Teoria Social e o Racismo

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    Srgio Costa inicia seu livro afirmando que ele nasceu do resse intelectual e poltico de melhor compreender as discussestemporneas em torno do combate ao racismo no Brasil (p.11)alcanar tal objetivo,ele recorre metfora dos dois Atlntic Atlntico Norte e Atlntico Negro ,para articular o que se pochamar de dois programas de pesquisa:um de natureza terica (no sentido de grande teoria),que trata do cosmopolitismo; e ouque, embora seja tambm terico, mais especfico de abrangpois trata de um caso emprico,i.e.,o problema do racismo no B Ambos esto distribudos ao longo dos sete captulos que complivro:os trs primeiros dedicam-se discusso de trs abordagecosmopolitismo contemporneo e os ltimos trs lidam com o blema do racismo no Brasil. O captulo quatro, intermedirio, fciona como ponte entre as duas ordens temticas;nele,o autor proestabelecer mediaes entre os contextos nacionais e transnacion

    partir da categoria contextos transnacionais de ao.O primeiro captulo do livro dedicado discusso da con

    o habermasiana do cosmopolitismo.Depois de um esforo bsucedido para vincular a obra mais terica de Habermas comdiagnstico de poca, Costa concentra sua crtica nas inconsiscias que v na tentativa de transpor uma teoria elaborada tendo vista um contexto nacional ou quando muito regional para o texto ps-nacional de um mundo globalizado.Ou seja,nas pala

    de Costa,o projeto de Habermas para promover a integrao se poltica ps-nacional consiste, fundamentalmente, em busequivalentes funcionais para aqueles elementos-chave emteoria nacional da democracia (p.25).Para Costa,um talpreendimento exigiria uma teoria social ps-nacional, a qu

    CRTICA

    TEORIA SOCIAL EO RACISMO NO BRASIL

    Josu Pereira da Silva

    DOIS ATLNTICOS: TEORIA SOCIAL, ANTI-RACISMO, COSMOPOLITISMO,

    de Srgio Costa.Belo Horizonte:Editora UFMG, 2006.

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    segundo ele,Habermas no dispe.Por isso,a transposio de umateoria nacional para um contexto global contm inconsistncias queafetam a prpria concepo de uma democracia cosmopolita, talcomo postulada pelo autor alemo.

    Uma teoria social adequada s condies de um mundo globalizadodemanda,portanto,uma epistemologia cosmopolita.Costa trata doproblema no segundo captulo do livro,a partir da anlise das teoriasde Ulrich Beck e de Anthony Giddens,em cujas concepes de cosmo-politismo os conceitos de risco e de reflexividade ocupam lugar de des-taque. Beck e Giddens so socilogos com trajetrias intelectuaisdiferentes.Beck tem um trabalho de natureza mais ensastica e se tor-nou conhecido mundialmente por seu livro de 1986 sobre a sociedadede risco.Giddens,por sua vez,consolidou sua fama como um tericosocial no sentido mais estrito,em especial pela formulao do que deno-minou teoria da estruturao, um esforo de sntese que pretendeunir,em uma s teoria,as abordagens originrias do estruturalismo e dasociologia da ao.Costa est alerta para essa diferena entre os doisautores,mas chama a ateno para a aproximao entre os diagnsticosde poca e as preocupaes temticas nos trabalhos mais recentes deambos.Assim,a noo de modernizao reflexiva emerge como um uni-ficador na concepo dos dois autores a respeito do cosmopolitismo eda globalizao.Apesar da ambio de ambos em formular alternativastericas que levem em conta esse contexto globalizado,a concepo queelaboram a respeito da globalizao no est isenta,segundo Costa,deequvocos semelhantes queles que estavam presente na teoria damodernizao do imediato ps-Segunda Guerra:globalizao seria,assim,o processo que leva,com algum atraso de tempo,a alta moderni-dade do Atlntico Norte para o resto do mundo (p.74).

    Talvez as abordagens ps-coloniais, analisadas no terceiro cap-tulo, ofeream sadas mais satisfatrias para os dilemas atuais da

    teoria social.Embora no se trate de uma nica matriz terica,os cha-mados estudos ps-coloniais tm como objetivo comum a des-construo da polaridade West/Rest (i. e., o Ocidente e o resto).Esto em questo,aqui,em especial a hegemonia do chamado Atln-tico Norte e a pretenso de universalidade dos discursos ali elabora-dos,porque,para os autores ps-coloniais,esses discursos hegemni-cos falam de algum lugar que est longe de ser universal. Estacontestao,que no externa aos discursos do Atlntico Norte e emgrande medida se inspiram neles,pe em questo a suposta superio-

    ridade tanto desses discursos como das culturas e das sociedades dasquais tais discursos emergem. A crtica aos binarismos e s antino-mias objetiva a relativizao do lugar privilegiado ocupado pelos dis-cursos hegemnicos e,ao mesmo tempo,questiona as hierarquiasentre as culturas e as epistemologias dominantes.

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    A crtica empreendida pelos autores ps-coloniais polaridWest/Rest tem como alvo,portanto,o vis colonialista presenprpria produo de conhecimento,uma vez que a tendncia docurso hegemnico construir e legitimar uma assimetria irreveentre o Ocidente e os outros,i.e.,constri uma superioridade nonas circunstancial e histrica,mas ontolgica e essencializada.Paautores ps-coloniais,essa polaridade incua do ponto de vistanitivo,pois,em vez de elucidar,ofusca os fenmenos que pretendcidar.Por um lado,as formulaes ps-coloniais tm seus mritoponto de vista cognitivo,ao possibilitar uma percepo mais baceada da modernidade global,atravs de conceitos como moderdes mltiplas ou modernidades entrelaadas;por outro,elas padede dficits no plano normativo,em parte por se tratar de um conjheterogneo de formulaes distintas, e, em parte,por seu carensastico.Ou seja, so bem-sucedidas na desconstruo analmas pecam por carecer de uma reconstruo normativa convincIsso fica evidente nos dois autores discutidos no quarto capt(Stuart Hall e Paul Gilroy),cujas contribuies so consideradaCosta as mais fecundas para o desenvolvimento de uma sociotransnacional,adequada para o estabelecimento de nexos entrmacrodiagnsticos da poca atual (pressupostos nas diversas cones de cosmopolitismo) e o problema do racismo no Brasil.Nendos dois autores ps-coloniais mencionados acima define,por explo, um lugar prvio para a emancipao social, como fazem oabordagens,como o marxismo com o proletariado,a teoria crticHabermas com o conceito de razo comunicativa ou de Axel Hocom o conceito de reconhecimento.Para Costa,ento,nem a pode representaes de Hall nem o Atlntico Negro de Gilroy cgue ser satisfatrio do ponto de vista normativo.

    A metfora dos dois Atlnticos constitui-se,entretanto, em uimportante chave para desmontar o paradoxo entre a idia de qracismo corresponde suposio de uma hierarquia qualitativa os seres humanos (p.11) e a ambio do cosmopolitismo de exsar um universalismo abstrato que fecha os olhos para os efesocioeconmicos e culturais do racismo,cujo imaginrio contripara criar. Transposta para a teoria social,essa hierarquia qualitentre seres humanos transparece tambm em uma hierarquia entsociedades e suas respectivas culturas,com as sociedades do Atl

    Norte ocupando o topo da hierarquia. esse o sentido da expreWest and the Rest,utilizada por Stuart Hall,em que West rese s sociedades do Atlntico Norte e as outras so the Rest.tipo de pressuposto hierrquico entre as sociedades ,segundo Cum componente das teorias da modernizao,para as quais as s

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    dades do Atlntico Norte representariam o ponto mximo de pro-gresso econmico,social e cultural, que deveria ser buscado pelasdemais sociedades.A metfora do Atlntico Negro por isso mesmouma crtica direta s teorias da modernizao. Isso explica tambmpor que,para o livro aqui resenhado,o ponto de partida o estudo cr-tico de tentativas de recuperar o conceito cosmopolitismo (p.13).

    Evidentemente, Costa no descarta o cosmopolitismotout court . Apesar de seus limites,o cosmopolitismo contemporneo serve comoum corretivo epistemolgico s teorias sociolgicas do ps-SegundaGuerra que tinham no Estado-nao a unidade analtica privilegiada,unidade analtica que o autor considera insatisfatria no atual con-texto do mundo globalizado.Um dos objetivos do livro , portanto,construir mediaes que permitam uma melhor inteleco do vnculoentre as dimenses globais (cosmopolitismo) e locais (manifestaocotidiana do racismo).Da,o debate brasileiro sobre o anti-racismoser um dos pontos focais da anlise.

    Depois de uma apropriao crtica das trs abordagens anteriores,Srgio Costa passa,nos trs ltimos captulos, discusso do problemamais emprico do livro,que racismo no Brasil.Partindo de uma recons-truo do debate histrico e sociolgico em uma larga escala temporal,que vai do sculo XIX at o presente,Costa discute o racismo cientficoe sua recepo no Brasil, o movimento negro em seus diferentesmomentos,assim como a relao entre a sociologia norte-americana(mais especificamente a dos Estados Unidos) e o racismo no Brasil.Emsua anlise,Costa contrape as abordagens e vises sobre esses diferen-tes problemas, chamando a ateno para as contribuies,mas real-ando ao mesmo tempo os limites ou carncias de cada uma delas.Nofinal,fica claro seu esforo em buscar uma alternativa que evite os riscosde essencializao tpica dos chamados estudos raciais,mas que aomesmo tempo no se contente com as proposies generalizantes e

    abstratas que tendem a ignorar os efeitos sociais e culturais do racismona vida cotidiana.O que Srgio Costa busca ,portanto,um ponto deequilbrio fundado no que considera as supostas virtudes dos estudosraciais (a demanda por polticas que combatam efetivamente oracismo),assim como nas dos chamados crticos dos estudos raciais (apreocupao com o risco de essencializao contido em polticas basea-das na noo de raa).No uma tarefa fcil,mas um objetivo que valeo esforo;sua plausibilidade,no entanto,no depende apenas dos deba-tes acadmicos como alguns discutidos nesse livro.Por se tratar de um

    processo em curso,ela depende tambm,e sobretudo,da ao dos movi-mentos sociais e das polticas pblicas na rea.

    Por fim,se considerarmos o objetivo maior do livro,que investigaras possibilidades de traduo e mediao entre a poltica anti-racista

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    desenvolvida transnacionalmente e sua implementao (p.219Brasil,pode-se considerar que o empreendimento foi bem-sucepois seu autor conseguiu,atravs da anlise sistemtica de uma bgrafia rica e diversificada,estabelecer claras conexes entre o dsobre o racismo no Brasil e mais amplamente no mbito do AtlNegro (Hall,Gilroy),e as formulaes tericas de autores como Hmas,Giddens e Beck,com suas concepes de cosmopolitismo.do que isso:Srgio Costa o conseguiu com um acurado senso crtirelao a todos esses autores, fazendo-o,porm, com a necessempatia que permite uma leitura no preconceituosa de cada um Por tudo isso,o livro constitui-se em uma importante contribuioajuda a avanar a reflexo tanto sobre o problema do racismo,sobre a teoria social de maneira geral.

    Josu Pereira da Silva professor de Sociologia na Unicamp.

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