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1 Território e região: os faxinais e a ativação da noção de território Marisangela Lins de Almeida 1 Rodrigo dos Santos 2 Ancelmo Schörner 3 Resumo: Existentes na região centro-sul do Estado do Paraná, os faxinais são considerados uma forma de organização camponesa, tendo sua formação caracterizada principalmente pelo uso comum da terra (de criar) e dos recursos naturais, para Campos (2000) o direito de uso comum, independente de qualquer regime jurídico, está relacionado ao direito consuetudinário, demonstrando haver uma estreita relação entre costume, lei e direito de uso comum, como percebe-se são estruturados não somente relacionados a aspectos ambientais e econômicos, mas relacionados a questões culturais e sociais. Considerado como um sistema atrasado e tendendo ao desaparecimento, os faxinais resistem ao avanço do agronegócio que coloca em risco sua sobrevivência. Assim, ativar o conceito de território, entendido como mediação espacial das relações do poder em suas múltiplas escalas e dimensões se define por um jogo ambivalente e contraditório entre desigualdades sociais e diferenças culturais, se realizando de maneira concreta e simbólica, sendo, ao mesmo tempo, vivido, concebido e representado de maneira funcional e/ou expressiva pelos indivíduos ou grupos (CRUZ, 2007, p. 102), torna-se para esses povos tradicionais uma tática de sobrevivência, já que enfrentam inúmeros obstáculos e estão envoltos em conflitos com diversos antagonistas (plantadores de soja, madeireiros pinus e eucaliptos e chacreiros) e lutas entre diferentes forças sociais e interesses distintos. Segundo Almeida (2004) a própria categoria de povos tradicionais conheceu deslocamentos à partir de 1988, relacionando-os a consciência identitária, ou seja, designam grupos que assim se definem e manifestam consciência de sua condição, indicando, portanto, sujeitos sociais com existência coletiva e articulados pelo critério político- organizativo. O que mais chama a atenção dos pesquisadores é o fato de o faxinal se 1 Graduada em História (UNICENTRO), Especialista em Didática e Metodologia do Ensino Superior (UCP), Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). E-mail: [email protected]. 2 Graduado em História (UNICENTRO), Especialista em Educação do Campo (ESAP), Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), bolsista da coordenação de aperfeiçoamento de pessoal de nível superior- Capes. E-mail: [email protected]. 3 Doutor em História, Professor do Departamento e do Programa de Pós-graduação em História da UNICENTRO, campus de Irati/PR. Área de atuação: História do Brasil / história regional. E-mail: ancelmo. [email protected].

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Território e região: os faxinais e a ativação da noção de território

Marisangela Lins de Almeida1

Rodrigo dos Santos2

Ancelmo Schörner3

Resumo:

Existentes na região centro-sul do Estado do Paraná, os faxinais são considerados uma forma

de organização camponesa, tendo sua formação caracterizada principalmente pelo uso comum

da terra (de criar) e dos recursos naturais, para Campos (2000) o direito de uso comum,

independente de qualquer regime jurídico, está relacionado ao direito consuetudinário,

demonstrando haver uma estreita relação entre costume, lei e direito de uso comum, como

percebe-se são estruturados não somente relacionados a aspectos ambientais e econômicos,

mas relacionados a questões culturais e sociais. Considerado como um sistema atrasado e

tendendo ao desaparecimento, os faxinais resistem ao avanço do agronegócio que coloca em

risco sua sobrevivência. Assim, ativar o conceito de território, entendido como mediação

espacial das relações do poder em suas múltiplas escalas e dimensões se define por um jogo

ambivalente e contraditório entre desigualdades sociais e diferenças culturais, se realizando de

maneira concreta e simbólica, sendo, ao mesmo tempo, vivido, concebido e representado de

maneira funcional e/ou expressiva pelos indivíduos ou grupos (CRUZ, 2007, p. 102), torna-se

para esses povos tradicionais uma tática de sobrevivência, já que enfrentam inúmeros

obstáculos e estão envoltos em conflitos com diversos antagonistas (plantadores de soja,

madeireiros – pinus e eucaliptos – e chacreiros) e lutas entre diferentes forças sociais e

interesses distintos. Segundo Almeida (2004) a própria categoria de povos tradicionais

conheceu deslocamentos à partir de 1988, relacionando-os a consciência identitária, ou seja,

designam grupos que assim se definem e manifestam consciência de sua condição, indicando,

portanto, sujeitos sociais com existência coletiva e articulados pelo critério político-

organizativo. O que mais chama a atenção dos pesquisadores é o fato de o faxinal se

1 Graduada em História (UNICENTRO), Especialista em Didática e Metodologia do Ensino Superior (UCP),

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Centro-Oeste

(UNICENTRO). E-mail: [email protected]. 2 Graduado em História (UNICENTRO), Especialista em Educação do Campo (ESAP), Mestrando do Programa

de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), bolsista da

coordenação de aperfeiçoamento de pessoal de nível superior- Capes. E-mail: [email protected]. 3 Doutor em História, Professor do Departamento e do Programa de Pós-graduação em História da

UNICENTRO, campus de Irati/PR. Área de atuação: História do Brasil / história regional. E-mail: ancelmo.

[email protected].

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caracterizar como um território composto e complexo que combina uso comum de recursos e

apropriação privada da terra, além da preservação ambiental. Dessa forma, para analisar o

território de qualquer grupo, precisa-se de uma abordagem histórica que trata do contexto

específico em que surgiu e dos contextos em que foi defendido e/ou reafirmado (LITLLE,

2002, p. 254). Por isso, nos estudos relacionados ao rural operar com os conceitos de território

e regiões torna-se imprescindível, já que, grande parte dos movimentos sociais no campo

agem no sentido de relativizar as divisões político-administrativas. Envoltos em conflitos

relacionados à terra, os faxinalenses passam a ativar a noção de territorialidade, que segundo

Almeida (2004) atuará como fator de identificação, defesa e força. A dimensão física é

articulada a dimensão simbólica, o sentido de pertencimento e identidade territorial é ativado,

o território passa a ser o local onde se constroem laços de identidade.

Palavras-Chave: Faxinais, Território, Identidade.

Introdução

Esse texto é o resultado das discussões realizadas na disciplina de História e Cultura

dos Povos Tradicionais, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade

Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO), tendo como área de concentração a perspectiva das

regiões e seus elementos constituintes. Pretende-se refletir sobre questões teóricas que

envolvem a noção de território, enfatizando as discussões presentes nas demandas identitárias

que permeiam o processo de territorialização nos faxinais. Os conceitos de Território e

Identidade serão os elementos norteadores dessa discussão.

Ao discutir sobre estes conceitos, apresentando as principais concepções teóricas

sobre o assunto procura-se adentrar no universo de contestação dos faxinalenses, que, na

atualidade, a partir de sua organização política, reivindicam o reconhecimento de seus direitos

com base na concepção da diferença. Nesse sentido, ativar a noção de território a partir do

sentido de pertencimento alia-se ao processo de reconhecimento, sobrevivência e da

legitimidade das práticas dos povos tradicionais.

Deste modo, compreende-se o território, enquanto dotado de mobilidade, podendo

ser construído e descontruído, ligado à política e ao poder, é construído socialmente, logo,

vincula-se a apropriação do espaço, de forma concreta ou simbólica, onde “o território é

gerado á partir do espaço que o ser humano territorializa” (MOTTA, 2005, p. 471). A

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expressão dessa territorialidade, segundo Little (1994), não reside na figura de leis ou títulos,

mas se mantém viva na memória coletiva que incorpora dimensões simbólicas e identitárias

na relação do grupo com sua área, dando profundidade e consistência temporal ao território.

Pretendemos pensar isso a partir dos Faxinais.

Existentes na região Centro-Sul do Paraná, os faxinais são considerados uma forma

de organização camponesa, possuindo como característica principal o uso comum das terras

de criar.

Etmologicamente, a expressão faxinal origina-se do termo italiano „fascina‟

que significa pequeno feixe de lenha, resultante da limpeza das matas para

cultivo de lavouras. Faxinal (faxina+al.) significará, então, o conjunto de

faxinais, ou seja, região de campo, entremeada por pequenos aglomerados de

árvores, esses denominados de capões ou capoeirões. Trata-se, da designação

de um tipo de panorama, composto de campos com matas pouco densas

(CAMPIGOTO; SOCHODOLAK, 2009, p. 187).

“Sistema Faxinal”: Implicações e problemáticas

É importante, num primeiro momento, fazer a dissociação entre as expressões

“sistema faxinal” e “terras tradicionalmente ocupadas”, visto que esta aproxima-se com a

questão identitária, associando-se a um território de pertencimento, enquanto que, “sistema

faxinal” aponta para um caráter economicista e determinista.

Segundo o decreto estadual do Paraná (1997, p. 1), “entende-se por “Sistema

Faxinal”: o sistema de produção camponês tradicional, característico da região Centro-Sul do

Paraná”, possuindo como traço marcante o uso coletivo da terra para produção animal e a

conservação ambiental. Fundamentando-se na integração de três componentes: a) produção

animal coletiva, à solta, através dos criadouros comunitários; b) produção agrícola –

policultura alimentar de subsistência para consumo e comercialização; c) extrativismo

florestal de baixo impacto - manejo de erva-mate, araucária e outras espécies nativas.

A definição oficial de “sistema faxinal” não comporta aspectos identitários, a

dimensão cultural dos grupos não é considerada. Segundo Souza (2009, p. 16), a expressão

indica uma afirmativa em que a identidade coletiva do grupo não é

considerada, e sim, um sistema ou estrutura, antes subsidiária e dependente

de um modelo de produção dominante do que produto social engendrado de

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forma relativamente autônoma pelo campesinato frente conflitos abertos

pelo acesso e uso aos recursos essenciais

Sendo assim, não deixa margem para a atuação dos sujeitos, ao contrário, os percebe

enquanto controlados por um sistema, desprovidos de autonomia social e política. O

faxinalense, dentro dessa categoria, é pensado como passivo. Segundo Souza, (2009, p. 17)

nessa perspectiva, “o agente social permanece indistinto dentro da categoria camponês, inerte

as investidas do capital, sujeitando-se a toda forma de manipulação e funcionalidade”4.

A própria expressão faxinalense denuncia o contrário, pois demonstra a organização

política e social do grupo, de acordo com as concepções de Souza (2009, p. 16), a expressão

faz parte da “construção do sujeito social mobilizado, objetivado em um movimento social”,

seguindo um critério de autodefinição usada estrategicamente para marcar sua diferença,

passando a ser utilizada a partir da organização política dos faxinalenses.

A nova estratégia dos movimentos sociais, segundo Almeida (2004, p. 22), é a

designação dos sujeitos da ação não mais atrelada à conotação política do termo camponês,

politiza-se termos e denominações locais e específicas à medida que as realidades locais

também politizam-se. Ao adotarem a designação coletiva as denominações pelas quais se

autodefinem e são apresentadas no cotidiano, os agentes sociais se instituem enquanto sujeitos

de ação.

Além de inferir sobre a inércia dos sujeitos faxinalenses, diante do avanço do

capitalismo no campo, a expressão indica a dissolução da forma tradicional da organização

camponesa faxinalense a partir do avanço da agricultura moderna em seus territórios, que

culminaria na desagregação total dos faxinais. Perspectiva evidente nas análises de Chang

(1988, pp. 108-109).

Os criadouros comuns, próprios para a criação extensiva de animais, dentro

do processo de intensificação da produção tendem a desaparecer, por não

serem mais indispensáveis, ou no mínimo, úteis para a produção animal [...]

Finalmente [...] dentro de 10 a 12 anos, o sistema faxinal não mais fará parte

4 Para Almeida (2004, p. 25) de certo modo, está-se diante da fabricação de novas unidades discursivas que

substantivam e diversificam o significado de „terras tradicionalmente ocupadas‟, além de refletirem as

mobilizações políticas mais recentes, chamando a atenção para os sujeitos da ação e suas formas organizativas.

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do setor produtivo rural do Paraná, e sim será lembrado, talvez, como parte

da história da agricultura deste Estado

Para Souza (2009, p. 15) a abordagem teórica utilizada por Chang é pautada numa

discussão sobre os faxinais numa óptica compatível com as etapas desenvolvimentistas dos

faxinais, que os apresentam envoltos em três momentos ou „fases‟: gênese, consolidação e

desagregação. Nessa perspectiva linear, evolutiva e contínua5 a tendência é a fragmentação e

o desmantelamento dos faxinais.

De outra forma, o conceito de terras tradicionalmente ocupadas denota o que

até então encontrava- se na invisibilidade, as territorialidades específicas

faxinalenses, ocultadas e discretamente manifestas. Visto que acionam e

vinculam a existência dos faxinais a um conflito entre modos de produção, o

que representam, na realidade, não pode ser lido como oposição entre

tradicional e moderno, mas produtos de antagonismos e tensões resultadas

do próprio desenvolvimento do capitalismo (SOUZA, 2009, p. 16).

Assim como a expressão “faxinalense” o conceito de “terras tradicionalmente

ocupadas” faz parte da construção do sujeito mobilizado politicamente, sendo

estrategicamente importante na construção de tal movimento social, pois relativiza as

fronteiras6 político-administrativas ao considerar as diversas territorialidades faxinalenses.

Contrário à conotação de “sistema faxinal”, a expressão coloca os sujeitos no campo da ação,

do conflito, da atuação e não simplesmente subjugado às implicações do capital. Para

Almeida (2004, p. 10) “a noção de “tradicional” não se reduz à história e incorpora as

identidades coletivas redefinidas situacionalmente numa mobilização continuada, assinalando

que as unidades sociais em jogo podem ser interpretadas como unidades de mobilização”.

5 A ideia de continuidade apresentada em oposição a descontinuidade, não havendo, portanto, espaço para

rupturas, engessando o sujeito diante do avanço do capital e da “modernidade”. 6 Fronteiras relativizadas fogem do conceito habitual, ligado ao físico, indicando um limite entre duas áreas,

países ou regiões físicas, servindo para indicar o início e o fim de um dado território (físico), ligado à

patrimônio, competências e soberania. A definição de uma linha, traço, ou marca divisória de natureza política

entre duas regiões, estimula a ocorrência de práticas de adaptação, afirmação, conflitos e tensões. Dentre

diversas formas de conceber as fronteiras, entende-se, que a fronteira não se resume as suas divisões geográficas,

fronteira pode ser analisada sob a ótica do simbólico, como um espaço privilegiado da produção de

antagonismos e laços de solidariedade, de negação e afirmação de identidades, da (re) elaboração de

representações, dos conflitos, entre outros (Dicionário da Terra, 2005, p. 226-227).

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Segundo Souza (2009, p. 1) não se pode afirmar com exatidão o número de faxinais

existentes no sul do Brasil. Apesar do conhecimento sobre a situação dos faxinais aumentar

significativamente não se pode inferir em conclusões definitivas sobre os mesmos.

Faxinais e o uso comum

Segundo os apontamentos de Campos (2000, p. 1), apesar da dimensão territorial, em

todas as regiões do Brasil existiram ou continuam a existir formas de uso comum da terra e

demais bens naturais, as transformações econômico-sociais do país fizeram com que as áreas

onde haviam essas terras desaparecessem, parcialmente ou completamente, porém muitas

delas continuam existindo. Assim, ele define tais terras

Em termos gerais, a terra de uso comum tem características associadas a uma

terra do povo- uma terra que é de todos, no entanto, não se constitui numa

terra pertencente ao povo, no sentido de haver a propriedade coletiva de um

grupo, uma comunidade, ou várias comunidades em conjunto. Trata-se do

uso comum de determinados espaços por inúmeros proprietários, individuais

independentes, servindo-lhes como “suplemento”, sendo, do mesmo modo,

utilizado por pessoas ou grupos de não proprietários (CAMPOS, 2000, p. 1)

Ressalta-se, que não se trata de propriedade coletiva, mas do uso comum de

determinados espaços, não devendo, portanto, ser confundida com propriedade coletiva. Para

Almeida (2009, p. 39) as modalidades de uso comum da terra, designam situações nas quais o

controle dos recursos básicos não é exercido de maneira livre e individual por um

determinado grupo doméstico de pequenos produtores diretos ou por um dos seus membros.

Sendo que o controle dos recursos naturais ocorre por meio de normas específicas, instituídas

e acatadas de maneira consensual pelo grupo que compõem a unidade social, combinando o

uso comum dos recursos e a apropriação privada de bens.

A atualização dessas normas ocorre em territórios próprios, cujas delimitações

são socialmente reconhecidas, inclusive pelos circundantes. A territorialidade

funciona como fator de identificação, defesa e força. Laços solidários e de

ajuda mútua informam um conjunto de regras firmadas sobre uma base física

considerada comum, essencial e inalienável, não obstante disposições

sucessórias, porventura existentes (ALMEIDA, 2009, p. 39).

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A noção de território é entendida aqui não por sua associação com espaço físico;

vínculos afetivos, identidades, saberes ambientais também permeiam a compreensão desta

expressão, extrapolando o sentido estritamente físico da mesma e adentrando o campo do

simbólico. Então, formas de ocupação e manutenção desses espaços revelam conflitos, esses,

envoltos por relações de poder e travados, geralmente, no campo do simbólico. Desse modo,

refletir sobre território implica em operar com as concepções de espaço simbólico7 e poder

simbólico.

O poder simbólico, pensado aqui a partir das reflexões de Bourdieu (2000, p. 11),

visto, portanto, como um poder de construção da realidade, tende a estabelecer uma ordem,

um sentido no mundo social e, por conseguinte, um „consenso‟ que permite a reprodução da

ordem social. As diferentes classes e frações de classes disputam a definição do mundo social,

conforme seus interesses, nessa luta simbólica, a violência simbólica assegura a dominação de

uma classe sobre outra, inculcando valores simbólicos e os legitimando.

Para Campos (2000, p. 2), o direito de uso comum, independente de qualquer regime

jurídico, está relacionado ao direito consuetudinário, demonstrando haver uma estreita relação

entre costume, lei e direito de uso comum. Dessa forma, não somente estão relacionados a

aspectos ambientais e econômicos, mas relacionados a questões culturais e sociais. Logo, os

conflitos que envolvem o uso comum da terra nos faxinais encontram-se envoltos no

simbólico, apontando para a emergência de novos movimentos sociais que lutam pela

afirmação de suas identidades territoriais que, segundo Cruz (2007, p. 95)

As populações „tradicionais‟ se organizam, ganhando visibilidade e

protagonismo, se constituindo e afirmando como sujeitos políticos na luta

pelo exercício ou mesmo pela invenção de direitos a partir de suas

territorialidades e identidades territoriais. Essas lutas são lutas por

redistribuição e por maior igualdade de acesso aos recursos materiais (lutas

por „territórios da igualdade‟), bem como pelo reconhecimento da

legitimidade de diferenças e identidades culturais expressas nos diferentes

modos de produzir e nos diferentes modos de viver e de existir de tais

populações (lutas por “territórios da diferença”).

7 Espaço simbólico concebido a partir das reflexões de Bourdieu (2000), pensado como espaços de

representações, de criação de sentidos e regiões.

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Nesse sentido, novos sujeitos políticos são constituídos, povos “tradicionais” atuam

contra as diferentes formas de subalternização material e simbólica, contra preconceitos e

estigmas e pela afirmação de suas identidades, essas que são construídas na afirmação de sua

territorialidades, (re)significando sua existência, num processo de rememoração do passado,

buscando na tradição, nos costumes e na memória sua legitimidade, não presas a esse

passado, sinalizam para o presente, à partir de sua participação afirmativa e organização

política. Nesse processo, a atuação conflituosa dos antagonistas (madeireiras, plantadores de

pinus e soja, granjeiros e chacreiros) age, também, no sentido de fortalecer os laços comuns e

afirmar suas territorialidades.

Os relatos dos entrevistados dão conta de um passado comum, permeado de

violência e disputas, onde os „faxinalenses‟ resistem permanentemente

lutando contra a „privatização‟ do uso comum da terra, desvelando as

interpretações que tendem a fazer passar por naturais os processos de

mercantilização e transformação forçada de seus territórios, apontando para

agentes sociais (fazendeiros, empresas reflorestadores, chacreiros...) e suas

construções sociais de dominação, entre elas as diversas formas de violência

simbólica e material, sobretudo, as formas de imobilização da força de

trabalho e domínio da terra. Há em decorrência disso uma politização da

história que traz o passado para o presente, induzindo explicitamente o

confronto entre duas modalidades de uso e apropriação dos recursos básicos

postos em conflito (SOUZA, 2009, p. 8).

Souza (2009, p. 7), ao discutir sobre a identidade „faxinalense‟, apresentando como

critério identitário a autodefinição, reconhece que a forma de percepção coletiva dos conflitos,

proporciona coesão social do grupo e estreita os laços de solidariedade, fortalecendo uma

ideia de comunidade apoiada em critérios políticos-organizativos, construindo socialmente

seu território, portanto, os conflitos contemporâneos relacionados ao uso da terra, fortalecem

os laços comunitários e contribuem com o processo de construção social do território.

Verifica- se, assim, as reações dos agentes sociais faxinalenses, agindo no sentido da defesa e

manutenção da prática de uso comum da terra. Para Silva (2004, p. 82)

A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as

operações de incluir e excluir. A identidade e a diferença se traduzem, assim,

em declarações sobre quem pertence e quem não pertence, sobre quem está

incluído e quem está excluído, afirmar a identidade significa demarcar

fronteira, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora

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Deste modo, a ativação da noção de identidade territorial acontece, para os povos

faxinalenses, a partir dos antagonistas, geralmente motivados pelo avanço do capital sobre

seus territórios. Segundo Souza (2009, p. 7), na concepção dos faxinalenses, geralmente essa

intervenção conflituosa ocorre com „gente de fora‟8, que adquirem terras dentro do criador

comum para fechá-las, os denominados chacreiros, motivados pela expansão do mercado de

terras, ou quando obtém terras de planta e implantam monocultivos de soja, eucalipto, pinnus,

milho, batata. Assim, a construção social da identidade relaciona-se diretamente ao

antagonismo vivenciado.

Salienta-se que, a identidade é pensada aqui, segundo as concepções teóricas de Cruz

(2007, p. 100), que a percebe em seu caráter estratégico, sujeito a manipulação de indivíduos

ou grupos sociais, onde são, ao mesmo tempo, produtos e produtoras das lutas políticas e

sociais.

Assim, o conceito de identidade não se confunde com as ideias de origi-

nalidade, tradição ou de autenticidade, pois os processos de identificação e

os vínculos de pertencimento se constituem tanto pelas tradições („raízes‟,

heranças, passado, memórias) como pelas traduções (estratégias para o

futuro, „rotas‟, „rumos‟ projetos) (CRUZ, 2007, p. 97).

Logo, pode-se inferir que as noções de diferença, identidade e poder relacionam-se, visto

que, a identidade e a diferença são o resultado de um processo de produção simbólica e

discursiva. A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua

definição – discursiva e linguística – está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas

não são simplesmente definidas: elas são impostas. Não se trata, entretanto, apenas do fato de

que a definição da identidade e da diferença seja objeto de disputa entre grupos sociais

8 Para Schörner; Stelmarczuk (2010, p. 15) “É através das palavras, “nós” e “outros”, por exemplo, que as

identidades brotam-se, nutrem-se, transformam-se ou dissolvem-se”, tal perspectiva utilizada em concordância

com os pressupostos de Woodward (2000, p. 23) A identidade é produto de uma intenção, em que os objetos ou

sujeitos -“nós” e os “outros” - se constituem enquanto se comunicam. Em suma, a construção do nós identitário

pressupõe a existência do outro. O outro é a concretização da diferença, contraposto como alteridade à

identidade que se anuncia. A identidade é a construção simbólica que elabora a sensação de pertencimento,

propiciando a coesão social de um grupo, que se identifica, se reconhece e se classifica como iguais ou

semelhantes. A visualização, identificação e avaliação classificatória do outro acontece sob o signo da

estrangeiridade, e é pelo distanciamento - contrastivo, antagônico ou de semelhança - que se pode construir uma

noção de pertencimento social.

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assimetricamente situados relativamente ao poder. Na disputa pela identidade está envolvida

uma disputa mais ampla por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade, pois a

afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos

sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais

(SCHÖRNER; STELMARSCZUK, p.19)9.

Para Bauman (2005, p. 84), “A identidade é uma luta simultânea contra a dissolução

e fragmentação, uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa resoluta a ser

devorado”, logo, a identidade é colocada no campo das disputas simbólicas e materiais.

Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar certo de esta havendo uma

batalha. O campo de batalha é o lar natural da identidade. Ela só vem à luz no

tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em que desaparecem os

ruídos da refrega (BAUMAN, 2005, p. 83)

A identidade é construída subjetivamente, baseada nas representações, nos discursos,

nos sistemas de classificações simbólicas, embora não seja algo puramente subjetivo e não se

restrinja à "textualidade" e ao "simbólico". Ela não é uma construção puramente imaginária

que despreza a realidade material e objetiva das experiências e das práticas sociais como

muitos afirmam, e nem tampouco é algo materialmente dado, objetivo, uma essência

imutável, fixa e definitiva (CRUZ, 2007, pp. 98-99).

Encurralados em seus territórios, expropriados10

, perante o avanço do capitalismo e o

crescimento da lógica de reprodução do capital, para os povos faxinalenses, a ativação da

identidade territorial torna-se uma estratégia11

de sobrevivência, diante de uma visão

9 Resultado de um estudo sobre os preconceitos sofridos por faxinalenses, ao visitarem o centro da cidade de

Irati, entre as décadas de 1960 e 1970, demonstrando as diferentes territorialidades existentes dentro do mesmo

município, que se excluem, como reflexo da construção imaginária de um Paraná “desenvolvido”, onde o

interior (faxinal), simbolicamente foi se definindo como um espaço marginal, diante dessa concepção “se o lugar

é marginal, posto que periférico, quem mora nele também é marginal, onde as piadas, os preconceitos e

“ignorâncias” contra os faxinalenses procuram dar um sentido à cidade homogênea” (SCHÖRNER;

STELMARSCZUK, 2010, p. 13). 10

Expropriação entendida a partir das considerações de José de Souza Martins (1991). Para ele, quem expropria

o trabalhador é o capital, visto que, a formação de um novo tipo de propriedade agrária no século xx, a

propriedade capitalista, resulta em modificações nas forças sociais no campo brasileiro. A separação entre o

trabalhador e as coisas que ele necessita para trabalhar como: ferramentas, matérias-primas, máquinas, e

inclusive a terra. Sendo assim, a expropriação reflete a lógica do capital, onde trabalhadores perdem, reduzem ou

deixam suas terras, seu principal instrumento de trabalho, em virtude do avanço das grandes fazendas. 11

Segundo Motta (2005, p. 202) entende-se por estratégia, a arte de aplicar meios disponíveis ou explorar

condições favoráveis, visando objetivos específicos, nesse sentido, o discurso torna-se uma importante

ferramenta, onde expressões „adequadas‟ são utilizadas para a configuração de determinadas ações de diferentes

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simbólica da modernidade, que coloca o tradicional em oposição ao moderno, percebendo-os

como um resquício do passado, tendendo ao desaparecimento, vendo, portanto, o tradicional

como uma negatividade, contrário a ideologia do progresso. Para Cruz (2007, p. 94)

Essas populações passam a ser classificadas como tendo modos de vida

„tradicionais‟, por estarem pautadas em outras temporalidades históricas e

configuradas em outras formas de territorialidades e ainda por terem modos

de vida estruturados a partir de racionalidades econômicas e ambientais com

saberes e fazeres diferenciados da racionalidade capitalista.

Nessa perspectiva, aqueles que não incorporam- se à racionalidade capitalista estão

destinados a desaparecer; outras formas de racionalidades, com outras formas de

organizações, de saber, são percebidas como arcaicas, primitivas, destoando da ideia de

progresso e modernidade, são vistas como inferiores. Para os faxinalenses, até mesmo as

ações promovidas por órgãos oficiais, que deveriam atender as especificidades dos grupos, os

enquadram em projetos que não reconhecem suas práticas socioculturais. Souza (2009, p. 9),

ao referir-se à aplicação do ICMs ecológico nos faxinais enquadrados na ARESUR12

diz

O que se observa é a tentativa por parte das prefeituras que administram o

ICMs ecológico, pretensamente escamoteá-lo ou aplicá-lo, sempre

parcialmente, em ações que se destinam a “superar” o “atraso” das

“comunidades faxinalenses” com investimentos na “modernização da

produção” estimulando desta forma a intensificação de técnicas agrícolas

promotoras de “iniciativas individualizadas”, que concorrem com as formas

de uso comum dos recursos naturais e fragilizam as práticas jurídicas

tradicionais.

Estas ações acabam por fragilizar as práticas faxinalenses, visto que, não enfatizam

uma política identitária territorial, ao contrário, apontam em sua maioria, para uma política de

modernização tecnológica nos faxinais, buscando, segundo Souza (2009, p. 41), “ajustá-los a

uma agricultura familiar moderna com enfoque nos efeitos e não nas causas”, impelindo ao

abandono de suas práticas ao promoverem tecnologias produtivas que as descartam.

grupos, sendo que, o uso estratégico do discurso é amplamente visualizado nas lutas no campo, tanto por

proprietários, Estado e também pelos Movimentos sociais rurais. 12

Faxinais enquadrados como ARESUR (Área Especial de Uso Regulamentado), passam a ser reconhecidos pelo

poder público, porém isso não implica no reconhecimento de suas práticas socioculturais e nem o atendimento de

demandas por políticas diferenciadas que atendam as suas territorialidades específicas. Recebem recursos do

ICMs ecológico, trata-se de um incentivo, direto e indireto à conservação ambiental (SOUZA, 2009, p. 8).

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Contrastando com a luta dos povos faxinalenses, que afirmam sua identidade enquanto forma

de reconhecimento social de sua diferença, no sentido de manter suas especificidades,

estrategicamente, dando visibilidade a elas. Identidade e diferença operam juntas no campo do

simbólico, demarcando, (re)construindo e definindo territorialidades.

Souza (2009, p. 17) entende o conceito de „territorialização‟ enquanto “um processo

de reorganização decorrente de situações de conflito territorial, envolvendo povos e

comunidades tradicionais, que historicamente se contrapuseram ao modelo agrário

exportador, sendo reapropriado e reinterpretado pelos agentes sociais faxinalenses, que ao

mobilizarem-se pela defesa das suas práticas, dão significação própria ao conceito, inferindo

assim, em diferentes territorialidades ou „territorialidades específicas‟ dos faxinalenses, não

devendo incidir em generalizações, visto que essas territorialidades são construídas à partir do

sentimento de pertença

De outro modo, ao usarmos a combinação entre elementos objetivos

característicos, mesmo observados isoladamente, tal como o criatório comum,

paisagens, cercas, portões, “mata-burros”, e objetivarmos os elementos

identitários manifestados por processos de territorialização que expressam

mobilizações em defesa e ampliação dos territórios de pertencimento, abre-se

a possibilidade da inclusão de faxinais até então considerados “extintos” pelos

levantamentos oficiais pelo fato de não possuírem as características de um

criador “comunitário”, segundo as definições teóricas e operativas vigentes

(SOUZA, 2009, p. 25).

Há deslocamentos na categoria de povos tradicionais quando seu sentido deixa de

referir-se apenas a questões físicas e materiais e passa relacionar-se com consciência

identitária, a existência coletiva e articulação política-organizativa passa a abranger outros

grupos e outros sujeitos até então invisibilizados. Segundo Souza (2009, pp. 21-22), o

tradicional é acionado enquanto uma demanda do presente, sendo uma maneira de existir

coletivamente, por mais que os atributos que compõem essa coletividade estejam ameaçados

ou não mais presentes.

Em consonância com as representações dos agentes sociais, onde o sentimento de

pertencimento é considerado e manifestado, os faxinais se encontram (Souza, 2009)

organizados em quatro categorias situacionais e que expressam as diferentes territorialidades e

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seus processos de (des)territorialização. A situação 1 diz respeito aos faxinais cuja

territorialidade específica contempla grandes extensões territoriais, que possuem “criador

comum aberto”, onde “criações altas e baixas” o acessam livremente, diferindo da situação 2,

onde o criador comum encontra-se cercado, circulando criações “altas” e “baixas”, delimitado

fisicamente por cercas de uso comum, valos, mata-burros, portões e rios (SOUZA, 2009).

A situação 3 caracteriza-se pelo “fechamento” com cercas de 4 fios de arame13

nas

divisas de algumas ou todas as propriedades, logo, as áreas antes destinadas ao “criador

comum”, são fechadas, havendo, portanto, forte limitação “ao livre acesso” dos animais,

predominado “criações altas”, criações baixas, são mantidas em “mangueirões familiares” ou

em chiqueiros. Indicados como responsáveis pelo “fechamento” do livre acesso, a

fumicultura, granjas de suínos e aves, além de chacreiros estão fortemente presentes nesses

faxinais (SOUZA, 2009).

Por fim, a categoria 4 indica a obstrução do livre acesso, em virtude de conflitos e

tensões, sendo assim, o uso comum dos recursos naturais fica restrito aos limites da

propriedade privada, o uso comum pela criação “baixa ou alta” ocorre somente pelo grupo

familiar ou doméstico, porém permanece alguns traços simbólicos, como mata-burros,

portões, cercas para criações “baixas”, entre outros. Configura uma situação limite, de

usurpação do território, restando-lhes apenas a memória coletiva e alguns traços simbólicos,

os entrevistados relatam estratégias dos “faxinalenses” para evitar a ruptura da unidade social,

resistindo na defesa de sua territorialidade.

Ao inserir critérios identitários como forma de reconhecimento social, territórios de

pertencimento são construídos pelos agentes sociais, e diferentes processos de

territorialização são detectados, demonstrando que os faxinais não desapareceram ou foram

cooptados totalmente pelo avanço das grandes propriedades e da lógica do capital, a

persistência da expressão identitária reinventa a reprodução e a existência no faxinal. Logo, o

13

As leis sobre cercamentos entram no código civil de 1916. Expedido em 1919 o artigo 588 determina que a

obrigação de cercar as propriedades para deter, em seus limites, os animais domésticos cabe ao criador ou

possuidor deles, porém, variando quanto à adoção e aplicação de região para região. Para Campigoto;

Sochodolak (2009, p. 205) a lei dos 4 fios representou um duro golpe contra a criação em regime extensivo e,

principalmente, contra o sistema de invernada, porém não teve a mesma repercussão no modo de vida

faxinalense, “acontece que, normalmente, considera-se que, no sistema faxinal, os animais são criados à solta”,

sem cercas, as cercas não eram desconhecidas pelos faxinalenses, sendo que, atualmente ela é característica

básica dos faxinais, dividindo áreas de plantar e de criar.

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conceito de identidade torna-se forte aliado e imprescindível na (re)configuração de

territorialidades “faxinalenses”.

Para Cruz (2007, p. 104) a construção de uma identidade territorial pressupõe

fundamentalmente dois elementos: a) O espaço de referência identitária, que diz respeito ao

recorte espaço-temporal onde se realiza a experiência social e cultural, onde são forjadas as

práticas materiais e as representações espaciais que constroem o significado e o sentimento de

pertença dos indivíduos ou grupos em relação a um território. b) A consciência socioespacial

de pertencimento, onde os laços de solidariedade e de unidade que constituirão o sentimento

de pertencimento de indivíduos ou grupo em relação a um território. Trata-se de uma

construção histórica

No que diz respeito à consciência de pertencimento a um lugar, a um

território, essa é construída a partir das práticas e das representações

espaciais que envolvem ao mesmo tempo o domínio funcional-estratégico

sobre um determinado espaço (finalidades) e a apropriação

simbólico/expressiva do espaço (afinidades/afetividades).

Assim, os faxinais se transformam em uma região de conflitos. Pensando a

conceituação de região, uma possibilidade de analisar as discussões referentes a esta

abordagem compreende os estudos de Janaina Amado (1990, p. 10), que faz apontamentos

sobre a relação com o espaço territorial:

Região refere-se a um espaço particular, onde haverá um contexto de

organização social, estando articulada em cenários sociais, pensando as

dificuldades do trabalho conceitual que tange o regional, compreendendo

que existe uma diversidade de organização do espaço e a necessidade de

entender e ordenar a diferenciação do espaço14

terrestre.

14

Na abordagem de Raffestin (1993, p. 143-144), o território se forma à partir do espaço, ao se apropriar de um

espaço, de forma concreta, ou pela representação, o sujeito territorializa o espaço. O espaço revela as relações de

poder dentro de seus atos e apropriação, territorializando-se. Para Barros (p. 26), o historiador não está isento

dessa apropriação, com a apropriação historiográfica “os estatutos se transfiguram e os objetos se deslocam”,

assim, o historiador se apropria de um espaço que anteriormente não lhe pertencia, constituindo o seu território,

para ele ao estabelecer um recorte (físico, temporal, documental, entre outros) o historiador define um território

historiográfico. Nessa perspectiva, um importante estudo de Francisco Carlos Teixeira da Silva e Maria Yedda

Linhares sobre as relações entre Região e História Agrária, demonstra que as regiões nos estudos agrários devem

ser construídas, através de diferentes mecanismos, inclusive, o social. “O pesquisador não deveria prender-se a

limites fisiogeográficos ou administrativos, procedendo sempre que necessário, a redução e/ou ampliações do

raio de ação” (SILVA; LINHARES, 1995, p. 25).

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Já para Bourdieu (1989), a ideia de região tem como sentido a construção mediada

por forças que lutam em um determinado espaço, as práticas desses sujeitos sociais estão

inseridos dentro de possibilidades de reconhecimento de suas fronteiras. Ele afirma que existe

uma construção imaginária em torno do espaço, o engajamento simbólico reflete os

significados pertinentes de uma determinada região, o território é um contexto social e está

relacionado com a circulação de práticas culturais e suas diferenças relacionadas a seus

integrantes.

Segundo Gilbert (1988, p. 210), “região é definida com um conjunto específico de

relacionamentos culturais entre um determinado grupo e lugares, sendo uma apropriação

simbólica de uma porção de espaço por um determinado grupo identitário”. Além disso, de

acordo com Bourdieu (1989), a ideia de região tem como sentido a construção mediada por

forças que lutam em um determinado espaço, as práticas desses sujeitos sociais estão

inseridos dentro de possibilidades de reconhecimento de suas fronteiras. Nesse sentido, a

região é concebida como um espaço de atuação, onde ocorrem os enfrentamentos políticos, as

lutas pelo poder, para Albuquerque Jr (2008, p. 58)

Falar em região implica em se perguntar por domínio, por dominação, por

tomada de posse, por apropriação. Falar em região é também falar em

subordinação, em exclusão, em desterramento, em banimento. Falar em

região é se referir aqueles que foram derrotados em seu processo de

implantação, àqueles que foram excluídos de seus limites territoriais ou

simbólicos, àqueles que não fazem parte dos projetos que deram origem ao

dado recorte regional, falar de região implica em reconhecer fronteiras, em

fazer parte do jogo que define o dentro e o fora: implica em jogar o jogo do

pertencimento e do não pertencimento

Ao situar os faxinais na região dos conflitos, ele deixa de ser pensado na perspectiva

da imobilidade, da fixidez, há a desnaturalização do legitimado, o faxinal passa, não mais a

ser concebido reduzido a dimensões físicas, e sim como um espaço da resistência, do

engajamento de forças sociais, concordando, portanto, com a concepção de Certeau (1994) de

que a região é um espaço praticado.

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Considerações

Procurou-se discutir aqui o processo de organização de unidades sociais, diante de

antagonistas que, com pretensões de concentração, usurpam e expropriam seus territórios.

Essas unidades, porém, não incidem em representações de totalidades homogêneas, sendo

atravessada, como reflexo do externo, por antagonismos internos, principalmente, no que se

refere aos recursos básicos no interior das mesmas. Articular as noções de propriedade

privada e uso comum, marcado por laços de reciprocidade e cooperação tornaram-se desafios

para os faxinalenses, num universo que introduz nos indivíduos o individualismo. Porém,

como já discutido, trata-se de uma lógica econômica específica, onde o comunal não implica

em coletivo.

Na luta pelo reconhecimento de suas territorialidades, identidades coletivas vão

revelando-se, como resultado das próprias lutas, construídas a partir de uma consciência de

pertencimento socioespacial. Buscam, a partir das violações que sofrem em seus territórios,

criar mecanismos de sobrevivência, num cenário de fortes conflitos e tensões sociais, onde as

batalhas, infelizmente, não são travadas totalmente no campo do simbólico.

Ao (re)construírem territórios de pertencimento, os faxinalenses agem, na tentativa

de reproduzirem culturalmente e socialmente suas práticas tradicionais, principalmente no que

refere-se ao uso comum dos recursos básicos. Além disso, ao evidenciarem sua existência

social contestam as interpretações evolucionistas e economicistas, que indicavam o

desaparecimento dos faxinais.

Assim, as noções de „território‟ e „regiões‟ dotadas de mobilidade, permitem a

construção e desconstrução do já concebido, a partir da organização política de seus atores,

que na luta em prol da defesa de seus territórios e manutenção da sua organização social,

ativam noções conceituais e discursivas, pertinentes para os conflitos simbólicos atravessados

por relações de poder.

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