14
Terremotos e a convivência com as incertezas da natureza

Terremoto s

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Terremotos...é possivel preve-los... Como funcionam e muito mais

Citation preview

  • Terremotos e a convivncia com as incertezas da natureza

  • marcelo assumpo

    MARCELO ASSUMPO professor do Instituto de astronomia, Geofsica e cincias atmosfricas (IaG) da usp.

  • RESUMO

    apesar dos enormes esforos de geofsicos e sismlogos e de muitas dcadas de pesquisa, ainda no possvel evitar tragdias como a do Haiti em 2010 e a do Japo em 2011. mesmo assim, j h conhecimen-to cientfico e tcnico para mitigar os efeitos dos terremotos. muitos desastres, como o do Haiti, devem-se mais a dificuldades econmicas, que impedem um pas de se preparar para a ocorrncia de terremotos pouco frequentes mas muito fortes. por outro lado, mesmo em pases bem preparados, como o Japo, no possvel escapar totalmente ileso de desastres naturais extremamente raros. apesar do grande avano da sismologia, a natureza ainda guarda alguns segredos, e incertezas fazem parte da cincia tanto quanto da nossa vida cotidiana. No Bra-sil, terremotos fortes so extremamente raros, e a probabilidade de desastres to pequena que normalmente no a levamos em conta. mas eventos extremamente raros podem ocorrer a qualquer hora. o desafio escolher quando vale a pena investir para diminuir o risco de tais eventos.

    Palavras-chave: terremotos, risco ssmico, previso ssmica, intraplaca.

    ABSTRACT

    Despite the great geophysical and seismologic efforts and many decades of research, it is not yet possible to avoid tragedies such as the one in Haiti in 2010; and in Japan in 2011. Although it is not possible to predict earth-quakes, there is technical and scientific knowledge capable of mitigating its effects. Many disasters, such as the one in Haiti, were caused more because of economic difficulties which prevented the country from preparing itself for low-frequent but powerful earthquakes. On the other hand, even in well-prepared countries it is not possible to escape totally unscathed from extremely rare natural disasters. Despite the great advances of Seismology, nature still has some secrets in store; and uncertainties are part of science and of our daily life as well. In Brazil powerful earthquakes are rare; and the probability of disasters is so low that we normally disregard it. However, rare events can happen anytime. The challenge lies in choosing when it is worth investing to lower the risk of rare events.

    Keywords: earthquake, seismic risk, seismic prediction, interplate.

  • or que os terremotos ainda causam tantas

    mortes e desastres? Por que a cincia, com

    progressos e descobertas incrveis em tantas

    reas, ainda no consegue livrar o homem das tragdias

    ssmicas? Estamos aprendendo com essas tragdias recentes?

    E no Brasil, qual o risco de um grande terremoto?

    Terremotos destrutivos ocorrem poucas vezes por ano, mas cen-

    tenas de pequenos terremotos, ou sismos, ocorrem diariamente em

    todo o mundo. A grande maioria dos tremores passa despercebida

    por ter magnitude muito pequena, porque o epicentro est no mar

    ou por ocorrer longe de regies habitadas. A maior parte dos terre-

    motos ocorre nas bordas das placas tectnicas, como na regio de

    contato entre a placa de Nazca (parte do fundo do Oceano Pacfico)

    e a placa da Amrica do Sul (veja a Figura 1). Em pases como

    Chile, Peru, Equador e Colmbia, terremotos so frequentes, e os

    mais destrutivos ocorrem por deslizamento repentino do contato

    entre a placa de Nazca e a da Amrica do Sul, como ocorreu no sul

    do Chile (terremoto de Maule, 27/2/2010). Aps lento acmulo de

    presso por centenas de anos, uma rea de 450 km ao longo da costa,

    estendendo-se por 170 km abaixo do continente, deslizou durante

    2,5 minutos. O tamanho da rea de contato que rompe o atrito e se

    movimenta d a magnitude do terremoto, que foi 8,8 no caso do

    Chile (http://earthquake.usgs.gov/earthquakes/eqinthenews/2010/

    us2010tfan).

    P

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 76-89, setembro/novembro 201180

    FIGURA 1Sismos de 1962 a 2010 (magnitude 4,7)

    epicentros com erros < 25 km (catlogo eHB/Isc)

    Fonte: catlogo EHB (ISC, 2011)

    sismos na regio da placa tectnica da amrica do sul com magnitude 4,7 ocorridos de 1962 a 2010. crculos vermelhos so epicentros de sismos rasos com foco a menos de 60 km de profundidade; quadrados amarelos, com profundidade entre 60 e 350 km; tringulos azuis, entre 500 e 650 km (no h sismos entre 350 e 500 km). as setas verdes indicam a velocidade de aproximao da placa de Nazca (7 cm/ano) e o afastamento entre as placas da amrica do sul e da frica com 3 a 4 cm/ano. as estrelas amarelas so os epicentros do terremoto do Haiti, de 12/1/2010 (borda norte da placa do caribe), e do sul do chile, de 27/2/2010. a barra amarela junto ao terremoto do chile mostra o tamanho do contato entre as placas de Nazca e da amrica do sul, que deslizou durante o terremoto (ruptura de 450 km de comprimento).

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 76-89, setembro/novembro 2011 81

    Em 11 de maro de 2011 foi a vez do Japo. Uma rea de 500 km de extenso por 180 km de largura, ao longo do contato entre as placas do Pacfico e da Eursia, na costa

    norte do Japo (na verdade essa parte do Japo est numa ponta da placa da Amrica do Norte), deslizou durante trs minutos

    (http://earthquake.usgs.gov/earthquakes/eqinthenews/2011/usc0001xgp). O deslo-camento foi de 10 m, em mdia, chegando a 20 m em alguns pontos. A magnitude 9 (o quinto maior terremoto dos ltimos cem

    anos em todo o mundo) foi surpresa at

    para os sismlogos japoneses! Pior do que

    o terremoto, a que as edificaes resistiram

    mais ou menos de acordo com o previsto, foi a fora e altura do tsunami gerado pela sbita movimentao do fundo marinho,

    maior do que se pensava ser possvel.

    PREVISO DE TERREMOTOS

    J faz parte dos nossos hbitos olhar a previso do tempo para o prximo final de

    semana. Na verdade, no nos surpreende mais quando a cincia faz uma previso correta, mas o contrrio. Ficamos surpresos (e s vezes indignados) quando a previso de

    tempo bom no se confirmou! Vemos pela

    televiso a trajetria de um furaco sendo

    mapeada por satlites, e sua evoluo sendo calculada por computadores, dando tempo populao para se preparar. Estamos to acostumados com os progressos da cincia que sempre difcil explicar por que ainda no se pode prever terremotos.

    Na dcada de 70, muitas pesquisas mostravam que se podiam detectar vrios sinais de alerta antes de terremotos. Quan-do a crosta terrestre est sujeita a grandes presses e est prestes a se romper, suas propriedades mecnicas podem se alterar ligeiramente. Vrios casos de alterao

    (chamados de anomalias) foram obser-vados: aumento do nmero de pequenos

    abalos (os chamados sismos precursores),

    variao da velocidade de propagao das ondas ssmicas, deteco de um aumento de radnio observado na superfcie e liberado

    das rochas subterrneas atravs de peque-nas fraturas, variaes da resistividade eltrica das rochas, entre outros. Em 1975 os chineses acertaram a previso de um terremoto de magnitude 7,3 em Haicheng (Wang & Chen, 2006; Geotimes, American Geological Institute, June 2006). Apesar dos

    2.000 mortos, milhares de pessoas foram salvas por terem sido evacuadas a tempo. Nessa poca, os sismlogos mais otimistas

    acreditavam que, em poucas dcadas, a previso de terremotos seria to rotineira quanto a das chuvas.

    A natureza, no entanto, sempre mais complexa do que se pode imaginar. Em 1976 um outro terremoto de magnitude 7,5 em Tangshan, tambm no nordeste da China, ceifou a vida de mais de 240 mil pessoas. Ape-sar dos esforos e contnuo monitoramento dos chineses, no houve sinais precursores claros e conclusivos para se emitir um novo alerta. As tcnicas usadas para o terremoto de 1975 no serviram para o de 1976 que, por exemplo, ocorreu repentinamente sem os pequenos sismos precursores. Tremores pequenos e mdios ocorrem frequentemente, e difcil distinguir padres de sismicidade que so efeitos de terremotos anteriores de padres novos que podem ser avisos de terremotos futuros. As dcadas seguintes testemunharam um crescente descrdito na possibilidade de previso de terremotos. Os poucos sucessos da dcada de 70 pareciam agora mais excees do que boas promessas. Cada regio tem propriedades geolgicas

    distintas e mecanismos sismognicos dife-rentes. Os possveis sinais precursores, s vezes detectados em uma rea, podem no servir para outro local. A maioria dos terremotos ocorre sem os pequenos sismos precursores. Os outros sinais precursores (as anomalias nas propriedades das rochas)

    so muito difceis de serem detectados ou inexistem.

    H duas grandes dificuldades para se

    prever terremotos:

    1) Os terremotos so rupturas que ocorrem

    a profundidades de dezenas de quilmetros, inacessveis a medidas diretas tais como o nvel de tenso nas falhas. No possvel

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 76-89, setembro/novembro 201182

    medir as propriedades mecnicas das rochas (como resistncia ruptura, coeficiente

    de atrito, porosidade, etc.) com a preciso

    necessria nas profundidades onde os ter-remotos se iniciam. 2) O limiar de tenso para uma falha escor-regar (isto , iniciar uma ruptura) mais ou

    menos o mesmo para qualquer terremoto, pequeno ou grande. Todo terremoto grande comea como um pequeno tremor. O que faz um grande terremoto que a ruptura, que comea pequena, encontra outras reas instveis da falha e o processo se desen-cadeia como uma avalanche. Em fsica se diz que um processo catastrfico.

    Isso ocorre porque as tenses nas falhas da crosta esto quase sempre em estado crtico, isto , prestes a se romper. Va-riaes muito sutis no nvel das tenses crustais e do coeficiente de atrito, ao longo

    da falha, fazem com que uma pequena ruptura possa terminar logo (e se constituir num dos milhares de tremores pequenos e inofensivos) ou continuar por centenas

    de quilmetros, atingir deslocamentos de algumas dezenas de metros e terminar como um trgico megaterremoto.

    Por isso, principalmente pelo motivo 2, muitos sismlogos acreditam hoje que os

    terremotos so intrinsecamente imprevis-veis e nunca haver um servio de previso de terremotos nos moldes da previso de tempo. Enormes recursos foram investidos por vrios pases nas dcadas de 70 e 80, principalmente nos Estados Unidos e no Japo, em pesquisa especfica de predio

    de terremoto, sem sucesso. Apesar disso, al-guns sismlogos mais otimistas continuam

    pesquisando o problema de previso ssmica em locais bem especficos e bem instrumen-tados. Existe uma Comisso Internacional para Previso de Terremotos (International Commission on Earthquake Forecasting Icef), que avalia estatisticamente qualquer

    predio feita por algum cientista para veri-ficar se foi bem-sucedida ou se a predio

    estava dentro do esperado estatisticamente. Essa comisso acredita que ainda no existe nenhum mtodo seguro para a previso de terremotos de curto prazo que seja de utili-

    dade para a sociedade (do tipo semana que vem haver um terremoto vamos evacuar a cidade). A nica previso possvel de

    longo prazo (Jordan et al., 2011). Por exem-plo, o histrico dos terremotos numa certa

    cidade pode indicar que, estatisticamente, h uma probabilidade de 10% de ocorrer um tremor forte num perodo de trinta anos (ou seja, um terremoto forte a cada trezentos anos, aproximadamente). Estudos

    mais recentes poderiam indicar que nessa cidade a probabilidade atual um pouco maior, por exemplo, 30%, de ocorrer um terremoto forte nos prximos vinte anos.

    Isso o que se chama de previso de longo prazo (long-term forecast). Pode no ser til para cada cidado daquela cidade,

    mas til para os governantes saberem

    onde investir para melhorar a resistncia de prdios importantes como hospitais, escolas, usinas nucleares, etc.

    PREPARANDO-SE PARA

    AGUENTAR O TRANCO

    Uma vez que no possvel prever terremotos, a nica soluo preparar-se

    para aguentar o abalo. Para isso, tcnicas de construo antisssmica tm sido de-senvolvidas tornando os edifcios mais resistentes e ao mesmo tempo permitindo que oscilem com o abalo, sem rupturas que possam provocar desabamento. Leis que regulamentam a construo antisssmica so estabelecidas (e cumpridas, nos pa-ses mais desenvolvidos!). Naturalmente,

    construes mais resistentes so muito mais caras, e pases com menos recursos financeiros nem sempre podem se preparar

    adequadamente para os terremotos. Diante do alto custo de construes antisssmicas, uma maneira de otimizar os investimentos em segurana fazer levantamentos de-talhados do solo de cidades inteiras. Um mesmo terremoto pode fazer o cho vibrar mais ou menos dependendo da constituio e espessura do solo. Prdios iguais podem sofrer muito ou pouco dano dependendo

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 76-89, setembro/novembro 2011 83

    do tipo de solo em que foi erguido (solos mais moles e com rocha muito profunda amplificam as ondas ssmicas; solos mais

    rgidos ou terrenos rochosos vibram menos).

    Todas as grandes cidades em regies de alta sismicidade j fizeram ou esto fazendo es-ses levantamentos de preciso, chamados de microzonificao. Cdigos de construo

    antisssmica so ento elaborados levando em conta esses mapeamentos de detalhe.

    Infelizmente, melhorar a segurana tem um custo elevado e requer planejamento para dezenas de anos. Mesmo sabendo-se que, para cada dlar investido em segurana,

    o retorno dez vezes maior a longo prazo, frequentemente as polticas pblicas no

    conseguem implementar adequadamente as medidas necessrias. (Veja-se o caso

    dos deslizamentos de encostas na poca de chuvas no Brasil.) Pases com mais recursos

    e acostumados a planejamento de longo prazo esto bem mais preparados para os terremotos do que os outros. Terremotos de magnitude alta na Califrnia matam poucas

    dezenas de pessoas ao passo que terremotos apenas moderados em pases pobres podem causar verdadeiras tragdias. O exemplo mais recente foi o terremoto do Haiti de 12 de janeiro de 2010, que teve magnitude no muito elevada, apenas 7 na escala Richter (no mundo todo ocorre uma dezena de terremotos dessa magnitude a cada ano!),

    mas causou uma tragdia matando entre 100 mil e 300 mil pessoas (dependendo da fonte). A parte da falha que se rompeu

    nesse terremoto foi de 40 km (ver localiza-o do epicentro na Figura 1), mas ocorreu

    muito perto da capital do pas, cidade com grande populao e pouco preparada para risco ssmico (mesmo tendo sido parcial-mente destruda por outros terremotos no sculo XIX). Estudos de sismologia e de

    geodsia de alguns anos antes (Manaker et al., 2008) haviam mostrado que a crosta

    terrestre naquela parte do Haiti (falha de Enriquillo) j estava pronta para um terre-moto de magnitude 7,2 com grande chance de ocorrer nas dcadas seguintes.

    Em contraste com o Haiti, dois meses depois o terremoto do Chile, de 27 de fevereiro de 2010, teve magnitude 8,8,

    com uma ruptura de 450 km de extenso (barra alaranjada na Figura 1). Em termos

    de energia, esse terremoto foi quinhentas vezes mais potente, mas causou apenas quinhentas mortes devido melhor qualida-de das construes chilenas. De maneira se-melhante, estudos prvios tambm haviam indicado que aquela parte do sul do Chile j tinha atingido uma deformao suficiente

    para um terremoto de magnitude 8 a 8,5 (Ruegg et al., 2008). Os chilenos sabiam

    que essa regio do sul do Chile tinha alta probabilidade de sofrer um grande terremoto nas dcadas seguintes, mas a qualidade das construes j vinha sendo melhorada em todo o pas havia muitos anos, mesmo antes do estudo de Ruegg et al. (2008).

    ALARME IMEDIATO

    Na impossibilidade de se prever terre-motos, grande esforo tem sido empregado nos ltimos anos para desenvolver sistemas

    de deteco e alarme logo aps o incio de

    um abalo. A ideia bsica usar uma densa rede de estaes sismogrficas para iden-tificar que um terremoto que est sendo

    registrado grande o suficiente para se

    emitir um alarme. Os sismos emitem dois tipos de ondas: uma primeira, com vibrao longitudinal (onda P, que nada mais que o som propagando-se pelas rochas), e uma

    outra, com vibraes transversais (onda S, que se propaga com velocidade um pouco menor que a P). As ondas S geralmente

    tm maiores amplitudes, chacoalham o cho lateralmente e so mais destruidoras que as ondas P. Nesse sistema de alarme imediato (early warning), se as ondas P indicarem que se trata de um terremoto perigoso, um alarme ser emitido para as pessoas a algumas dezenas ou centenas de quilmetros de distncia, dando a elas alguns segundos (minutos?) para se prote-gerem dos efeitos das ondas S. Prximo ao

    epicentro, o alarme no teria tempo de ser til, mas a uma certa distncia o aviso pode

    ser suficiente para desligar equipamentos

    perigosos, parar trens, fechar semforos,

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 76-89, setembro/novembro 201184

    impedindo carros de subir viadutos, desligar uma usina nuclear, etc.

    Sistemas desse tipo j esto funcionando em alguns pases como Japo e Mxico, e devero entrar em operao brevemente na Califrnia. Mas ainda h muito que se

    aperfeioar nesse sistema. Uma das maio-res preocupaes evitar alarmes falsos, pois a populao pode deixar de acreditar no sistema (alm dos prejuzos causados pela interrupo desnecessria de servios)

    (Allen, 2011). Outro problema oposto

    fazer previso abaixo do perigo real. Foi o que aconteceu com o aviso de tsunami no Japo em maro de 2011. Para emitir um alarme o mais rpido possvel (e dar tempo para as pessoas se protegerem), a fora do

    terremoto e a altura do tsunami so ava-liadas com o primeiro minuto de registro da onda P. O problema que a ruptura nos megaterremotos, com magnitudes bem acima de 8, pode durar vrios minutos. A estimativa da altura do tsunami, baseada na anlise do primeiro minuto da ruptura, foi menor do que o correto, e muitas pessoas no se abrigaram longe o suficiente. Esperar

    mais tempo para acompanhar o processo de ruptura dar uma estimativa mais confivel

    dos seus efeitos, mas pode ser tarde demais para as pessoas se abrigarem. O Japo agora est discutindo a melhor maneira de aperfeioar seu sistema de alarme (Nature News, 11/8/2011). A grande dificuldade de enfrentar situaes extremamente raras, mas de alto risco, que geralmente s os

    casos reais que provam a eficincia ou a

    falha do sistema. O custo de aprender com os erros, nesses casos, sempre muito alto.

    SISMOS NO BRASIL

    E o Brasil poderia sofrer algum desastre ssmico?

    Lidando com fenmenos raros

    Sabe-se que o Brasil, por estar no meio de uma placa tectnica, longe das suas bordas,

    uma regio muito mais estvel do que pa-ses como Chile, Peru, Equador, Colmbia e Venezuela (Figura 1). Esses pases esto na borda da Placa Sul-Americana, onde o contato com outras placas em movimento deforma a crosta e armazena altas tenses numa velocidade muito maior do que no interior das placas, tenses essas liberadas repentinamente na forma de terremotos. Considerando o Brasil inteiro, temos um sismo de magnitude 5 a cada cinco anos,

    em mdia. Ao longo do litoral do Rio Grande do Sul ao Esprito Santo, temos um evento 5 a cada 20 ou 25 anos. Na regio andina,

    sismos de magnitude 5 ocorrem em mdia

    duas vezes por semana. Isso d uma ideia de quanto o Brasil mais estvel comparado s regies mais ativas.

    Por outro lado, a Figura 1 tambm mostra que sismos pequenos a moderados no so to raros no Brasil. Sismos de magnitude 5 tm potencial para causar danos srios

    em casas fracas, se o seu foco tiver uma profundidade rasa e ocorrer prximo a regies habitadas. Foi o que aconteceu em 9/12/2007 no municpio de Itacarambi,

    norte de Minas Gerais, quando um tremor de magnitude 4,7 derrubou vrias casas de

    construo precria e matou uma criana. O mapa da Figura 2 mostra todos os tremores

    ocorridos no Brasil e j catalogados. Inclui tanto sismos antigos estudados apenas atravs de relatos histricos assim como recentes detectados por sismgrafos. Na-turalmente j aconteceram muitos outros tremores no Brasil que no foram sentidos por terem ocorrido em regies desabitadas ou no foram detectados por estaes sis-mogrficas por serem pequenos.

    O maior sismo do Brasil ocorreu no norte do Mato Grosso em 31/1/1955, a 1

    hora da madrugada, com magnitude 6,2 (ver

    Figura 2). Em Cuiab, distante mais de 350

    km do epicentro, vrias pessoas acordaram com as vibraes ssmicas e saram s ruas assustadas. A regio epicentral (entre Porto dos Gachos e Sinop, MT) era desabitada na poca. Uma repetio desse terremoto hoje certamente causaria srios danos na rea epicentral. O sismo de LAquila, Itlia, em abril de 2009, teve magnitude 6,3 e causou

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 76-89, setembro/novembro 2011 85

    muita destruio, matando quase trezentas pessoas. Em todo o Brasil, acredita-se que ocorram dois sismos por sculo de magni-tude 6 ou maior. (Nos Andes, magnitudes 6

    ocorrem uma vez por ms.) Ou seja, embora

    o Brasil tenha uma atividade ssmica muito baixa comparada de outros pases de borda de placa, no somos totalmente imunes a tremores. O risco ssmico no Brasil muito baixo, mas no nulo!

    Uma das grandes dificuldades de lidar

    com eventos muito raros que o pouco que se conhece do passado no garantia de padro para o futuro. Isso ocorreu com o megaterremoto e tsunami da Sumatra de dezembro de 2004 (que atingiu vrios pases matando 300 mil pessoas). No se tinha

    conhecimento de nenhum outro tsunami antigo parecido no Oceano ndico. Um fenmeno que se repete a cada trezentos

    Fonte: Boletim Ssmico Brasileiro (USP, UnB, UFRN e IPT)

    epicentros de todos os sismos conhecidos do Brasil com magnitude 2,8. o primeiro catalogado data de 1767. Note grande concentrao de sismos na regio sudeste, em parte por ser a regio mais habitada e com mais dados histricos. a linha preta grossa indica o limite da regio com dados compilados para esse catlogo. o maior sismo conhecido ocorreu em 1955 no norte do mato Grosso.

    FIGURA 2Boletim Ssmico Brasileiro (1767 a 2010, magnitude 2,8)

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 76-89, setembro/novembro 201186

    ou quinhentos anos, em mdia, pode no ter registros histricos que sejam teis.

    Mesmo no Japo, que conta com registros histricos muito antigos e um conhecimen-to geofsico bastante detalhado de todo o pas, os sismlogos no achavam possvel

    ocorrer uma ruptura to extensa para que um terremoto atingisse magnitude 9. O his-trico de terremotos passados e os estudos

    da sismicidade atual no evitam surpresas. frequente pergunta O Brasil pode

    ter um grande terremoto destruidor de magnitude 7 ou 8? costuma-se responder, simplificadamente, que No, o Brasil est numa regio intraplaca relativamente estvel; tremores pequenos a moderados podem ocorrer, mas terremotos de magni-tude 7 so extremamente raros, talvez um a cada quinhentos anos, e magnitude 8 praticamente impossvel. Mas essa no a pergunta mais apropriada. A pergunta correta seria Qual a probabilidade de ter-mos um fenmeno to raro (mas de srias consequncias), e vale a pena prevenir-se

    para isso?. Sabe-se hoje que sismos de magnitude

    5 a 6 podem ocorrer em qualquer regio do planeta, mesmo no meio de uma placa tec-tnica e longe das suas bordas mais ativas. O tremor de magnitude 5,8, em 23/8/2011, na Virgnia, costa leste dos Estados Uni-dos, o exemplo mais recente. No havia naquele estado nenhum registro histrico

    de tremores com magnitude acima de 5 (o ltimo que provocou algum dano ocorreu

    em 1875 com magnitude 4,8).

    Os sismlogos tentam avaliar as proba-bilidades desses terremotos muito raros, e a sociedade ou o cidado que decidem se investem recursos para melhorar a seguran-a ou no. Um bom exemplo o caso da Usina Nuclear de Angra dos Reis I, que, com base nos registros ssmicos da regio e nas normas internacionais de projeto de usinas nucleares, foi projetada para suportar vibraes ssmicas com aceleraes de at 0,1 g na direo horizontal que ocorressem em local de rocha s. Levando em conta o histrico de tremores de terra no Sudeste do

    Brasil, um evento dessa intensidade no local das usinas tem chance de ocorrer uma vez a

    cada 10 mil anos. Essa baixa probabilidade significa que um evento pode ser extrema-mente raro ou praticamente impossvel. Alm da probabilidade de ocorrncia desse evento, o projeto de engenharia estabelece margens de segurana em relao resis-tncia das estruturas e componentes das usinas, de maneira que a probabilidade de falha seja inferior a 10% caso ocorra um evento dessa natureza. Mesmo assim, no existe segurana absoluta. Tampouco significa que no se deva melhorar a segu-rana ainda mais. Por causa do acidente de Fukushima, a Eletronuclear iniciou um pro-grama de reavaliao de todos os aspectos de segurana das usinas nucleares de Angra dos Reis. No aspecto sismolgico, quase

    certo que, na reavaliao, as probabilidades de ocorrncia de sismos futuros continuem extremamente baixas. Por outro lado, caber sociedade, atravs de instituies governamentais reguladoras, decidir se desejvel melhorar a segurana da usina para aguentar um fenmeno mais raro ainda, a cada 50 mil anos por exemplo. Melhorar a segurana sempre possvel, mas algum precisa arcar com o custo (ou pagar mais caro o kWh).

    Quando eu tomo um avio, sei que no estou 100% seguro. A probabilidade do meu avio cair de 1 em 1 milho (ou 1 em 10 milhes, dependendo da companhia).

    Diante dos benefcios do transporte areo, eu e milhes de outros passageiros decidi-mos que vale a pena correr o risco. Isso no significa que no seja preciso investir em

    melhorar a segurana ainda mais. Por outro lado, se um avio tiver um nvel de segu-rana cem vezes melhor do que os atuais, talvez eu no possa arcar com o custo da passagem, que ser certamente muito mais alto. A cincia e a tecnologia tentam avaliar os graus de risco e os custos de melhorar a segurana. Mas o ponto de equilbrio entre risco e custo sempre uma deciso poltica da sociedade. O Japo, que tinha elegido a energia nuclear como uma das alternativas viveis (25% da energia eltrica gerada),

    provavelmente continuar a operar usinas nucleares, melhorando a segurana, mesmo a um custo bem mais elevado.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 76-89, setembro/novembro 2011 87

    Sismicidade intraplaca e geologia

    Sismos fortes, embora raros, podem ocorrer no interior de placas tectnicas causando muitos danos. A necessidade de se prevenir contra sismos intraplaca (por exemplo, com cdigo de construo antis-ssmica) depende do nvel de probabilidade

    desses fenmenos raros. O histrico de

    sismos brasileiros indica que a chance de ocorrerem aceleraes do cho superiores a 5% de g (capazes de provocar trincas em paredes), numa localidade especfica

    (Braslia, por exemplo), de uma vez a cada

    mil anos. O Brasil tem uma norma ssmica (ABNT NBR 15.421, de 2006) na qual a

    maior parte do pas foi classificada como

    Zona 0, isto , sem perigo ssmico relevante para construes comuns. Zonas onde o risco ssmico deve ser considerado seriam os estados do Rio Grande do Norte, Cear, e a parte mais prxima dos Andes, como o

    Acre. um comeo. Esse mapeamento foi baseado na estatstica de sismos passados. A regio de Porto dos Gachos, MT, est

    na Zona 0. possvel que alguma melhoria possa ser feita na prxima reviso.

    No entanto, como o histrico de sismos

    antigos fornece uma ideia apenas aproxi-mada para se prever a sismicidade futura, preciso tentar outras tcnicas. A Figura 3 uma tentativa de mostrar quais so as reas de maior e de menor atividade ssmica no Brasil e sua possvel relao com estruturas geolgicas.

    Se pesquisas geofsicas e geolgicas

    pudessem demonstrar por que certas reas (como os estados do Rio Grande do Norte e Cear, por exemplo) tm tido muitos

    sismos e outras regies (como Piau e Ma-ranho) tm sido praticamente asssmicas,

    poderamos dizer que um terremoto de magnitude 7, mesmo sendo muito raro, teria uma probabilidade maior de ocorrer no Cear do que no Piau, por exemplo. Infelizmente, as relaes entre sismos e estruturas geolgicas em regies intraplaca

    so extremamente complexas e h pouco consenso sobre as causas da distribuio dos sismos. A Figura 3, por exemplo, mostra

    que no h uma relao muito bvia entre

    reas mais ativas e as principais provncias geolgicas no Brasil.

    A maioria dos sismlogos acredita que

    reas de maior atividade ssmica nas ltimas

    dcadas e sculos devem ser locais mais provveis para a rara ocorrncia de um terremoto grande no futuro. Mas at nisso h quem discorde. Por exemplo, a rea de Porto dos Gachos, no norte do Mato

    Grosso, que j teve sismos de magnitude 6 e onde continuam ocorrendo pequenos tremores ainda hoje (Figuras 2 e 3), em vez

    de ser uma zona de maior risco, poderia ser um local onde as tenses j foram liberadas pelo terremoto de 1955. Por isso, talvez o prximo grande terremoto brasileiro

    pudesse ocorrer numa outra rea sem muita atividade ssmica atualmente, mas com muita tenso geolgica acumulada e ainda

    no liberada. Essa situao de incerteza sismolgica no exclusividade do Brasil,

    onde as pesquisas geofsicas so muito recentes e os levantamentos geolgicos

    incompletos, mas ocorre em outros pases com levantamentos geolgico-geofsicos

    bem mais detalhados.H um enorme e acalorado debate atual-

    mente nos Estados Unidos sobre a natureza da sismicidade intraplaca. H duzentos anos, em dezembro de 1811 e fevereiro de 1812, trs grandes terremotos de magnitudes entre 7,5 e 7,7 sacudiram a regio central dos Es-tados Unidos. Os epicentros foram prximos

    do Rio Mississipi, entre Memphis (Tennes-see) e New Madrid (uma pequena cidade

    no sul de Missouri). Inmeras hipteses

    tm sido propostas para explicar as causas desses terremotos, ou seja, as estruturas geolgicas responsveis pela ocorrncia

    dos terremotos de New Madrid. No h consenso. Mapas de perigo ssmico feitos pelo U.S. Geological Survey indicam que a regio de New Madrid tem mais risco de novos terremotos grandes do que o resto da regio central e leste do pas. No entanto, vrios sismlogos vm questionando as

    premissas desses mapas (prever o futuro baseado no passado recente) e acreditam

    que na regio de New Madrid atualmente no h mais tenso acumulada. O prximo

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 76-89, setembro/novembro 201188

    terremoto intraplaca de magnitude 7 pode ocorrer em alguma outra rea de baixa sis-micidade atual. Isso no um debate apenas acadmico. Em Memphis, o governo gasta enormes recursos para adaptar hospitais e outras instalaes crticas para resistirem a um possvel novo terremoto. Essas incerte-zas sobre como lidar com fenmenos muito raros refletem as limitaes da cincia para

    entender completamente a natureza, que sempre mais complexa do que imaginamos.

    CONCLUSES A atividade ssmica no Brasil bas-

    tante baixa. Sismos mdios e moderados (magnitudes at 5 ou 6) podem ocorrer em

    qualquer regio mas com probabilidades at agora consideradas suficientemente remotas, podendo ser desprezadas na maioria dos projetos de edificaes. Apenas

    instalaes crticas, como usinas e reatores

    Distribuio de epicentros do catlogo uniforme, isto , com limiar de magnitude variando no tempo, mas com

    cobertura geogrfica mais uniforme mostrando as reas mais e menos ativas no Brasil. as cores indicam as principais

    provncias geolgicas do pas: rosa regies cratnicas mais antigas (formadas entre 3 e 1 bilho de anos atrs);

    cinza regies de dobramentos do ciclo brasiliano (formadas entre 900 e 500 ma); amarelo as grandes bacias

    intraplaca formadas aps 500 ma, aproximadamente. algumas reas so claramente mais ativas que outras, mas

    nenhuma regio do Brasil est completamente livre de tremores de terra.

    FIGURA 3Catlogo uniforme (1955 a 2010, magnitude 3,5)

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 76-89, setembro/novembro 2011 89

    nucleares e barragens hidreltricas, tm feito uso sistemtico de anlises sismolgicas,

    quase sempre indicando que as exigncias de segurana ssmica so insuficientes para

    demandar alterao do projeto. Por outro lado, se a sociedade achar que preciso aumentar ainda mais o nvel de segurana ssmica, estaremos lidando com eventos ainda mais raros e teremos que aprender a conviver com mais incertezas.

    O Japo tem feito avanos notveis na mitigao de terremotos. A unio de cincia e engenharia fez daquele pas um dos mais preparados para resistir aos abalos ssmi-cos. As tcnicas altamente sofisticadas de

    contruo antisssmicas e os sistemas de aviso imediato tm salvado milhares de vidas em dezenas de terremotos nas lti-mas dcadas. Mas desastres como o ltimo

    megaterremoto de maro de 2011 mostram que ainda h muito que melhorar. Quando o homem se empolga demais com suas descobertas e tcnicas e pensa que pode entender completamente os fenmenos naturais, um evento extremamente raro ocorre, mostrando que a natureza bem mais complexa e incertezas fazem parte da cincia, assim como da vida em geral.

    No final de 2010, a Sociedade America-na de Sismologia (SSA) decidiu conceder

    BIBLIOGRAFIA

    alleN, r. os poucos segundos que precedem um Grande Terremoto, in Scientific American Brasil, 108, 2011, pp. 38-43.

    Isc. International seismological centre, eHB Bulletin, Internatl. seis. cent., Thatcham, united King-dom, 2011.

    JorDaN, T. H. et al. operational earthquake Forecasting, state of Knowledge and Guidelines for utilization. IceF Final report, in Annals of Geophysics, 54(4), 2011.

    maNaKer, e. calais; FreeD, a. m. et al. Interseismic plate coupling and strain partitioning in the Northeastern caribbean, in Geophysical J. International, 174, 2008, pp. 889-903.

    rueGG, J. c.; ruDloFF, a.; VIGNY, c.; maDarIaGa, r.; De cHaBalIer, J. B.; campos, J.; Kausel, e.; BarrIeNTos, s.; DImITroV, D. Interseismic strain accumulation measured by Gps in the seis-mic Gap Between constitucin and concepcin in chile, in Physics of the Earth and Planetary Interiors, 175, 2009, pp. 78-85.

    WaNG, K.; cHeN, Q-F; sHIHoNG, s.; WaNG, a. predicting the 1975 Haicheng earthquake, in Bulle-tin of the Seismological Society of America, Jun 2006; 96, 2006, pp. 757-95.

    sua medalha anual Bruce Bolt a Kojiro Irikura, do Instituto de Preveno de De-sastres da Universidade de Kyoto, por suas enormes contribuies na implantao de redes para registro de terremotos fortes (strong-motion networks), distribuio livre dos dados na Internet, e tcnicas para simular movimento do cho durante grandes terremotos. Todas essas contri-buies ajudaram a tornar o Japo muito mais preparado para resistir aos impactos dos terremotos. A medalha seria entre-gue na reunio da SSA de Memphis em abril de 2011. Aps a tragdia de maro

    de 2011, Kojiro Irikura humildemente declinou da medalha sentindo-se cul-pado pelo desastre e no merecedor de reconhecimento cientfico. A diretoria da

    SSA ento teve de convenc-lo a aceitar a honraria pois suas contribuies cient-ficas na segurana ssmica do Japo no

    podiam ser diminudas, mesmo diante de um fenmeno extremamente raro. Sem o desenvolvimento da sismologia japonesa, a tragdia teria sido vrias vezes pior. Na reunio de Memphis, Irikura recebeu a medalha, no como tributo a si, mas em nome de toda a comunidade japonesa, num discurso dos mais emocionados que a SSA j presenciou.