Territorio e Economia Politica

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Livro do Prf. Edilson Alves Pereira Junior

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  • TERRITRIO EECONOMIA POLTICA

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    UMA ABORDAGEM A PARTIRDO NOVO PROCESSO DEINDUSTRIALIZAO NO CEAREDILSON PEREIRA JNIOR

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  • TERRITRIO E ECONOMIA POLTICA

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  • Conselho Editorial Acadmico

    Responsvel pela publicao desta obra

    Profa. Dra. Margarete Cristiane da Costa Trindade Amorim

    Prof. Dr. Bernardo Manano Fernandes

    Prof. Dr. Eliseu Saverio Sposito

    Prof. Dr. Raul Borges Guimares

    Profa. Dra. Rosangela Aparecida de Medeiros Hespanhol

    Prof. Dr. Everaldo Santos Melazzo

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  • TERRITRIO E ECONOMIA POLTICAUMA ABORDAGEM A PARTIR

    DO NOVO PROCESSO DE INDUSTRIALIZAO NO CEAR

    EDILSON PEREIRA JNIOR

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  • 2013 Editora Unesp

    Cultura Acadmica

    Praa da S, 10801001-900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 3242-7171Fax: (0xx11) [email protected]

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria de Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho(Unesp)

    CIP Brasil. Catalogao na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    P489a

    Pereira Jnior, Edilson.

    Territrio e economia poltica : uma abordagem a partir do novo processo de industrializao no Cear / Edilson Pereira Jnior. So Paulo : Cultura Acadmica, 2012.

    480 p. : il.

    Inclui bibliografiaISBN 978-85-7983-373-1

    1. Desenvolvimento econmico 2. Poltica econmica 3. Industrializao I. Ttulo.

    12-9175. CDD: 330.98131 CDU: 338.1(813.1) 041594

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  • Denise Bomtempo, que, ao tecer com delicadeza as pequenas coisas do presente, resgatou

    profundamente as minhas saudades do futuro.

    Ao pequeno Caio, que, na sua grandeza, compreendeu generosamente a necessidade da ausncia e da distncia.

    Aos meus pais, por compreenderem e confiarem.

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  • SUMRIO

    Prefcio 9

    Introduo 15

    1 Espao e territrio no contexto do projeto de modernizao no Cear 27

    2 Reestruturao territorial e produtiva: as demandas da nova configurao de acumulao capitalista 117

    3 As normas e o territrio: a transescalaridade da economia poltica da industrializao 227

    4 As sinergias do territrio e a expanso da produo caladista 355

    Consideraes finais 433

    Referncias 451

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  • PREFCIO

    A industrializao brasileira tema importante para os gegra-fos. No momento em que se v uma repetio constante de estu-dos sobre processos como a mundializao e o modo de produo flexvel, que so esboos tericos para se compreender as diferen-tes formas como aparece a produo industrial, o estudo da indus-trializao no Cear se justifica por si s.

    O autor, Edilson Pereira Jnior, realizou seu doutorado no Pro-grama de Ps -Graduao em Geografia da Faculdade de Cincias e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), no cam-pus de Presidente Prudente, e defendeu sua tese com segurana e conhecimento do tema em 2011. A tese recebeu o ttulo Territrio e economia poltica: uma abordagem a partir do novo processo de in-dustrializao no Cear.

    O que motivou o autor a realizar o estudo foi, em primeiro lu-gar, compreender as transformaes recentes no territrio cearense. Para isso, era preciso estabelecer algumas premissas que direcio-nassem o plano de investigao. O objeto, ento, surgiu da neces-sidade de compreender o projeto de modernizao do Cear, ou seja, da definio de uma resposta do estado ao processo de mun-dializao do capital. Nesse ponto, destacou -se o papel do poder pblico, principalmente por meio de estmulos implantao de

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    estabelecimentos industriais procedentes do Centro -Sul do Brasil, que procuravam territrios onde os fatores de localizao lhes fos-sem favorveis. Por conta de renncias fiscais e, tambm, do baixo preo da fora de trabalho, estabelecimentos industriais foram ins-talados onde ainda no existiam.

    Dessa maneira, o estudo feito privilegia a instalao de estabeleci-mentos industriais por meio de subvenes, abordando tanto aqueles que utilizam modelos tradicionais de fabricao quanto aqueles que se modernizaram nos processos produtivos todos visando po-tencialidade e ao baixo custo da fora de trabalho. Isso levou, logi-camente, criao de inmeros empregos e, no final, ao aumento da remunerao de parte da populao que se atrelou s empresas, cujos salrios so mais altos que as mdias anteriores ao processo de industrializao.

    Para organizar seu estudo, o autor se preocupou com a cons-truo de uma matriz metodolgica de pesquisa e se empenhou na elaborao dos passos para obter a informao geogrfica. Ele fez importante pesquisa documental e estatstica; coletou dados e os sistematizou para a gerao de tabelas e figuras que se tornaram fontes bsicas para sua interpretao; e viajou para as reas onde mais se concentram os empregos industriais, realizando, em for-ma de trabalho de campo, entrevistas para o reconhecimento das dinmicas territoriais. Indo e vindo, vindo e indo, estabelecendo dilogos, estudando relatrios e ouvindo relatos, conhecendo per-sonagens importantes para as tomadas de decises assim, o au-tor pde realizar sua investigao compreendendo o que se passa nos estabelecimentos industriais, raciocinando do particular para o geral e, nos momentos de leituras e confronto de teorias para a interpretao de seu recorte, movendo o raciocnio do geral para o particular. E, desse modo, ele demonstrou, por meio da anlise de um projeto estimulado pelas elites polticas cearenses, que a moder-nizao conduziu o estado do Cear a um modelo de desenvolvi-mento que pode ser considerado atual e novo, pelo menos nas reas definidas para a localizao dos estabelecimentos industriais.

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    Visando leitura das multidimensionalidades do territrio, o autor tambm estabeleceu uma matriz terica como espinha dorsal de sua interpretao, o que o auxiliou a compreender a acumula-o capitalista, articulando a dimenso poltica e a ideolgica dos governos e seu papel na elaborao de leis, sem deixar de lado a di-menso econmica e as metas de acumulao das empresas na rea-lizao de suas atividades. J no que concerne transescalaridade do territrio, ele privilegiou trs escalas. Primeiro, a escala global, vista pela configurao de acumulao por meio de aes compe-titivas e financeiras provocadas pela reestruturao produtiva que modificou as relaes de trabalho. Segundo, a escala nacional, com-preendida pela desregulamentao de normativas que facilitaram a abertura econmica em relao ao exterior e a outros estados do Brasil, contribuindo para o surgimento de novas estratgias de acu-mulao por meio da produo industrial. Terceiro, a escala regio-nal, abordada por meio das polticas econmicas e das vantagens competitivas decorrentes das aes dos governos estaduais que se apresentaram como modernizadores do territrio.

    Com isso, pode se dizer que o Cear passou por processos de reestruturao territorial por causa do papel exercido por seu se-tor industrial, principalmente pelos ramos de calados e de tecidos (que tm como caracterstica incorporar pouca inovao tecnol-gica) e pela montagem de um complexo petroqumico e siderr-gico (que incorpora inovaes tecnolgicas). Para explicar esses processos, Edilson Pereira Jnior descreve e interpreta a formao histrica do Cear, no se esquecendo das polticas econmicas das ltimas dcadas, que derivaram nas estratgias de renncia fiscal para a indstria. Privilegiando a indstria de calados, ele explica como se deram as estratgias de difuso dos estabelecimentos pelo territrio, tanto em cidades mdias como na aglomerao urbana da capital.

    Para cumprir o encaminhamento metodolgico esboado pelo autor, este livro foi organizado em quatro captulos. No Captulo 1, em que se abordam o espao e o territrio no contexto do processo de modernizao do Cear, so apresentadas reflexes sobre dois

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    conceitos importantes para os estudos geogrficos (espao e territ-rio) vistos pelo projeto de modernizao das elites cearenses. No Captulo 2, a indstria e a reestruturao produtiva so enfocadas para se compreender as demandas da acumulao capitalista. J no Captulo 3, o enfoque privilegia a transescalaridade na industriali-zao, focalizando as normas e seus rebatimentos no territrio. Por fim, no Captulo 4, o assunto , diretamente, a indstria caladista e suas sinergias territoriais.

    Para enfocar o tema e explicar a industrializao no Cear mes-mo que pelo recorte de um ramo especfico, o caladista , o autor utilizou ampla e adequada bibliografia, que serve como refern cia para qualquer estudioso avanar em trabalhos de pesquisa de di-ferentes ramos industriais. Isso significa, em outras palavras, que este texto serve de referncia para novas pesquisas que busquem compreender as dinmicas territoriais por meio da implantao de estabelecimentos industriais.

    Em seguida, enumero algumas concluses que considero impor-tantes. Em primeiro lugar, partindo da ideia de que o atraso econ-mico do Cear est vinculado aos processos naturais de penria e ao clientelismo, constri -se uma imagem pblica governamental des-vinculada deles, criando centros industriais no estado e refinando o discurso pela tica da renovao (contra o discurso tradicional) que erigiria um novo projeto, nesse caso de carter burgus. Isso possvel ao se elaborar uma proposta de integrao da industria-lizao cearense ao mercado nacional e ao internacional, obedecen-do dinmica da mundializao da economia e simbolizando uma sociedade aberta aos ditames mais fortes da modernizao. Em se-gundo lugar, promove -se um redesenho tcnico do territrio por meio de equipamentos, como um Backbone informacional, que facilitam a fluidez na interconexo entre os lugares, permitindo a chegada de inverses que consolidam o modelo industrial cearense.

    Para chegar a essas concluses, o autor privilegiou alguns as-pectos: as transformaes motivadas pelas polticas econmicas estaduais; a compreenso dos sistemas de objetos que deram mo-bilidade ao territrio; a transescalaridade na performance dos dife-

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    rentes agentes, tanto de fora quanto de dentro do estado aqui, fica clara a articulao dos ditames da concorrncia global com a ao dos agentes estaduais, representantes dos partidos polticos hege-mnicos e de suas alianas; as formas espaciais e os principais ramos da atividade industrial ou, mais diretamente, o papel do setor cal-adista e sua fora, tanto na reestruturao dos circuitos espaciais da produo quanto nos aspectos mais singulares, como as aes no interior da fbrica.

    Mesmo assim, no plano territorial, verifica -se uma distribuio desigual dos investimentos, exemplificada pelo favorecimento de algumas reas em detrimento de outras, pela persistncia dos bai-xos salrios no serto semirido e pelos processos migratrios de pessoas das regies mais pobres para as cidades mdias e para a rea metropolitana de Fortaleza.

    O autor conclui que as relaes entre agentes, aes e formas espaciais no atendem necessidade de uma poltica socioespacial distributiva. Em vez disso, elas se revelam uma estratgia de con-firmar novas relaes de produo e de trabalho em reas diferentes e diferenciadas, favorecendo a acumulao ampliada do capital in-dustrial, motivada pela ideologia da competitividade, e utilizando o territrio como ferramenta.

    Para terminar, quero lembrar que este livro no esgota as pos-sibilidades de se estudar as transformaes que vm ocorrendo no Cear. Que ele seja provocador e motivador de outros aprofunda-mentos sobre o tema, favorecendo, igualmente, estudos compara-tivos com outras reas do Brasil ou com outras partes do mundo.

    Presidente Prudente, junho de 2012Eliseu Savrio Sposito

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  • INTRODUO

    Importantes transformaes ocorridas no Cear a partir da se-gunda metade da dcada de 1980 comearam a chamar a ateno de estudiosos da poltica e da economia em todo o Brasil. Elas estavam relacionadas a um novo projeto que se desenhava a partir de um dis-curso de forte cunho modernizante, o qual prometia romper com os tradicionais padres de conveno poltica estabelecidos no estado havia vrias dcadas.

    Toda essa reestruturao estava sendo conduzida por um grupo de empresrios que se reunia no Centro Industrial do Cear (CIC), idealizador de um programa poltico vinculado aos preceitos de uma ideologia burguesa liberal que pregava a bandeira do cresci-mento econmico a partir da adoo de mtodos gerenciais moder-nos na mquina pblica estatal.

    Ao assumir o poder no Cear, esse grupo reuniu esforos para apresentar -se como sujeito coletivo, portador de um projeto realmente transformador, que se contrapunha ao que havia sido feito at ento na poltica estadual pelas lideranas tradicionais, ca-racterizadas por gestes ineficazes e prticas polticas clientelistas. Segundo seus idealizadores, a despeito dos interesses menores movidos pelas elites dirigentes do passado, esse novo projeto enca-minharia mudanas sociais efetivas, capazes de superar histricas heranas de pobreza e misria no serto.

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    Para tanto, era necessrio criar condies de iniciativa em-preendedora no Cear um estado marcado pelas agruras da seca que, por suas especificidades, teria de engendrar seu desen-volvimento por meio do financiamento pblico em indstrias, principalmen te as de capital externo. Essas indstrias seriam res-ponsveis por uma dinamizao plena da economia e, alm disso, trariam diversificao produtiva e tecnolgica ao estado.

    Reestruturar o territrio e construir uma imagem positiva do seu papel na transformao da sociedade tambm seriam priorida-des da nova poltica, o que oportunizaria a fluidez dos movimentos e a interconexo entre os lugares algo essencial para que um con-junto de mudanas econmicas pudesse ser firmado em sintonia com as demandas da mundializao. Essa postura afastaria o estado do discurso regionalista e alteraria os mtodos de captao de recur-sos, substituindo o clamor da arrecadao de fundos em favor dos flagelados pela capacidade de angariar investimentos em nome da composio racionalista de um programa de governo caracterizado pela estabilidade financeira e pelo ajuste pblico. Seria a afirmao de um padro que demarcaria a participao do Cear no capita-lismo contemporneo como um estado economicamente sanado, aberto aos investimentos nacionais e internacionais.

    Assim, uma nova organizao territorial se materializaria, em razo de uma industrializao induzida pelos rumos mais recentes da reproduo capitalista internacional industrializao esta tor-nada possvel, sobretudo, em funo do desenvolvimento das tec-nologias e da fluidez dos investimentos. Projetou -se um redesenho do territrio, que passou a ser esquadrinhado e reestruturado a par-tir do soerguimento de inmeros objetos tcnicos. Alm disso, uma ousada poltica de benefcios tributrios foi montada para garantir a alavancagem de investimentos que pudessem materializar o plano de transformao industrial. Essas intervenes, reproduzidas por todas as gestes do governo estadual at o presente momento, se so-mariam s demais vicissitudes do territrio e tenderiam a constituir vantagens competitivas, capazes de atrair capitais diversos.

    O contexto nacional e internacional favoreceu as intencionali-dades dos programas cearenses. Com as desregulamentaes finan-

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    ceiras e produtivas (intensificadas na dcada de 1990) e a crise fiscal no Brasil do Plano Real (que resultou numa menor participao do governo federal em polticas de desenvolvimento regional), tanto o planejamento dos investimentos quanto as negociaes das metas foram realizados entre as unidades federativas e as empresas, com o Cear tirando vantagens da sua poltica territorial e econmica para atrair emprstimos financeiros e capitais produtivos.

    A entrada de empreendimentos externos, em especial os que recru-tam maior quantidade de trabalhadores nas linhas de produo, sim-bolizou o novo processo de industrializao do estado, que ficou mais vulnervel aos ditames de uma acumulao capitalista marcada pela presena de agentes exgenos no controle das decises econmicas.

    O objetivo deste livro analisar em que medida as transformaes ora postas podem confirmar uma reestruturao espacial e produtiva na indstria associada s caractersticas da nova economia poltica do territrio no Cear. Ele resulta de uma tese defendida no Programa de Ps -Graduao em Geografia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Presidente Prudente (SP), de onde advm inmeras re-flexes acerca das questes colocadas. Partimos do princpio de que as dinmicas cearenses revelam mudanas engendradas a partir da relao entre o local, o nacional e o global, o que nos despertou o in-teresse de trabalhar a modernizao do estado como um conjunto de articulaes territoriais multidimensionais e transescalares.

    A escolha pela abordagem espacial da indstria se deu em funo de o processo produtivo fabril ser um dos que mais se transformou no Brasil e no mundo nos ltimos anos, alcanando lugares de reser-va e criando novas relaes verticalizadas no espao. Mas a seleo do tema como elemento de investigao da reestruturao territorial cearense se justifica, notadamente, porque a indstria foi uma das principais atividades econmicas escolhidas pelo projeto dos gover-nos estaduais no intuito de materializar a modernidade no territrio. A visualizao de um programa pautado no uso econmico da polti-ca conduziu o modelo de desenvolvimento a ser seguido no Cear, e a industrializao, por sua vez, foi vista como um mecanismo capaz de garantir melhorias econmicas e reduzir a pobreza, sempre num plano de reestruturao que priorizou a estrita lgica do mercado.

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    Nesse sentido, o objetivo central do livro buscar entender como, no Cear, os caminhos da reestruturao espacial pela via da inds-tria enfatizam as dimenses econmicas e polticas da sociedade como instncias territoriais, reconhecendo a relao entre as particu-laridades do territrio e o movimento do mundo. Com esse intuito, discutimos a economia poltica do territrio, considerando -a produto de um conjunto relacional de agentes sociais, articulados a partir de inmeros interesses, dentre os quais foi necessrio investigar:

    1) A modernizao do territrio cearense a partir do uso ins-trumentalizado da poltica e da economia.

    2) A transescalaridade de agentes endgenos e exgenos na busca de um projeto de reestruturao industrial.

    3) A elaborao de normas e de sistemas para objetos delibe-radamente erguidos que dotaram o Cear de vantagens na atrao de investimentos.

    4) A produo de formas espaciais especficas da atividade industrial, com destaque para o gnero que melhor respon-deu aos programas de financiamento do setor produtivo cearense, o de calados.

    Elaboramos uma metodologia que partiu da escolha inicial de temas relevantes para a abordagem do processo, privilegiando:

    1) O territrio como produto multidimensional da sntese en-tre as relaes econmicas, ideolgicas e polticas.

    2) O territrio como produto transescalar das relaes sincr-nicas e diacrnicas do presente.

    3) A organizao do espao industrial e suas mudanas no contexto de um novo processo de industrializao.

    4) A reestruturao territorial e produtiva resultante das re-configuraes nos padres organizacionais de trabalho na indstria.

    Aps a definio desses grandes eixos temticos, estabelecemos uma nova subdiviso de temas no intuito de articular escalas, din-micas e informaes. Como resultado, gerou -se uma matriz meto-

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    dolgica1 que encadeou subdivises temticas, escalas espaciais/temporais, dinmicas territoriais, variveis e dados estatsticos, bem como informaes oficiais e/ou de trabalho de campo e banco de imagens, permitindo uma viso organizada dos muitos compo-nentes da pesquisa sem que a leitura do objeto ficasse enrijecida. A matriz, na verdade, no apenas contribuiu para a articulao dos dados gerais que revelaram a problemtica em pauta, mas tambm auxiliou na escolha dos meios teis para confirmao e refutao de hipteses, orientando os passos que foram seguidos. O resultado foi um plano de orientao metodolgica que respeitou as subdivises temticas e as dinmicas territoriais mostradas na Tabela I.1.

    Com base no modelo citado, construmos um conjunto de plani-lhas nas quais adicionamos as variveis mais relevantes da pesqui-sa, o banco de dados e informaes, as imagens e cartogramas e as fontes de comprovao. Essa sistematizao nos permitiu caminhar de maneira mais segura na busca de atender aos objetivos previa-mente propostos. As atividades operacionais foram, ento, reali-zadas numa sequncia que possibilitou o seguinte encadeamento: pesquisa documental e estatstica coleta e sistematizao de dados ao trabalho de campo. J no plano sequencial, compilamos os dados e as informaes num conjunto organizado de subtemas, dinmi-cas territoriais, variveis, indicadores e fontes de consulta, usando um quadro explicativo que permitiu melhor visualizao do alinha-mento entre as partes.

    Essa metodologia favoreceu a elaborao da argumentao, mas em nenhum momento a ordem dos captulos do livro se prendeu ao arranjo temtico sugerido pela matriz apresentada. De fato, a maior contribuio da matriz foi relacionar um conjunto de dados e indicadores, facilitando a busca por determinada informao e ar-

    1 Essa matriz metodolgica vem sendo utilizada desde 2005, como resultado dos colquios desenvolvidos a partir do projeto de pesquisa intitulado Economia po-ltica da urbanizao da regio do Baixo Jaguaribe (CE), financiado pelo CNPQ (edital 2003) e coordenado pela dra. Denise Elias, professora do Departamento de Geocincias da Universidade Estadual do Cear (Uece), com a participao do professor dr. Luis Renato Bezerra Pequeno, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Cear (UFC).

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    ticulando essa informao com outras igualmente relevantes. Com isso, tivemos um panorama geral dos processos e das dinmicas se-lecionadas para a pesquisa, funcionando como uma caixa de fer-ramentas qual recorremos sempre que precisamos de um dado especfico. A facilidade na coleta da informao e a compreenso do modo como os componentes particulares se articulavam com o todo foram os melhores resultados dessa operao.

    Tabela I.1 Subdivises temticas e dinmicas territoriais usadas neste livro.

    SUBDIVISES TEMTICAS DINMICAS TERRITORIAIS

    1 - Estratgias, aes e objetos do territrio

    - Renovao da materialidade do territrio. - nfase de uma matriz economicista na poltica. - Dinamizao dos fluxos materiais e imateriais.

    2 - As polticas pblicas e a atividade industrial

    - Expanso das finanas pblicas. - Renovao das polticas industriais. - Expanso e crise da atividade industrial.

    3 - Territrio e industrializao

    - Deslocamento das unidades de produo. - Expanso do circuito espacial da produo industrial. - Dinamizao das relaes estabelecidas entre os servios e as atividades industriais.

    4 - Industrializao, redes e centralidades

    - Centralizao industrial e institucional nas regies e nos municpios. - Difuso das relaes econmicas e intensificao dos contatos entre a cidade e a regio e a regio e o pas.

    5 - Mudanas no mun-do da produo e do trabalho

    - Reestruturao produtiva na indstria. - Expanso do emprego formal na indstria de transformao, no comrcio e nos servios. - Reestruturao nas relaes de trabalho. - Emprego, desemprego e rotatividade dos trabalhadores. - Nova territorializao do trabalho formal.

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    Quanto sequncia expositiva dos captulos do livro, sua escolha seguiu outro preceito, aquele que prioriza a construo de uma racio-nalidade reflexiva sobre o objeto, o qual vai sendo construdo medida que apresentado. Assim, partimos de uma proposta preliminar de m-todo capaz de orientar a exposio das ideias, e isso contribuiu bastante para que rejeitssemos uma narrativa conduzida pelas estatsticas ou pela ditadura da empiria. O caminho percorrido tambm procurou rejeitar as armadilhas da miopia estruturalista, na qual os conceitos previamente determinados esgotam a riqueza da realidade concreta.

    Nesse sentido, a marcha da exposio teve como objetivo utilizar os dados estatsticos e as informaes obtidas no trabalho de campo como meios, e no como princpio ou fim. Eles no conduzem a argumentao nem encerram a narrativa, mas apresentam -se como instrumentos essenciais para compreender o papel ativo do espao e do territrio no entendimento da totalidade social. Na verdade, a argumentao conduzida pelas pressuposies tericas e pelos desdobramentos conceituais, no contexto a partir do qual se orga-nizam o espao e o territrio instncias multidimensionais con-templadas pelas esferas polticas, econmicas, sociais e ideolgicas.

    Santos (2008) j dizia que considerar o espao como totalidade seguir uma regra de mtodo cuja prtica exige, por meio da anlise, a diviso das partes que o compem. Mas, se a anlise a fragmentao do todo, a consequncia direta desse procedimento a reconstituio desse mesmo todo pela orientao da teoria. Assim, possvel seguir do universal ao particular e, depois, recompor a universali dade a par-tir de uma racionalidade reflexiva sobre o objeto, reconhecendo a im-portncia da sincronia e da diacronia do territrio.

    Com base nesses preceitos, orientamos a construo da narrativa considerando a necessidade de enfatizar as multidimensionalidades e a transescalaridade cearense, de tal forma que o territrio do estado pu-desse ser apresentado no ato da sua produo. Os caminhos que leva-ram exposio do texto priorizaram as instncias poltica, econmica e ideolgica no mbito de escalas geogrficas diversas que integram dinmicas globais, nacionais, regionais e territoriais. O resultado a apresentao dos objetos e das aes que compem o territrio do Cear a partir da sistematizao exposta na Figura I.1.

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    TERRITRIO E ACUMULAO CAPITALISTA

    TERRITRIO DO CEAR E SEU PROCESSO DE INDUSTRIALIZAO

    MULTIDIMENSIONALIDADES DO TERRITRIO

    INTERESCALARIDADE DO TERRITRIO

    Fluxos e objetos tcnicos

    Escala global Configurao de acumulao ca-pitalista com predominao de in-teresses competitivos e financeiros Mundializao e imperativo da competitividade Reestruturao produtiva e novas relaes de trabalho

    Escala nacional Desregulamentao e abertura econmica Vulnerabilidade das empresas e novas estratgias de acumulao para a produo industrial

    Escala regional e territorial Polticas econmicas, vicissitudes do territrio e vantagens competitivas

    Dimenso poltica e

    ideolgica

    Governos, leis e normas

    Acordos e ajustes entre o pblico e o

    privado

    Dimenso econmica

    Metas de acumulao

    Dinmi-ca das

    atividades econmicas

    Figura I.1 Modelo de exposio do territrio cearense a partir das suas multidimensionalidades e transescalaridade.

    Como desdobramento dessa sistematizao, reiteramos a produ-o do territrio do Cear como resultado do processo de acumulao industrial, definindo a organizao territorial cearense a partir das relaes histricas e das novas determinaes polticas, econmicas e ideolgicas do presente. O novo arranjo multidimensional da in-dustrializao engendrou estratgias, objetos e normas e isso resultou num programa bem definido de subveno industrial por meio do

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    qual a atrao indiscriminada de investimentos pela via de subsdios fiscais se concretizou. O texto considerou todas essas questes e sele-cionou tambm a indstria de calados como o gnero mais relevante a ser investigado, sobretudo pelas mudanas que sofreu ao longo dos ltimos anos. A Figura I.2 representa o esquema que abrange esse segundo grande conjunto de temas trabalhados no livro.

    CEAR: A ACUMULAO INDUSTRIAL E REESTRUTURAO TERRITORIAL

    O Cear e a industrializao: formao histrica, agentes e processos

    Reestruturao produtiva e circuitos especiais da produo da indstria de calados no Cear

    SNTESE SINCRNICA E DIACRNICA DA ATIVIDADE INDUSTRIAL CEARENSE

    Incentivos aos sistemas industriais

    localizados

    Estratgias de difuso no territrio: o sistema de cooperativas

    A concentrao urbano -regional: os grandes conglomerados produtivos

    Montagem do com-plexo petroqumico/

    siderrgico

    Atividade industrial subven-cionada e atrao indiscrimi-

    nada de investimentos

    A NOVA INDSTRIA DE CALADOS CEARENSE

    Figura I.2 Modelo de exposio do territrio cearense a partir do seu processo de industrializao.

    Em linhas gerais, as figuras I.1 e I.2 contribuem para o enten-dimento da exposio dos temas do trabalho. Elas tambm esclare-cem a forma como as ideias centrais foram concatenadas, seguindo e validando a organizao do livro. Dividida em seis partes, esta obra traz, alm desta Introduo e das Consideraes finais, quatro captulos articulados a partir do mtodo, dos pressupostos tericos e da metodologia previamente apresentada.

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    O Captulo 1 tem como objetivo identificar os principais aspec-tos que fazem do projeto poltico e econmico do Cear o grande responsvel pela insero do estado num circuito moderno de acu-mulao privada baseado na expanso da atividade industrial e na modernizao econmica. Ele parte da concepo de que a configu-rao das instncias polticas e econmicas constitudas no Cear algo vago e desprovido de concretude se destituda da compreenso do espao e do territrio como dimenses de materializao das aes empreendidas.

    Com base em Raffestin (1993), Santos (1999, 2008) e outros autores, o captulo busca construir a relao multidimensional e transescalar que sintetiza a economia, a poltica e a produo da ideologia num Cear cada vez mais aberto s influncias exgenas da mundializao. Alm disso, procura construir a sntese dos ele-mentos que do concretude ao territrio, interpretando -o como um recorte que suplanta as limitaes de uma abordagem formal e li-near da tessitura territorial e propondo um enfoque relacional mar-cado pela ampliao das articulaes estabelecidas entre os agentes de diversas escalas.

    J o Captulo 2 considera a discusso desenvolvida no Captu-lo1 acerca da sntese das instncias que produzem as particularida-des do territrio e procura trilhar um caminho inverso, na tentativa de apresentar a dinmica da relao transescalar por outro ngulo, priorizando os novos arranjos econmicos e territoriais engendra-dos pela mais recente configurao de acumulao capitalista. Para tanto, ele parte de uma rpida compreenso da longue dure braude-liana, incorporada por Arrighi (1996, 2008), e chega aos fatos que marcam as ltimas dcadas de transformao capitalista.

    Entre as partes mais importantes trabalhadas no captulo, es-to: 1) a relao entre a mais recente acumulao capitalista com toda sorte de reengenharias da produo industrial e de estratgias de reestruturao produtiva; 2) o papel dos territrios na produo mundializada e os deslocamentos empresariais produtivos no con-texto das novas estratgias de acumulao; e 3) a leitura dos novos arranjos de redes e fluxos produtivos do capitalismo contempor-

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    neo com base no processo de organizao do territrio. Ao final do captulo, realiza -se uma periodizao econmica, industrial e terri-torial do Brasil e da regio Nordeste, na expectativa de estabelecer relaes entre os processos mais antigos e os mais recentes, contri-buindo para a abordagem histrico -geogrfica do territrio selecio-nado para investigao.

    O Captulo 3 procura mergulhar de vez na temtica da acumula-o industrial cearense, priorizando a discusso sobre a combinao dos mecanismos que garantem a atrao de investimentos externos e a reestruturao produtiva e espacial com nfase nas polticas de atrao industrial, na normatizao e estruturao do territrio e no trabalho a baixo custo como vantagem competitiva. Um histrico da industrializao cearense apresentado como recurso de contextuali-zao e os desdobramentos dos processos a expostos revelam inme-ros componentes de ruptura/continuidade, desconstruindo alguns mitos acerca do desenvolvimento da atividade industrial no estado.

    Alm disso, ao discorrer sobre as polticas industriais e suas re-percusses nos setores estratgicos e no territrio, o captulo apre-senta as formas espaciais especficas e os mecanismos de produo presentes nesse novo Cear industrial, com nfase no reconheci-mento do carter relacional entre as particularidades do territrio e o movimento do mundo. Uma ltima abordagem prioriza as mu-danas na industrializao, partindo de um arcabouo estatstico que revela a importncia da indstria para as transformaes eco-nmicas hoje sentidas pelo estado.

    Como um desdobramento analtico necessrio discusso ante-rior, o Captulo 4 aprofunda a investigao territorial da indstria no gnero mais importante da industrializao cearense mais recen-te: os calados. Uma discusso inicial pautada na compreenso do crescimento do consumo e da produo mundial de calados (reve-lado por grandes investimentos em publicidade) trata de salientar as razes pelas quais esse segmento da produo incorpora expres-sivo avano tecnolgico sem, no entanto, abdicar da contratao de um nmero cada vez maior de trabalhadores. Ela tambm mostra que, por envolverem pequenos produtores, mas tambm agentes

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    empresariais/financeiros ligados ao movimento de acumulao ampliada da mundializao, esse gnero se apresenta como um dos mais sensveis s transformaes da nova configurao capitalista, incorporando estratgias produtivas e territoriais ao mesmo tempo renovadas e tradicionais.

    O captulo procura ainda entender o papel do Cear nesse con-texto de dinamizao da produo e do consumo, trabalhando te-mas como reestruturao produtiva, engenharias de produo, formalizao e precarizao do trabalho e estratgias econmicas de zonas industriais a partir de circuitos espaciais da produo e cr-culos de cooperao. Ele concludo com uma anlise minuciosa do trabalho de campo feito em duas empresas selecionadas a partir da relevncia que apresentam para a produo caladista brasileira e cearense so apresentados os seus processos de organizao, as estratgias de distribuio territorial das fbricas, a demanda por fora de trabalho e as vantagens socioespaciais aproveitadas a partir das oportunidades tecnolgicas de diviso do processo produtivo.

    Nas Consideraes finais, so retomadas as principais ideias que contriburam para a organizao do livro, bem como o con-junto de argumentos necessrios para a realizao da sntese das instncias polticas, econmicas, sociais e ideolgicas no territrio. Os componentes analticos utilizados ao longo da obra processos produtivos industriais, relaes de trabalho, circuitos espaciais da produo e crculos de cooperao, entre outros constituem um mosaico que permite a leitura totalizante dos processos nesse novo Cear industrial. Um argumento sobre o perfil da reestruturao socioespacial e econmica em curso e uma possibilidade de leitura para o futuro procuram fechar o debate.

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  • 1ESPAO E TERRITRIO NO CONTEXTO DO PROJETO DE MODERNIZAO NO CEAR

    Em julho de 1986, o ento candidato ao governo do estado do Cear pelo Partido do Movimento Democrtico Brasileiro (PMDB), Tasso Jereissati, dizia aos reprteres do jornal Dirio do Nordeste, durante uma campanha eleitoral marcada por forte disputa entre os grupos polticos participantes: A era que quere-mos iniciar a de exterminao da misria em nosso estado. No s a misria material, mas a misria humana, que se encontra em nosso povo (apud Carvalho, 1999, p.186). Numa outra edio do mes-mo jornal, o empresrio fortalecia: [...] o clientelismo o pai da misria e a misria fundamental para que sobreviva o regime dos coronis... sem a misria, o povo deixa de ser dependente dos coro-nis e de ser dependente do poder (apud Carvalho, 1999, p.186).

    A campanha de Tasso foi fortemente marcada por uma concep-o de mudana. Ao mesmo tempo, construiu -se no imaginrio poltico do coronelismo1 a ideia de atraso e o estigma do Cear ar-

    1 Empregou -se correntemente a palavra na ocasio para designar a poltica em que os principais lderes estaduais e locais tinham dificuldade em diferen-ciar os interesses pblicos e privados, sintetizando a dominncia do padro tradicional de alcanar resultados eleitorais com a manipulao da vonta-de coletiva pela via de pactos preestabelecidos. Essa definio destoava de conceituaes clssicas, como a de Leal (1986, p.20), para quem coronelismo implica um regime poltico baseado na troca de proveitos entre o poder p-

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    caico, enquanto se reproduziu em torno da imagem do jovem em-presrio, moderno e prspero, a condio de eficcia para marchar contra as foras do passado. A partir do slogan O Brasil mudou, mude o Cear, o empresrio -poltico se colocava no s como o candidato ao governo de um estado, mas tambm como a liderana e a imagem mtica de uma ruptura com as antigas prticas de clien-telismo,2 em funo da qual se desenharia um projeto ambicioso: o da construo de um Cear novo, desprendido simbolicamente do Nordeste tradicional.

    Com expressivo nmero de votos (52,3% do total vlido), o can-didato sagrou -se vitorioso e demarcou um novo rumo para a poltica cearense. Administrar o estado passaria pela tarefa de racionalizar os objetivos e as aes propostas, estabelecendo cuidadoso planeja-mento por meio de uma gesto mais prxima dos empreendimentos empresariais, sobretudo com forte vinculao a investidores capita-listas de diversos tipos, internos e externos ao Cear.

    A vitria eleitoral de Tasso Jereissati em 1986 implicava, na ver-dade, a realizao de um projeto que comeou a ser desenhado em 1978, quando um grupo de empresrios locais concluiu que poderia fazer uso da formao universitria adquirida nas maiores escolas de economia e administrao do pas para redesenhar a trajetria socioeconmica cearense, afastando -a das influncias da poltica conservadora dos coronis.3 Na crena de representar a vanguarda

    blico, progressivamente fortalecido, e a decadente influncia social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras. Em funo desses desacordos, o conceito ser trabalhado com cuidado ao longo deste captulo.

    2 O clientelismo entendido aqui como um conjunto de prticas de relaes de poder cuja principal caracterstica a existncia de uma rede de relaes pes-soais e diretas entre pessoas que ocupam posies assimtricas nas dimenses poltica e econmica. Fundamenta -se naquilo que Faoro (1998, p.637) cha-mou de clientela pea de uma ampla mquina na qual a viso do partido e do sistema estatal se perde no aproveitamento privado da coisa pblica [...], de modo a converter o agente pblico num cliente, dentro de uma extensa rede clientelista.

    3 No discurso dos novos empresrios, as lideranas tradicionais da poltica cea-rense eram representadas pela figura do coronel, aquele que utiliza seus po-

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    do movimento econmico no Cear, esse novo grupo de empres-rios se transformou num crtico do modelo poltico vigente, consi-derado o maior entrave na busca pelo livre interesse de capitalistas e trabalhadores.

    A diviso simblica entre a elite atrasada e a moderna se deu com a eleio da diretoria de uma entidade associativa empre-sarial de pouca expresso local, o Centro Industrial do Cear (CIC). Segundo Gondim (2000, p.44),

    [...] at ento, era praxe que o presidente da conservadora Fede-rao das Indstrias do Cear FIEC assumisse tambm a pre-sidncia do CIC, mas essa tradio foi alterada pelo empresrio Flvio Costa Lima em 1978, que abriu mo daquele cargo em favor de Benedito (Beni) Veras.

    Essa era a oportunidade da qual os novos empresrios preci-savam para colocar em prtica suas ideias modernizadoras. Para Carvalho (1999, p.179), o tempo de refundao do CIC funciona como uma espcie de memria que referencia e credencia seus per-sonagens a participarem das grandes disputas polticas a partir de 1986. O CIC se tornou um frum de debates em pleno contexto de transformao na poltica cearense e brasileira, com a intensa dis-cusso sobre os ritmos da abertura democrtica e o papel do poder pblico nas decises econmicas locais e nacionais. Nesses debates, destacou -se o conjunto de seminrios organizados por Beni Veras e seus sucessores presidentes, entre os quais Amarlio Macedo, Tasso Jereissati, Srgio Machado e Assis Machado.

    Esse momento assinalado pelos membros do CIC como divisor de guas na realidade social cearense. Os empresrios interessados no debate poltico por meio dos fruns nacionais descobriram que tambm poderiam conquistar o poder local e, com isso, implantar

    deres pblicos para fins particulares e mistura, no raro, a organizao estatal e seu errio com os bens prprios. Seria a figura retratada por Faoro (1998, p.636, 637), para quem a origem do poder derivava mais do prestgio e da hon-ra social, tradicionalmente reconhecidos, do que da situao econmica.

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    polticas que rompessem com as prticas do governo dominante. Em seu lugar, um novo projeto estava sendo construdo, no qual o papel do Estado era se desprender das obrigaes tradicionais e assumir a tarefa de impulsionar o crescimento econmico. Somado a isso, seria necessria uma recuperao das finanas pblicas a partir de uma fle-xibilidade da ao estatal no tratamento das demandas sociais.

    Com a vitria nas eleies de 1986, esses preceitos passaram a direcionar os rumos da poltica cearense. Ancorados na crise do modelo institudo pelas elites tradicionais e contando com a mo-bilizao de novos agentes polticos, econmicos e sociais, os em-presrios do CIC conseguiram eleger Tasso Jereissati para o cargo de governador, fazendo que o projeto poltico do grupo fosse aceito como representante dos interesses gerais da sociedade.

    Desde ento, esse modelo de gesto foi reproduzido. Inicial-mente, isso se deu com a hegemonia do Partido da Social Demo-cracia Brasileira (PSDB) no governo estadual, que durou vinte anos e contou com nomes como Ciro Gomes, Lcio Alcntara e o prprio Tasso Jereissati, reeleito duas vezes. Depois, houve mu-dana no governo cearense: assumiu o poder o Partido Socialista Brasileiro (PSB). Isso, porm, em nenhum momento significou transformao nos rumos da poltica econmica, na medida em que o representante da legenda, Cid Gomes, irmo do ex -governador Ciro Gomes, era estreitamente ligado ao projeto de modernizao idealizado pelo CIC na dcada de 1980.

    As prticas desse novo estilo de fazer gesto, no incio largamente divulgado pelo slogan governos das mudanas, se fundamentam numa filosofia burguesa, ao defender aes como o fortalecimento das tendncias industrializantes, a racionalizao dos sistemas tc-nicos de organizao do territrio, a atrao de investimentos exter-nos e a reestruturao da mquina pblica baseada numa poltica de enxugamento e privatizao.

    Ao advogarem em favor de uma maior liberdade de mercado e em defesa de uma proposta ligada aos preceitos da modernidade ca-pitalista em sintonia com as transformaes que se do em escala nacional e global, os empresrios -polticos terminaram por investir

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    pesadamente na sua imagem pblica, desprendendo -se do estigma da nordestinidade e construindo a boa imagem do Cear em torno de um projeto de acumulao industrial capaz de atrair em-preendimentos privados e recursos externos.

    O territrio cearense, at ento reconhecido simbolicamente no Brasil como o recorte ambiental, poltico e econmico mais nor-destino (na pior das acepes que esse termo possa representar), sofreu uma reestruturao em funo daquilo que foi divulgado como uma tomada de conscincia racional da sua nova gerao de polticos. Imagens como as da inclemncia da natureza, da misria extrema, da ignorncia da populao e da corrupo das suas lideranas foram substitudas pelas paisagens idlicas do lito-ral exuberante e pelo papel agora nacional de polticos centrados na construo de um Cear e de um Brasil abertos s influncias da nova configurao mundial da acumulao capitalista.

    Ao sanar as finanas pblicas e realizar uma administrao es-tatal marcada pela eficcia dos instrumentos de gesto tudo isso sem comprometer o crescimento econmico do estado, que esteve entre os maiores do pas , o novo projeto foi divulgado interna-cionalmente.4 Dois de seus representantes, Tasso Jereissati e Ciro Gomes, foram alm de uma rede de influncias estadual e regional e se tornaram nomes conhecidos pela participao nacional em co-ligaes eleitorais.

    Como uma das variantes na concepo desse Cear moderno,5 o territrio do estado foi inserido no circuito da produo industrial

    4 O livro da norte -americana Judith Tendler, economista do Massachusetts Institute of Technology (MIT), intitulado Bom governo nos trpicos, e re-portagens como Survey Brazil: hope from the North -East, publicada na revista The Economist em 7 de dezembro de 1991, revelam o alcance da di-fuso imagtica proporcionada pelo jeito de fazer poltica dos empresrios cearenses.

    5 O completo arranjo de propostas econmicas foi pretensioso e buscou apare-lhar o territrio, ao materializar obras e redes tcnicas que tinham como ob-jetivo dinamizar a indstria de transformao, a agricultura cientfica voltada para a exportao de commodities (sobretudo, de frutas frescas) e o turismo litorneo de grandes massas.

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    nacional e global, no qual a montagem de uma estrutura de equipa-mentos garantiu a reconfigurao dos sistemas tcnicos, aprimo-rados para consolidar modelos de produo, circulao e consumo pautados nos preceitos da competitividade, com forte articulao junto aos agentes da mundializao.

    Assim, estradas, portos, aeroportos e infovias foram constru-dos e municpios que tinham sua vida econmica sustentada pela agricultura de subsistncia e pelo comrcio tradicional passaram a conviver com um novo vetor de desenvolvimento, calcado na ati-vidade industrial, que imps um rearranjo nas funes e nas tem-poralidades do espao urbano regional. Isso transformou as formas e as funes de algumas cidades, as quais sofreram mudanas no ordenamento territorial e na capacidade de gerar e acumular rique-zas, implicando um crescimento econmico e a ampliao das aes e dos objetos modernos no territrio.

    O processo de reestruturao industrial resultou em mudana tambm dos antigos modelos de produo hegemnicos, repercu-tindo quantitativa e qualitativamente nos fluxos, nos equipamen-tos urbanos e nas formas de consumo da sociedade. A dinamizao da produo material na indstria foi responsvel por um novo quadro que redefiniu o processo produtivo, reorganizando velhos componentes econmicos a despeito da preservao de muitos outros elementos de natureza tradicional.

    Com base no conjunto de transformaes mencionadas, temos como objetivo reconhecer os principais aspectos que fazem parte do projeto poltico e econmico da nova elite dirigente do Cear. De-lineadas na dcada de 1980, as mudanas mais visveis comearam a ocorrer somente na metade dos anos 1990, quando o projeto co-meou realmente a se concretizar. Assim, partimos da concepo de que a nova configurao poltica e econmica constituda no estado algo vago, desprovido de concretude, se destituda da compreen-so do espao e do territrio como dimenses de materializao das aes empreendidas. Com base nas acepes de Raffestin (1993) e de Santos (1999, 2008) de que a economia, a poltica e a ideologia esto no territrio e que este lhes d vivncia efetiva, procuramos

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    definir as relaes multidimensionais e transescalares do territ-rio cearense para alm das limitaes de um recorte formal, isto , poltico -administrativo.

    Mas o que h de particular nas concepes e nas aes dos empresrios -polticos que lhes possibilitaram a oportunidade de reunir elementos capazes de transformar o Cear num territrio inserido no projeto de modernidade pautado nessa nova razo ins-trumental? Estaria, de fato, o estado mais aberto aos preceitos da mundializao capitalista, alinhando -se aos objetivos de uma nova configurao de acumulao, na qual a relativizao das distncias, a instrumentalidade da tcnica e a acelerao das velocidades se apre-sentam como fenmenos destacados? Como considerar o econmico e o poltico como instncias territoriais e qual a relao que eles tm com o ideo lgico na proposta cearense de transformao da socieda-de? Como levar em conta a periodizao e a produo histrica do territorial diante do discurso deflagrado de ruptura das coisas e dos fatos, fortemente presente na representao social e poltica dos industriais cearenses apresentados como sujeitos coletivos?

    Ao enxergar as transformaes no Cear por meio da investi-gao geogrfica, com base nos conceitos de espao e territrio, es-sas perguntas suscitam inquietaes na tentativa de interpretar os pontos centrais deste livro. Elas tambm so fundamentais para a formulao e a discusso dos desdobramentos de nossa proposta, pautados na busca da compreenso da reestruturao do territrio a partir dos resultados da acumulao industrial. Por isso, conside-ramos fundamental definir o contexto territorial, poltico e econ-mico que fez do projeto cearense um mecanismo de estreita relao com as demandas da nova configurao da acumulao capitalista, sobretudo a partir dos elos estabelecidos com o sistema produtivo.

    Reflexes sobre os conceitos de espao e territrio

    Nesta seo, procuramos realizar algumas reflexes sobre os conceitos de espao e territrio, em especial a partir do momento

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    conhecido como de renovao da geografia, iniciado na dcada de 1970. Embora saibamos que, na cincia geogrfica, a materialidade do real s se d pelo reconhecimento da dimenso temporal e que conceitos importantes como o de escala, regio, paisagem e lugar nunca devem ser desconsiderados na anlise e na argumentao, se-lecionamos os dois conceitos exatamente por oferecerem contribui-o na leitura das investigaes sincrnica e diacrnica sintetizadas no contexto das recentes transformaes cearenses.

    Pretendemos realizar uma rpida reviso bibliogrfica, na ten-tativa de elaborar uma construo conceitual que fornea elemen-tos para a interpretao do Cear como um recorte geogrfico rico em especificidades e generalidades. Cabe destacar que a composi-o transescalar das instncias econmicas, polticas e ideolgicas de grande valia para o estudo dos fenmenos que se manifestam na realidade cearense e que os conceitos de espao e territrio, tra-balhados a partir de um grupo de autores e livros pr -selecionados, apresentam -se proveitosos para a abordagem que desejamos utilizar.

    No transcorrer da argumentao, preferimos contrapor ideias contraditrias na tentativa de apreender mltiplas dimenses de interpretao dos referidos conceitos. Esse exerccio crtico aponta por que alguns pressupostos tericos foram escolhidos, em vez de outros, e tem como objetivo no perder de vista os elementos consi-derados mais importantes no contexto em anlise.

    Ao fim da discusso, tentamos chegar ao Cear com os instru-mentos conceituais geogrficos considerados mais apropriados. A principal expectativa que eles sejam capazes de contribuir para a leitura da particularidade da reestruturao cearense no mago da totalidade de sua mais nova configurao de acumulao capitalista de cunho competitivo e financeiro.

    Espao: processos de organizao e produo

    As dificuldades na leitura do espao sempre se mostraram rele-vantes. Ele colocado como extenso para as coisas, distncia en-

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    tre pontos ou at mesmo intervalos abstratos e, muitas vezes, sua utilizao cobre uma variedade to ampla de objetos e significados que procurar conceitu -lo implica uma tarefa rdua. Segundo Kant (1996, p.75), a noo de espao procura dar conta da forma de todos os fenmenos dos sentidos externos, pois visto como a condio subjetiva da sensibilidade unicamente sob a qual nos possvel a intuio externa. Na acepo kantiana, o espao visto como um continer premissa de influncia newtoniana segundo a qual a ideia de espao -nvel ou de espao -continente anterior ao conjunto das relaes humanas.

    No entanto, no assim para a geografia. Segundo Santos (1996, p.120), o espao que nos interessa o espao humano ou o espao social e, ao tentarmos conduzir a discusso para essa abordagem, percebemos que a noo kantiana de espao como mero receptculo das coisas se apresenta pouco abrangente. Isso se d, entre outros motivos, porque, nessa perspectiva, uma viso social compreende-ria o espao somente como um reflexo da sociedade, uma tela de fundo onde os fatos sociais se inscrevem vontade, na medida em que acontecem (Santos, 1996, p.126).

    Ora, um espao social pensado como mero pano de fundo traz consigo uma passividade, um vazio que, de fato, no existe. Uma concluso embasada nessa reflexo deduziria, no mximo, que as relaes sociais e suas contradies se do sobre uma base neutra, inerte e apoltica. Ao contrapor tal definio, Santos (1996, p.128) defende a ideia de que o espao um fato social, uma realidade objetiva. Como um resultado histrico das relaes e das prticas sociais, ele adquire uma significao autntica e se impe ao indiv-duo e s coisas, atribuindo -lhes um sentido.

    Desse modo, o espao deve ser considerado uma instncia social, ou seja, a essncia do espao social e, tal como se apresenta, ele contm as instncias econmicas, polticas e culturais -ideolgicas, assim como cada uma dessas instncias o contm (Santos, 2008, p.12). A partir dessa apreenso, conclui -se que o espao social-mente construdo compreende o conjunto de elementos materiais transformados pelas prticas econmicas, apropriadas pelas prti-

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    cas polticas e constitudas em significaes pelas prticas culturais--ideolgicas (Barrios, 1986, p.19). Como os processos sociais s se realizam quando assumem uma forma espacial, no existe dinmica econmica, poltica ou cultural que prescinda do espao. Da mes-ma forma, o espao o acmulo das dinmicas mencionadas num contexto histrico.

    Pensar o espao na contextura das prticas sociais conceder -lhe uma vivncia efetiva. Essa espacialidade, uma construo socialmen-te elaborada e rica em relaes contraditrias, apresenta -se quando o ser humano projeta a si mesmo na natureza. Tal projeo se d por meio do trabalho, mais especificamente do trabalho organizado coletivamente ao longo dos processos histricos: o trabalho social. Portanto, vemos o espao como um produto histrico e social das relaes que se estabelecem entre a sociedade e o meio circundante. Essas relaes so, antes de mais nada, relaes de trabalho dentro do processo produtivo geral da sociedade (Carlos, 1992, p.15).

    Contudo, inconcebvel imaginar um sistema produtivo que no traga em si as bases para sua prpria continuidade. Pensar numa situao desse tipo significaria conceber os meios de produo e as foras produtivas como sistemas absurdamente curtos, incapazes de estruturar valores estratgicos. Sabemos que isso no corresponde verdade: os meios de produo e as foras produtivas se fazem re-sistentes justamente por propiciarem, no seu processo produtivo, as condies para sua reproduo. Assim, as prprias relaes sociais de uma determinada configurao de acumulao elaboram os meios que reproduziro as suas necessidades e os seus valores. bom dei-xarmos claro que o termo produo deve ser interpretado de duas maneiras: por seu sentido estrito (criao de bens e mercadorias) e pela gerao dos modelos organizacionais do sistema (valores incrus-tados nas relaes, costumes e ideologias sociais).

    Dessa maneira, ao considerar o espao um plano dimensional em que a sociedade v cristalizado o resultado do seu trabalho, es-tamos interpretando -o no apenas como um produto social, mas tambm como um condicionante da articulao das condies que reproduzem as prticas sociais, econmicas e polticas. O espao

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    geogrfico, conjunto de objetos criados pelo homem e dispostos sobre a superfcie da terra, assim um meio de vida no presente (produo), mas tambm uma condio para o futuro (reprodu-o) (Corra, 1991, p.55).

    No que diz respeito interpretao das diferentes configuraes de acumulao capitalista, podemos conceb -las intrinsecamente ligadas organizao espacial. Essa organizao, envolvida direta-mente com o resultado do trabalho, refletir todas as relaes de apropriao/dominao numa sociedade fundada na produo/circulao/consumo de mercadorias. As contradies apreendidas no espao sero manifestaes da lgica desse sistema.

    O conceito de organizao, nesse caso, no pode se limitar con-cepo trabalhada pela sociologia funcional e pela gesto empresa-rial, que o l a partir de uma viso racionalista simples, com um funcionamento fixado a um organograma e movido por finalidades claramente definidas. A essa viso de organizao como sistema cooperativo, contrapomos um olhar mais abrangente, que alcana o conjunto de processos sociais ao tornar possvel a dinmica de um sistema por meio de suas composies, contradies, mudanas e superaes (Lvy; Lassault, 2003).

    A organizao espacial (ou territorial) implica, tal como apon-ta Corra (1991, p.54), que os objetos fixos e as formas espaciais esto distribudos e/ou organizados sobre a superfcie da Terra de acordo com alguma lgica. Desse modo, o conjunto de todas essas formas configura a organizao espacial da sociedade, que assim constituda pelo conjunto das inmeras cristalizaes criadas pelo trabalho social. O carter repetitivo das operaes econmicas, polticas e culturais na sociedade implica que se tenha uma locali-zao fixa para os objetos e que os fluxos de produtos e pessoas se realizem com eficincia, resultando em materializaes constitu-das por padres de localizao (Coraggio6 apud Corra, 1991). Os pontos, as linhas e as reas que correspondem linguagem desses

    6 CORAGGIO, Jos Lus. Consideraes terico -metodolgicas sobre as for-mas sociais da organizao do espao e suas tendncias na Amrica Latina. Planejamento, Salvador, v.7, n.1, 1979.

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    padres de localizao, nunca indiferentes ao movimento da hist-ria, representam a organizao espacial ou territorial.

    Nesse sentido, a busca por uma anlise mais completa das hete-rogeneidades das transformaes sociais, polticas e econmicas em tempos de mundializao capitalista perpassa por uma investigao da dialtica espacial e de sua organizao. Os dois conjuntos de re-laes estruturadas (o social e o espacial) so no apenas homlogos, no sentido de provirem das mesmas origens no modo de produo, como tambm dialeticamente inseparveis (Soja, 1993, p.99).

    Territrio: como trabalhar esse conceito a partir da noo de espao

    No corroboramos a ideia de que espao e territrio sejam si-nnimos. Raffestin (1993, p.143), em sua importante obra sobre a geografia do poder, enfatiza isso a partir de uma passagem escla-recedora: essencial compreender bem que o espao anterior ao territrio. O territrio se forma a partir do espao, o resultado de uma ao conduzida por um ator sintagmtico (ator que realiza um programa) em qualquer nvel. Logo a seguir, ele fortalece: O territrio um espao onde se projetou um trabalho, seja energia e informao, e que, por consequncia, revela relaes marcadas pelo poder. Por fim, acrescenta: Evidentemente, o territrio se apoia no espao, mas no o espao. uma produo a partir do espao. Ora, a produo, por causa de todas as relaes que envolve, se ins-creve num campo de poder (Raffestin, 1993, p.144).

    Para o autor, debater sobre o territrio implica reconhecer uma multidimensionalidade de poder que incorpora a noo dialtica de produto e condio de transformao do processo social. Na sua percepo, o territrio se apresenta como um recorte responsvel por abranger a dimenso material da realidade sob a dinmica de uma configurao poltica, econmica e ideolgica, com efeitos di-retos sobre a sociedade como um todo.

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    Em Raffestin (1993), o territrio repleto de relaes sociais, de poder e de dominao. Isso delimita campos de aes sobre o espao, fragmentos que constituem o territrio como materialidade e que revelam como os agentes e as prticas sociais produzem os re-cortes mais ou menos delimitveis que se inscrevem nas dinmicas polticas, econmicas e ideolgicas.

    Porm, embora se refira a delimitaes, Raffestin no enrijece as dimenses escalares do conceito, uma vez que reconhece e indi-ca transposies de limites do poder, sobretudo a partir dos meios de comunicao e de circulao, assim como por meio de ativida-des econmicas. nesse sentido que enfatizamos tambm a sua proposta de interescalaridade um olhar de renovao diante do j tradicional preceito ratzeliano de territrio, essencialmente fi-xado no referencial poltico do Estado -Nao. Observamos, desse modo, uma abordagem mais abrangente sobre o conceito de territ-rio, ligada ao conjunto de relaes polticas, econmicas e culturais--ideolgicas projetadas no espao, envolvendo toda uma rede que, ao mesmo tempo que exerce influncia sobre a materialidade terri-torial, sofre influncia dela.

    Em Souza (1995) tambm encontramos uma clara defesa da distino dos conceitos de espao e territrio. O autor (1995, p.98) ilustra suas ideias a partir de alguns exemplos, entre os quais o de uma possvel [...] perpetuao de representaes espaciais territo-rializantes mesmo aps a organizao espacial original ter se mo-dificado sensivelmente ou entrado em decadncia e o da situao extrema de uma cidade -fantasma, outrora esplendorosa e hoje re-duzida a runas (isto , um espao social constitudo, mas sem se apresentar como territrio de quem quer que seja).

    Para Souza (1995, p.87), o territrio ganha um sentido mais flexvel sendo lido como um campo de foras ou uma rede de re-laes sociais que podem formar -se e dissolver -se, construir -se e dissipar -se, e isso de modo relativamente rpido, numa escala temporal peridica que pode durar tanto sculos como semanas ou dias, estabelecendo -se de forma regular ou cclica.

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    Nossa ressalva quanto proposta de Souza (1995, p.97) est no fato de que o sentido de territrio sugerido parece desconsiderar a relevncia da materialidade (interpretada como substrato) ao justificar que a dimenso territorial implica somente um conjunto de relaes de poder espacialmente delimitadas operando sobre um substrato referencial. Sem deixar de reconhecer quanto essa noo rica em mobilidade, fluidez e imaterialidade, observamos como tal perspectiva pode esvaziar o contedo espacial do territ-rio, ao incorrer, como afirma Costa (2006), numa possvel sobreva-lorizao da dimenso temporal e social -histrica, em detrimento de uma base social -geogrfica.

    nas prprias palavras de Costa que nos embasamos para for-talecer essa crtica:

    Diante de uma preocupao com a espaciologia ou com o de-terminismo das formas espaciais, devemos justamente ter cui-dado para no sugerir um excesso de sociologizao ou de historicizao, de alguma forma desgeografizando o territ-rio, abstrado da base social -geogrfica como condio indispen-svel realizao destas relaes (Costa, 2006, p.81).

    Para Souza (1995), Raffestin tem uma viso menos abrangente de territrio ao consider -lo substrato, o que compromete a amplitude da sua abordagem relacional. Mas, em Raffestin (1993), esse concei-to precisa ser lido com ateno, pois o autor no o interpreta somen-te como uma base material onde se d o conjunto contraditrio das relaes sociais, polticas e culturais. Muito pelo contrrio, seu olhar supera a simples tentativa de uma reviso temtica ratzeliana, ao su-gerir uma abordagem relacional dos processos econmicos, polticos e culturais -ideolgicos e tudo isso num plano transescalar. Para Raffestin, territrio no s um palco, um envoltrio, no sentido mecnico do termo, mas uma dimenso material que recebe e ofere-ce possibilidades de ao/transformao da realidade.

    Por isso, assim como afirma Costa (2006), somos muito mais condescendentes com Raffestin, uma vez que, apesar de o territrio

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    no se limitar a substrato, ele tem sim uma expresso material que no se reduz a um campo de foras instvel. A nosso ver, a abordagem de Raffestin reconhece o papel geogrfico na formao social, alm de enfatizar o sentido da organizao territorial, na qual se desenvolve e se materializa toda a dinmica resultante das relaes em sociedade.

    Em resumo, para ns, territrio no sinnimo de espao geo-grfico. Acreditamos no espao como um conceito maior, que envol-ve a totalidade das relaes sociais e se coloca como referncia mais ampla na anlise da materialidade geogrfica. De fato, ele abrange, articula, condiciona e reproduz todo o conjunto das relaes sociais, apresentando -se como uma acumulao desigual de tempos (Santos, 2004). J o territrio, nessa perspectiva, se coloca como um recor-te relacional que envolve poltica, economia e cultura/ideologia, impondo -se como uma das dimenses singulares de maior expresso do espao geogrfico, sempre a partir de uma viso transescalar.

    Com essa afirmao, em nenhum momento estamos defenden-do a tese de que os dois conceitos sejam mutuamente excludentes, nem argumentando que sejam contraditrios em essncia (isto , antagnicos), pois temos a noo de que a relao que se d entre espao e territrio processual e de interao, na medida em que, parafraseando Saquet (2007), sabemos quanto eles se entrelaam, se superpem e, no raro, se completam.7 Um est no outro, como afirma Saquet (2007), mas, em ltima instncia, no acreditamos que tenham o mesmo significado.

    Enfim, em nossa acepo, territrio um recorte que abrange poder e se constitui numa base operacional para a materializao de inmeros interesses que no so meramente polticos e econmi-cos, envolvendo, sobretudo, necessidades culturais e ideolgicas. A abordagem territorial direciona a leitura (i)material8 das relaes de

    7 Na relao espao versus territrio, tambm h reciprocidade, pois se entre-laam, superpem -se e esto em unidade. Um est no outro. Tambm so in-separveis, como a relao tempo histrico versus tempo coexistente (Saquet, 2007, p.158 -159).

    8 [...] reflito e descrevo evidenciando aspectos processuais, relacionais e (i)ma-teriais (materiais -imateriais em unidade) que influenciaram na reelaborao

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    poder e de seus conflitos e contradies, bem como a das comple-mentaridades e multidimensionalidades na esteira do amplo movi-mento de organizao espacial das relaes em sociedade.

    Origens e significados do novo projeto de modernizao no Cear

    Ao falar da abertura dos territrios e das regies a todas as for-mas e tipos de modernidade, Santos (2006, p.20) levanta uma ques-to crucial de mtodo que muito assola os trabalhos de pesquisa no Brasil e na Amrica Latina: [...] a produo de uma modernidade que oferece ao mundo uma epistemologia incapaz de entend -lo. De acordo com o autor, essa epistemologia separa o resultado do processo. Alm disso, muitas vezes, o local e o regional so tomados pelo global, em nome de uma pretensa interpretao totalizante que negligencia a riqueza concreta da realidade, principalmente ao uti-lizar instrumentos terico -metodolgicos aplicveis a todos os ter-ritrios, mas incapazes de captar as particularidades das formaes socioespaciais.

    Esse jeito de olhar os territrios est sempre fechado ao novo, na medida em que interpreta as particularidades com instrumentos analticos preconcebidos, impossibilitados de apreender o movi-mento dos acontecimentos e a variedade das aes, ao impor enfo-ques que, em ltima instncia, mais enrijecem o objeto estudado do que desvendam a sua complexidade.

    Para Santos (2006), um exemplo desse procedimento a pree-minncia dada questo do modo de produo, e no da formao social. Para o autor,

    O enfoque do modo de produo no permite estudar a realidade de dentro, um enfoque externo realidade, no permite reco-

    da cincia geogrfica e na compreenso dos conceitos de territrio e territoria-lidade (Saquet, 2007, p.17).

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    nhecer como se constituem as sociedades e, sobretudo, no per-mite incluir a questo do territrio, porque o modo de produo no uma categoria capaz de trabalhar o espao visto a partir da totalidade concreta que a formao social (Santos, 2006, p.21).

    Essa miopia metodolgica recusa reconhecer as combinaes transescalares que do ao real seu verdadeiro significado. Ela se fe-cha coexistncia das temporalidades diversas, resiste olhar o ter-ritrio a partir da relao contraditria de seus agentes e conclui em funo de um pacote implacvel de encaminhamentos metodol-gicos preconcebido exteriormente.

    No mbito dos recentes estudos sobre mundializao, esse pen-samento se reproduz de maneira generalizada, em especial a partir da necessidade de os agentes globais hegemnicos procurarem ex-trair vantagens das relaes estabelecidas com os territrios interes-sados no seu receiturio. Pacotes com planos de desenvolvimento genricos so difundidos indiscriminadamente para os territrios, sobretudo para aqueles dispostos a aceitar inmeras solues pro-venientes dos centros de excelncia na produo das ideias.

    Por outro lado, mesmo um olhar crtico sobre as relaes que se do no contexto das transformaes capitalistas peca por defender uma interpretao muito ligada ideia de homogeneizao dos ter-ritrios. Os herdeiros da anlise estruturalista da teoria da depen-dncia denunciados, entre outros, por Lipietz (1988) continuam acreditando que territrios e regies estaro sempre disponveis para colaborar com os estgios de expanso e incorporao do ca-pital. Eles pensam a realidade somente a partir de leis imanentes, elas mesmas provenientes de uma compreenso analtica universal que rejeita reconhecer as manifestaes do particular. Como forta-lece Lipietz (1988, p.11), a anlise terica de uma regio no pode ser limitada evidenciao das relaes sincrnicas que a inserem numa estrutura inter -regional. preciso tambm procurar na diacronia, na histria dessa regio, aquilo que a tornou disponvel para desempenhar essa funo.

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    Santos (1999) defende que, se o mundo um conjunto de pos-sibilidades, sua efetivao s se d diante das oportunidades ofere-cidas pelos territrios e pelos lugares, pois so eles que fornecem ao movimento do mundo a possibilidade de sua realizao mais eficaz. Assim, para se tornar espao, o mundo tambm depende das virtu-alidades representadas pelos territrios e lugares.

    No concebemos a ideia de estudar o Cear sem levar em con-siderao tais preceitos. As manifestaes transcorridas nesse ter-ritrio ganham uma tessitura produzida pelos agentes polticos, econmicos e sociais a partir de relaes muito particulares, mes-mo que fortemente articuladas com a proposta atual de absoro dos valores modernos erigidos com a mundializao da produo e do consumo.

    As foras mundializantes da economia no anexam simplesmen-te o territrio cearense de maneira mecnica. Como assinala Santos (1999), o conjunto de foras da expanso global capitalista, represen-tado por uma espcie de imperativo da competitividade, precisa de territrios de ao que sejam capazes de conceder a uma dada neces-sidade uma vantagem maior. Para isso, preciso que uma lgica ter-ritorial interna rena homens, empresas, instituies, formas sociais e geogrficas capazes de articular com os elementos exgenos.

    No estudo sobre a organizao territorial cearense, acredita-mos, tal como Markusen (2005), que preciso definir as pessoas, os grupos e as instituies que funcionaram e funcionam como agentes decisrios, responsveis por criar instrumentos poltico--econmicos e sociais de transformao no cerne do contexto de reestruturao da realidade global. Pensar assim, obviamente, no implica apenas descrever a trajetria de atores livres e capazes de alterar o mundo a partir de uma demanda individual, encaminhada por meio de grupos de empresas, gestores ou associaes civis. A economia poltica do territrio se elabora no contexto de processos socioespaciais, transformaes estruturais e crises cclicas histori-camente desenvolvidas, mas tambm moldada por seres humanos em contextos organizacionais, em que se definem os rumos e se to-mam as decises, resultando em erros ou acertos (Markusen, 2005).

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    O projeto cearense dos empresrios -polticos, estimuladores de importantes transformaes e criadores de uma imagem de renova-o no contexto brasileiro de redefinio da poltica, passa por esse exerccio de articulao transescalar.

    Particularidades e generalidades dos governos dos empresrios -polticos

    A modernidade, conceituada como um conjunto de valores e inter-pretada a partir dos meios vivenciados por uma sociedade (Touraine, 1995; Berman, 1998; Harvey, 1998), se reflete, na prtica, em uma racionalizao que se d na esfera econmica, poltica e cultural.9 O advento dessa racionalizao leva modificao de antigas formas de produo e emergncia de uma nova mentalidade social, permea da por uma maior institucionalizao das normas e uma impresso mais universalista dos valores e dos referenciais de moralidade.

    Os processos que levam a essas mudanas, segundo Berman (1998, p.16), mantendo -as num perptuo estado de vir -a -ser, vm a chamar -se modernizao. A modernizao conduz industrializa-o da produo, transforma conhecimento cientfico em tecnologia, redefine os ambientes humanos, amplia o crescimento urbano, ace-lera o ritmo de vida, gera novas formas de poder corporativo, articula sistemas de comunicao de massa e erige um mercado capitalista cada vez mais ampliado e flutuante (Berman, 1998).

    Entretanto, ao pensarmos em transformaes dessa natureza, seria possvel imaginarmos que, no Brasil, nos ltimos anos, um dos proje-tos poltico -econmicos mais obstinados em incorpor -las foi produ-zido no Cear, um dos estados mais pobres da Federao? Como um estado com elites polticas to frgeis em termos estruturais consegue, contraditoriamente, exercer tanta influncia em escala nacional, alcan-ando um peso poltico desproporcional sua importncia?

    9 A ideia de modernidade est estreitamente associada da racionalizao. Renunciar a uma rejeitar a outra (Touraine, 1995, p.18).

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    As respostas para essas perguntas passam por duas dimenses complementares que envolvem a natureza transescalar das trans-formaes no Cear. Por um lado, no plano nacional, temos a pol-tica desenvolvimentista da Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), que foi recebida no Cear de uma maneira diferente em relao ao restante dos estados do Nordeste, sobretudo por legitimar mais os empresrios locais (Ferreira, 1995; Abu -El--Haj, 1997). Por outro lado, temos a participao de importantes instituies instaladas no estado que, ao contribuir para a constru-o de uma mentalidade racionalista diante dos inmeros proble-mas socioeconmicos, num contexto de grande vulnerabilidade climtica e ambiental, levam incorporao de projetos estruturan-tes menos resistentes s ideias da modernidade (Parente, 2002).

    Do ponto de vista da primeira dimenso, Bielschowsky (2004) destaca a importncia de duas diferentes fases do desenvolvimen-tismo no Brasil, responsveis por estabelecer os laos entre a estru-tura econmica estatal e o empresariado nacional e multinacional. Na primeira fase, que vai da proclamao do Estado Novo em 1937 at o golpe militar em 1964, o desenvolvimentismo brasileiro mo-bilizou um montante de recursos do Estado para assumir a respon-sabilidade pelo crescimento industrial. Como resultado, nasceram importantes empresas estatais e cresceu a institucionalizao da economia nacional. J na segunda fase, o regime autoritrio assu-miu o nus pelos investimentos na infraestrutura, facilitando a ex-panso do setor privado, ao mesmo tempo que contribuiu para a formao de uma economia de mercado difundida em grande parte do territrio brasileiro, como demonstra a quebra do monoplio na produo automobilstica de So Paulo e a criao do Polo Petro-qumico de Camaari na Bahia.

    Essa segunda fase influenciou diretamente a formao de uma classe empresarial de mentalidade progressista no Cear. O de-senvolvimentismo no Nordeste ficou marcado pela atuao das polticas regionais, com a criao do Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e da j citada Sudene entre o fim dos anos 1950 e o comeo

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    da dcada de 1960.10 Como informa Oliveira (1977), por ser forte-mente comprometida com o crescimento monopolista do capitalis-mo brasileiro, at 1974, a Sudene patrocinou mais os investimentos provenientes do Sudeste do pas, por meio dos mecanismos de fa-cilitao fiscal e atrao industrial conhecidos como Artigos 34/18. Aps esse ano, instituiu -se o Fundo de Investimentos do Nordeste (Finor), que prometeu romper com o desenvolvimentismo tradi-cional no Nordeste e implementar novos investimentos a partir de propostas como o incentivo concorrncia e produtividade (Abu--El -Haj, 1997, 2002, 2003).

    Criado no intuito de responder s crticas ao modelo anterior de interveno da Sudene em que a indstria pesada e de capital intensivo recebeu mais ateno , o Finor priorizou os investimen-tos na indstria tradicional de mdio porte e deu a elas poder de competitividade (Abu -El -Haj, 1997). Ao ser excludo dos maiores investimentos at 1974, o Cear foi o estado mais beneficiado com os projetos do Finor. Isso resultou numa transformao da sua es-trutura empresarial, que viu o avano tecnolgico, o fortalecimento da indstria tradicional txtil e a incorporao de um padro com-petitivo de produo industrial, inclusive com a adoo de metodo-logias gerenciais de produo modernas (Ferreira, 1995).

    Esse movimento incentivou o aparecimento de uma classe bur-guesa bem -sucedida que, pelas suas origens urbanas, diferenciava--se, a um s tempo, das elites polticas tradicionais e da classe empresarial mais antiga, ligada estrutura econmica do Estado au-toritrio. Os empresrios que passaram a se reunir no CIC a partir de 1978 foram uma das representaes constitudas nesse perodo. Eles se destacavam pela sua ao empreendedora no estado e no pas como um todo. Alm disso, sua formao acadmica, conquistada nos cursos de administrao e economia de centros como a Funda-o Getulio Vargas (FGV), dava -lhes uma caracterstica diferencia-da, marcada pela proposta racionalista de interveno planejada na

    10 O Captulo 2 traz uma discusso mais detalhada sobre o papel desses rgos no contexto das transformaes econmicas sentidas pelo Nordeste na segun-da metade do sculo XX.

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    economia e na poltica. Logo eles compreenderam o contexto hist-rico do qual faziam parte, tanto no Cear como no Brasil, e passaram a discutir abertamente temas polticos, convidando importantes no-mes de oposio ao governo federal (Celso Furtado, Maria da Con-ceio Tavares, Luiz Incio Lula da Silva, Leonel Brizola, Antnio Ermrio de Moraes, Henfil etc.) para difundir a ideia de acelerao da redemocratizao nacional (Carvalho, 1999).

    Algumas especificidades cearenses consolidaram essa nova classe empresarial, dando -lhe condio de impor a sua demanda diante do comando poltico estadual. A origem dessa consolidao est ligada prpria natureza estrutural frgil das elites no Cear, que nunca tiveram a fora nem a durabilidade das elites polticas de Pernambuco, da Bahia e da Paraba, por exemplo. Essa instabilida-de do poder estadual trabalhada, entre outros, por Parente (2000 e 2002) e Barreira (2002) est diretamente vinculada a fenmenos como a seca, que, em funo de seu carter crnico e implacvel, sempre atingiu ricos e pobres. De fato, os efeitos da seca no Cea-r so maiores do que nos outros estados do Nordeste. Enquanto Bahia, Pernambuco, Paraba, Piau etc. tm apenas parte dos seus territrios sob a influncia do regime de chuvas do semirido nor-destino, o Cear tem mais de 90% do seu afetado pela seca.

    Mas os efeitos nefastos do fenmeno natural, na concepo de Parente (2002, p.126), trazem consigo outra face: eles favorecem o fortalecimento de um quadro tcnico e moderno, [...] instrumen-tado no s para conhecer a realidade emprica da regio, mas para interferir de forma racional nos seus efeitos. Assim, a modernizao sempre foi uma estratgia de sobrevivncia das elites cearenses, e isso est demarcado no papel que o estado tem ao sediar rgos federais tcnicos de reconhecida competncia, como o Departamento Nacio-nal de Obras Contra as Secas (DNOCS) e o BNB, entre outros.

    Faltava, ento, classe empresarial que se apresentava como pretendente ao comando poltico estadual garantir a homogeneida-de dos quadros tcnicos em seu favor e articular seu projeto com as diferentes pores do territrio cearense, uma vez que as regies do Cear em especial o Cariri (no sul), Sobral (no norte) e a regio

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    metropolitana de Fortaleza (RMF) geralmente se colocavam de maneira opositora do ponto de vista poltico.

    Isso foi possvel na sucesso estadual de 1982, quando a proposta do Estado central autoritrio de entregar o poder aos civis, de forma lenta e gradual, revelou o desgaste e a artificialidade do comando dos trs polticos mais influentes do Cear, os coronis Virglio Tvora, Adauto Bezerra e Csar Cals. Mesmo com a autorizao do multipartidarismo para as eleies daquele ano, parecia que a deci-so acerca do nome do novo governador sairia automaticamente a partir da escolha conjunta dos trs polticos. No entanto, no houve um consenso sobre um candidato que pudesse manter a indispen-svel unidade das faces polticas, e a deciso precisou ser tomada no famoso Acordo dos Coronis (ou Acordo de Braslia), quando o nome de Gonzaga Mota, tcnico do BNB, foi imposto aos co-ronis pelo presidente da Repblica, na tentativa de uma soluo conciliadora para a poltica local. Com o apoio de Virglio, Adauto e Csar Cals, a eleio foi apenas uma formalidade e Mota saiu vi-torioso. Os empresrios do CIC perceberam o significado daquele momento e convenceram o novo governador a romper o Acordo dos Coronis, transformando a farsa eleitoral numa tragdia para os ve-lhos profissionais da arte de fazer poltica (Carvalho, 2002).

    A crise do Acordo dos Coronis deixava claro que as mudanas no Cear no se limitavam economia: elas tambm interferiam na poltica. Os pactos tradicionais, que pareciam imbatveis em fun-o das estratgias conduzidas pelos dirigentes especializados em fazer da poltica uma arte de chefia (Carvalho, 2002), j no se sus-tentavam mais. Os resultados das eleies de 1982 apontavam para desdobramentos muito mais devastadores, manifestados no pleito de 1986, que elegeu Tasso Jereissati como governador do estado e destacou a fora simblica do poltico moderno em relao ao modo atrasado de administrar a coisa pblica.

    O marketing eleitoral passou a ser um instrumento importante de acesso ao poder e construo de uma imagem pblica pautada no discurso da modernidade enquanto difuso dos valores da socie-dade de mercado que definiu o percurso de construo de uma nova

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    hegemonia poltica. Os empresrios -polticos do Cear se afirma-ram como nova elite dirigente em funo da crtica progressiva ao modelo tradicional e decadente do regime militar. Suas principais ideias ficaram muito bem definidas num projeto de carter bur-gus, com feio cosmopolita, que muito contrastava com a filoso-fia corporativa da poltica brasileira e cearense do perodo.

    Com a conquista do governo em 1986, o projeto foi implantado na poltica e na economia cearenses, com fortes repercusses so-bre a sociedade e o territrio, que passaram a sentir os efeitos de um estilo diferente, embora conservador, de conduzir os rumos do capitalismo no estado. De fato, ao atribuir importncia maior aos mecanismos de acumulao privada e industrial, considerando a nova configurao comandada pela competitividade, a proposta dos empresrios -polticos aflorou um modelo de articulao tran-sescalar sem precedentes no Cear.

    O movimento do sincrnico e do diacrnico passou a se materia-lizar no espao e as manifestaes particulares e universais se uni-ficaram no conjunto de normas, objetos e imagens produzido para redefinir um Cear que estaria pronto para esquecer o seu passado atrasado e preparado para abraar os elementos que representam o novo, isto , a modernidade como projeto burgus de reestrutura-o da sociedade e do territrio.

    Enquanto isso, em escala mundial, importantes transformaes manifestadas no seio do regime fordista de acumulao redefiniam inmeras caractersticas do capitalismo a alterao do papel central do Estado como regulador das demandas socioeconmicas, a crise dos sistemas produtivos industriais e a ao mais efetiva de agen-tes financeiros controladores de novas formas de gerar e acumular valor eram apenas algumas das expresses dessas transformaes.

    No Brasil, o sentido poltico da ao estatal passava a ser deter-minado ainda mais pela acumulao do capital. Alm disso, os novos agentes financeiros, em sintonia com os interesses de alguns grupos hegemnicos, deflagraram uma abertura dos mercados no intuito de oferecer ao