Upload
cetra
View
217
Download
1
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Â
Citation preview
1 Caderno de Sistematizações - FCVSA
SistematizaçõesTerceiro Caderno de
Compartilhando experiências de vida no Semiárido
2Caderno de Sistematizações - FCVSA
3 Caderno de Sistematizações - FCVSA
ExpedienteArticulação Semiárido Brasileiro
ASA BrasilFórum Cearense pela Vida no Semiárido
FCVSARede de Comunicadores/as Populares do
Fórum Cearense pela Vida no Semiárido
Sistematizações e Textos:Alexandre Greco - CETRA (Centro de Estudos do Trabalho
e de Assessoria ao Trabalhador)Cristina Viturino - Flor do Piqui
Evelyn Ferreira - ESPLAR (Centro de Pesquisa e Assessoria)Fram Paulo - CDDH-AC (Centro de Defesa dos Direitos
Humanos Antônio Conselheiro)Janes Souza - FETRAECE (Federação dos Trabalhadores
na Agricultura do Estado do Ceará)João Ernesto - ESPLAR (Centro de Pesquisa e Assessoria)
Karol Dias - ESPAF (Escola de Formação Política e Cidadania)Liliane Carvalho - ESPAF (Escola de Formação Política e Cidadania)
Marcus Saymon - COMTACTE (Cooperativa Mista de TrabalhoAssessoria e Consultoria Técnico Educacional)
Mayara Albuquerque - IAC (Instituto Antônio Conselheiro)Ricardo Vieira - ACB (Associação Cristã de Base)
Ricardo Wagner - OBAS (Organização Barreira Amigos Solidários)Rutiele Parente - IAC (Instituto Antônio Conselheiro)
Lívia Teixeira - Cáritas Diocesana de Itapipoca
Colaboração e Revisão de ConteúdoAlessandro Nunes, Amanda Sampaio,
Raquel Dantas e Rosa Nascimento
Revisão de TextosJoana Vidal
Projeto Gráfico e diagramaçãoSâmila Braga e Giulianne Cidade
FotografiaComunicadores/as do FCVSA
Ano de Publicação2015
4Caderno de Sistematizações - FCVSA
ÍndiceSistematização de Experiências:
Ampliando a Resistência,
Fortalecendo a Convivência
p. 6
Autonomia para construir
novos sonhos
p. 7
Uma história de luta e resistência
na caminhada agroecológica
p. 9
O campo é o melhor lugar para viver!
p. 12
José e Lúcia: rotina compartilhada
e amor ao Semiárido
p. 14
Caminhada ao campo santo do sertão por
justiça e vida digna no Semiárido
p.17
A tradição indígena como forma de
convivência com o Semiárido Brasileiro
p. 21
Rendeiras de Chorozinho contam sua história através
das linhas e fortalecem o laço com o tempo
p. 23
5 Caderno de Sistematizações - FCVSA
Cultivar sonhos para alcançar as estrelas!
p. 28
Artesanato é fonte de renda e vida
em Icapuí (CE)
p. 31
Vivendo e aprendendo: a experiência de
resistência de João Félix e Antônia
p. 35
Agricultoras de Aroeiras cultivando Arte
p. 38
Urucongo: uma história de arte
e cultura no Cariri Cearense
p. 41
Na luta pela terra o MST já fez história.
A Escola João dos Santos Oliveira
faz parte dessa vitória.
p. 44
Maria de Jesus e a terra onde
planta roçados, hortas e sonhosp. 26
Fundo Rotativo: uma nova maneira de economia
trazendo mudanças significativas nos modos de
viver, pensar e agir de agricultores e agricultoras
p. 47
6Caderno de Sistematizações - FCVSA
Sistematização de Experiências:
Ampliando a Resistência, Fortalecendo a Convivência
O Semiárido brasileiro é rico. A diver-
sidade cultural e ambiental encanta pela
sua beleza. Especificamente aqui no
Ceará, expressa na poesia, na dança, na
canção, na culinária, no povo guerreiro,
nas ações alternativas de convivência, e
no modo geral como as coisas aconte-
cem. É um Semiárido prospectivo.
A Articulação Semiárido Brasileiro
(ASA), representada aqui no Estado do
Ceará pelo Fórum Cearense pela Vida
no Semiárido (FCVSA), tem consolida-
do, ao longo de seus 15 anos uma polí-
tica de convivência com a região semi-
árida, a partir de ações agroecológicas
que fortalecem a luta e a conquista de
homens e mulheres por dignidade.
Os processos de articulação, for-
mação e participação têm fortalecido
gradativamente as incidências nas polí-
ticas públicas adequadas para a região.
Na perspectiva de visibilizar essas
ações, bem como ampliar esse cami-
nhar rumo à sustentabilidade humana
e ambiental, como propõe o projeto
“Comunicação para Mobilização So-
cial: uma estratégia de fortalecimento
da rede”, instituído pela ASA por oca-
sião da comemoração de seus 15 anos,
apresentamos nesse Caderno, que
está em sua terceira edição, 12 belas
experiências vivenciadas por homens,
mulheres, comunidades e grupos que
acreditam, sonham e trabalham por
uma vida cada vez mais feliz!
São pessoas que no dia a dia da la-
buta contam suas histórias de vida, e
mesmo que de forma anônima se arti-
culam em um processo de transferên-
cia de conhecimentos que fazem his-
tória e revela o verdadeiro Semiárido.
As histórias são construídas de uma
vivência sensível, em que cada uma/o
se coloca numa posição de igualdade,
e como afirma a jornalista Eliane Brum,
ouve com a alma, e posteriormente vai
dando formas ao texto.
O Caderno de Sistematização é uma
construção coletiva da Rede de Comu-
nicadoras e Comunicadores Populares
do Fórum Cearense pela Vida no Se-
miárido, das nove microrregiões: Cariri,
Centro Sul, Ibiapaba, Inhamuns, Forta-
leza, Sertão Central, Vale do Jaguaribe,
Vales do Curu e Aracatiaçu e Sobral. A
ideia é conhecer as distintas ações de-
senvolvidas, para melhor conhecer a re-
gião e fortalecer a convivência.
Por Rosa Nascimento
7 Caderno de Sistematizações - FCVSA
Autonomia para construirnovos sonhos
Por Alexandre Greco
Encontramos Ana e Sérgio já des-
montando as barracas da feira, ajeitan-
do as vasilhas vazias na moto e amar-
rando os ferros e hastes que sustentam
a barraquinha, com o sorriso fácil de
quem volta para casa tendo comercia-
lizado todos os produtos que trouxe.
Nas quartas-feiras, a rotina é a mesma:
juntar os produtos, amarrar na moto e
partir em direção a sede do município
de Apuiarés, a cinco minutos da co-
munidade Riacho do Paulo. Lá, com
agricultores e agricultoras de distritos
e cidades vizinhas, eles fazem a feira
de produtos orgânicos do município.
O casal de agricultores sempre leva
tomate, alface, abóbora e batata doce,
além da pamonha quando a produção
do milho está em alta. “Quando voltar
a chuva, vou produzir milho e feijão,
porque a pamonha é o que mais vende
na feira,” conta Sérgio.
Francisco Sérgio e Ana Marli são
nascidos e criados na comunidade
Riacho do Paulo, em Apuiarés (CE). Foi
nesse lugar que se conheceram, casa-
ram e hoje vivem com os dois filhos,
que estudam e ajudam no roçado.
Quintal de Ana e Sérgio
8Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA
O casal não faz rodeios para explicar as
mudanças em suas vidas após a chegada das
tecnologias sociais: “É bom, porque trouxe
água, que é o mais importante”. A comuni-
dade também sentiu os impactos positivos
das cisternas de primeira e segunda água;
antes, Ana conta, era “tudo seco, e o pior,
não dava para plantar como a gente queria.
Hoje, a gente consegue plantar”. Ela ainda
explica que “a maioria das pessoas aqui tem
cisternas e sempre que conversam comigo
estão satisfeitas, acham melhor que antes”.
Os agricultores relatam que tudo come-
çou com a chegada do projeto de primeira
água através do Sindicato dos Trabalhado-
res e Trabalhadoras Rurais de Apuiarés, ga-
rantindo segurança no acesso à água para
consumo. Depois, com a chegada da cister-
na de enxurrada, voltada para produção, o
sonho de comercializar suas próprias mer-
cadorias começava a se tornar realidade e
a dependência única e exclusiva das chuvas
já não era determinante: as cisternas e a for-
ma alternativa de irrigação foram suficientes
para garantir produção que abastecesse a
ida da família a feira semanalmente.
“Amanheço o dia e vou direto para a cis-
terna, cuidar de aguar as plantas e cuidar
das ovelhas e do gado,” diz Sérgio. As cister-
nas já são parte do dia a dia da família e per-
mitem que Ana e Sérgio tenham novos so-
nhos e busquem outras realizações, tendo
a consciência de que através da construção
e organização coletiva é possível mudar a
realidade e garantir autonomia com a con-
quista de direitos básicos. “Eu tenho mais de
quinze anos de sindicato e sou atuante, vou
às reuniões e sinto que é preciso sempre ir
mais,” reflete Ana.
Amanheço o dia e vou
direto para a cisterna, cuidar
de aguar as plantas e
cuidar das ovelhas e do
gado.
Comunidade Riacho do Paulo - Ana e Sérgio
Quintal de Ana e Sérgio
Uma história de luta e resistênciana caminhada agroecológica
Experiência coletiva por Cáritas Ceará
9 Caderno de Sistematizações - FCVSA
A 50 quilômetros de Sobral, junto ao
pé da Serra Verde, existe uma comuni-
dade em que os moradores usam cada
metro de chão com sabedoria e fazem
de seus quintais uma alternativa susten-
tável para garantir a soberania alimen-
tar e nutricional de suas famílias o ano
todo. O lugar é a comunidade Recreio,
onde mora seu Selisvaldo Pereira Lima,
de 67 anos, companheiro de dona
Isaura Maria de Lima.
Esse mesmo pedaço de chão, entre-
tanto, também é espaço de disputa:
Selisvaldo e Isaura vivem numa terra
desmembrada pelo proprietário, assim
feito para descaracterizar o latifúndio e
impossibilitar a desapropriação para fins
de reforma agrária. “Aqui, estamos no
meio da luta”, conta o agricultor. A terra
foi cedida para a Prefeitura do municí-
pio de Sobral e as famílias que moram
no Recreio têm um termo de conces-
são de uso que é renovado a cada 10
anos, embora o processo de regulari-
zação de posse ainda se encontre em
negociação. São 40 anos de luta pela
terra e 40 anos que Selisvaldo participa
ativamente da Associação e do Sindi-
cato dos Trabalhadores Rurais, sendo
um de seus fundadores. Sua militância
começou nos movimentos eclesiais de
base por incentivo do pai e daí vem a
sua conduta de defensor dos direitos
humanos na busca por melhores con-
dições de vida para trabalhadores e tra-
balhadoras rurais, além da consciência
e defesa da participação das mulheres
e dos jovens nas organizações comu-
nitárias e sindicais.
A sabedoria e agroecologia cobrem de verde cada metro de chão
10Caderno de Sistematizações - FCVSA
Eu não viso o lucro, mas
a condição de vida das
pessoas. É esse o projeto que
eu escolhi.
Na militância por vida digna, uma das
bandeiras que Selisvaldo hoje levanta
é a da agroecologia. “Aprendi com a
convivência, olhando para os compa-
nheiros. Participo do movimento sin-
dical e do Fórum Microrregional pela
Vida no Semiárido da Região Norte há
muito tempo. Foi a partir da ASA (Arti-
culação Semiárido Brasileiro) e da Cári-
tas que juntamos o conhecimento e
eu fui avaliando, porque não dá para
sair da noite para o dia do convencio-
nal para o agroecológico”, explica ele.
Há cinco anos, a família iniciou a
transição agroecológica e atualmente
podemos ver no quintal uma grande
diversidade de frutos, grãos e legumes:
milho, feijão, pimenta, tomate, mara-
cujá, mamão, ata, goiaba, leucena,
coco, noni, acerola, ciriguela, caju,
pimentão e nim. Além disso, Selisvaldo
também cultiva hortaliças, alface,
cheiro-verde, coentro, berinjela e pro-
duz as próprias mudas.
A variedade de cultivos em casa
reduz a necessidade de comprar ali-
mentos e o excedente da produção é
comercializado no Programa de Aqui-
sição de Alimentos (PAA) do Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate
à Fome. Vale destacar que somente
no ano de 2013 a família vendeu em
torno de R$ 16 mil para o PAA. Ade-
mais, o cheiro-verde é vendido para
um restaurante popular da cidade de
Sobral. “Tudo que se produz na agri-
cultura, quando chega no mercado
tem comprador. Para você ter uma
ideia, o quilo da pimenta eu vendo a
três reais”, diz o agricultor.
Para dar conta de todo o quintal, o
agricultor experimentador desenvol-
veu um sistema de aproveitamento
da água da chuva que cai no telhado.
Com tecnologias simples, usando
canos e decantadores, ele aproveita o
declive do terreno para captar, arma-
zenar e fazer o uso racional da água
com a técnica de irrigação por gote-
jamento. A água captada em um tan-
que serve ainda para criação de pei-
xes. Do tanque, a água segue para
um cacimbão construído pelo próprio
Selisvaldo há 30 anos, quando traba-
lhava como pedreiro. No verão, ainda
existe a possibilidade de usar a água de
um pequeno açude que fica no final da
propriedade. A água é puxada por uma
bomba para o sistema de irrigação. Confeccionar redes é a terapia de Dona Isaura, artesã de mão cheia
11 Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA11
“Esse quintalzinho parece brinca-
deira de menino. Aproveitamos todos
os espaços. Estou pensando em criar
um leitãozinho aqui também”, diz ele
enquanto mostra a área.
A criação de galinhas fica aos cui-
dados de dona Isaura, que também é
artesã e confecciona redes por enco-
menda. O artesanato, para ela, além
de gerar renda, é também uma tera-
pia. “Tenho artrose no joelho e minhas
filhas não querem que eu trabalhe no
tear, mas meu médico aconselhou a
não parar a produção das encomen-
das”, ela explica.
Atrás do quintal da família existe
uma área coletiva de 10 hectares onde
os associados podem produzir. Hoje,
somente seis agricultores cultivam na
área e isso é motivo de preocupação
para Selisvaldo, que gostaria que mais
trabalhadores da comunidade fizes-
sem uso dessa terra para fortalecer
a produção coletiva. “Eu não viso o
lucro, mas a condição de vida das pes-
soas. É esse o projeto que eu escolhi.
O que eu quero para mim, eu quero
para os meus companheiros”, reflete o
agricultor.
Hoje, a experiência serve de moti-
vação para outros agricultores familia-
res que visitam a área em intercâmbios.
“Eu me sinto satisfeito, alegre por levar
esse conhecimento para outros, por-
que as pessoas têm começado a com-
preender, assimilar que a convivên-
cia com o semiárido é muito simples,
basta querer. Essa imagem que a terra
é seca, esturricada, é falsa”, conclui seu
Selisvaldo.
Na divisão dos trabalhos, a criação das galinhas fica sob os cuidados de Dona Isaura
Seu Selisvaldo avalia tabela com os níveis de chuva da região
As pessoas têm começado a compreender, assimilar que a convivência com o semiárido é muito simples, basta querer.
O Campo é o melhorlugar pra viver!
Por Cristina Viturino
12Caderno de Sistematizações - FCVSA
Antônio Manoel de Sousa, de 65
anos, conhecido como “Galego”, é ca-
sado com dona Lúcia Félix, de 55 anos.
Eles vivem no Assentamento Caldeirão
Bom Sucesso, no Distrito de Ponta da
Serra, distante 27 quilômetros da cida-
de do Crato. É lá que também moram
14 famílias, um povo que mostra mar-
cas de enfrentamento, resistência e
conquista na sua trajetória.
Seu Antônio e dona Lúcia sempre
viveram na cidade com os dois filhos.
Ela sempre trabalhou no lar e ele traba-
lhava como fotógrafo e crediarista, mas
também cultivava, enfrentando o arren-
damento sobre o pouco que produzia.
A realidade mudou quando, em
2008, com a orientação técnica do
Instituto Flor do Piqui, eles foram be-
neficiados pelo Programa Nacional do
Crédito Fundiário (PNCF) do Governo
Federal. Em seguida, o assentamento
foi contemplado com seis cisternas
de enxurrada e três cisternas calçadão
pela Secretaria de Desenvolvimento
Agrário (SDA).
Antônio Manoel de Sousa
13 Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA
Em uma área de terra de quase oito
hectares por família, seu Antônio faz
parceria com José Wilson, companhei-
ro de assentamento e também agricul-
tor. Juntos, eles cultivam maracujá, ma-
mão, banana, macaxeira, feijão-verde,
jerimum e fava, além de criarem gali-
nhas e produzirem mel de abelha. Os
agricultores garantem que tudo o que
plantam, a terra ali dá. Uma cisterna de
enxurrada é usada para uso doméstico
e um barreiro e uma cisterna calçadão
dão a água para os quintais produtivos.
Com a experiência de vida e a lida do dia
a dia é possível desenvolver atividades o
ano todo e ir avaliando e aprendendo o
que pode ou não dar certo.
Fora a venda dos produtos colhidos,
a renda da família de Antônio vem da
aposentadoria e dos doces caseiros de
gergelim fabricados por dona Lúcia e
vendidos na Exposição dos Produtos
da Agricultura Familiar (Expoafro). “So-
mos muito mais felizes e confortáveis
por aqui. O que vivemos hoje é tudo o
que um dia sonhei. Tudo o que procu-
ro de benefícios para a nossa terrinha,
(eu) consigo. Não tem do que se recla-
mar”, reflete seu Antônio.
A Comunidade Bom Sucesso é
sempre uma indicação para encon-
tros, oficinas e intercâmbios. Hoje,
tudo é diferente por lá. Os moradores
tiveram a oportunidade de começar
uma nova etapa de suas vidas, mais
justa e com mais dignidade, e assim
registram a certeza que com água a
vida prospera.
Antônio Manoel de Sousa Seu Antônio e dona Lúcia
Somos muito mais felizes e confortáveis por aqui. O que vivemos hoje é tudo o que um dia sonhei.
José e Lúcia: história compartilhada eamor ao Semiárido
Por Evelyn Ferreira
“Com a minha cisterna de enxurrada,eu faço a minha cultura.
Tanto mi, tanto a cana, o feijão e a verdura p’a poder alimentar
meus comedor de rapadura.”
José Ivaldo, agricultor
14Caderno de Sistematizações - FCVSA
A terra rachando em pleno semi-
árido traz à memória do imaginário
comum um sentimento de tristeza: es-
cassez de água, vegetação sem o ver-
de vibrante, animais morrendo, gente
morrendo. Mas na terra de José Ivaldo,
quando a terra começa a abrir racha-
duras é sinal de fartura, sinal de que a
macaxeira já está pronta para ser colhi-
da. O agricultor bate no solo rachado
próximo ao pé e escuta um som aba-
fado, como se a terra estivesse oca:“Tá
ouvindo? Tem macaxeira aqui”.
E a macaxeira cozida combina
com o cafezinho comprado em grãos
na serra de Guaramiranga, torrado e
moído na propriedade da família. O
processo de torrar os grãos demora
cerca de 40 minutos, a depender da
quantidade que se queira fazer. O sa-
bor e o cheiro do café fresco invadem
o paladar de quem prova e a casa
José e Lúcia dividem tarefas
15 Caderno de Sistematizações - FCVSA
onde vive com a esposa, Lúcia Maria,
e dois filhos.
Lúcia e José Ivaldo sempre viveram
da agricultura. Com 23 anos de união,
eles garantem a alimentação da família
com o que plantam no quintal. A fartu-
ra de feijão pode ser vista no quarto do
casal: o estoque conta com 37 garra-
fas cheias. Além disso, a colheita deste
ano já garantiu jerimum, milho, goiaba,
coco e outras riquezas.
A fartura na propriedade é fruto do
esforço do casal. Os dois cuidam jun-
tos do roçado, da casa e dos filhos.
Não há atividade de homem ou de
mulher. O casal faz tudo coletivamen-
te, mas cada um tem suas paixões: a de
Lúcia é costurar, “é bom que nem vejo
o tempo passar”, ela diz; José, por sua
vez, dedica o tempo livre ao conserto
de aparelhos de rádio antigos – “tem
uns três lá dentro (aponta para a casa).
Não vendo nenhum”.
José tem também um gravador an-
tigo que funciona com fita; aperta o
botão de ligar e sai a voz de Luiz Gon-
zaga em canções que falam do sertão.
Quando sai para comprar os grãos de
café, o gravador com a fita do Rei do
Baião faz companhia num compar-
timento da moto que parece ter sido
feito para o aparelho. “Saudade, meu
remédio é cantar”…
A água“Nós somos ricos de água”, sorri
Lúcia ao falar da cisterna recebida no
final de 2013 pelo Programa Uma Ter-
ra e Duas Águas (P1+2) da Articulação
Semiárido Brasileiro (ASA). José com-
plementa em tom de brincadeira: “Essa
aqui Deus não mandou, veio foi deixar”.
O casal lembra as dificuldades en-
frentadas em estiagens passadas. Mo-
radores da comunidade do Nambi de
Baixo, precisavam ir de madrugada à
região vizinha buscar água para be-
ber. A procura era sempre muito dis-
putada, com longas filas, então nem
sempre conseguiam voltar com água
para casa. O sofrimento passado hoje
é lembrado com o sorriso de quem
conseguiu superar momentos difíceis.
Agora o casal tem água garantida para
consumo humano ao lado de casa e
água para produção no quintal. A cis-
terna de enxurrada, com capacidade
para 52 mil litros de água, já sangrou
três vezes em apenas seis meses.
Nóssomos ricosde água.
Café comprado em Guaramiranga
16Caderno de Sistematizações - FCVSA 16Caderno de Sistematizações - FCVSA
Angico, o defensorPara conseguir garantir a produção
livre de insetos e doenças, durante os
cursos de Gestão de Água para Pro-
dução de Alimentos (GAPA) e Sistema
Simplificado de Manejo de Água para
a Produção (SISMA), do P1+2, José
aprendeu a utilizar defensivos naturais.
Com esses defensivos não há neces-
sidade do uso de veneno nas plantas.
Os alimentos que vêm da terra podem
ser melhor aproveitados e podem dar
mais saúde a quem os consome.
José mostra a diferença nos galhos
da goiabeira do quintal. “Vê aqui a dife-
rença?”, pergunta enquanto mostra um
galho com folhas murchas pelo ataque
de insetos e outro bem vivo e limpo. A
mudança é notória. Os defensivos fun-
cionam e não agridem o meio ambien-
te. Uma das caldas que José utiliza é
a do angico, que combate as lagartas.
Quer anotar a receita? É bem fácil e o
próprio José ensina: “O angico, a gente
faz no tambor. Bota a casca do angico.
Depois de oito dias tira a casca, coa, aí
já pode botar na bomba”.
Essa aqui Deus não
mandou, veio foi deixar.
Lúcia em sua horta
José e Lúcia
Caminhada ao campo santo do sertão por justiça evida digna no Semiárido
Por Fram Paulo
17 Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA17
Houve um tempo em que a seca
era um “monstro” temido pelo povo do
sertão semiárido. Nesse tempo, não se
ouvia falar em convivência. Foram di-
versas as ações governamentais volta-
das para o que se chamou de “comba-
te à seca”, através das quais foi criada a
indústria da seca. Obras de açudagem,
frentes de serviços, distribuição de ali-
mentos e muitas outras ações assisten-
cialistas fizeram parte desse processo.
Foi a indústria da seca que transfor-
mou o fenômeno natural recorrente na
região semiárida brasileira em “mons-
tro”. Nesse contexto, vieram os mode-
los de obtenção de vantagens políticas,
fazendo uso de programas assistencia-
listas, bem como a justificativa para a
construção de grandes obras de açu-
dagem e irrigação na região.
Sendo a seca um fenômeno natural
cíclico, um longo período de estiagem
ocorreu na região no início da década
de 30 do século passado, ficando co-
nhecida como a seca de 1932. Nesse
ano, milhares de sertanejos e serta-
nejas cearenses foram aprisionados/
as nos campos de concentração em
pontos estratégicos do Ceará, com o
objetivo de impedir a invasão da capi-
tal Fortaleza pelos flagelados da seca,
como ocorrera em secas anteriores.
Fiéis caminhando e entoando cânticos rumo ao Cemitério da Barragem
18Caderno de Sistematizações - FCVSA
19 Caderno de Sistematizações - FCVSA
Um dos campos de concentração
funcionou no município de Senador
Pompeu, no canteiro de obras da para-
gem do Patu, cuja construção teve iní-
cio em 1919 e foi paralisada em 1924.
Mais de 16 mil pessoas foram confi-
nadas em uma área de pouco mais
de 3 quilômetros quadrados. Milhares
morreram, vítimas de doenças, maus
tratos, higiene precária e fome, tudo
planejado e patrocinado pelos gover-
nos da época.
Com o fim da grande seca, no ano
de 1933, os sertanejos voltaram para
suas casas, seus lugares de origem.
Cada sobrevivente, porém, levou con-
sigo as memórias do campo de dor
e sofrimento. No imaginário popular,
através dos relatos dos sobreviventes,
ficaram as histórias de uma gente que
teve seus direitos violados, colocados
em situação de total desfiguração do
ser humano.
Foi através da memória dos sobre-
viventes e das edificações construídas
inicialmente para abrigar os engenhei-
ros e operários para construção da
barragem do Patu que o fato histórico
não foi esquecido, principalmente na
religiosidade popular, onde existe o
sentimento de que o sofrimento purifi-
ca e eleva a alma ao plano da salvação.
Criou-se no imaginário popular da
região a ideia que as almas da barra-
gem são milagrosas: as Santas Almas
da Barragem, que obram milagres, in-
tercedem pelo povo que sofre e ensi-
20Caderno de Sistematizações - FCVSA
nam o caminho da fé e da esperança,
para que tal fato nunca mais venha a
acontecer nos sertões nordestinos. O
martírio coletivo criou um santo cole-
tivo. AS ALMAS DO POVO, O SANTO
DO POVO.
No ano de 1982, o padre italiano
Albino Donatti, recém-chegado a Se-
nador Pompeu, chamou os paroquia-
nos para fazer uma caminhada, saindo
cedo da manhã da Igreja Matriz e indo
até o Cemitério da Barragem, para ho-
menagear os que morreram no cam-
po de concentração e refletir sobre a
história.
A caminhada virou tradição. Todo
segundo domingo de novembro, mi-
lhares de pessoas caminham em pro-
cissão até o cemitério onde é celebra-
da uma missa em homenagem aos
que sofreram no campo de concentra-
ção de 1932. O Cemitério da Barragem
é considerado um campo santo para a
comunidade e alimenta a fé das pes-
soas.
A Caminhada da Seca é um impor-
tante patrimônio cultural de Senador
Pompeu e carrega uma forte simbolo-
gia: chamar a atenção dos governan-
tes, assim como da própria população,
para refletir e buscar alternativas para
se viver bem no semiárido. Ela é im-
portante também no sentido de man-
ter viva a memória histórica, para não
esquecermos o sofrimento de tantas
pessoas, para que possamos garantir
que nunca mais um fato semelhante
venha a acontecer; além disso, é es-
sencial pela fé, pela devoção que a co-
munidade tem para com as almas da
barragem.
Há um ditado que diz que “santo de
casa não obra milagre”. No caso de Se-
nador Pompeu, as Santas Almas da Bar-
ragem obram milagre sim. É um caso
peculiar em que o santo é coletivo. O
povo virou santo, o santo milagreiro.
São as almas do povo que intercedem
pelo povo que clama por justiça, por
vida digna no semiárido, representan-
do a luta por direitos fundamentais, por
justiça social, por acesso à terra para
morar e produzir e denunciando o
modelo de desenvolvimento imposto
pelos governos e o agronegócio, que
prioriza o lucro em detrimento da vida.
Celebração religiosa em homenagem às vítimas do campo de concentração de 1932, em frente ao Cemitério da Barragem
Tradicional parada para um momento de reflexão com a leitura de depoimentos de pessoas que sobreviveram ao campo de concentração de 1932
como forma de convivência com o Semiárido BrasileiroA tradição indígena
Por Janes Sousa
Indígenas do município de Monsenhor Tabosa, no
Sertão de dos Inhamuns, no Ceará, se utilizam de
palha de taboa para produção artesanal.
21 Caderno de Sistematizações - FCVSA
A arte de produzir artesanatos com
palhas faz parte da cultura indígena. Pri-
meiros moradores do território que hoje
chamamos Brasil, os indígenas passa-
ram o conhecimento de geração em
geração, sendo ele adaptado e aperfei-
çoado com o passar dos anos. No mu-
nicípio de Monsenhor Tabosa, localiza-
do na região do Sertão dos Inhamuns,
no Ceará, três mulheres da etnia Poty-
guara utilizam o artesanato como for-
ma de adquirir renda extra e “se divertir”,
conforme destaca a cacique Maria de
Fátima Pereira da Silva, de 54 anos.
Joelma Barbosa Matos, de 43 anos,
ministrou um projeto de artesanato para
indígenas do município. Com o fim do
curso, ela, a cacique Maria de Fátima
e Maria de Jesus de Sousa Torres, de
47 anos, resolveram se unir: alugaram
um local e passaram a produzir bolsas,
saias e cestas, dentre outras peças.
A renda é utilizada para pagar o alu-
guel e comprar eventuais materiais que
elas precisem. O restante é dividido en-
tre a cacique e Maria de Jesus. Joelma
Matos, que trabalha durante a manhã
como merendeira em um anexo da
Fico feliz empoder dividir
o que sei.Joelma Matos
Maria de Jesus, Joelma Matos e Maria de Fátima fortalecem a tradição indígena na produção de artesanatos
22Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA
Escola Indígena Povo Caceteiro, op-
tou por repassar o conhecimento de
forma voluntária. “Fico feliz em poder
dividir o que sei e possibilitar uma ren-
da extra para elas. Além do que, nos
divertimos muito”, relata Joelma.
O bem-estar que o trabalho arte-
sanal proporciona pode ser imagina-
do por meio das palavras de Maria de
Fátima, que afirma ficar contando o
tempo para chegar a tarde e poder ir
conversar, trabalhar e aprender cada
vez mais; “ainda ganhamos uns troca-
dinhos”, ela ri. Maria de Jesus acres-
centa que não falta um único dia:
“Aqui é bom demais!”, enfatiza.
Todas as peças produzidas pelas
mulheres indígenas são feitas com
palha de taboa (Typha domingensis
Pers), planta de origem aquática en-
contrada em terrenos pantanosos.
Muitas vezes, ela é tratada como pra-
ga por cobrir grande quantidade de
área do espelho d’água e possibilitar
a proliferação de insetos. Por essa ra-
zão, as mulheres conseguem as pa-
lhas praticamente sem custo. Resis-
tente, a planta permite a criação das
mais diversas peças, como cestas e
bolsas (fotos).
Os produtos são vendidos no pró-
prio prédio onde são fabricados, no
bairro Alto da Boa Vista, em Monse-
nhor Tabosa, e também são encon-
trados no museu da história da cida-
de, onde a índia Socorro Potyguara,
responsável pelo local, disponibilizou
espaço para exposição e venda das
peças criadas pelo trio.
Escola Indígena
A união, dedicação e apreço pelo fortalecimento cultural
das três mulheres também podem ser vistos na Escola
Indígena Povo Caceteiro (Anexo Cultura Viva), no bairro
Alto da Boa Vista, na sede do município de Monsenhor
Tabosa. O bairro é o mesmo do prédio onde trabalham
as índias de quem já falamos.
O anexo Cultura Viva, assim como o projeto de artesana-
to que resultou no trio Maria Fátima, Maria de Jesus e Jo-
elma Matos, foram idealizados pela Associação Renascer
da Sede Potigatapuia.
O Potigatapuia é a junção das iniciais das quatro etnias
existentes na região: Potyguara, Gavião, Tabajara e Tu-
pibatapuia. O movimento foi criado para fortalecer a
cultura local.
O anexo é mantido com o salário que os oito professores
recebem do Governo do Estado do Ceará; para ampliar
a atuação da escola indígena, que tem sede na Aldeia
Mundo Novo, eles alugaram um local que pagam com
o próprio salário, assim como dividem o ganho com a
merendeira e com outras pessoas que lecionam. Todos
atuam além do trabalho especificado. Joelma Matos, por
exemplo, além de preparar a alimentação das crianças,
trabalha de forma voluntária ensinando os pequenos a
confeccionar artesanatos. Uma verdadeira lição de ma-
nutenção da identidade.
ÍndIos caceteIros
Diversas etnias de índios brasileiros são nomeadas de
caceteiros, devido ao fato de utilizarem cacetes de ma-
deira, conhecidos também como borduna ou tacape, em
momentos culturais como danças; a maior finalidade dos
objetos, entretanto, era como arma em caças ou guerras.
Jailson Lima aprende na escola a importância da cultura indígena
Rendeiras de Chorozinho contam sua história através das linhas efortalecem o laço com o tempo
Por João Ernesto
23 Caderno de Sistematizações - FCVSA
As mãos das mulheres rendeiras das
comunidades rurais de Chorozinho
mantêm a tradição da renda em bilro
ao longo das gerações na localidade.
Elas constroem uma história de autoa-
firmação e independência no campo,
remontando a outros tempos, quando
era natural reunir as mulheres da casa
em torno do alpendre ou da sala para
começar a produção das rendas. Des-
de criança, as então meninas das co-
munidades rurais de Choró Tapera e
Patos dos Silva começavam a contar,
sem saber, sua própria história, bordan-
do, com uma sutileza única, uma tradi-
ção que remonta, no mínimo, ao início
do século passado. Nesse contexto, o
estalar dos pares de bilro quando ma-
nuseados habilmente pelas mãos das
mulheres não é apenas lembrança de
um tempo que passou, mas se torna
um fator único nessas comunidades
rurais que compõem detalhes da so-
noridade do semiárido.
O termo “bilro” remete às madeiras
utilizadas para costurar as rendas ou os
bicos – como é chamado um tipo de
renda que tem uma base retilínea e ou-
tra arredondada ou pontiaguda. Os bil-
ros, que fazem um som agudo quando
Francineide
24Caderno de Sistematizações - FCVSA
manuseado aos pares, geralmente são
feitos de semente de buriti; o pedaço
de madeira por onde passa a linha,
por sua vez, é feito de marmeleiro ou
pereiro, árvores muito comuns na re-
gião. As “formas” utilizadas para mon-
tar o formato da renda são chamadas
de “papelão” pelas rendeiras, que ge-
ralmente reaproveitam caixas de leite
ou de sabão em pó, embora também
possam ser utilizados plásticos, que
para as rendeiras duram mais e não
precisam ser trocados com muita fre-
quência. A almofada, onde se encaixa
o molde e as linhas presas aos bilros, é
feita com tecido de rede e preenchida
com capim ou folha de bananeira. Os
espinhos de cardeiro ou de mandacaru
ficam nos buracos das formas, guian-
do os caminhos das linhas.
Repassar o ofício e multiplicar os saberes: as rendeiras aprendendo e repassando a tradição
Antes, a “renda” também era finan-
ceira para as mulheres. Em Choró Ta-
pera, dona Luzenira, de 64 anos, tra-
balha há mais de cinco décadas com
sua almofada de bilro e criou quatro fi-
lhos com seus rendados. Ela aprendeu
o ofício escondida da mãe; “não mexa
na minha almofada”, dizia a matriarca
antes de dormir. Luzenira desobede-
cia e pela manhã a mãe notava que a
“pilica” (nome dado quando a rendeira
completa uma “volta” na forma) estava
completa, sabendo assim que a filha
gostava de fazer o trabalho; o que ela
não imaginava é que anos depois a fi-
Eu mesma já ensinei a outras
mulheres aqui da comunidade.
Girlene
Dona Helena fazendo suas rendas
25 Caderno de Sistematizações - FCVSA
lha faria do ofício a forma de sustentar
seus filhos no campo. Já dona Maria,
que reside em Patos dos Silva, conta
sobre a primeira renda que fez, aos
sete anos de idade: a “peixinha”, lem-
bra ela, destacando o formato de peixe
que o trabalho final tinha. A memória
das rendeiras faz dona Helena, por sua
vez, relembrar os trançados mais com-
plexos do tempo que era criança, afir-
mando que o comércio das peças era
mais difícil.
Ensinar o ofício para outras pesso-
as da comunidade não foi obrigação
para as rendeiras, mas a manutenção
da cultura depende diretamente do re-
passe de conhecimentos. Girlene, de
38 anos, teme o desaparecimento da
cultura da renda de birro, mas conta
que sempre que aparece alguém que-
rendo aprender, ela ensina o passo a
passo: “Eu mesma já ensinei a outras
mulheres aqui da comunidade, mas vai
ficar a critério da minha filha aprender
a fazer a renda de bilro. Ela vende suas
rendas e seus bicos em Cascavel, no li-
toral do Ceará, cada peça tem em mé-
dia nove metros e leva cerca de cinco
dias para ser finalizada, porém o preço
não compensa o trabalho manual para
boa parte das mulheres”.
O tato das rendeiras, a visualidade
dos traços nas rendas e a sonoridade
que o movimento das agulhas traz são
características marcantes da localidade.
O estalar dos bilros destaca um sensí-
vel trabalho das mulheres rendeiras de
Chorozinho na história da localidade.
Almofada com bilros de Lourdes
Maria de Jesus e a terra onde planta roçados, hortas e sonhos
Por Karol Dias
“Eu já tenho imaginadoQue a baixa, o sertão e a serra
Devia sê coisa nossaQuem não trabalha na roça
Que diabo é que quer com a terra?”
Patativa do assaré
26Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA
Maria de Jesus, de 54 anos, é uma
agricultora que, a exemplo de muitas
mulheres rurais, cuida com carinho
da terra, dos animais e das plantas. Na
comunidade São Bento, que fica a 15
quilômetros de Ibiapina, ela mora com
o marido, Pedro Batista, as filhas, Silva-
nir, Luciane e Lidiane, os filhos, Genil-
son e Janielson, e os netos, Jadyson
e Jovino Filho. Maria divide seu tempo
entre o cuidado com a casa, o roçado,
os canteiros, as fruteiras e os animais
que cria no quintal e ao redor de casa.
“Já me criei na agricultura, desde meus
pais e meus avós. Para mim, a profis-
são que dou o maior valor é essa mes-
mo... É o melhor que eu faço e é o que
gosto de fazer”, ela explica.
A família chegou no local há 12
anos e mora em “terra de patrão”,
onde eles plantam e colhem. A agri-
cultora, entretanto, se preocupa: “A
gente planta assim, com medo por-
que não mora no que é nosso. A
gente é morador, planta nas terras
alheias e tem medo de avançar mais,
planta pouquinho só para ir se man-
tendo”. Assim, de cada seis ‘leiras’
que colhem no roçado, duas é para
a dona da terra.
Enquanto um canteiro brota, outro alimenta
27 Caderno de Sistematizações - FCVSA
Água que dá vida e aumenta a produção
Maria de Jesus lembra com alegria
que, em 2012, recebeu uma cisterna
calçadão; foi quando pôde ampliar
seus plantios perto de casa e diminuir
o gasto com alimentos. “O bom aqui
é que a gente vai consumindo sem tá
comprando. E tudo isso que a gente
faz aqui já vai amaneirando a despesa
de casa”, ela diz orgulhosa.
Trabalhando na agricultura desde a
infância, Maria de Jesus sempre pro-
duziu de forma orgânica pensando
no bem-estar de sua família; preferia
ter prejuízo na colheita do que ter que
usar fertilizantes e defensivos químicos.
Desde que participou dos cursos de
formação em Gerenciamento de Água
Para Produção de Alimentos (GAPA),
Sistema Simplificado de Manejo de
Água (SISMA) e de um intercâmbio de
formação, entretanto, ela aprendeu al-
gumas estratégias que melhoraram o
resultado de sua produção. “Eu aprendi
como pulverizar as plantas, que eu não
sabia, com manipueira, com nim, pul-
verizar quando o gado cria carrapato...
Tudo isso a gente aprendeu com esses
cursos”, cita a agricultora.
Em relação ao consumo e à comer-
cialização, da produção do roçado ela
só vende se sobrar da alimentação da
família; o que vem da horta, por sua
vez, além de suprir as necessidades de
casa, é compartilhado com as/os vizi-
nhas/os. “Muitos deles que vêm atrás, a
gente divide também”, comenta.
Terra que é sonho e direitoSobre sentimentos e esperança ela
diz: “Eu tenho o maior sonho no mun-
do de um dia eu alcançar de morar
num pedacim, embora que seja só o
pontim da casa, mas, que eu diga as-
sim: aqui ninguém mexe comigo...”. As-
sim é Maria de Jesus, uma agricultora
que, com trabalho, simplicidade e sor-
riso no rosto, leva consigo a esperança
de um dia conquistar o que há de mais
fundamental para quem trabalha na
agricultura: a terra.
Maria de Jesus e seu canteiro a produzir
Desenho da paisagem que começa a se diversificar com o acesso a água
Cultivar sonhos paraalcançar as estrelas
Por Liliane Carvalho
“Ser radical é agarrar as coisas pela raize a raiz do homem é o próprio homem”
Paulo Freire
28Caderno de Sistematizações - FCVSA
Sonho que se sonha junto é reali-
dade! Está sendo assim com a Escola
Família Agrícola Chico Antonio Bié, a
EFA Ibiapaba. Desde 2009, agriculto-
ras e agricultores envolvidos no Projeto
Agroecologia em Rede, desenvolvido
pelos Sindicatos de Viçosa do Ceará
e de Tianguá, estão “tecendo fios” e
construindo uma educação diferencia-
da no semiárido ibiapabano.
A escola que tantos trabalhadores
e trabalhadoras rurais desejaram ter e
não puderam frequentar antigamente
existe, mas não corresponde às neces-
sidades de quem mora no campo: não
respeita a cultura e a história de cada
região, não valoriza nem reafirma a
identidade campesina, estimula o êxo-
do rural e não contribui com o desen-
volvimento agrário.
Estudantes da EFA construindo Canteiro Econômico na Oficina de SISMA.
29 Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA29
Insatisfeitos com essa educação,
agricultores e agricultoras programa-
ram uma visita à Escola Família Agrícola
Dom Fragoso, situada em Independên-
cia. Foi aí que o sonho de ter uma ver-
dadeira educação do campo começou
a mudar a vida dessas pessoas. Com
muito esforço, determinação, trabalho
e compromisso, criaram a Associação
da Escola Família Agrícola da Ibiapaba.
Depois de “bater em muitas portas”, a
Associação do Assentamento Morada
Nova–Tianguá fez a doação de 22 hec-
tares de terra para a construção da EFA.
Acreditando na capacidade criativa e
no compromisso das famílias envolvidas
nessa construção, em 2013 foi realizado
o processo de seleção da primeira turma
de estudantes e, dos mais de 100 jovens
interessados, 26 foram matriculados. A
EFA está funcionando! Pela pedagogia
da alternância, os jovens passam doze
dias intensivos na escola e o restante do
mês em casa, realizando uma diversida-
de de tarefas que envolvem as famílias
e as comunidades. Direção, monito-
ria e educadores realizam um trabalho
voluntário, cheio de dedicação e es-
peranças. Para suprir tantas outras ne-
cessidades, inclusive a de alimentação,
muitos apoiadores estão contribuindo
com trabalho e doações. Por enquan-
to, a escola funciona na Casa de Reuni-
ões, cedida pela Associação do Assen-
tamento Nova Esperança–Tianguá. Os
Sindicatos de Viçosa, Tianguá, Ubajara,
Ibiapina e Frecheirinha, além de outras
entidades e pessoas, dedicam tempo,
cuidado e trabalho na realização das
atividades escolares, garantindo o bom
funcionamento da escola.
Mudar mentalidades e comporta-
mentos nunca foi tarefa fácil nem para
a família, nem para a escola, mas isso
Primeira Turma da Escola Família Agrícola da Ibiapaba - EFARI
30Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA
está acontecendo na EFA. Agora, jovens
que passaram por lá estão cuidando
melhor das suas coisas e do ambiente
onde vivem, compartilhando o trabalho
doméstico, dialogando mais com suas
famílias, assumindo maiores responsa-
bilidades em casa e na escola e admi-
nistrando as dificuldades de relaciona-
mento para estabelecerem uma melhor
convivência em grupo. “Nas outras es-
colas, os filhos estudam para abando-
nar o campo; na EFA, eles buscam as
raízes históricas da família e resgatam
essa memória. É muito bom!”, conta
João Jovem, pai de Eduardo, educan-
do da EFA.
O registro oficial da EFA, a constru-
ção da escola com base na permacul-
tura, a infraestrutura e a alimentação
durante as seções escolares são de-
safios que precisam ser vencidos para
se “alcançar as estrelas”. A Campanha
“Amigos da EFA” está mobilizando novas
entidades e pessoas, aumentando a teia
de solidariedade e o compromisso de
todos com a transformação da educa-
ção e, consequentemente, da vida no
campo, tornando realidade o sonho de
muitos que querem um semiárido onde
a vida que pulsa se expresse de forma
plena e radical.
Nas outras escolas, os filhos
estudam para abandonar o
campo; na EFA, eles buscam as
raízes históricas da família e
resgatam essa memória.
João Jovem
Participação de estudantes da EFA na Oficina de GAPA pela ESPAF
Por Marcus Saymon
31 Caderno de Sistematizações - FCVSA
em Icapuí (CE)Artesanato é fonte de renda e vida
O sorriso largo de dona Maria Nasi-
rene traduz a vida que ela mesma de-
fine como “FELIZ”. A agricultora mora
no município de Icapuí, na comunida-
de Vila União, já próximo à divisa com
o Rio Grande do Norte.
Para a agricultura familiar, os bens
TERRA e ÁGUA são indivisíveis. Nessa
luta seguem milhares de camponeses
que buscam em suas terras produzir e
garantir o sustento de suas famílias. A
primeira das lutas enfrentada por dona
Nasirene foi a conquista da terra. Inicial-
mente, era apenas ela, o marido – seu
Milton – e um dos seus filhos. “Quando
a gente chegou aqui, só era mato alto,
e daí roçamos tudo com facão e co-
meçamos a lutar pelos nossos direitos”,
conta a agricultora. Assim, a família
buscou os documentos e meios legais
até conseguir definitivamente a docu-
mentação que garantia a posse legal.
A segunda parte de sua luta foi a
busca pelo acesso à água. De forma
organizada, a agricultora mobilizou a
comunidade e levou essa demanda até
a COMTACTE (Cooperativa Mista de
Trabalho Assessoria e Consultoria Téc-
nico Educacional), que executou as
primeiras construções e capacitações.
O sentimento que move dona Nasi-
rene é de que tudo pode ser diferente;
não existe, em seu coração, aquele ve-
lho pensamento de que já sabe tudo,
que não precisa aprender mais, ou
qualquer outro sentimento que torna
as pessoas pessimistas e sem esperan-
ça. “Sempre que a gente solicita alguma
coisa para cá, eles nunca querem no
começo, mas quando veem que está
dando certo aí se interessam,” explica a
agricultora. Dona Nasirene foi uma das
primeiras a apoiar a chegada das imple-
mentações do Programa Uma Terra e
Duas Águas (P1+2) na sua comunida-
de, já que ainda hoje existem muitas
Sua historia se confunde com a história da comu-nidade, e entre sorrisos ela trança com agilidade os fios e enquanto fala um pouco da sua vida
32Caderno de Sistematizações - FCVSA
comunidades que não acreditam que
as políticas de convivência com o se-
miárido possam ser uma realidade, que
não creem que esse tipo de tecnologia
social pode chegar até elas, mas perce-
bem que, quando todos se envolvem,
renova-se o sentimento de esperança.
Dona Nasirene é um exemplo de for-
ça e encorajamento. Atualmente, ela tem
no artesanato o seu sustento e mantém
firme e unida toda sua família que vive
em volta do seu quintal produtivo. “O
cisternão veio para complementar meu
quintal produtivo”, conta a agricultora.
Em seu quintal, ela tem galinhas caipiras,
marrecos, patos, porcos, bezerros e uma
vaquinha, dentre outras criações; além
disso, tem como forragem a hortênsia,
a leucina e a algaroba, que servem de
alimento para a vaca e bezerros.
A adaptação da alimentação animal
para espécies que são cotidianas do se-
miárido facilita a conservação das mes-
mas durante o período em que não há
chuva. Essas forragens são bastante co-
muns entre agricultores familiares.
Já no que se refere à comercializa-
ção direta dos produtos, a família ainda
não conseguiu se organizar, pois prefe-
re assegurar sua alimentação, mas tem
como objetivo se unir aos demais mo-
radores para se organizar e levar seus
produtos a alguma feira local. Dona
Nasirene costuma participar, junto das
mulheres da comunidade, de eventos
e feiras onde cada uma leva seu produ-
to, seja artesanato, frutas, verduras, etc.
33 Caderno de Sistematizações - FCVSA
34Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA
O artesanato da agricultora é de
encher os olhos. Ela conta que nem
lembra como aprendeu, mas que na
primeira comunidade onde morava
com sua mãe em Canaã, no Ceará, as
mulheres costumavam se reunir à tar-
de para “rendar”. Hoje, ela conta com
ajuda da mãe para vender suas peças
em Natal, no Rio Grande do Norte;
dessa forma, se livra do atravessador e
recebe justo pela sua arte.
O material utilizado para a renda
de bilro é bastante simples: o trança-
do se dá apoiado em uma almofada,
confeccionada com retalho de rede e
recheada com folhas de bananeira; o
papel picado é apoiado em cima com
o desenho que dá forma aos fios. Os
bilros que dão nome à renda são feitos
com pedaços de madeira e Dona Nasi-
rene nos mostra um que lhe acompa-
nha desde a primeira renda. A função
dos bilros é facilitar o rendado e cada
um tem um fio de coloração diferente;
quanto maior a renda, maior o núme-
ro de bilros. Os alfinetes usados por ela
são espinhos de mandacaru, já que os
convencionais enferrujam devido à re-
gião ser a beira-mar.
Primeira moradora da comunidade,
fundadora e presidente da associação,
artesã, agricultora familiar, mãe. Essas
são apenas algumas das atribuições
que podem ser dadas a Dona Nasirene
que, com sua hospitalidade e exemplo
de vida, segue motivando e encorajan-
do todos no Semiárido.
Quando a gente chegou aqui, só era mato alto, e daí roçamos
tudo com facão e começamos a lutar pelos
nossos direitosnasirene
Cores e tranças da rendaOrgulhosa do seu pedaço de chão, dona Nasirene conta todas as suas conquistas pessoais e em prol de sua comunidade
35 Caderno de Sistematizações - FCVSA
Casados há 26 anos, João Fe-
lix chama Antônia para participar da
prosa porque sem ela, a conversa e a
vida ficariam incompletas. Com uma
trajetória inteira dedicada à agricultu-
ra familiar, João só ficou sabendo da
existência da agroecologia em 2003
através do Centro de Pesquisa e As-
sessoria – ESPLAR. Vivendo na co-
munidade Riacho do Meio, em Cho-
a experiência de resistência de João Félix e AntôniaVivendo e aprendendo:
Por Mayara Albuquerque
Vivendo e aprendendo a jogar
Vivendo e aprendendo a jogar
Nem sempre ganhando
Nem sempre perdendo
Mas, aprendendo a jogar
Guilherme arantes
ró Limão, município localizado a 21
quilômetros de Quixadá e da micror-
região do Sertão de Quixeramobim,
ele vivenciou o alto índice de veneno
da região. “A gente colocava veneno,
tinha vontade de largar, mas achava
que não ia conseguir produzir sem o
veneno. Tinha vontade, mas não ti-
nha o parecer, o conhecimento”, re-
lembra o agricultor.
João Félix recebe agricultores e agricultoras do Sertão Central em intercâmbio
36Caderno de Sistematizações - FCVSA 36Caderno de Sistematizações - FCVSA
Com o Algodão em Consórcios
Agroecológicos e os Quintais Produti-
vos, projetos implantados pelo ESPLAR,
o casal começou a construir uma nova
visão de mundo. Para João, a agroeco-
logia engloba todas as coisas, desde o
convívio em sociedade até a divisão de
tarefas em casa: não se trata só de se-
gurança alimentar, trata-se de construir
politicamente um novo modo de viver
e, acima de tudo, defendê-lo. “E de lá
para cá, a gente ingressou na questão
da agroecologia, tanto em fazer como
em defender. Eu acho que o ideal não
é só você querer para si, mas mostrar
para outras pessoas que aquilo dá cer-
to, que é importante, que é uma forma
de ter mais saúde. Faz com que a terra
tenha mais vida”, ressalta o agricultor
agroecológico ao falar sobre a sua tra-
jetória na agricultura familiar.
Há dez anos sem produzir com ve-
neno, João Felix acredita que experi-
mentar é a melhor maneira. Não existe
fórmula, é fazer do seu quintal o seu
laboratório e o seu espaço para criar
e proteger a terra. É vivendo que se
aprende e na convivência com o pró-
ximo, como bem diz Antônia: “A gente
nunca diz assim: ‘eu sei tudo’. A gente
sempre tem o que aprender. É na con-
vivência que a gente vai aprendendo”.
João é um dos multiplicadores do
Algodão em Consórcios Agroecológi-
cos, um dos fundadores da Casa de
Sementes do Riacho do Meio e tam-
bém faz parte da Associação Comuni-
tária dos/as Agricultores/as Familiares
do Riacho do Meio. Assim, está sem-
pre envolvido em reuniões. Já partici-
pou duas vezes do Encontro Nacional
de Agroecologia (ENA) e outros tantos
João Félix e a família, reunidos em frente ao trabalho do artista pernambuco Derlon
A gente nunca diz assim: ‘eu
sei tudo’.A gente sempre
tem o que aprender. É
na convivência que a gente vai
aprendendo.antônia
37 Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA37
encontros, pois considera da maior im-
portância compartilhar experiências e fi-
car por dentro dos debates.
Antes de sair de casa, ele pede que o
filho leve o café para a mãe na cama, um
mimo que faz à companheira há anos
antes dela sair de casa para trabalhar. An-
tônia, além de cuidar da horta e das abe-
lhas, também é agente de saúde e conta
com a ajuda dos três filhos e do compa-
nheiro nas tarefas da casa.
A cisterna calçadão da família não vê
água da chuva há três anos e, com a seca,
até os cacimbões da região secaram, daí é
preciso pagar o carro-pipa para ter acesso
à água. No entanto, como a “força nunca
seca para a água que é tão pouca”, o ca-
sal ainda cultiva cheiro-verde, cebolinha,
alface, pimentão, tomate, limão, caram-
bola, mamão, goiaba, noni, graviola, la-
ranja, acerola, amora, cajueiro e coqueiro.
Na parte de plantas medicinais, eles têm
capim-santo, corama, malvarisco e cidrei-
ra. Além disso, criam galinhas e ovelhas.
“No primeiro ano que nós recebemos a
cisterna, o João fazia o dinheiro da sema-
na só nos finalzinho de semana. Não pre-
cisava nem botar para vender para fora
não. O pessoal sabia que tinha e já vinha
comprar aqui. Era pimentão, pimentinha,
cheiro-verde...”, recorda Antônia.
Apesar da falta de água, o casal já re-
cebeu agricultores e agricultoras de Ma-
dalena em intercâmbio esse ano. Resistir
é com eles mesmo. Mas não resistir para
sobreviver, e sim para mostrar que a luta
vale a pena, que a vida pode ser digna e
que os sonhos podem pulsar em qual-
quer lugar.
João Félix e Neto, na feira da agricultura familiar e solidária de Quixadá
João Félix mostra a criação de abelhas
38Caderno de Sistematizações - FCVSA
Agricultoras de Aroeiracultivando arte
Por Ricardo Wagner
“Os olhos são os primeiros
que anunciam o amor”
Em Aroeiras, a receptividade e o
bom humor sopram pelos troncos das
carnaúbas e cajueiros como os famo-
sos ventos do Aracati, onde a comuni-
dade está localizada a 27 quilômetros
da sede do município. Cerca de cem
famílias povoam a localidade, sendo
a maioria composta por agricultoras
e agricultores familiares que plantam
macaxeira, feijão, milho, mandioca e
beneficiam produtos do caju.
Mulheres que lideramÉ nesse local que vivem as dramis-
tas. Dona Eufrásia é a líder do grupo.
Dos tempos em que lecionava aos
tempos atuais, dona Eufrásia, agora
com 86 anos, traz muita história para
contar. Ela nasceu na comunidade La-
goa Escondida, vizinha à comunidade
Aroeiras. Por trinta anos, a professora
aposentada lecionou em escolas mu-
nicipais; hoje, ela não deixa de exercer
duas atividades que tanto gosta: a agri-
cultura e o drama.
Sua casa é bem arejada, resultado
dos enormes cajueiros, ateiras e man-
gueiras que nos convidam a armar
uma rede e contemplar o canto dos
passarinhos misturado ao ranger do
Grupo de dramistas de Aroeiras - Aracati (CE)
39 Caderno de Sistematizações - FCVSA
antigo armador fincado no tronco da
carnaúba. O coentro, o pimentão e a
cebolinha estão no canteiro; a manga,
a ata, o mamão, o abacaxi e a acerola
ficam nos arredores da casa; e o feijão,
a melancia e o milho no roçado, por
sua vez, se encontram ao redor da cis-
terna de enxurrada.
Sentada à mesa que seu pai fabri-
cou para que ela pudesse ensinar as
crianças, jovens e adultos da comu-
nidade, dona Eufrásia nos relata: “Mas
não foi fácil, não. Todo o pessoal mais
velho daqui foi meu aluno. Eu ensinei
o meu marido a ler e a escrever depois
de adulto”. Junto com seu Zé Maria, de
72 anos, seu marido e companheiro de
luta, ela fala da sua trajetória: “A gente
sabia plantar porque nossos pais leva-
vam a gente pro roçado para aprender
vendo. Ninguém nos ensinava a não
colocar fogo no roçado, a não usar ve-
neno. Hoje está diferente. Tem muitos
meios de não estragar a terra”. O que o
casal relembra são as dificuldades com
a água. “Hoje está mais fácil conseguir
um bom plantio. Com essas cisternas,
a gente tem mais tempo para aprender
formas de cuidar da terra, diferente do
que a gente fazia naquele tempo”, ob-
servou dona Eufrásia.
“Quando as famílias aqui não tinham
cisterna, dava era confusão quando
o carro-pipa vinha colocar água no
tanque ali do lado da casa de farinha”,
conta a agricultora, que lava suas rou-
pas à sombra de um cajueiro do lado
da casa. “A água já está garantida na
cisterna. Eu tenho tempo para fazer
outras coisas e eu ainda participo do
grupo de dramistas”, ela arremata.
É muito Drama
“Eu sou a vida força monitora
Espalho a luz pelo mundo afora
Quem me criou foi a mãe Aurora
Que lá no céu nos dirige agora...”
O Grupo de Dramistas de Aroeiras
conta hoje com 11 mulheres e 2 ho-
mens. Dona Eufrásia está no grupo
desde a década de 1940, quando ain-
da era menina, e rememora aqueles
tempos: “A gente estudava em Aracati
e quando era nas férias, a gente vinha
a pé para cá. Cada dramista fazia sua
roupa e a gente ensaiava para se apre-
sentar aqui nas redondezas”
Dona Fátima Lima, de 60 anos, nos
conta a história: “O Drama é uma espé-
cie de teatro, só que é todo dançante,
Dona Eufrásia, fundadora do grupo
40Caderno de Sistematizações - FCVSA
como um musical. É um tipo de arte
que veio dos portugueses e está aqui
desde os meus avós”. O Drama do gru-
po é dividido em 32 atos, e tem vários
personagens, como as floristas, a ciga-
na chique, a baianinha e os matutos. O
Drama pode ser apresentado em qual-
quer época, diferente do Pastoril, que
só é apresentado na época do Natal.
Sem contar com nenhum apoio e
sem acessar nenhuma política pública,
o grupo ainda não tem sede própria.
As roupas, cenários e adereços são
guardados na casa de dona Fátima. Ela
também é responsável por guardar os
cadernos com as composições musi-
cais do grupo debaixo de sete chaves.
“É que a gente participa de competi-
ções de Dramistas, aí a gente não quer
que os outros grupos peguem as nos-
sas músicas, né? A gente não é nem
besta!”, diz sorridente a artista. Dona
Maria, que também faz parte do grupo,
dispara alegre: “As músicas eram grava-
das só no chip da cabeça”.
As Dramistas demonstram preocu-
pação com o futuro do grupo. “É que
a juventude não está querendo partici-
par. A gente tem medo que ninguém
bote o grupo para frente”, diz dona
Fátima com o olhar perdido. Contan-
do com apenas um pandeiro, tocado
por seu Francisco Ciriato, de 74 anos, o
grupo não desanima. “A gente vai con-
tinuar tentando trazer os jovens para
cá. A gente não pode desistir”, comple-
ta dona Fátima, com um largo sorriso.
Com essas cisternas, a
gente tem mais tempo para
aprender formas de cuidar da
terra, diferente do que a gente fazia naquele
tempo.eufrásia
Gerações fazendo cultura no Semiárido Cearense
41 Caderno de Sistematizações - FCVSA
Urucongo: uma história de arte e cultura
no Cariri CearensePor Ricardo Vieira
Na comunidade Chico Gomes, dis-
tante oito quilômetros da sede do mu-
nicípio de Crato, um grupo de jovens dá
o exemplo que, através da mobilização
social, é possível construir mudanças
positivas. A comunidade é composta
por 47 famílias que se distribuem numa
área na encosta da Chapada do Arari-
pe voltada para atividades agropastoris,
tendo, portanto, o acesso à terra como
o maior desafio.
Nesse ambiente, em meados de
2001, um grupo de jovens se reuniu
para organizar uma quadrilha junina, a
primeira de muitas. A partir de então,
passaram a se encontrar nos períodos
que antecediam as festas juninas para
planejar os festejos, incluindo as temá-
ticas a serem trabalhadas. Nesses mo-
mentos surgiam, além dos assuntos re-
lativos à quadrilha, outros de interesse
da comunidade, como acesso à terra e
à água, segurança alimentar, revitaliza-
ção da cultura local e regional, traba-
lho escravo e articulação com outras
organizações, dentre outros. Como os
encontros se encerravam com a reali-
zação da quadrilha, os temas não eram
aprofundados.
Nascia então a necessidade de algo
mais concreto, dando origem, em
2006, ao Grupo Urucongo de Artes.
“Não tínhamos noção da ação políti-
ca do grupo dentro da nossa realida-
de. Trabalhávamos na quadrilha temas
como o Caldeirão1, que fazia refletir
sobre diversas questões, como o aces-
so à terra, embora de forma superficial.
Quando passou a Urucongo, percebe-
mos o tanto que podíamos aprofun-
dar”, conta Ana Cristina, de 25 anos,
relembrando aquele período; à época,
ela tinha apenas 13 anos.
Manoel Leandro, que hoje tem 35
anos e é participante do grupo desde a
sua fundação, quando ainda era jovem,
acrescenta: “Tudo começou a partir de
Apresentação cenopoética doGrupo Urucongo de Artes
42Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA
uma brincadeira que foi ficando séria e
despertou a necessidade de aprofun-
dar todas essas questões”. Os jovens se
dedicaram a pesquisar a história local e
a buscar parcerias para capacitações e
formações políticas para se reconhece-
rem como sujeitos dessa história. Logo
em seguida, e com o mesmo intuito,
foi realizada uma oficina de confecção
de instrumentos musicais em parceria
com a Rede Mulher. Essas iniciativas
trouxeram reconhecimento ao Uru-
congo pela própria comunidade, na
região do Cariri e até nacionalmente.
Em 2009, o grupo foi contempla-
do com o prêmio “Culturas Populares”
do Ministério da Cultura, viabilizando a
compra de um terreno nos arredores
da comunidade. No local, foram agre-
gados uma rádio difusora, uma casa
de sementes e um viveiro de mudas
do P1+2 (Programa Uma Terra e Duas
Águas da Articulação Semiárido Brasi-
leiro (ASA)). No ano de 2012, eles con-
correram ao Prêmio Odair Firmino de
Solidariedade com o tema “Juventude,
Desenvolvimento e Solidariedade: Se-
meando Direitos, Colhendo Vidas” (é
o tema geral do prêmio ou o tema do
grupo? A pontuação muda de acordo
com a resposta)., pela Cáritas Brasileira,
alcançando a primeira colocação e a
premiação de R$ 10.000,00.
O recurso veio através de bolsas para
jovens da comunidade destinados (os
jovens ou as bolsas que são destinados?
A pontuação muda de acordo com a
resposta) aos cuidados com a mandala
(projeto de agricultura familiar autossus-
tentável para fins de produzir a própria
alimentação com qualidade, produtivi-
dade, responsabilidade social e exercí-
cio da cidadania) e para formações para
o turismo de base comunitária.
Ainda em 2012, o Urucongo realizou
a primeira Balada Coco, evento cultural
que passou a fazer parte do calendário
do grupo, como também a revitaliza-
Meizinheiras com a mão na “massa” (no sabão)
43 Caderno de Sistematizações - FCVSA
ção do trabalho das meizinheiras (tam-
bém passou a fazer parte do calen-
dário?), em reconhecimento ao apoio
dado pelas mães destes jovens. Em
parceria com a Cáritas, o Instituto Chi-
co Mendes de Conservação da Biodi-
versidade (ICMBio) e o Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia do
Ceará (IFCE) e associados a outras duas
comunidades, Batateiras e Jenipapo,
(os jovens ou as mães?) enriqueceram
o projeto das Meizinheiras com a pro-
dução e a comercialização de chás,
banhos, lambedores, sabonetes e po-
madas. Este ano (2015?), eles tiveram
a primeira experiência de turismo de
base comunitária como mais uma pos-
sibilidade de geração de renda.
Ivonildo, que participa do Urucon-
go desde a adolescência e hoje é um
jovem universitário, profetiza: “O futuro
do Urucongo é fazer da Chico Gomes
– a nossa comunidade – o nosso local
de trabalho e fonte de renda, pois os
jovens veem o grupo como uma fase
momentânea, não conseguem ver ain-
da a continuidade para o futuro, mes-
mo com todas as vitórias”.
Como nem tudo são flores, os jo-
vens estão conscientes que seu prin-
cipal desafio é trazer de forma mais
ampla o debate do direito de acesso à
terra, já que as gerações anteriores têm
características pacíficas, resultado de
marcas na memória de pressões sofri-
das no passado. “Historicamente a co-
munidade está submissa às questões
agropastoris através dos anos e pre-
tendemos tirar a venda dos olhos da
comunidade, fazendo-os enxergar a
realidade”, pois “o não empoderamen-
to da terra, nos impossibilita de aces-
sar várias políticas públicas”, acrescenta
Manoel Leandro.
Manoel destaca ainda o apoio das
instituições parceiras, em especial da
Associação Cristã de Base (ACB), no
início da mobilização, e também da
Cáritas Diocesana do Crato, da Rede
de Educação Cidadã (RECID), da Rede
Mulher, do ICMBio, do IFCE, do Grupo
de Valorização Negra do Cariri (Gru-
nec), da Universidade Federal do Ca-
riri (UFCA) e do Fórum Araripense de
Combate a Desertificação.
Para Rosely, fundadora e integrante
do grupo desde a adolescência e mãe
de Heitor, de apenas um mês, a institu-
cionalização do grupo é um passo fun-
damental para os sonhos que querem
realizar, contribuindo para a constru-
ção da realidade de que no semiárido
brasileiro é possível promover a melho-
ria da qualidade de vida dos agriculto-
res e agricultoras familiares.
Pretendemos tirar a venda dos olhos da comunidade, fazendo-os enxergar a realidade.Manoel Leandro
Mandala na comunidade Chico Gomes
44Caderno de Sistematizações - FCVSA
o MST já fez história. A Escola João dos Santos Oliveira faz parte dessa vitória
Na luta pela terra
Por Rutiele Parente
Da terra onde nasceu o MST no Ce-
ará, brotou a Escola Estadual de Ensi-
no Médio João dos Santos de Oliveira
(João Sem Terra), um centro de edu-
cação em agroecologia e desenvol-
vimento sustentável dos movimentos
sociais populares do campo. Situada
no Assentamento 25 de maio, na co-
munidade de Quieto, e marco históri-
co na luta dos trabalhadores e traba-
lhadoras rurais sem terra no estado do
Ceará, a escola foi inaugurada em 6 de
Abril de 2010, no município de Madale-
na, como parte do esforço da luta pela
terra, por reforma agrária e pela afirma-
ção da agricultura camponesa familiar.
O nome da escola foi definido
através da participação popular, que
escolheu o nome de João Sem Ter-
ra (1939-2008) para ser homenagea-
do. Sua trajetória é uma presença viva
na luta pela reforma agrária, por isso
a justa homenagem a sua memória,
nomeando a Escola Estadual de Ensi-
no Médio João dos Santos de Oliveira
(João Sem Terra).
Aniversário de 25 anos do Assentamento 25 de maio (Arquivo Escola João Sem Terra)
45 Caderno de Sistematizações - FCVSA
Estamos esperando a reforma que
não sai, mas é preciso achar um
jeito, juntar braço com mais braço
conquistar melhor espaço,
no que temos de direito.
trecho da música que João sempregostava de tocar e cantar
Por estar inserida no contexto de luta
pela reforma agrária, a escola se apre-
senta como um espaço de reflexão e
discussão com o intuito de promover
um projeto socioeconômico que pre-
tende contribuir com a formação de
um novo homem e uma nova mulher,
sujeitos de uma nova sociedade, supe-
rando os valores do individualismo, do
egoísmo e do consumismo, raízes da
exploração dos seres humanos, que
produzem miséria e violência, além
da destruição ambiental que ameaça
a vida de todo planeta.“Nós temos lu-
tado por um projeto político-pedagó-
gico das Escolas do Campo que leve
em conta essa realidade, do projeto
da agricultura camponesa, que é esse
projeto baseado na agroecologia, nas
novas relações de gênero, nas tecnolo-
gias de convivência com o semiárido,
considerando a matriz da agroecologia,
preocupada com a formação humana
nas suas várias dimensões,”ressalta Ma-
ria de Jesus, coordenadora do Setor de
Educação do MST.
Baseando-se na Política Nacional
de Saúde Integral das Populações do
Campo e da Floresta, no ano de 2012 a
escola sediou a primeira turma do Cur-
so Técnico em Meio Ambiente para jo-
vens do campo, que teve como nome
“Raízes da Terra”. O curso foi uma par-
ceria entre a Escola Politécnica de Saú-
de Joaquim
Venâncio da Fundação Oswaldo
Cruz (EPSJV/Fiocruz), o Núcleo Tra-
mas da Universidade Federal do Ceará
(UFC) e o Movimento dos Trabalhado-
res Rurais Sem Terra, contando com o
financiamento da Secretaria de Gestão
do Trabalho e Educação na Saúde (SG-
TES) do Ministério da Saúde. A iniciativa
tinha como objetivo principal formar
trabalhadores e trabalhadoras rurais
para a identificação e o enfrentamen-
to dos principais determinantes sociais
da saúde das populações do campo,
fortalecendo a luta dos movimentos
sociais camponeses na construção
de ambientes saudáveis e sustentáveis
com ênfase nos problemas de saúde
ambiental de seus territórios.“O MST
luta pela educação na reforma agrária
como uma estratégia de fortalecer a
reprodução camponesa e o projeto de
sociedade que defendemos, que é um
Alunos da Escola do Campo apresentando seus projetos/ações na I Feira da Reforma Agrária em Quixeramobim (Arquivo Escola João Sem Terra)
46Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA
campo com mais dignidade, que pro-
duz alimentos saudáveis, que tenha so-
berania alimentar, uma transformação
social,” reforça Maria de Jesus.
A Escola João Sem Terra tem uma
área importante de produção agroe-
cológica, que é também espaço para
capacitação e pesquisas; ela contam
com uma horta Mandala, que produz,
além de hortaliças e legumes, frutas e
peixes cuja produção é destinada ao
consumo interno. É na Mandala onde
são cultivadas as plantas medicinais
que compõem o projeto “Farmácia
Viva”, no qual os alunos discutem a im-
portância das ervas medicinais na cura
de doenças.
Além disso, são desenvolvidas di-
versas atividades educativas e culturais
com a comunidade de seu entorno,
destacando-se os projetos elaborados,
pesquisados e apresentados pelos pró-
prios alunos que constroem sua cons-
ciência crítica em relação ao meio em
que vivem. No projeto “O uso de Agro-
tóxicos e os impactos na saúde e no
meio ambiente”, os alunos Guilherme
e Sara apresentam receitas de biode-
fensivos contra diversos insetos que
atingem as plantações e apontam a
importância da preservação ambiental
e o mal causado pelos insumos quí-
micos. Para o aluno Thalyson, “depois
que eu entrei na escola do campo, eu
mudei bastante, porque aqui agente
discute e constrói a educação. Eu era
tímido e, com os projetos, o teatro, eu
me sinto mais capaz, eu nem imagina-
va que tinha essa capacidade.”
Além de contribuir na divulgação da
agroecologia, no apoio social e na efe-
tivação da reforma agrária no Ceará,
a prática pedagógica da Escola João
Sem Terra está se construindo local
e regionalmente como uma referên-
cia para a educação do campo. Anu-
almente, muitas pessoas passam pela
Escola em cursos, encontros do MST e
outros eventos.
Nesse contexto, e em meio a tan-
tos desafios que ainda persistem,
pode-se afirmar que o fato de os su-
jeitos contribuírem na construção da
experiência e da prática pedagógica
da Escola João dos Santos Oliveira fez
nascer um novo jeito de fazer escola e
de fazer-se humano.
Mas, apesar de tudo isso
O latifúndio é feito um inço
Que precisa acabar
Romper as cercas da ignorância
Que produz a intolerância
Terra é de quem plantar
canção da terra - Pedro Munhoz
Aniversário de 25 anos do Assentamento 25 de maio (Arquivo Escola João Sem Terra)
47 Caderno de Sistematizações - FCVSA
uma nova maneira de economia trazendo mudanças significativas nos modos de viver, pensar e agir de agricultores e agricultoras
Fundo Rotativo:Por Lívia Teixeira
A Cáritas Diocesana de Itapipoca
vem trabalhando na organização do
Projeto Fundo Rotativo, que, atualmen-
te, já conta com oito comunidades de
Itapipoca e outros municípios. Essa
nova maneira de trabalhar trouxe no-
vas vivências e expectativas para agri-
cultores e agricultoras, favorecendo o
crescimento das famílias, desenvolven-
do ações conjuntas e possibilitando a
vivência de uma economia solidária.
A comunidade de Seridó está situa-
da a 25 quilômetros da sede do muni-
cípio de Trairi. Lá, reside um povo sim-
ples, alegre e acolhedor que faz parte
do Projeto Fundo Rotativo, acompa-
nhado pela Cáritas de Itapipoca há cin-
co anos. As famílias de lá enfrentam vá-
rias dificuldades, mas a falta de acesso
à água, principalmente nos períodos
de estiagem prolongada, era até então
um dos fatores mais críticos presentes
na localidade.
Tendo em vista as dificuldades vivi-
das, as famílias apontaram o fundo ro-
tativo como um fator determinante na
A comunidade Seridó discute o Fundo Rotativo como alternativa de desenvolvimento comunitário
48Caderno de Sistematizações - FCVSA 48Caderno de Sistematizações - FCVSA
viabilização de empreendimentos eco-
nômicos solidários e, a partir daí, viram a
possibilidade da implementação de cis-
ternas na comunidade de acordo com
as mobilizações das famílias através do
fundo para suprir as suas necessidades.
Aos poucos, foram organizando um
sistema de captação de “recursos”, que
podem ser financeiros ou não e que
circulam entre os membros do grupo,
propondo-se a ser uma alternativa de
vivência diferente da capitalista.
Desse modo, todos se organizaram
para juntos contribuírem e iniciarem o
processo de construção de cisternas.
Cada pessoa do grupo dava a contri-
buição de vinte reais mensais. O con-
trole do fundo era feito pela associação
da comunidade em reuniões mensais.
Após conseguirem a quantia total para
a construção da cisterna, os/as partici-
pantes, em meio a reuniões, discutiam
sobre, visando quem estava com mais
necessidade. Feita a definição, a cons-
trução daquela cisterna era iniciada.
Nesse projeto existem dois tipos
de acesso: os acessos planejados e os
emergenciais. Nas reuniões de con-
trole do projeto existe uma comissão,
escolhida em assembleia pela associa-
ção comunitária, encarregada de fazer
avaliações para os “empréstimos” de
ajuda do fundo solidário, pois foi ado-
tada uma política de acesso para ava-
liar os empréstimos e dar prioridade
às pessoas mais necessitadas. Nessa
vivência, os moradores colocam em
prática a honestidade e a solidariedade
nas escolhas.
Segundo dona Valdilene, o projeto
contribuiu muito para o fortalecimento
das famílias. “As pessoas ficaram mais
unidas”, ela afirma. O fundo solidário
não ajuda somente o crescimento da
economia da comunidade, mas tam-
bém o entrosamento dos moradores, a
solidariedade, a compreensão de con-
vivência, o compromisso com os ou-
tros e a busca coletiva por uma melhor
qualidade de vida.
Dona Valdilene de Sousa fala da Experiência com o Fundo Rotativo
Reunião da Associação Comunitária de Seridó
49 Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA49
Rede de Comunicadores/as do Ceará
50Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA
Entidades do FCVSA que contribuíram com essa publicação:
51 Caderno de Sistematizações - FCVSA
52Caderno de Sistematizações - FCVSA
Realização
Apoio