimentos específicos que o próprio texto da Constituição estabeleceria. Esses procedimentos são mais difíceis, mais solenes e mais rigorosos do que aqueles usados para a produção das legislações ordinárias.

3. CLASSIFICAÇÕES DAS CONSTITUIÇÕES: TEORIAS TRADICIONAIS E USUAIS NA DOUTRINA PÁTRIA

Após as digressões iniciais de embasamento, iremos trabalhar com as classifi-cações constitucionais (infelizmente) ainda usuais na doutrina brasileira.14 Primeiro iremos fazer uma análise descritiva e, posteriormente, uma reflexão, colocando algumas questões para análises de cunho crítico. Nesse sentido, teríamos as seguin-tes classificações tradicionais:

a) Quanto ao conteúdo – formais e materiais:

• Constituição Formal: é aquela dotada de supralegalidade (supremacia), estando sempre acima de todas as outras normas do ordenamento jurí-dico de um determinado país. Nesse sentido, por ter supralegalidade, só pode ser modificada por procedimentos especiais que ela no seu corpo prevê, na medida em que normas ordinárias não a modificam, estando certo que se contrariarem a constituição serão consideradas inconstitu-cionais. Portanto, a Constituição formal, sem dúvida, quanto à estabilida-de será rígida.

• Constituição Material: é aquela escrita ou não em um documento consti-tucional e que contém as normas tipicamente constitutivas do Estado e da sociedade. Ou seja, são as normas fundantes (basilares) que fazem parte do “núcleo ideológico” constitutivo do Estado e da sociedade. Sem dúvida, essas matérias com o advento do constitucionalismo (moderno) vêm sendo definidas como: Organização e estruturação do Estado e Direitos e Garan-tias Fundamentais.

14. A crítica central às classificações tradicionais, que ora iremos trabalhar, envolve a sua perspectiva semântica que visa a definir e classificar a priori uma Constituição como se a mesma fosse algo descontextualizado e somente informado pelo seu texto (esqueleto normativo), não percebendo que a Constituição, com seu texto, não rege (de forma absoluta e atemporal) as situações de aplicação desse mesmo texto, que é fruto de pré--compreensões subjacentes e intersubjetivamente compartilhadas. Mesmo em uma lógica não discursiva (ontológica) essas classificações não são imunes a críticas. Um exemplo simples se coloca quando observamos que a Constituição inglesa é classificada juridicamente como flexível, mas sociologicamente é muito mais rígida que a nossa que é classificada como rígida (segundo alguns autores ela seria até mesmo super-rígida!) Na ver-dade essas classificações pouco acrescentam para uma reflexão crítica sobre o sentido das Constituições e do constitucionalismo. Uma crítica interessante, apesar de ontológica, foi delineada por Karl Löwenstein em sua ontologia das Constituições, que posteriormente iremos trabalhar.

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b) Quanto à estabilidade15 – Rígida, Flexível, Semirrígida, Fixa e Imutável:

• Constituição Rígida: é aquela que necessita (requer) de procedimentos es-peciais, mais difíceis (específicos) para sua modificação. Esses procedimen-tos são definidos na própria Constituição.

• Constituição Flexível: é aquela que não requer procedimentos especiais para sua modificação. Ou seja, ela pode ser modificada por procedimentos comuns, os mesmos que produzem e modificam as normas ordinárias, na lógica, por exemplo, tradicional de que lei posterior revoga lei anterior do mesmo nível hierárquico. Na verdade o entendimento se perfaz de forma simples na afirmação de que se a própria Constituição não solicitou proce-dimentos especiais para sua alteração é porque ela afirma a possibilidade de modificação nos moldes em que se modificam as Leis ordinárias. Um exemplo sempre citado pela doutrina clássica é o da Constituição inglesa.16

• Constituição Semirrígida: é aquela que contém, no seu corpo, uma parte rígida e outra flexível. Nesse sentido, parte da Constituição solicita procedi-mentos especiais para sua modificação e outra não requer procedimentos especiais (diferenciados dos comuns que produzem normas ordinárias) para sua modificação. Chamamos atenção ainda para o fato de que para alguns doutrinadores ela é classificada como semiflexível, não mudando em nada sua definição. Um exemplo de constituição semirrígida é a nossa Constituição de 1824.

• Fixa ou silenciosa: é a Constituição que só pode ser modificada pelo mes-mo poder que a criou (Poder constituinte originário). São as chamadas Constituições silenciosas, por não preverem procedimentos especiais para a sua modificação. Exemplo: Constituição espanhola de 1876.17

• Imutável ou granítica: é a chamada Constituição granítica, pois não prevê nenhum tipo de processo de modificação em seu texto. São, nos dias atuais, relíquias históricas. Sem dúvida, em sociedades extremamente complexas como a nossa (moderna, ou para alguns, pós-moderna), constituições gra-níticas estariam fadadas ao insucesso.

15. Também identificada por alguns autores como classificação quanto ao processo de reforma.16. Conforme o magistério de Virgílio Afonso da Silva, a Constituição inglesa, embora seja um clássico exemplo de

Constituição flexível, atualmente, no que tange a essa classificação, está relativizada. Nesses termos, com o Hu-man Rights Act aprovado em 1998 e em vigor desde o ano 2000, o Parlamento inglês passou a se submeter aos dispositivos dessa declaração de direitos, colocando a sua supremacia em xeque e fazendo ruir o modelo de Constituição flexível clássico. (A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particu-lares. 2005, p. 109). Segundo o autor, se o Parlamento inglês já não é mais soberano no sentido tradicional, e deve respeitar as disposições da declaração de direitos, o modelo de Constituição flexível também cai por terra. (2005, p. 109). É interessante, ainda, ressaltar que no ano de 2009 foi criada (de forma inovadora) uma Corte Constitu-cional na Inglaterra (embora essa não tenha legitimidade para rever atos do Parlamento como as tradicionais Cortes Constitucionais que foram desenvolvidas na Europa no século XX).

17. Ver BULOS, Uadi Lammêgo, Curso de Direito Constitucional. 2006. E também CARVALHO, Kildare Gonçalves, Direito constitucional. Teoria do estado e da Constituição. Direito constitucional positivo.

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• Transitoriamente flexível: trata-se da Constituição que traz a previsão de que até determinada data a Constituição poderá ser emendada por proce-dimentos comuns. Após a data determinada, a Constituição só poderá ser alterada por procedimentos especiais definidos por ela. Exemplo: Consti-tuição de Baden de 1947.18

• Transitoriamente imutável: é a Constituição que durante determinado pe-ríodo não poderá ser alterada. Somente após esse período ela poderá ser alterada.19 Como exemplo, a doutrina cita a nossa Constituição brasileira de 1824 (Constituição do Império) que só poderia ser alterada após quatro anos de vigência. Aqui uma crítica pertinente que demonstra a precarie-dade dessa classificação. Na verdade, o que existe é um limite temporal na Constituição que não permite que seja reformada em um determinado lapso temporal. O exemplo da Constituição do Império de 1824 demonstra justamente isso, devendo ser considerada como semirrígida, nos moldes acima já salientados.

c) Quanto à forma – escritas e não escritas:

• Constituição escrita: é aquela elaborada de forma escrita e sistemática em um documento único, feita de uma vez só (por meio de um processo espe-cífico ou procedimento único), de um jato só por um poder, convenção ou assembleia constituinte.20

• Constituição não escrita: é aquela elaborada e produzida com documen-tos esparsos (de modo esparso) no decorrer do tempo, paulatinamente desenvolvidos, de forma histórica, fruto de um longo e contínuo processo de sedimentação e consolidação constitucional. Um exemplo clássico e co-mumente citado é o da Constituição inglesa que é intitulada de não escrita, além de histórica e também costumeira (consuetudinária).

d) Quanto ao modo de elaboração – dogmáticas e históricas:

• Constituição dogmática: é aquela escrita e sistematizada em um documen-to que traz as ideias dominantes (dogmas) em uma determinada socieda-de num determinado período (contexto) histórico. Ela se equivale à consti-tuição escrita quanto à forma.

18. BULOS, Uadi Lammêgo, Curso de direito constitucional. 2006. E também CARVALHO, Kildare Gonçalves, Direito constitucional. Teoria do estado e da Constituição. Direito constitucional positivo.

19. CARVALHO, Kildare Gonçalves, Direito constitucional. Teoria do estado e da Constituição. Direito constitucional positivo.20. SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo. 2006. Definitivamente não podemos classificar a

Constituição como escrita simplesmente por ela ser e ter a forma escrita, como infelizmente querem alguns dou-trinadores. Essa postura chega a ser risível! É óbvio que se assim fosse as Constituições não escritas, que diga-se de passagem contêm documentos escritos, também deveriam ser consideradas ou classificadas como escritas! Outro equívoco absurdo (que felizmente não se coaduna com a doutrina majoritária!) é afirmar que a classifi-cação de Constituição escrita também diz respeito às Constituições elaboradas por diversas leis (do tipo não codi-ficada). Aqui voltamos à lógica banal de uma Constituição ser classificada como escrita porque nela encontramos textos escritos!

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• Constituição histórica: é aquela elaborada de forma esparsa (com docu-mentos e costumes desenvolvidos) no decorrer do tempo, sendo fruto de um contínuo processo de construção e sedimentação do devir histórico. Ela se equivale à Constituição não escrita quanto à forma. O exemplo também comumente citado é o da Constituição inglesa.

e) Quanto à origem21 – promulgadas, outorgadas e cesaristas:

• Constituição Promulgada: é aquela dotada de legitimidade popular, na me-dida em que o povo participa do seu processo de elaboração, ainda que por meio de seus representantes. Para alguns autores, ela se apresenta como sinônimo de democrática. Como exemplo, poderíamos citar as Cons-tituições brasileiras de 1891, 1934, 1946 e 1988.22

• Constituição Outorgada: é aquela não dotada de legitimidade popular, na medida em que o povo não participa de seu processo de feitura, nem mesmo de forma indireta. Ela também é concebida na doutrina como si-nônimo de Constituição autocrática ou mesmo ditatorial. Como exemplos, poderíamos citar as Constituições brasileiras de 1824, 1937 e 1967.23

21. Essa classificação leva em consideração não a promulgação de cunho técnico realizada em qualquer documento constitucional (inclusive nas Constituições outorgadas), mas sim a forma de produção da Constituição com ou sem a participação popular. Ou seja, ela visa a analisar se a Constituição foi elaborada com ou sem legitimida-de (viés democrático). Nesses termos, também são as reflexões de parte da doutrina, defendendo que o mais correto seria o uso do termo Constituição democrática (ao invés do termo técnico usado pela classificação, ora citada): “[...] uma Constituição, mesmo que promulgada, pode ser autoritária ou populista. A promulgação é o ato solene que integra a fase final do processo legislativo e equivale à certificação formal e pública de alteração do sistema jurídico por um novo texto normativo. A promulgação é seguida da publicação da nova norma. Assim, a expressão ‘Constituição promulgada’ equivale apenas ao fato de que houve um processo legislativo colegiado de elaboração e de aprovação majoritária de seu texto. Apenas isso. Portanto, ao invés de ‘Constituição promul-gada’ deveríamos utilizar a expressão ‘Constituição democrática’ para nos referir a uma Constituição que tenha sido elaborada com a efetiva participação da sociedade [...]” In: OLIVEIRA, Márcio Luís de. Os limites ideológicos e jusfilosóficos do poder constituinte originário, p. 379-407, 2007.

22. Apesar de alguns senadores biônicos (termo usado para designar senadores que não haviam sido eleitos pelo voto popular) terem participado da Assembleia Nacional Constituinte de fevereiro de 1987 a outubro de 1988.

23. É interessante que boa parte da Teoria da Constituição atual compreende a denominação Constituição autocrá-tica (ou ditatorial) como uma verdadeira contradição, na medida em que o constitucionalismo está intimamente ligado à perspectiva democrática. Falar em Constituição autocrática é falar em algo que definitivamente não coa-duna com o constitucionalismo e sua busca (emancipatória) pela limitação do poder (arbítrio) e desenvolvimento de direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, Maurizio Fioravanti, ao reconstruir a história semântico-insti-tucional do termo ‘Constituição’, observa que não mais podemos opor a ideia de Constituição à de democracia ou soberania popular, pois o constitucionalismo só é efetivamente constitucional se institucionaliza a democracia, o pluralismo e a cidadania de todos, em não fazendo o que temos é despotismo. Do mesmo modo a democracia só é democracia se impõe limites constitucionais à vontade popular, à vontade da maioria. No mesmo sentido: “[...] para a Teoria da Constituição constitucionalmente adequada só é possível existir uma Constituição em sentido político-jurídico num Estado de Direito, no qual ocorre uma simbiose entre o exercício dos poderes políticos e a autoridade juridicamente investida e limitada, o que confere legitimidade às funções e aos atos de Estado. E com isso concordamos, uma vez que nas autocracias impera o poder político sem limites normativos efetivos. Fora do regime democrático o Direito não cumpre a sua principal finalidade que é garantir a dignidade humana nos con-textos público e privado; nas autocracias o Direito é tão-somente um instrumento formal de opressão, submetido apenas às conveniências do grupo dominante. Portanto, numa autocracia o Direito perde a sua verdadeira essên-cia emancipadora [...]” OLIVEIRA, Márcio Luís de, In: A Constituição juridicamente adequada, p. 1., 2009.

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• Constituição Cesarista: é aquela produzida sem a participação popular (de forma direta ou mediante representantes), mas que, posteriormente a sua elaboração, é submetida a referendum (uma verdadeira consulta plebisci-tária) popular para que o povo diga sim ou não sobre o documento. Essas constituições, sem dúvida, se aproximam das Constituições Outorgadas (e se distanciam das Promulgadas), pois os processos de produção (que, ob-viamente, conferem legitimidade ao documento constitucional) não envol-vem o povo e sim algo pronto e acabado (“receita de bolo”) que, de forma não raro populista, é submetido para digressão popular. Os exemplos des-se tipo de Constituição são as Constituições de Napoleão, na França, e de Pinochet, no Chile, entre outras.

f) Quanto à extensão – analíticas e sintéticas:

• Constituição Analítica: também chamada de prolixa, é aquela elaborada de forma extensa (formato amplo), com um cunho detalhista, na medida em que desce a pormenores não se preocupando somente em descrever e explicitar matérias constitucionais (tipicamente constitutivas do Estado e da sociedade). Portanto, acaba por regulamentar outros assuntos que entenda relevantes num dado contexto, estabelecendo princípios e regras e não apenas princípios (ainda que os princípios e a estrutura chamada atualmente de principiológica possam ser dominantes). Como exemplos, podemos citar as atuais Constituições do Brasil (1988), Portugal (1976) e Espanha (1978).

• Constituição Sintética: é aquela elaborada de forma sucinta (resumida) e que estabelece os princípios fundamentais de organização do Estado e da sociedade preocupando-se em desenvolver no seu bojo apenas as matérias constitucionais típicas (Organização e estruturação do Estado e Direitos Fundamentais). Em regra são Constituições eminentemente prin-cipiológicas.24

g) Quanto à ideologia (ou quanto à dogmática) – ortodoxas e ecléticas:

• Constituição Ortodoxa: é aquela que prevê apenas um tipo de ideologia em seu texto. Exemplos recorrentemente lembrados são as Constituições da China e da ex-União Soviética.

• Constituição Eclética: é aquela que traz a previsão em seu texto de mais de uma ideologia, na medida em que pelo seu pluralismo e abertura agrupa mais de um viés (linha) ideológico. A atual Constituição brasileira de 1988 é um exemplo.

24. Um exemplo é a Constituição norte-americana de 1787 ainda hoje em vigor. Aqui temos uma observação inte-ressante: apesar da Constituição norte-americana ser classificada pela doutrina tradicional (de cunho semântico como anteriormente criticamos) como sintética (sucinta), algumas Constituições de estados norte-americanos são excessivamente analíticas.

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