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TERRITÓRIO POÉTICO: MÚLTIPLOS TEMPOS NAS GRAVURAS DE ROSSINI PEREZ, ARTHUR LUIZ PIZA E FAYGA OSTROWER POETIC TERRITORY: MULTIPLE TIMES IN THE PRINTS OF ROSSINI PEREZ, ARTHUR LUIZ PIZA AND FAYGA OSTROWER Maria Luisa Luz Tavora / UFRJ RESUMO As experiências artísticas realizadas por alguns gravadores brasileiros constituem possibilidades de recolhimento e aprofundamento em materialidades e temporalidades, no processo de conexão dos suportes materiais constitutivos das obras. Fora de sua neutralidade como suporte, o papel acolhe registros de tempos em dimensões variadas. Além do tempo histórico de datação, este carrega a numeração reveladora do limite da tiragem. São marcas de tempos objetivos, próprios à gravura artística, que se integram aos tempos poéticos da imagem. Rossini Perez, Arthur Luiz Piza e Fayga Ostrower singularizam estas relações entre matéria-suporte-tempo, num experimentalismo capaz de reformulação conceitual de sua arte. PALAVRAS-CHAVE Materialidade; temporalidade; gravura artística. ABSTRACT Art experiments undertaken by some Brazilian printmakers are opportunities to contemplate and delve deeper into materialities and temporalities in the process of connecting the material support that forms the works. Beyond its neutrality as a medium, paper embraces time entries in a variety of dimensions. In addition to the historical time of dates, it carries the numbers that tell the limited number of copies. They are marks of objective times, belonging to printmaking, which integrate with the poetic times of the image. Rossini Perez, Arthur Luiz Piza and Fayga Ostrower differentiate these relationships between matter-medium-time, in an experimentalism that is able to conceptually reformulate their art. KEYWORDS Materiality; temporality; printmaking.

TERRITÓRIO POÉTICO: MÚLTIPLOS TEMPOS NAS ...anpap.org.br/anais/2017/PDF/HTCA/26encontro______TAVORA...Fayga Ostrower, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes

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  • TERRITÓRIO POÉTICO: MÚLTIPLOS TEMPOS NAS GRAVURAS DE ROSSINI PEREZ, ARTHUR LUIZ PIZA E FAYGA OSTROWER

    POETIC TERRITORY: MULTIPLE TIMES IN THE PRINTS OF ROSSINI PEREZ,

    ARTHUR LUIZ PIZA AND FAYGA OSTROWER

    Maria Luisa Luz Tavora / UFRJ

    RESUMO As experiências artísticas realizadas por alguns gravadores brasileiros constituem possibilidades de recolhimento e aprofundamento em materialidades e temporalidades, no processo de conexão dos suportes materiais constitutivos das obras. Fora de sua neutralidade como suporte, o papel acolhe registros de tempos em dimensões variadas. Além do tempo histórico de datação, este carrega a numeração reveladora do limite da tiragem. São marcas de tempos objetivos, próprios à gravura artística, que se integram aos tempos poéticos da imagem. Rossini Perez, Arthur Luiz Piza e Fayga Ostrower singularizam estas relações entre matéria-suporte-tempo, num experimentalismo capaz de reformulação conceitual de sua arte. PALAVRAS-CHAVE Materialidade; temporalidade; gravura artística. ABSTRACT Art experiments undertaken by some Brazilian printmakers are opportunities to contemplate and delve deeper into materialities and temporalities in the process of connecting the material support that forms the works. Beyond its neutrality as a medium, paper embraces time entries in a variety of dimensions. In addition to the historical time of dates, it carries the numbers that tell the limited number of copies. They are marks of objective times, belonging to printmaking, which integrate with the poetic times of the image. Rossini Perez, Arthur Luiz Piza and Fayga Ostrower differentiate these relationships between matter-medium-time, in an experimentalism that is able to conceptually reformulate their art. KEYWORDS Materiality; temporality; printmaking.

  • TAVORA, Maria Luisa Luz. Território poético: múltiplos tempos nas gravuras de Rossini Perez, Arthur Luiz Piza e Fayga Ostrower, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1531-1544.

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    As experiências artísticas realizadas por alguns gravadores brasileiros constituem

    produção de interesse no que diz respeito ao alargamento das possibilidades de seu

    meio artístico. Sendo da própria natureza da estampa a conjunção de

    temporalidades múltiplas - a criação da imagem sobre a matriz, o deslocamento

    desta para o suporte papel, sua consecução acusa presenças e ausências, tempos

    da experiência numa matéria e noutras, relevantes ou secundárias que integram o

    tempo poético da imagem e existencial de seu criador.

    Três artistas e suas gravuras, datadas dos anos 1950/70, singularizam estas

    relações entre materialidades e temporalidades diversas, subvertendo memórias

    históricas e abordagens de seus meios de expressão. Rossini Perez (1931), Arthur

    Luiz Piza (1928) e Fayga Ostrower (1920-2001) compreenderam a gravura como

    meio de especulação estética e de aprofundamento do exercício da visualidade, em

    estreita sintonia com a materialidade, tendo formulado em suas obras estruturas

    numa dimensão espaço-temporal.

    Rossini Perez: ranhuras e a não-gravura Rossini Perez, natural de Macaíba, no Rio Grande do Norte, veio nos anos 1940

    com sua família para o Rio de Janeiro em busca de tratamento de saúde em um

    centro mais avançado. Fez sua carreira artística no Rio de Janeiro, participando da

    geração que, nos anos 1950/70, contribuiu para a ativação da gravura artística.

    O interesse pelas artes visuais esteve presente desde sua infância, passada em

    Macaíba (RN) e adolescência em Fortaleza (CE). As revistas que seu pai

    colecionava, com as quais se encantava com artistas como Goya e Velazquez,

    concorreram para esta aproximação. Reproduzia em lençóis e lenços as imagens

    destes mestres que o seduziam. Atividade sempre muito solitária de quem não podia

    frequentar a escola por razões de saúde.

    No Rio, Rossini realizou o tratamento necessário, passando a frequentar cursos

    livres de desenho e pintura. Um primeiro contato com a xilogravura se daria em

    1950, na Escolinha de Arte do Brasil, onde Oswaldo Goeldi ensinava. Expandiu seu

    aprendizado para a gravura em metal com Iberê Camargo, no Instituto Municipal de

    Belas Artes, em 1953. Muito rapidamente participou de exposições coletivas e

  • TAVORA, Maria Luisa Luz. Território poético: múltiplos tempos nas gravuras de Rossini Perez, Arthur Luiz Piza e Fayga Ostrower, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1531-1544.

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    integrou-se ao ambiente carioca, tendo aulas também com Fayga Ostrower sobre

    História da Arte e composição artística.

    Igualmente como muitos artistas de sua geração, realizava caminhadas pela cidade,

    recolhendo em desenhos vistas de favelas e outras tomadas urbanas que

    transformava em pinturas, reveladoras de uma preocupação com as questões

    sociais e humanas. Integrado ao mundo artístico no Rio de Janeiro, frequentou

    mostras, os salões cariocas e as bienais paulistas, tendo sido impactado pela obra

    do artista norueguês Edward Munch, presente em sala especial na segunda bienal

    paulista, em 1953. Decidiu, a partir de então, voltar-se para a gravura, dela fazendo

    seu meio expressivo preferencial.

    Das favelas, morros, salinas, palafitas e barcos, imagens gravadas em linóleo,

    motivos identificados com questões locais, Rossini parte para sínteses geométricas,

    operadas nos limites de seu interesse em ordenar o mundo, estabelecer rígido

    controle sobre as coisas. Acentua as possibilidades plásticas distanciando-se dos

    motivos locais que interessavam a muitos gravadores engajados com questões

    sociais. O caráter tectônico do trabalho: telhados, portas, janelas, velas e barcos são

    tomados como pura forma, resultado de linhas e superfícies ritmadas e em tensão.

    Memória ordenada de alguém que, na infância, imaginava vir a ser um arquiteto.

    Sonho de fundo de quintal. Rossini construía maquetes com os materiais mais

    insólitos que juntava como papelão, palitos de fósforo, miolo de pão, entre outros.

    Nessas gravuras, o espaço dilui-se nas figuras ainda reconhecíveis, uma figuração

    protegida, reveladora do devaneio da segurança de sua casa, um verdadeiro refúgio

    de proteção para sua fragilidade física da infância. O tempo vivido se renova nestas

    obras, o passado solitário, a necessidade de proteção. A favela, reduzida quase a

    uma grade ortogonal.

    Todavia, aos poucos, as inquietações do artista passam a habitar suas favelas,

    então realizadas na matriz de metal (Fig.1). Outros recursos são por ele explorados

    de sorte que os limites rígidos das casas e telhados flexibilizam-se com tratamento

    de luminosidades difusas que imprimem uma atmosfera misteriosa aos labirintos das

    favelas. Resta ainda uma geometria sujeita a uma espacialidade que se expande

    convivendo com uma espacialidade de vibração subjetiva.

  • TAVORA, Maria Luisa Luz. Território poético: múltiplos tempos nas gravuras de Rossini Perez, Arthur Luiz Piza e Fayga Ostrower, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1531-1544.

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    Fig. 1- Rossini Perez (1931)

    Favela, 1959 Água-forte e água-tinta, 57,6x31,5cm

    Museu Nacional de Belas Artes - Foto Jaime Acioli

    Trata-se do agora do artista, do tempo do ser em profundidade, desdobrando-se

    para além dos limites das formas do espaço construtivo, síntese geométrica das

    habitações do morro. Da imobilidade das formas controladas, Rossini chega a

    elaboração de espaços da imprecisão da vida interior: pequenos gestos, grafismos

    que criam texturas nos limites das formas, luminosidade e escuridão registram a

    presença do artista que adentra com seu ritmo as casas das favelas. Fluem as

    lembranças que se misturam com o momento da ação. Materialidade que se conjuga

    às experiências, no tempo presente.

    Rossini vai mais além. A matriz se torna um campo de ranhuras que arrebentam os

    limites. A geometria não assegura mais nada a este ser. Explode e dá lugar a um

    gestualismo impulsivo (Fig.2). Outro mundo emerge, à mercê da mão nervosa do

    artista, acolhendo linhas explosivas, forças invisíveis. O embate direto com a

    matéria, na técnica da ponta-seca, subordina o movimento à força, fazendo do corte

    seu registro e sua aparência. Verdadeiras cicatrizes são deixadas sangrando na

    matriz. E, no transporte para o papel deste enfrentamento com o metal, a imagem

    impressa anula a neutralidade do suporte, conferindo-lhe uma espacialidade

    turbulenta. Em Rossini, neste caso, a arte se dá como acontecimento concreto.

  • TAVORA, Maria Luisa Luz. Território poético: múltiplos tempos nas gravuras de Rossini Perez, Arthur Luiz Piza e Fayga Ostrower, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1531-1544.

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    Fig. 2 - Rossini Perez (1931)

    Sem Título, 1960 Ponta-seca,17,7x20cm

    Museu Nacional de Belas Artes - Foto Jaime Acioli

    Esta arte ganha o sentido do exercício que se dá no seu suporte: a "gravura de

    ação". Todo o movimento criado resulta da emoção que é um "movimento para fora

    de si" ao mesmo tempo que nasce "em mim". Trata-se de um "movimento afetivo

    que nos “possui”, mas que nós não "possuímos" por inteiro, uma vez que ele é em

    grande parte desconhecido de nós" (HUBERMAN, 2016:28).

    Nos anos 60, Rossini referencia o automatismo surrealista, numa espacialidade

    caótica. Intensifica-se a matéria no corpo a corpo com a chapa de metal, reveladora

    de um pathos existencial. O gravador, em seu gesto primário - manifestação do ser,

    converte em visível a força do tempo. Torna "o Tempo sensível nele mesmo”.

    (DELEUZE, 2007:69). Pode-se deslocar para Rossini o que Deleuze afirmou ao

    tratar da pintura de Francis Bacon: "Quando o corpo visível enfrenta, como um

    lutador, as potências do invisível, ele apenas lhe dá sua visibilidade." (DELEUZE,

    2007:67) E para o filósofo, não há triunfo se as forças permanecerem invisíveis,

    nessa visibilidade.

    Dessa grafia agudizada, Rossini chega a uma gestualidade que opera encontros

    harmônicos entre oposições, com grafismos em curvas, sinuosidades, emprestando

    sensualidade à sua "gravura de ação". Redução da atormentada espacialidade.

    Rossini estabelece outra relação com o suporte e sua materialidade (Fig. 3).

  • TAVORA, Maria Luisa Luz. Território poético: múltiplos tempos nas gravuras de Rossini Perez, Arthur Luiz Piza e Fayga Ostrower, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1531-1544.

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    Fig.3 - Rossini Perez (1931)

    Blanche Couchée, 1965 Relevo seco sobre papel,18,5x24,04cm

    Pinacoteca do Estado de São Paulo - Foto Isabella Matheus

    Passa a criar relevos, envolvendo o suporte papel. Este assume participação ativa

    compondo a imagem, integrando-se ao tempo poético das gravuras do artista.

    Resultando da movimentação do ácido, formas se anunciam, volumes se

    estabelecem no uso da chapa sem cor. A imagem ganha o espaço, salta da

    superfície. A prensa e sua força contemplam a obra com um volume inusitado.

    Evidencia-se uma profundidade intimista, uma presença da materialidade do

    suporte, até então encoberta, desde a tradição desta técnica, pelos gestos e toques

    da mão operosa do gravador. Assim procedendo, Rossini apaga uma liturgia mágica

    dos gestos arcaicos do gravador - uma não gravura. Um silêncio do tempo histórico

    sustenta a percepção de sua gravura que não mais contém o caráter gráfico das

    ranhuras.

    Arthur Piza: a dimensão plástica na obra gráfica Também o artista paulista Arthur Luiz Piza extrapola os limites tradicionais das

    técnicas de gravura, trabalhando, por exemplo, a matriz “sendo a um só tempo,

    sujeito e objeto" (MARTINS: 2012,13). Seu encontro com a gravura deu-se em Paris,

    para onde foi em 1951, após participar da primeira bienal paulista. Na capital

    francesa, buscou a orientação de Johnny Friedlaender (1912-1992), artista franco

    alemão que mantinha o Atelier de l’Ermitage, frequentado, posteriormente, por

    outros brasileiros nos anos 1960, como o próprio Rossini Perez, Edith Behring,

    Flávio Shiró, Sérvulo Esmeraldo, entre outros.

    Aos 15 anos, Piza interessou-se por pintura, tendo sido iniciado neste campo pelo

    paulista Antonio Gomide (1895-1967), artista plural com quem aprendeu a técnica do

    afresco. Interessava-se pelas obras de Klee e Miró. Fixou residência em Paris, a

  • TAVORA, Maria Luisa Luz. Território poético: múltiplos tempos nas gravuras de Rossini Perez, Arthur Luiz Piza e Fayga Ostrower, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1531-1544.

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    partir de 1951, tendo estabelecido com o mestre Friedlaender laços de amizade e

    cumplicidade no âmbito das experimentações com a gravura em metal, em suas

    múltiplas técnicas. Vinha ao Brasil para realizar exposições.

    Na segunda Bienal, em 1953, recebeu o Prêmio de Aquisição. Sua gravura

    participou de inúmeras bienais internacionais deste meio expressivo. No Brasil, em

    1959, na chamada Bienal do Informalismo, Piza recebeu o Grande Prêmio de

    Gravador Nacional. As experiências da abstração informal pontificaram neste

    certame. Tanto as premiações nacionais quanto as internacionais colocaram em

    pauta nas diferentes artes, formulações livres, gestualismos gráficos, massas e

    ritmos escultóricos, figurações ou abstrações mediadoras de mundos interiores,

    imaginativos e míticos (ARGAN, 1983, p.633). Manabu Mabe, Marcelo Grassmann,

    Modesto Cuixart, Riko Debenjak, Francesco Somaini, José Luiz Cuevas e Barbara

    Hepworth comporiam a lista de artistas para os quais a expressão intuitiva e sensível

    constituía o impulso gerador da obra.

    Nos anos 1960, libertando-se das influências da figuração surrealista de seu mestre

    francês, Piza trabalha em composições livres, nas quais cria um processo próprio

    de execução de sua gravura (Fig.4), interessado em explorar a materialidade da

    matriz de metal. "Supera e aprofunda limitações técnicas ortodoxas"

    (MAURICIO:1985).

    Fig.4 - Arthur Piza (1928)

    Cosmos Vert, 1969 Metal e goivas, 81,2x63,5cm

    Acervo Banco Itaú - Foto Romulo Fialdini

  • TAVORA, Maria Luisa Luz. Território poético: múltiplos tempos nas gravuras de Rossini Perez, Arthur Luiz Piza e Fayga Ostrower, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1531-1544.

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    Sua gravura revela o interesse pelo relevo na criação de ritmos num jogo livre com a

    luz. No calor da premiação da Bienal, Piza afirmou: “Para mim, o caráter da gravura

    é evidentemente a ideia de relevo. [...] A gravura cuja matriz foi profundamente

    gravada e martelada sai melhor, eu sei” (PIZA, 1959).

    Fig. 5 - Arthur Piza (1928)

    Caleidoscópio, s/d Gravura em metal e relevo, 49,5x45,5cm

    Foto Vicente de Mello

    Como Rossini, este artista estabelece uma luta de forças com a matriz, buscando

    mais que arranhá-la, esculpir volumes em formas triangulares, quadrangulares,

    volumes que organiza em conjuntos, imprimindo um caráter plástico em sua imagem

    (Fig.5). Tanto Piza quanto Rossini interessam-se pela construção no espaço. Bem

    observou o crítico José Geraldo Vieira quando chama atenção para este sentido

    plástico a integrar-se à arte eminentemente gráfica: “agora sob a goiva e o camartelo

    do artista, o metal não “chora” ácidos, e sim dá escultura em superfície, matéria em

    estado anaglífico”, procedimento que, a seu ver, integrava Piza ao grupo de artistas

    internacionais que modificavam “a bitola e o rumo da gravura em metal”.

    (VIEIRA:1960, p.6)

    Diferentemente do gravador Rossini Perez que obtém volumes recortando as

    matrizes de metal, Piza utiliza diversas ferramentas obtendo sulcos e formas que na

    imagem impressa se dão como volumes. Suas chapas de cobre precisavam de

    maior espessura para resistir ao impacto do martelo de ourives que sulcava

    diminutas formas geométricas sutilmente irregulares (triangulares e quadrangulares).

    Cria uma espacialidade imaginativa ativada por relevos que se definem por um

    tempo objetivo, o martelamento calculado com as goivas, buris e pregos. O espaço

  • TAVORA, Maria Luisa Luz. Território poético: múltiplos tempos nas gravuras de Rossini Perez, Arthur Luiz Piza e Fayga Ostrower, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1531-1544.

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    gravado com força, numa cadência gráfica, revela uma matéria bruta que

    desestabiliza a planaridade do suporte, ambígua em sua manifestação de

    instabilidade provocada por uma bem controlada ação. Ele modela a cor nesta

    matéria. Uma delicada geometria cria núcleos de maior volumetria em cada forma

    gerada, constituindo um centro propulsor de forças (concentração ou expansão das

    massas). Há uma movimentação no espaço com os relevos, criada segundo um

    ritmo contido, numa esgarçada vontade de ordem. Piza insere o ritmo objetivo da

    martelada sobre a goiva como matéria de suas formas.

    Fayga Ostrower: exuberância da cor em transparência O tempo como matéria também constitui fundamento da percepção das imagens

    criadas por Fayga Ostrower, artista pioneira da abstração na gravura, no Brasil.

    Como Piza, nesta tendência, a artista harmoniza liberdade criativa e vontade de

    ordem. Afirma a ambivalência. Aprendeu xilogravura com Axel Leskoschek e gravura

    em metal com Carlos Oswald, no Curso de Desenho e Artes Gráficas, oferecido no

    ano de 1946, pela Fundação Getúlio Vargas. A partir dos anos 1950, orienta suas

    pesquisas com a gravura em direção à abstração sensível. As questões formais da

    composição mobilizavam-na intensamente. Sua visão sofria transformações que

    cobravam mudanças nas suas relações com a arte. No estreitamento da relação

    arte-vida, Fayga encontra na abstração o caminho que se ajustava à sua

    necessidade de compreensão do mundo.

    Em 1952, quando realizava uma xilogravura Os Retirantes (Fig.6), percebeu-se num

    impasse, dando mais atenção aos ritmos que criava, aos contrastes, aos planos que

    articulava, à natureza das linhas que sulcava na madeira-matriz.

    Fig.6 - Fayga Ostrower (1920-2001)

    Os Retirantes, 1952 Linóleo sobre papel de arroz, 23x24cm

    Acervo da artista - Foto de Haroldo Durão

  • TAVORA, Maria Luisa Luz. Território poético: múltiplos tempos nas gravuras de Rossini Perez, Arthur Luiz Piza e Fayga Ostrower, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1531-1544.

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    Como declarou, sentiu que não podia mais estetizar o sofrimento. Um livro, presente

    de um amigo, “Cézanne's composition"(1943) de Erle Loran, professor de arte, da

    Universidade da California (Berkeley), provocou uma transformação em seu olhar.

    Para Fayga, o confronto com o processo pictórico deste artista motivou o

    fundamento da reestruturação de abordagem, uma solução para sua incursão pela

    arte abstrata.

    Para o historiador Argan, o artista francês transformou a tela num lugar

    problemático, convertendo a pintura numa "pura e desinteressada

    investigação"(ARGAN:1983, p.134), provocando uma conversão do olhar do homem

    moderno. Em seus quadros, Cézanne repousa a estrutura da composição sobre o

    tecido colorístico. É a cor modulada que realiza a unificação do espaço.

    O interesse pela elaboração de uma atmosfera colorida tal como o pintor francês,

    uma estrutura interna e uma vontade de ordem foram se afirmando gradativamente

    na gravura de Fayga. A partir de 1954, resulta dessa pesquisa a estruturação do

    espaço através de fragmentos de diferentes "matrizes-cor" que se justapõem ou se

    superpõem numa configuração abstrata, sensível (Fig. 7). "Em Fayga, a gravura

    funda a cor substantiva."(LONTRA, 1994:14)

    A artista eliminou os títulos em sua gravura. A identificação do trabalho recebia um

    número de referência composto por quatro dígitos, definidores dos anos de

    produção e da sequência da criação da referida obra. Exemplificando: a terceira

    gravura realizada no ano de 1957 apareceria com a seguinte notação: 5703.

    Combinam-se originalmente os tempos histórico e o da artista gravadora que se

    conjugam ao tempo das imagens no qual mergulha o fruidor. É a gravura de Fayga

    em três tempos.

    Os dois primeiros dígitos dão conta do tempo histórico, objetivo, que corre

    indiferente à manifestações poéticas. Esse tempo histórico contextualiza a obra.

    Junto a este tempo, presente em calendários, que orienta o homem comum, Fayga

    apõe o tempo de sua ação de artista, traduzindo numa contagem numérica os seus

    encontros com a matéria. Indiferentes ao papel que assumem na trajetória da artista,

    esses números revelam e assinalam, numa ordem crescente, a maior ou menor

  • TAVORA, Maria Luisa Luz. Território poético: múltiplos tempos nas gravuras de Rossini Perez, Arthur Luiz Piza e Fayga Ostrower, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1531-1544.

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    frequência desses encontros. Nada podem comentar, dão ao fruidor o conhecimento

    objetivo da rotina criadora da artista, ocupam o espaço não gravado do suporte-

    papel.

    Todavia, essa ordem sequencial acusa um tempo existencial pleno, “um tempo que

    a presença humana qualifica. É um tempo no qual a ação dos afetos e da

    imaginação produz uma lógica própria [...]" (BOSI:1992, p.27). No artista, esse

    tempo existencial pleno dá-se na criação da obra. Em Fayga Ostrower, o suporte-

    papel carrega os dois tempos objetivos, o histórico e o da atividade artística da

    gravadora, conjugados na "numeração-título", acolhendo ainda outro tempo, o do ser

    e da poesia.

    Neste meio expressivo, a imagem gravada resulta da conjunção dos tempos de sua

    criação, o do ser e o da poesia que se dão em momentos, matéria e espaço

    diferentes. Há um tempo ausente, o tempo da matriz. Esse tempo congrega

    momentos de decisões e vontades, de procura e de achados, de decepções e de

    alegrias. Acertadamente afirmou Gaston Bachelard que "A gravura mais do que

    qualquer poema, remete-nos ao processo de criação." (BACHELARD:1986, p.53)

    Ao tempo do entalhe da matriz une-se outro tempo que acusa uma discreta e

    significativa presença. Trata-se do tempo da impressão. De um corpo a outro, de

    uma matéria à outra, as formas transparentes de Fayga revelam poeticamente esse

    tempo. Conduzem e registram a complexa geografia criada com a madeira pela

    força e o devaneio da artista para o finíssimo papel de arroz.

    Na impressão, transforma-se o tempo do entalhe. Fragmentos de madeira, as

    matrizes tornam-se forma-cor, estruturadas num jogo de sobreposições e

    justaposições das matrizes. Neste processo uma outra dimensão temporal se revela.

    Fig. 7 - Fayga Ostrower (1920-2001)

  • TAVORA, Maria Luisa Luz. Território poético: múltiplos tempos nas gravuras de Rossini Perez, Arthur Luiz Piza e Fayga Ostrower, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1531-1544.

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    6644 - Xilogravura em cores sobre papel de arroz,60x40cm Acervo da artista - Foto de Haroldo Durão

    Todavia, em seu processo de percepção, o fruidor transgride o tecido temporal

    criado pela artista. Os tempos passados - da matriz e da impressão - estão

    presentes e são percebidos no embate com a gravura, sendo integrados pela

    percepção, ao tempo interior à obra. Constituem o acolhimento poético da própria

    imagem gravada.

    Há um convite explícito de penetrar com o olhar a sensível estruturação,

    atravessando as múltiplas camadas de cor em trânsito. O mesmo acontece com os

    movimentos da delicada geometria de Piza. O observador participa da criação de um

    tempo que deixa de ser medida abstrata para ser um tempo vivido, subjetivo: um

    instante poético. Nele o que conta é o tempo vertical, desmedido, instante no qual é

    possível viver as ambivalências e as simultaneidades. As imagens vão se formando,

    perdendo a forma, construindo, reconstruindo, provocando um fluxo de imagens

    evocadas. Dá-se um dinamismo visual peculiar ao poeta lírico cujas frases

    movimentam-se num percurso sempre inacabado e retomado semelhante ao ritmo

    das ondas do mar. Construção e destruição, escrita e apagamento quase

    simultâneos. O olhar do observador não consegue deter-se na imagem criada pelo

    plano em transparência (Fig.8). Há um contínuo buscar de estruturas, um

    aprofundamento do exercício da visualidade. Funda-se um ritmo que já não se

    distingue do fruidor que é capturado pela obra, buscando incessantemente a cor-

    forma das imagens.

    Assumindo a vocação lírica, essas transparências nada determinam mas tudo

    sugerem. Estruturam um espaço mutante, tão dinâmico quanto a vida: o fazer e o

    refazer contínuos. Evocam imagens poéticas, - o tempo vivo e original - o tempo

    existencial pleno, perpetuamente se recriando. O tempo reversível.

  • TAVORA, Maria Luisa Luz. Território poético: múltiplos tempos nas gravuras de Rossini Perez, Arthur Luiz Piza e Fayga Ostrower, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1531-1544.

    1543

    Fig.8 - Fayga Ostrower (1920-2001)

    6534 - Xilogravura em cores sobre papel de arroz, 60x40cm Acervo da artista - Foto de Haroldo Durão

    A "numeração-título" introduzida por Fayga em sua gravura abstrata, tempo histórico

    e tempo da ação criativa da artista, tempos registrados por números enlaçam-se

    possibilitando a imersão da obra - espaço tempo da poesia - no território que acolhe

    as realizações humanas.

    Nos três artistas aqui tratados (obras dos anos 1950/1970), observa-se um "manejo

    escultórico das matrizes" quer de madeira quer de metal. (DUARTE, 2004:141).

    Fayga estrutura suas imagens em planos de transparência da cor, numa construção

    espacial que provoca um caminho para o olhar. Piza e Rossini acentuam cada vez

    mais os relevos, e a exploração da matriz em sua materialidade. Posteriormente,

    dão continuidade às suas experiências numa busca de soluções espaciais que o

    papel não dava mais conta. Os relevos migram para as paredes, empregando

    gesso, telas de metal, fibras vegetais, entre outros materiais.

    Revelam audácias no trato com a matriz inserida como materialidade das imagens

    que compõem seus territórios poéticos. Matéria-objeto, fundada em conceitos que

    inauguram registros de qualidades visuais. Singularizam seu encontro com a

    gravura, reformulando e ampliando seus meios e seus fins. Suas experiências

    situam-se no campo da tendência informal, definida pelo artista Theon Spanudis

    como "arte das formações", produção movida pelo fluxo da existência, uma

    temporalidade complexa, atenta aos acontecimentos e às materialidades no próprio

    ato formativo. (SPANUDIS, 2011:135-143)

    ___________________________________________________________________

    Referências Bibliográficas ARGAN, Giulio Carlo. El Arte Moderno. Trad. Joaquim Espinosa Carbonell. Valencia: Fernando Torres, 1983. 2v. Tradução de L'Arte Moderna:1770/1970.

  • TAVORA, Maria Luisa Luz. Território poético: múltiplos tempos nas gravuras de Rossini Perez, Arthur Luiz Piza e Fayga Ostrower, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1531-1544.

    1544

    BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar. São Paulo: DIFEL, 1986. BOSI, Alfredo. O tempo e os tempos. IN Tempo e História, Org. Adauto Novaes - São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal da Cultura,1992. DIDI-HUBERMAN, Georges. Que emoção! Que emoção? Trad. de Cecília Ciscato. São Paulo: Editora 34, 2016 (1⁰ edição) - Coleção Fábula. DELEUZE, Gilles. Francis Bacon. Lógica da Sensação. Trad. Roberto Machado [et al.]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. DUARTE, Paulo Sergio. Liberdade construída.IN: A trilha da trama e outros textos sobre arte/org. Luisa Duarte.Rio de Janeiro: FUNARTE, 2004. pp.134-146. GRAVURA em capo expandido. Curadoria e texto Carlos Martins; apresentação Ivo Mesquita. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2012. GRAVURE Contemporaine. Salon 2006. Paris: Éditeur JVC, 2006. MARTINS, Carlos. Gravura em campo expandido. Catálogo (curadoria e texto); Apresentação Ivo Mesquita. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2012. MAURICIO, Jayme. IN: Gravura Moderna Brasileira. Acervo Museu Nacional de Belas Artes. Catálogo, 1999. PIZA, Arthur Luiz. Arthur Piza, prêmio da Bienal: “relevo é o caráter da gravura”. O Estado de São Paulo, SP, 20/09/1959. (Da Sucursal) POÉTICA da Resistência. Aspectos da Gravura Brasileira. Catálogo. Textos: Armando Mattos; Marcus de Lontra Costa. São Paulo, SESI: Rio de Janeiro, MAM, 1994. ROSSINI Perez: um passante e duas margens. Catálogo. Curadoria Carlos Martins: textos Carlos Martins e Ivo Mesquita. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2013. ROSSINI Perez - desenhos, matrizes e gravuras. Catálogo Acervo do Museu Nacional de Belas Artes.Texto de Laura Abreu, 2009. SPANUDIS, Theon. Arte das formas e arte das formações. IN: BARTHOLOMEU, Cezar, TAVORA, Maria Luisa (org.) Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/Escola de Belas Artes, UFRJ, n. 23. TAVORA, Maria Luisa Luz. A gravura abstrata de Fayga Ostrower e a primazia da cor no Informalismo no Brasil. IN: Vozes femininas: gênero, mediações e práticas da escrita/Flora Sussekind, Tania Dias, Carlito Azevedo (org.) Rio de Janeiro: 7 Letras: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2003. VIEIRA, José Geraldo. A Exposição Piza. Folha de São Paulo, Folha Ilustrada, SP, 28/08/1960.

    Maria Luisa Luz Tavora Doutora em História Social (História e Cultura) IFCS/ UFRJ; Pós-doutora EHESS/Paris; Professora de História da Arte na Graduação e na Pós-Graduação (PPGAV) da EBA/UFRJ; Co-editora da Arte & Ensaios (2008-2017). Pesquisa sobre a arte brasileira do século XX, em especial, a gravura artística, com artigos publicados sobre o assunto em diversas revistas de arte. Membro do CBHA, da ABCA e AICA e da ANPAP. Pesquisadora do CNPq.