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Território e região: os faxinais e a ativação da noção de território
Marisangela Lins de Almeida1
Rodrigo dos Santos2
Ancelmo Schörner3
Resumo:
Existentes na região centro-sul do Estado do Paraná, os faxinais são considerados uma forma
de organização camponesa, tendo sua formação caracterizada principalmente pelo uso comum
da terra (de criar) e dos recursos naturais, para Campos (2000) o direito de uso comum,
independente de qualquer regime jurídico, está relacionado ao direito consuetudinário,
demonstrando haver uma estreita relação entre costume, lei e direito de uso comum, como
percebe-se são estruturados não somente relacionados a aspectos ambientais e econômicos,
mas relacionados a questões culturais e sociais. Considerado como um sistema atrasado e
tendendo ao desaparecimento, os faxinais resistem ao avanço do agronegócio que coloca em
risco sua sobrevivência. Assim, ativar o conceito de território, entendido como mediação
espacial das relações do poder em suas múltiplas escalas e dimensões se define por um jogo
ambivalente e contraditório entre desigualdades sociais e diferenças culturais, se realizando de
maneira concreta e simbólica, sendo, ao mesmo tempo, vivido, concebido e representado de
maneira funcional e/ou expressiva pelos indivíduos ou grupos (CRUZ, 2007, p. 102), torna-se
para esses povos tradicionais uma tática de sobrevivência, já que enfrentam inúmeros
obstáculos e estão envoltos em conflitos com diversos antagonistas (plantadores de soja,
madeireiros – pinus e eucaliptos – e chacreiros) e lutas entre diferentes forças sociais e
interesses distintos. Segundo Almeida (2004) a própria categoria de povos tradicionais
conheceu deslocamentos à partir de 1988, relacionando-os a consciência identitária, ou seja,
designam grupos que assim se definem e manifestam consciência de sua condição, indicando,
portanto, sujeitos sociais com existência coletiva e articulados pelo critério político-
organizativo. O que mais chama a atenção dos pesquisadores é o fato de o faxinal se
1 Graduada em História (UNICENTRO), Especialista em Didática e Metodologia do Ensino Superior (UCP),
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Centro-Oeste
(UNICENTRO). E-mail: [email protected]. 2 Graduado em História (UNICENTRO), Especialista em Educação do Campo (ESAP), Mestrando do Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), bolsista da
coordenação de aperfeiçoamento de pessoal de nível superior- Capes. E-mail: [email protected]. 3 Doutor em História, Professor do Departamento e do Programa de Pós-graduação em História da
UNICENTRO, campus de Irati/PR. Área de atuação: História do Brasil / história regional. E-mail: ancelmo.
2
caracterizar como um território composto e complexo que combina uso comum de recursos e
apropriação privada da terra, além da preservação ambiental. Dessa forma, para analisar o
território de qualquer grupo, precisa-se de uma abordagem histórica que trata do contexto
específico em que surgiu e dos contextos em que foi defendido e/ou reafirmado (LITLLE,
2002, p. 254). Por isso, nos estudos relacionados ao rural operar com os conceitos de território
e regiões torna-se imprescindível, já que, grande parte dos movimentos sociais no campo
agem no sentido de relativizar as divisões político-administrativas. Envoltos em conflitos
relacionados à terra, os faxinalenses passam a ativar a noção de territorialidade, que segundo
Almeida (2004) atuará como fator de identificação, defesa e força. A dimensão física é
articulada a dimensão simbólica, o sentido de pertencimento e identidade territorial é ativado,
o território passa a ser o local onde se constroem laços de identidade.
Palavras-Chave: Faxinais, Território, Identidade.
Introdução
Esse texto é o resultado das discussões realizadas na disciplina de História e Cultura
dos Povos Tradicionais, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO), tendo como área de concentração a perspectiva das
regiões e seus elementos constituintes. Pretende-se refletir sobre questões teóricas que
envolvem a noção de território, enfatizando as discussões presentes nas demandas identitárias
que permeiam o processo de territorialização nos faxinais. Os conceitos de Território e
Identidade serão os elementos norteadores dessa discussão.
Ao discutir sobre estes conceitos, apresentando as principais concepções teóricas
sobre o assunto procura-se adentrar no universo de contestação dos faxinalenses, que, na
atualidade, a partir de sua organização política, reivindicam o reconhecimento de seus direitos
com base na concepção da diferença. Nesse sentido, ativar a noção de território a partir do
sentido de pertencimento alia-se ao processo de reconhecimento, sobrevivência e da
legitimidade das práticas dos povos tradicionais.
Deste modo, compreende-se o território, enquanto dotado de mobilidade, podendo
ser construído e descontruído, ligado à política e ao poder, é construído socialmente, logo,
vincula-se a apropriação do espaço, de forma concreta ou simbólica, onde “o território é
gerado á partir do espaço que o ser humano territorializa” (MOTTA, 2005, p. 471). A
3
expressão dessa territorialidade, segundo Little (1994), não reside na figura de leis ou títulos,
mas se mantém viva na memória coletiva que incorpora dimensões simbólicas e identitárias
na relação do grupo com sua área, dando profundidade e consistência temporal ao território.
Pretendemos pensar isso a partir dos Faxinais.
Existentes na região Centro-Sul do Paraná, os faxinais são considerados uma forma
de organização camponesa, possuindo como característica principal o uso comum das terras
de criar.
Etmologicamente, a expressão faxinal origina-se do termo italiano „fascina‟
que significa pequeno feixe de lenha, resultante da limpeza das matas para
cultivo de lavouras. Faxinal (faxina+al.) significará, então, o conjunto de
faxinais, ou seja, região de campo, entremeada por pequenos aglomerados de
árvores, esses denominados de capões ou capoeirões. Trata-se, da designação
de um tipo de panorama, composto de campos com matas pouco densas
(CAMPIGOTO; SOCHODOLAK, 2009, p. 187).
“Sistema Faxinal”: Implicações e problemáticas
É importante, num primeiro momento, fazer a dissociação entre as expressões
“sistema faxinal” e “terras tradicionalmente ocupadas”, visto que esta aproxima-se com a
questão identitária, associando-se a um território de pertencimento, enquanto que, “sistema
faxinal” aponta para um caráter economicista e determinista.
Segundo o decreto estadual do Paraná (1997, p. 1), “entende-se por “Sistema
Faxinal”: o sistema de produção camponês tradicional, característico da região Centro-Sul do
Paraná”, possuindo como traço marcante o uso coletivo da terra para produção animal e a
conservação ambiental. Fundamentando-se na integração de três componentes: a) produção
animal coletiva, à solta, através dos criadouros comunitários; b) produção agrícola –
policultura alimentar de subsistência para consumo e comercialização; c) extrativismo
florestal de baixo impacto - manejo de erva-mate, araucária e outras espécies nativas.
A definição oficial de “sistema faxinal” não comporta aspectos identitários, a
dimensão cultural dos grupos não é considerada. Segundo Souza (2009, p. 16), a expressão
indica uma afirmativa em que a identidade coletiva do grupo não é
considerada, e sim, um sistema ou estrutura, antes subsidiária e dependente
de um modelo de produção dominante do que produto social engendrado de
4
forma relativamente autônoma pelo campesinato frente conflitos abertos
pelo acesso e uso aos recursos essenciais
Sendo assim, não deixa margem para a atuação dos sujeitos, ao contrário, os percebe
enquanto controlados por um sistema, desprovidos de autonomia social e política. O
faxinalense, dentro dessa categoria, é pensado como passivo. Segundo Souza, (2009, p. 17)
nessa perspectiva, “o agente social permanece indistinto dentro da categoria camponês, inerte
as investidas do capital, sujeitando-se a toda forma de manipulação e funcionalidade”4.
A própria expressão faxinalense denuncia o contrário, pois demonstra a organização
política e social do grupo, de acordo com as concepções de Souza (2009, p. 16), a expressão
faz parte da “construção do sujeito social mobilizado, objetivado em um movimento social”,
seguindo um critério de autodefinição usada estrategicamente para marcar sua diferença,
passando a ser utilizada a partir da organização política dos faxinalenses.
A nova estratégia dos movimentos sociais, segundo Almeida (2004, p. 22), é a
designação dos sujeitos da ação não mais atrelada à conotação política do termo camponês,
politiza-se termos e denominações locais e específicas à medida que as realidades locais
também politizam-se. Ao adotarem a designação coletiva as denominações pelas quais se
autodefinem e são apresentadas no cotidiano, os agentes sociais se instituem enquanto sujeitos
de ação.
Além de inferir sobre a inércia dos sujeitos faxinalenses, diante do avanço do
capitalismo no campo, a expressão indica a dissolução da forma tradicional da organização
camponesa faxinalense a partir do avanço da agricultura moderna em seus territórios, que
culminaria na desagregação total dos faxinais. Perspectiva evidente nas análises de Chang
(1988, pp. 108-109).
Os criadouros comuns, próprios para a criação extensiva de animais, dentro
do processo de intensificação da produção tendem a desaparecer, por não
serem mais indispensáveis, ou no mínimo, úteis para a produção animal [...]
Finalmente [...] dentro de 10 a 12 anos, o sistema faxinal não mais fará parte
4 Para Almeida (2004, p. 25) de certo modo, está-se diante da fabricação de novas unidades discursivas que
substantivam e diversificam o significado de „terras tradicionalmente ocupadas‟, além de refletirem as
mobilizações políticas mais recentes, chamando a atenção para os sujeitos da ação e suas formas organizativas.
5
do setor produtivo rural do Paraná, e sim será lembrado, talvez, como parte
da história da agricultura deste Estado
Para Souza (2009, p. 15) a abordagem teórica utilizada por Chang é pautada numa
discussão sobre os faxinais numa óptica compatível com as etapas desenvolvimentistas dos
faxinais, que os apresentam envoltos em três momentos ou „fases‟: gênese, consolidação e
desagregação. Nessa perspectiva linear, evolutiva e contínua5 a tendência é a fragmentação e
o desmantelamento dos faxinais.
De outra forma, o conceito de terras tradicionalmente ocupadas denota o que
até então encontrava- se na invisibilidade, as territorialidades específicas
faxinalenses, ocultadas e discretamente manifestas. Visto que acionam e
vinculam a existência dos faxinais a um conflito entre modos de produção, o
que representam, na realidade, não pode ser lido como oposição entre
tradicional e moderno, mas produtos de antagonismos e tensões resultadas
do próprio desenvolvimento do capitalismo (SOUZA, 2009, p. 16).
Assim como a expressão “faxinalense” o conceito de “terras tradicionalmente
ocupadas” faz parte da construção do sujeito mobilizado politicamente, sendo
estrategicamente importante na construção de tal movimento social, pois relativiza as
fronteiras6 político-administrativas ao considerar as diversas territorialidades faxinalenses.
Contrário à conotação de “sistema faxinal”, a expressão coloca os sujeitos no campo da ação,
do conflito, da atuação e não simplesmente subjugado às implicações do capital. Para
Almeida (2004, p. 10) “a noção de “tradicional” não se reduz à história e incorpora as
identidades coletivas redefinidas situacionalmente numa mobilização continuada, assinalando
que as unidades sociais em jogo podem ser interpretadas como unidades de mobilização”.
5 A ideia de continuidade apresentada em oposição a descontinuidade, não havendo, portanto, espaço para
rupturas, engessando o sujeito diante do avanço do capital e da “modernidade”. 6 Fronteiras relativizadas fogem do conceito habitual, ligado ao físico, indicando um limite entre duas áreas,
países ou regiões físicas, servindo para indicar o início e o fim de um dado território (físico), ligado à
patrimônio, competências e soberania. A definição de uma linha, traço, ou marca divisória de natureza política
entre duas regiões, estimula a ocorrência de práticas de adaptação, afirmação, conflitos e tensões. Dentre
diversas formas de conceber as fronteiras, entende-se, que a fronteira não se resume as suas divisões geográficas,
fronteira pode ser analisada sob a ótica do simbólico, como um espaço privilegiado da produção de
antagonismos e laços de solidariedade, de negação e afirmação de identidades, da (re) elaboração de
representações, dos conflitos, entre outros (Dicionário da Terra, 2005, p. 226-227).
6
Segundo Souza (2009, p. 1) não se pode afirmar com exatidão o número de faxinais
existentes no sul do Brasil. Apesar do conhecimento sobre a situação dos faxinais aumentar
significativamente não se pode inferir em conclusões definitivas sobre os mesmos.
Faxinais e o uso comum
Segundo os apontamentos de Campos (2000, p. 1), apesar da dimensão territorial, em
todas as regiões do Brasil existiram ou continuam a existir formas de uso comum da terra e
demais bens naturais, as transformações econômico-sociais do país fizeram com que as áreas
onde haviam essas terras desaparecessem, parcialmente ou completamente, porém muitas
delas continuam existindo. Assim, ele define tais terras
Em termos gerais, a terra de uso comum tem características associadas a uma
terra do povo- uma terra que é de todos, no entanto, não se constitui numa
terra pertencente ao povo, no sentido de haver a propriedade coletiva de um
grupo, uma comunidade, ou várias comunidades em conjunto. Trata-se do
uso comum de determinados espaços por inúmeros proprietários, individuais
independentes, servindo-lhes como “suplemento”, sendo, do mesmo modo,
utilizado por pessoas ou grupos de não proprietários (CAMPOS, 2000, p. 1)
Ressalta-se, que não se trata de propriedade coletiva, mas do uso comum de
determinados espaços, não devendo, portanto, ser confundida com propriedade coletiva. Para
Almeida (2009, p. 39) as modalidades de uso comum da terra, designam situações nas quais o
controle dos recursos básicos não é exercido de maneira livre e individual por um
determinado grupo doméstico de pequenos produtores diretos ou por um dos seus membros.
Sendo que o controle dos recursos naturais ocorre por meio de normas específicas, instituídas
e acatadas de maneira consensual pelo grupo que compõem a unidade social, combinando o
uso comum dos recursos e a apropriação privada de bens.
A atualização dessas normas ocorre em territórios próprios, cujas delimitações
são socialmente reconhecidas, inclusive pelos circundantes. A territorialidade
funciona como fator de identificação, defesa e força. Laços solidários e de
ajuda mútua informam um conjunto de regras firmadas sobre uma base física
considerada comum, essencial e inalienável, não obstante disposições
sucessórias, porventura existentes (ALMEIDA, 2009, p. 39).
7
A noção de território é entendida aqui não por sua associação com espaço físico;
vínculos afetivos, identidades, saberes ambientais também permeiam a compreensão desta
expressão, extrapolando o sentido estritamente físico da mesma e adentrando o campo do
simbólico. Então, formas de ocupação e manutenção desses espaços revelam conflitos, esses,
envoltos por relações de poder e travados, geralmente, no campo do simbólico. Desse modo,
refletir sobre território implica em operar com as concepções de espaço simbólico7 e poder
simbólico.
O poder simbólico, pensado aqui a partir das reflexões de Bourdieu (2000, p. 11),
visto, portanto, como um poder de construção da realidade, tende a estabelecer uma ordem,
um sentido no mundo social e, por conseguinte, um „consenso‟ que permite a reprodução da
ordem social. As diferentes classes e frações de classes disputam a definição do mundo social,
conforme seus interesses, nessa luta simbólica, a violência simbólica assegura a dominação de
uma classe sobre outra, inculcando valores simbólicos e os legitimando.
Para Campos (2000, p. 2), o direito de uso comum, independente de qualquer regime
jurídico, está relacionado ao direito consuetudinário, demonstrando haver uma estreita relação
entre costume, lei e direito de uso comum. Dessa forma, não somente estão relacionados a
aspectos ambientais e econômicos, mas relacionados a questões culturais e sociais. Logo, os
conflitos que envolvem o uso comum da terra nos faxinais encontram-se envoltos no
simbólico, apontando para a emergência de novos movimentos sociais que lutam pela
afirmação de suas identidades territoriais que, segundo Cruz (2007, p. 95)
As populações „tradicionais‟ se organizam, ganhando visibilidade e
protagonismo, se constituindo e afirmando como sujeitos políticos na luta
pelo exercício ou mesmo pela invenção de direitos a partir de suas
territorialidades e identidades territoriais. Essas lutas são lutas por
redistribuição e por maior igualdade de acesso aos recursos materiais (lutas
por „territórios da igualdade‟), bem como pelo reconhecimento da
legitimidade de diferenças e identidades culturais expressas nos diferentes
modos de produzir e nos diferentes modos de viver e de existir de tais
populações (lutas por “territórios da diferença”).
7 Espaço simbólico concebido a partir das reflexões de Bourdieu (2000), pensado como espaços de
representações, de criação de sentidos e regiões.
8
Nesse sentido, novos sujeitos políticos são constituídos, povos “tradicionais” atuam
contra as diferentes formas de subalternização material e simbólica, contra preconceitos e
estigmas e pela afirmação de suas identidades, essas que são construídas na afirmação de sua
territorialidades, (re)significando sua existência, num processo de rememoração do passado,
buscando na tradição, nos costumes e na memória sua legitimidade, não presas a esse
passado, sinalizam para o presente, à partir de sua participação afirmativa e organização
política. Nesse processo, a atuação conflituosa dos antagonistas (madeireiras, plantadores de
pinus e soja, granjeiros e chacreiros) age, também, no sentido de fortalecer os laços comuns e
afirmar suas territorialidades.
Os relatos dos entrevistados dão conta de um passado comum, permeado de
violência e disputas, onde os „faxinalenses‟ resistem permanentemente
lutando contra a „privatização‟ do uso comum da terra, desvelando as
interpretações que tendem a fazer passar por naturais os processos de
mercantilização e transformação forçada de seus territórios, apontando para
agentes sociais (fazendeiros, empresas reflorestadores, chacreiros...) e suas
construções sociais de dominação, entre elas as diversas formas de violência
simbólica e material, sobretudo, as formas de imobilização da força de
trabalho e domínio da terra. Há em decorrência disso uma politização da
história que traz o passado para o presente, induzindo explicitamente o
confronto entre duas modalidades de uso e apropriação dos recursos básicos
postos em conflito (SOUZA, 2009, p. 8).
Souza (2009, p. 7), ao discutir sobre a identidade „faxinalense‟, apresentando como
critério identitário a autodefinição, reconhece que a forma de percepção coletiva dos conflitos,
proporciona coesão social do grupo e estreita os laços de solidariedade, fortalecendo uma
ideia de comunidade apoiada em critérios políticos-organizativos, construindo socialmente
seu território, portanto, os conflitos contemporâneos relacionados ao uso da terra, fortalecem
os laços comunitários e contribuem com o processo de construção social do território.
Verifica- se, assim, as reações dos agentes sociais faxinalenses, agindo no sentido da defesa e
manutenção da prática de uso comum da terra. Para Silva (2004, p. 82)
A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as
operações de incluir e excluir. A identidade e a diferença se traduzem, assim,
em declarações sobre quem pertence e quem não pertence, sobre quem está
incluído e quem está excluído, afirmar a identidade significa demarcar
fronteira, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora
9
Deste modo, a ativação da noção de identidade territorial acontece, para os povos
faxinalenses, a partir dos antagonistas, geralmente motivados pelo avanço do capital sobre
seus territórios. Segundo Souza (2009, p. 7), na concepção dos faxinalenses, geralmente essa
intervenção conflituosa ocorre com „gente de fora‟8, que adquirem terras dentro do criador
comum para fechá-las, os denominados chacreiros, motivados pela expansão do mercado de
terras, ou quando obtém terras de planta e implantam monocultivos de soja, eucalipto, pinnus,
milho, batata. Assim, a construção social da identidade relaciona-se diretamente ao
antagonismo vivenciado.
Salienta-se que, a identidade é pensada aqui, segundo as concepções teóricas de Cruz
(2007, p. 100), que a percebe em seu caráter estratégico, sujeito a manipulação de indivíduos
ou grupos sociais, onde são, ao mesmo tempo, produtos e produtoras das lutas políticas e
sociais.
Assim, o conceito de identidade não se confunde com as ideias de origi-
nalidade, tradição ou de autenticidade, pois os processos de identificação e
os vínculos de pertencimento se constituem tanto pelas tradições („raízes‟,
heranças, passado, memórias) como pelas traduções (estratégias para o
futuro, „rotas‟, „rumos‟ projetos) (CRUZ, 2007, p. 97).
Logo, pode-se inferir que as noções de diferença, identidade e poder relacionam-se, visto
que, a identidade e a diferença são o resultado de um processo de produção simbólica e
discursiva. A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua
definição – discursiva e linguística – está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas
não são simplesmente definidas: elas são impostas. Não se trata, entretanto, apenas do fato de
que a definição da identidade e da diferença seja objeto de disputa entre grupos sociais
8 Para Schörner; Stelmarczuk (2010, p. 15) “É através das palavras, “nós” e “outros”, por exemplo, que as
identidades brotam-se, nutrem-se, transformam-se ou dissolvem-se”, tal perspectiva utilizada em concordância
com os pressupostos de Woodward (2000, p. 23) A identidade é produto de uma intenção, em que os objetos ou
sujeitos -“nós” e os “outros” - se constituem enquanto se comunicam. Em suma, a construção do nós identitário
pressupõe a existência do outro. O outro é a concretização da diferença, contraposto como alteridade à
identidade que se anuncia. A identidade é a construção simbólica que elabora a sensação de pertencimento,
propiciando a coesão social de um grupo, que se identifica, se reconhece e se classifica como iguais ou
semelhantes. A visualização, identificação e avaliação classificatória do outro acontece sob o signo da
estrangeiridade, e é pelo distanciamento - contrastivo, antagônico ou de semelhança - que se pode construir uma
noção de pertencimento social.
10
assimetricamente situados relativamente ao poder. Na disputa pela identidade está envolvida
uma disputa mais ampla por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade, pois a
afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos
sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais
(SCHÖRNER; STELMARSCZUK, p.19)9.
Para Bauman (2005, p. 84), “A identidade é uma luta simultânea contra a dissolução
e fragmentação, uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa resoluta a ser
devorado”, logo, a identidade é colocada no campo das disputas simbólicas e materiais.
Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar certo de esta havendo uma
batalha. O campo de batalha é o lar natural da identidade. Ela só vem à luz no
tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em que desaparecem os
ruídos da refrega (BAUMAN, 2005, p. 83)
A identidade é construída subjetivamente, baseada nas representações, nos discursos,
nos sistemas de classificações simbólicas, embora não seja algo puramente subjetivo e não se
restrinja à "textualidade" e ao "simbólico". Ela não é uma construção puramente imaginária
que despreza a realidade material e objetiva das experiências e das práticas sociais como
muitos afirmam, e nem tampouco é algo materialmente dado, objetivo, uma essência
imutável, fixa e definitiva (CRUZ, 2007, pp. 98-99).
Encurralados em seus territórios, expropriados10
, perante o avanço do capitalismo e o
crescimento da lógica de reprodução do capital, para os povos faxinalenses, a ativação da
identidade territorial torna-se uma estratégia11
de sobrevivência, diante de uma visão
9 Resultado de um estudo sobre os preconceitos sofridos por faxinalenses, ao visitarem o centro da cidade de
Irati, entre as décadas de 1960 e 1970, demonstrando as diferentes territorialidades existentes dentro do mesmo
município, que se excluem, como reflexo da construção imaginária de um Paraná “desenvolvido”, onde o
interior (faxinal), simbolicamente foi se definindo como um espaço marginal, diante dessa concepção “se o lugar
é marginal, posto que periférico, quem mora nele também é marginal, onde as piadas, os preconceitos e
“ignorâncias” contra os faxinalenses procuram dar um sentido à cidade homogênea” (SCHÖRNER;
STELMARSCZUK, 2010, p. 13). 10
Expropriação entendida a partir das considerações de José de Souza Martins (1991). Para ele, quem expropria
o trabalhador é o capital, visto que, a formação de um novo tipo de propriedade agrária no século xx, a
propriedade capitalista, resulta em modificações nas forças sociais no campo brasileiro. A separação entre o
trabalhador e as coisas que ele necessita para trabalhar como: ferramentas, matérias-primas, máquinas, e
inclusive a terra. Sendo assim, a expropriação reflete a lógica do capital, onde trabalhadores perdem, reduzem ou
deixam suas terras, seu principal instrumento de trabalho, em virtude do avanço das grandes fazendas. 11
Segundo Motta (2005, p. 202) entende-se por estratégia, a arte de aplicar meios disponíveis ou explorar
condições favoráveis, visando objetivos específicos, nesse sentido, o discurso torna-se uma importante
ferramenta, onde expressões „adequadas‟ são utilizadas para a configuração de determinadas ações de diferentes
11
simbólica da modernidade, que coloca o tradicional em oposição ao moderno, percebendo-os
como um resquício do passado, tendendo ao desaparecimento, vendo, portanto, o tradicional
como uma negatividade, contrário a ideologia do progresso. Para Cruz (2007, p. 94)
Essas populações passam a ser classificadas como tendo modos de vida
„tradicionais‟, por estarem pautadas em outras temporalidades históricas e
configuradas em outras formas de territorialidades e ainda por terem modos
de vida estruturados a partir de racionalidades econômicas e ambientais com
saberes e fazeres diferenciados da racionalidade capitalista.
Nessa perspectiva, aqueles que não incorporam- se à racionalidade capitalista estão
destinados a desaparecer; outras formas de racionalidades, com outras formas de
organizações, de saber, são percebidas como arcaicas, primitivas, destoando da ideia de
progresso e modernidade, são vistas como inferiores. Para os faxinalenses, até mesmo as
ações promovidas por órgãos oficiais, que deveriam atender as especificidades dos grupos, os
enquadram em projetos que não reconhecem suas práticas socioculturais. Souza (2009, p. 9),
ao referir-se à aplicação do ICMs ecológico nos faxinais enquadrados na ARESUR12
diz
O que se observa é a tentativa por parte das prefeituras que administram o
ICMs ecológico, pretensamente escamoteá-lo ou aplicá-lo, sempre
parcialmente, em ações que se destinam a “superar” o “atraso” das
“comunidades faxinalenses” com investimentos na “modernização da
produção” estimulando desta forma a intensificação de técnicas agrícolas
promotoras de “iniciativas individualizadas”, que concorrem com as formas
de uso comum dos recursos naturais e fragilizam as práticas jurídicas
tradicionais.
Estas ações acabam por fragilizar as práticas faxinalenses, visto que, não enfatizam
uma política identitária territorial, ao contrário, apontam em sua maioria, para uma política de
modernização tecnológica nos faxinais, buscando, segundo Souza (2009, p. 41), “ajustá-los a
uma agricultura familiar moderna com enfoque nos efeitos e não nas causas”, impelindo ao
abandono de suas práticas ao promoverem tecnologias produtivas que as descartam.
grupos, sendo que, o uso estratégico do discurso é amplamente visualizado nas lutas no campo, tanto por
proprietários, Estado e também pelos Movimentos sociais rurais. 12
Faxinais enquadrados como ARESUR (Área Especial de Uso Regulamentado), passam a ser reconhecidos pelo
poder público, porém isso não implica no reconhecimento de suas práticas socioculturais e nem o atendimento de
demandas por políticas diferenciadas que atendam as suas territorialidades específicas. Recebem recursos do
ICMs ecológico, trata-se de um incentivo, direto e indireto à conservação ambiental (SOUZA, 2009, p. 8).
12
Contrastando com a luta dos povos faxinalenses, que afirmam sua identidade enquanto forma
de reconhecimento social de sua diferença, no sentido de manter suas especificidades,
estrategicamente, dando visibilidade a elas. Identidade e diferença operam juntas no campo do
simbólico, demarcando, (re)construindo e definindo territorialidades.
Souza (2009, p. 17) entende o conceito de „territorialização‟ enquanto “um processo
de reorganização decorrente de situações de conflito territorial, envolvendo povos e
comunidades tradicionais, que historicamente se contrapuseram ao modelo agrário
exportador, sendo reapropriado e reinterpretado pelos agentes sociais faxinalenses, que ao
mobilizarem-se pela defesa das suas práticas, dão significação própria ao conceito, inferindo
assim, em diferentes territorialidades ou „territorialidades específicas‟ dos faxinalenses, não
devendo incidir em generalizações, visto que essas territorialidades são construídas à partir do
sentimento de pertença
De outro modo, ao usarmos a combinação entre elementos objetivos
característicos, mesmo observados isoladamente, tal como o criatório comum,
paisagens, cercas, portões, “mata-burros”, e objetivarmos os elementos
identitários manifestados por processos de territorialização que expressam
mobilizações em defesa e ampliação dos territórios de pertencimento, abre-se
a possibilidade da inclusão de faxinais até então considerados “extintos” pelos
levantamentos oficiais pelo fato de não possuírem as características de um
criador “comunitário”, segundo as definições teóricas e operativas vigentes
(SOUZA, 2009, p. 25).
Há deslocamentos na categoria de povos tradicionais quando seu sentido deixa de
referir-se apenas a questões físicas e materiais e passa relacionar-se com consciência
identitária, a existência coletiva e articulação política-organizativa passa a abranger outros
grupos e outros sujeitos até então invisibilizados. Segundo Souza (2009, pp. 21-22), o
tradicional é acionado enquanto uma demanda do presente, sendo uma maneira de existir
coletivamente, por mais que os atributos que compõem essa coletividade estejam ameaçados
ou não mais presentes.
Em consonância com as representações dos agentes sociais, onde o sentimento de
pertencimento é considerado e manifestado, os faxinais se encontram (Souza, 2009)
organizados em quatro categorias situacionais e que expressam as diferentes territorialidades e
13
seus processos de (des)territorialização. A situação 1 diz respeito aos faxinais cuja
territorialidade específica contempla grandes extensões territoriais, que possuem “criador
comum aberto”, onde “criações altas e baixas” o acessam livremente, diferindo da situação 2,
onde o criador comum encontra-se cercado, circulando criações “altas” e “baixas”, delimitado
fisicamente por cercas de uso comum, valos, mata-burros, portões e rios (SOUZA, 2009).
A situação 3 caracteriza-se pelo “fechamento” com cercas de 4 fios de arame13
nas
divisas de algumas ou todas as propriedades, logo, as áreas antes destinadas ao “criador
comum”, são fechadas, havendo, portanto, forte limitação “ao livre acesso” dos animais,
predominado “criações altas”, criações baixas, são mantidas em “mangueirões familiares” ou
em chiqueiros. Indicados como responsáveis pelo “fechamento” do livre acesso, a
fumicultura, granjas de suínos e aves, além de chacreiros estão fortemente presentes nesses
faxinais (SOUZA, 2009).
Por fim, a categoria 4 indica a obstrução do livre acesso, em virtude de conflitos e
tensões, sendo assim, o uso comum dos recursos naturais fica restrito aos limites da
propriedade privada, o uso comum pela criação “baixa ou alta” ocorre somente pelo grupo
familiar ou doméstico, porém permanece alguns traços simbólicos, como mata-burros,
portões, cercas para criações “baixas”, entre outros. Configura uma situação limite, de
usurpação do território, restando-lhes apenas a memória coletiva e alguns traços simbólicos,
os entrevistados relatam estratégias dos “faxinalenses” para evitar a ruptura da unidade social,
resistindo na defesa de sua territorialidade.
Ao inserir critérios identitários como forma de reconhecimento social, territórios de
pertencimento são construídos pelos agentes sociais, e diferentes processos de
territorialização são detectados, demonstrando que os faxinais não desapareceram ou foram
cooptados totalmente pelo avanço das grandes propriedades e da lógica do capital, a
persistência da expressão identitária reinventa a reprodução e a existência no faxinal. Logo, o
13
As leis sobre cercamentos entram no código civil de 1916. Expedido em 1919 o artigo 588 determina que a
obrigação de cercar as propriedades para deter, em seus limites, os animais domésticos cabe ao criador ou
possuidor deles, porém, variando quanto à adoção e aplicação de região para região. Para Campigoto;
Sochodolak (2009, p. 205) a lei dos 4 fios representou um duro golpe contra a criação em regime extensivo e,
principalmente, contra o sistema de invernada, porém não teve a mesma repercussão no modo de vida
faxinalense, “acontece que, normalmente, considera-se que, no sistema faxinal, os animais são criados à solta”,
sem cercas, as cercas não eram desconhecidas pelos faxinalenses, sendo que, atualmente ela é característica
básica dos faxinais, dividindo áreas de plantar e de criar.
14
conceito de identidade torna-se forte aliado e imprescindível na (re)configuração de
territorialidades “faxinalenses”.
Para Cruz (2007, p. 104) a construção de uma identidade territorial pressupõe
fundamentalmente dois elementos: a) O espaço de referência identitária, que diz respeito ao
recorte espaço-temporal onde se realiza a experiência social e cultural, onde são forjadas as
práticas materiais e as representações espaciais que constroem o significado e o sentimento de
pertença dos indivíduos ou grupos em relação a um território. b) A consciência socioespacial
de pertencimento, onde os laços de solidariedade e de unidade que constituirão o sentimento
de pertencimento de indivíduos ou grupo em relação a um território. Trata-se de uma
construção histórica
No que diz respeito à consciência de pertencimento a um lugar, a um
território, essa é construída a partir das práticas e das representações
espaciais que envolvem ao mesmo tempo o domínio funcional-estratégico
sobre um determinado espaço (finalidades) e a apropriação
simbólico/expressiva do espaço (afinidades/afetividades).
Assim, os faxinais se transformam em uma região de conflitos. Pensando a
conceituação de região, uma possibilidade de analisar as discussões referentes a esta
abordagem compreende os estudos de Janaina Amado (1990, p. 10), que faz apontamentos
sobre a relação com o espaço territorial:
Região refere-se a um espaço particular, onde haverá um contexto de
organização social, estando articulada em cenários sociais, pensando as
dificuldades do trabalho conceitual que tange o regional, compreendendo
que existe uma diversidade de organização do espaço e a necessidade de
entender e ordenar a diferenciação do espaço14
terrestre.
14
Na abordagem de Raffestin (1993, p. 143-144), o território se forma à partir do espaço, ao se apropriar de um
espaço, de forma concreta, ou pela representação, o sujeito territorializa o espaço. O espaço revela as relações de
poder dentro de seus atos e apropriação, territorializando-se. Para Barros (p. 26), o historiador não está isento
dessa apropriação, com a apropriação historiográfica “os estatutos se transfiguram e os objetos se deslocam”,
assim, o historiador se apropria de um espaço que anteriormente não lhe pertencia, constituindo o seu território,
para ele ao estabelecer um recorte (físico, temporal, documental, entre outros) o historiador define um território
historiográfico. Nessa perspectiva, um importante estudo de Francisco Carlos Teixeira da Silva e Maria Yedda
Linhares sobre as relações entre Região e História Agrária, demonstra que as regiões nos estudos agrários devem
ser construídas, através de diferentes mecanismos, inclusive, o social. “O pesquisador não deveria prender-se a
limites fisiogeográficos ou administrativos, procedendo sempre que necessário, a redução e/ou ampliações do
raio de ação” (SILVA; LINHARES, 1995, p. 25).
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Já para Bourdieu (1989), a ideia de região tem como sentido a construção mediada
por forças que lutam em um determinado espaço, as práticas desses sujeitos sociais estão
inseridos dentro de possibilidades de reconhecimento de suas fronteiras. Ele afirma que existe
uma construção imaginária em torno do espaço, o engajamento simbólico reflete os
significados pertinentes de uma determinada região, o território é um contexto social e está
relacionado com a circulação de práticas culturais e suas diferenças relacionadas a seus
integrantes.
Segundo Gilbert (1988, p. 210), “região é definida com um conjunto específico de
relacionamentos culturais entre um determinado grupo e lugares, sendo uma apropriação
simbólica de uma porção de espaço por um determinado grupo identitário”. Além disso, de
acordo com Bourdieu (1989), a ideia de região tem como sentido a construção mediada por
forças que lutam em um determinado espaço, as práticas desses sujeitos sociais estão
inseridos dentro de possibilidades de reconhecimento de suas fronteiras. Nesse sentido, a
região é concebida como um espaço de atuação, onde ocorrem os enfrentamentos políticos, as
lutas pelo poder, para Albuquerque Jr (2008, p. 58)
Falar em região implica em se perguntar por domínio, por dominação, por
tomada de posse, por apropriação. Falar em região é também falar em
subordinação, em exclusão, em desterramento, em banimento. Falar em
região é se referir aqueles que foram derrotados em seu processo de
implantação, àqueles que foram excluídos de seus limites territoriais ou
simbólicos, àqueles que não fazem parte dos projetos que deram origem ao
dado recorte regional, falar de região implica em reconhecer fronteiras, em
fazer parte do jogo que define o dentro e o fora: implica em jogar o jogo do
pertencimento e do não pertencimento
Ao situar os faxinais na região dos conflitos, ele deixa de ser pensado na perspectiva
da imobilidade, da fixidez, há a desnaturalização do legitimado, o faxinal passa, não mais a
ser concebido reduzido a dimensões físicas, e sim como um espaço da resistência, do
engajamento de forças sociais, concordando, portanto, com a concepção de Certeau (1994) de
que a região é um espaço praticado.
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Considerações
Procurou-se discutir aqui o processo de organização de unidades sociais, diante de
antagonistas que, com pretensões de concentração, usurpam e expropriam seus territórios.
Essas unidades, porém, não incidem em representações de totalidades homogêneas, sendo
atravessada, como reflexo do externo, por antagonismos internos, principalmente, no que se
refere aos recursos básicos no interior das mesmas. Articular as noções de propriedade
privada e uso comum, marcado por laços de reciprocidade e cooperação tornaram-se desafios
para os faxinalenses, num universo que introduz nos indivíduos o individualismo. Porém,
como já discutido, trata-se de uma lógica econômica específica, onde o comunal não implica
em coletivo.
Na luta pelo reconhecimento de suas territorialidades, identidades coletivas vão
revelando-se, como resultado das próprias lutas, construídas a partir de uma consciência de
pertencimento socioespacial. Buscam, a partir das violações que sofrem em seus territórios,
criar mecanismos de sobrevivência, num cenário de fortes conflitos e tensões sociais, onde as
batalhas, infelizmente, não são travadas totalmente no campo do simbólico.
Ao (re)construírem territórios de pertencimento, os faxinalenses agem, na tentativa
de reproduzirem culturalmente e socialmente suas práticas tradicionais, principalmente no que
refere-se ao uso comum dos recursos básicos. Além disso, ao evidenciarem sua existência
social contestam as interpretações evolucionistas e economicistas, que indicavam o
desaparecimento dos faxinais.
Assim, as noções de „território‟ e „regiões‟ dotadas de mobilidade, permitem a
construção e desconstrução do já concebido, a partir da organização política de seus atores,
que na luta em prol da defesa de seus territórios e manutenção da sua organização social,
ativam noções conceituais e discursivas, pertinentes para os conflitos simbólicos atravessados
por relações de poder.
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