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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO CENTRO DE EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
SOLER GONZALEZ
EDUCAO AMBIENTAL AUTOPOITICA COM AS PRTICAS DO BAIRRO ILHA DAS CAIEIRAS ENTRE
OS MANGUEZAIS E AS ESCOLAS
VITRIA 2013
SOLER GONZALEZ
EDUCAO AMBIENTAL AUTOPOITICA COM AS PRTICAS DO BAIRRO ILHA DAS CAIEIRAS ENTRE
OS MANGUEZAIS E AS ESCOLAS
Tese apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Educao ao Centro em
Educao da Universidade Federal do Esprito
Santo, como requisito parcial para obteno do
grau de Doutor em Educao na linha de
Pesquisa: Cultura, currculo e formao de
educadores/as.
Orientadora: Profa. Dra. Martha Tristo.
Vitria 2013
Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Setorial de Educao,
Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)
Gonzalez, Soler, 1974- G643e Educao ambiental autopoitica com as prticas do bairro ilha
das caieiras entre os manguezais e as escolas / Soler Gonzalez. 2013.
159 f. : il. Orientador: Martha Tristo. Tese (Doutorado em Educao) Universidade Federal do
Esprito Santo, Centro de Educao. 1. Autopoiese. 2. Caieiras, Ilha das (ES). 3. Cartografia. 4.
Comunicao Aspectos sociais Caieiras, Ilha das (ES). 5. Educao ambiental Narrativas pessoais. I. Tristo, Martha, 1957-. II. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Educao. III. Ttulo.
CDU: 37
RESUMO
Esta pesquisa em Educao Ambiental Autopoitica com as prticas do bairro Ilha
das Caieiras entre os manguezais e as escolas aposta numa poltica cognitiva e de
narratividade no campo da Educao Ambiental, no exerccio de acompanhar os
movimentos dos saberesfazeres socioambientais que emergem com as redes de
conversaes e com as relaes de convivncia e de convenincia entre os sujeitos
praticantes e narradores da mar da pesquisa: pescadores, desfiadeiras de siris,
catadores de caranguejos, comerciantes, estudantes, professores e professoras. As
prticas do bairro Ilha das Caieiras so domnios cognitivos e de aes do narrar,
morar, pescar e cozinhar potencializados pelo Turismo Gastronmico e a Semana
Santa. A Educao Ambiental Autopoitica desloca a sustentabilidade praticada
em discursos oficiais e pelo mercado verde, para o sustentabilizar como domnio de
ao na convivncia e convenincia na vida cotidiana. O objetivo da tese
cartografar e problematizar os saberesfazeres socioambientais das prticas do
bairro e seus atravessamentos com as escolas e os manguezais da Baa de Vitria,
potencializando os movimentos que a Educao Ambiental Autopoitica produz no
cotidiano da pesquisa. So aportes metodolgicos: pesquisa em Educao
Ambiental, cartogrfica e com os mltiplos cotidianos. Utiliza como intercessores
Humberto Maturana (1999; 2006) e Michel de Certeau (2008; 2009). Capturamos os
seguintes saberesfazeres socioambientais: ritmos da rua Felicidade Correia dos
Santos, usos dos manguezais, museu, usos do per, restaurantes, linguajar ilhs
comunitrio, crianas no Turismo Gastronmico e na Semana Santa, apetrechos e
territrios do pescar, ofcios dos pescadores, movimentos das mars, feitura das
canoas e tipos de embarcaes, espcies de peixes, crustceos e andadas e
defesos, territrios do brincar, lendas, cantigas e msicas da grande mdia, receitas
culinrias e temperos usados nas tortas, moquecas, mariscadas, modos de desfiar
siris e camares, famlias nas caladas. Educao Ambiental Autopoitica
produzidas nas relaes autopoiticas com tenses, conflitos e negociaes nos
cotidianos com as redes de conversaes, apostando compartilhar na solidariedade
e na aceitao do outro como legtimo outro junto a ns, no conviver amoroso.
Palavras-chave: Educao Ambiental Autopoitica; Prticas do Bairro; Cartografia;
Poltica da Narratividade; Redes de Conversaes.
ABSTRACT
This research in Environmental Education aims to map and discuss the knowledge
and environmental practices of Ilha das Caieiras, a neighborhood from the city of
Vitoria (ES), and how it relate with schools and mangroves of Vitoria Bay, betting on
an Autopoietic Environmental Education. This thesis bet on cognitive and narrative
policy, in the exercise of monitoring the movements of environmental knowledge and
practices that emerge from networks of talking and from relations of coexistence and
convenience among subjects and storytellers: fishermen, crab desfiadeiras (women
from traditional culture of Ilha das Caieiras who prepare and unravel the crab before
cooking), crab pickers, merchants, students and teachers. The practices of Ilha das
Caieiras are consequences of living, fishing and cooking enhanced by Gastronomic
Tourism and Easter. Autopoietic Environmental Education as ethical, political,
aesthetic and ontological dimension shifts the "sustainability" practiced for the green
market and in official speeches to a domain of action in living and convenience in
everyday life. This research covers crossings inspired by Humberto Maturana and
Michel de Certeau. Methodological contributions are: narrative research in
Environmental Education, cartographic research and research with the everyday. We
captured the following social-environmental knowledge: rhythms of the street
Felicidade Correia dos Santos, uses of mangroves, museum, uses the pier,
restaurants, local language, children in Gastronomic Tourism and working during the
Easter, tools and territories of fishing, fishermen work, movements tides, canoes
construction, vessel types, fish species, crustaceans, crab reproduction seasons,
types of play, legends, songs, songs of the mainstream media, recipes, spices used
in pies, fish stew, traditional dishes and different ways of prepare crabs and shrimps
for cooking. The choice of theoretical intercessors and the production of data with the
subjects and storytellers indicate autopoietic environmental educations produced with
the networks of talking with the practices of neighborhood take place between
conflicts and negotiations in the relations of coexistence and convenience that was
constructed between processes and relations with the everyday lives lived in
mangroves and collectives alive and not alive of mangrove from Vitoria Bay.
Key-words: Autopoietic Environmental Education; Neighborhood Practices; Policy of
narrativity; Cartography; Network talking.
O abandono do lugar me abraou de com
fora.
E atingiu meu olhar para toda a vida.
Tudo que conheci depois veio carregado
de abandono.
No havia no lugar nenhum caminho de
fugir.
A gente se inventava de caminhos com as palavras.
A gente era como um pedao de
formiga no cho.
Por isso o nosso gosto era s de desver o mundo.
Manoel de Barros
Professora e orientadora Martha Tristo, pela convivncia e companhia com os
ventos de travessias com os mundos da lama dos manguezais da Baa de Vitria,
proporcionando encontros e conversas problematizadoras que alimentaram nosso
caminhar com a Educao Ambiental Autopoitica. Eu queria pegar na semente da
palavra.
Aos professores Janete Magalhes Carvalho e Carlos Eduardo Ferrao, pela
generosidade, acolhida e pelos encontros com os Grupos de Pesquisa que em muito
contriburam com as inspiraes para pensarmos a vida cotidiana no contexto da
Educao Ambiental Autopoitica. Encontros que me ajudaram a usar palavras de
ave para escrever.
Aos professores Leandro Belinaso Guimares e Antnio Carlos Amorim, pelo apoio
e afeto nos encontros e nas conversas com a Educao e a Educao Ambiental.
Conversas tecidas com o gosto do absurdo divino das imagens.
Ao professor Celso Snchez Pereira, que prontamente e carinhosamente aceitou o
convite para compor a banca de defesa da tese, e o qual convido para ver a tarde
pousada sobre as margens do rio.
Aos professores e professoras do curso de Geografia Marisa Valladares, Jos
Amrico, Gisele Girard, Cladia do Vale, Paulo Scarin e Luiz Cludio Zanotelli. Bons
encontros e boas conversas que me fizeram regar o rio.
s amizades, aos afetos, aos encontros, s conversas, s parcerias e aos incentivos
dos colegas do Ncleo Interdisciplinar de Pesquisa e Estudos em Educao
Ambiental (NIPEEA/UFES). Conversas que foram enredadas com a companhia dos
nipeanos e amigos: Andreia, Gil, Patrcia, Flvia, Ana Paula, Rosinei, Denize,
Denise, Fernanda, Toni, Cida, Nadja, Mrcia, Ktia e Ftima. Conversas que me
inspiraram a desver o mundo e a Educao Ambiental, a brincar com as palavras, a
e ouvir a voz das guas e dos caracis.
Lidiane Pignaton e Flvia Martinelli, que me acompanharam nas andadas iniciais
da pesquisa. Pensamos: a explicao afasta as falas da imaginao.
s parcerias, alegrias, experincias, lugares, leituras, silncios, trabalhos, viagens
de estudos, caminhadas, aventuras e conversas que fizeram brotar a amizade com
Gilfredo Carrasco Maulin, meu amigo Gil, que carrega gua na peneira e cria peixes
nos bolsos.
Aos sujeitos praticantes da pesquisa, narradores da mar, frequentadores do per e
moradores da rua Felicidade Correia dos Santos do bairro Ilha das Caieiras, que me
permitiram mergulhar nos mundos da lama dos manguezais e nos saberes, fazeres,
sabores, cheiros, gostos, conflitos, estrias e brincadeiras. Agradeo ao Seu B, Ao
Ao Seu Silvrio, Paulo, Simone, Tia Laura, Piro, pescadores e desfiadeiras de siris
da Ilha das Caieiras. Com eles aprendi que o rio encostava as margens na sua voz.
Aos estudantes, funcionrios e professores das EMEFs Francisco Lacerda de Aguiar
e Eliane Rodrigues dos Santos, pela acolhida e confiana cultivada com as
travessias da pesquisa e com os encontros com as turmas do 5 ano e do 6 ano.
Meninos e meninas que passam para as palavras suas peraltagens e que brincam
de fingir que pedra so lagartos.
equipe de funcionrios do Museu do Pescador da Ilha das Caieiras, pelo apoio e
pela confiana em mim depositada. Ele queria ser sonhado pelas garas.
Aos estudantes, funcionrios e professores da EMEF Experimental de Vitria-UFES,
e Professora e Diretora Rosemara, pelas colaboraes, companhias, afetos e
apoios a mim dispensados nas travessias da pesquisa entre a escola, a escrita da
tese e os compromissos acadmicos. Lugar mais bonito de um passarinho ficar a
palavra.
Aos meus familiares: meu pai Raul Tch, minha me Liana, minha irm Brisa, meu
sobrinho amado Arthur, Gaia, Tia Dale, minha av Mezinha, Benito, Nelsinho e
primos e primas. Com a famlia a gente aprende o que os passarinhos sabem sobre
o vento.
D. Lourdes, Rose, Joo, Lane, Rogrio, Gilson, Seu Ancelmo, Alesander, Alana,
Ana Luize e Maria Luiza. Os afetos, a confiana, o apoio e a convivncia com vocs
semearam em meus solos o carinho familiar e admirao que tenho por vocs.
Agradeo por fazer parte desta famlia! No gorjeio dos pssaros tem um perfume de
sol?
Justine, que guarda a infncia da palavra e compartilha comigo esse momento. A
Isadora, Vicente, D. Lourdinha, Sr. Antnio Raizer, Eugnio e D. Jacinta.
Aos meus colegas do mestrado, doutorado e amigos da ONGAL pela compreenso
e pelo apoio. A gente ento saa vagabundeando pelos matos sem aba.
Aos meus colegas, amigos e funcionrios da comunidade universitria que
acompanham o meu habitar e o praticar o campus da UFES. A gente se inventava
de caminhos com as novas palavras.
Aos meus amigos Flvio Pimentel e Marcius pela companhia repleta de
despropsitos e pela amizade que cultivamos desde a infncia.
Andria, meu amor... um amor autopoitico que no se guarda em palavras, est
vivo e cultivado, conversado... e conversando nos deparamos com a Educao
Ambiental Autopoitica em ns... nas nossas leituras, nas nossas vidas. Minha
intercessora... Estar e viver com voc como ouvir a voz de Deus que habita nas
crianas, nos passarinhos e nos tontos. Te amo muito... dedico esta tese a voc.
SUMRIO
1. OS MUNDOS DA LAMA DOS MANGUEZAIS DA BAIA DE VITRIA ......... 10
1.1. COMEANDO PELO MEIO ....................................................................... 16
1.2. ANDADAS E DEVIR-CARANGUEJO .........................................................
32
2. EDUCAES AMBIENTAIS AUTOPOITICAS COM AS PRTICAS DO BAIRRO ENTRE OS MANGUEZAIS E OS COTIDIANOS ESCOLARES DA ILHA DAS CAIEIRAS .........................................................................................
41
2.1. CONVERSAS E APROXIMAES DE HUMBERTO MATURANA E MICHEL DE CERTEAU: PRTICAS DO BAIRRO E DOMNIOS DE AES, CONVENINCIA E CONVIVNCIA ....................................................................
42
2.2. EDUCAES AMBIENTAIS AUTOPOITICAS EM REDES DE CONVERSAES COM AS PRTICAS DO BAIRRO .......................................
52
3. POR ENTRE AS MARGENS DOS MANGUEZAIS DA BAIA DE VITORIA: ANDADAS E OUTROS MOVIMENTOS COM O CAMPO PROBLEMTICO DA PESQUISA ....................................................................................................
67
3.1. VENTOS DE TRAVESSIAS METODOLGICAS ........................................ 68
3.2. NARRADORES DA MAR E A RUA FELICIDADE CORREIA DOS SANTOS: QUANTO VALE OU POR QUILO? .................................................
80
4. MERGULHOS COM OS COTIDIANOS ESCOLARES DA ILHA DAS CAIEIRAS ...........................................................................................................
104
4.1. SABERESFAZERES SOCIOAMBIENTAIS DOS SUJEITOS PRATICANTES NAS MARGENS DOS COTIDIANOS ESCOLARES ................
105 4.2. CARTOGRAFIAS E OUTROS MOVIMENTOS NOS COTIDIANOS ESCOLARES ......................................................................................................
124
5. VENTOS DE TRAVESSIAS SEM FIM ............................................................ 143
6. REFERNCIAS ............................................................................................... 150
Meu amor eu vou sair Num vento de travessia
Na proa dessa canoa Sem rumo, remo nem quilha
Lembrana revira o tempo Saudade, refgio, ilha
Porto seguro seus braos Naufrgio da maravilha
canoeiro, canoa.
Lus Perequ: Cantilena
1. OS MUNDOS DA LAMA DOS MANGUEZAIS DA BAA DE VITRIA
Eu queria pegar na semente da palavra.
Manoel de Barros
Esta pesquisa-tese com o tema Educao Ambiental Autopoitica com as
prticas do bairro Ilha das Caieiras entre os manguezais e as escolas um
desdobramento da dissertao de Mestrado e das pesquisas nas travessias no
Doutorado em Educao (CE/PPGE/UFES), com orientao da professora Dra.
Martha Tristo, coordenadora do NIPEEA, Ncleo Interdisciplinar de Pesquisas
e Estudos em Educao Ambiental.
Os desdobramentos se iniciam neste Captulo I, por entre os manguezais,
traando andadas e outros movimentos do pesquisador com os sujeitos
praticantes (CERTEAU, 2009), que praticam e inventam as margens dos
manguezais da Baa de Vitria, colocando-nos diante de inesperados ventos-
de-travessias metodolgicas, frutos das expresses do campo da pesquisa.
Da mesma forma, os movimentos por entre o mundo da lama1 e ruas do bairro
Ilha das Caieiras deslizam e apontam algumas questes com o campo
problemtico:
a) Quais os saberesfazeres2 socioambientais que constituem as prticas
do bairro (CERTEAU, 2009) Ilha das Caieiras e seus atravessamentos
com as redes cotidianas escolares e os manguezais da Baa de Vitria?
No sentido certeauniano entendo como prticas do bairro o narrar, o
morar, o pescar e o cozinhar, aproximando dos domnios de aes
(MATURANA, 2006) dos sujeitos praticantes das margens com os
cotidianos. 1 O termo mundo da lama uma conotao artstica para as artes de fazer das prticas
do bairro (morar, pescar e cozinhar), envolvendo tambm as coletividades vivas e no vivas dos manguezais da Baa de Vitria, as quais pude encontrar e experimentar. Mundo da lama enquanto narradores da mar que deslizam com vidas manguezeiras em planos de composio com a produo de dados da pesquisa-tese. 2 Para Alves (2010, p. 68), juntar os termos, pluraliz-los, algumas vezes invert-los,
outras duplic-los, foi a forma que conseguimos, at o presente, para mostrar como as dicotomias necessrias na inveno da cincia moderna tm se mostrado limitantes ao que precisamos criar para pesquisar nos/dos/com os cotidianos.
b) Quais movimentos a Educao Ambiental Autopoitica (MATURANA,
2006) produz nas prticas do bairro e entre os manguezais da Baa de
Vitria e as redes cotidianas escolares? Pensamos a
Educao Ambiental Autopoitica enquanto domnios cognitivos e
ontolgicos produzidos com as redes de conversaes (MATURANA,
1999) nas relaes de convivncia (MATURANA, 2006) e de
convenincia (CERTEAU, 2009) nos processos de conhecer e no agir
dos seres humanos nas coletividades da vida cotidiana.
Questes que alimentaram nossos desejos, caminhos, experincias, encontros,
compondo possibilidades e escolhas de um modo de praticar e caminhar no
campo da Educao Ambiental (TRISTO, 2004a), indicando inspiraes e
apostas ticas, polticas, estticas e cognitivas nos movimentos da escrita-tese,
inventando outros possveis, com os ventos-de-travessias com o campo
problemtico da pesquisa, delineando outras possibilidades de:
a) problematizar os saberesfazeres socioambientais que constituem as
prticas do bairro Ilha das Caieiras e seus atravessamentos com as
redes cotidianas escolares e os manguezais da Baa de Vitria.
b) cartografar os movimentos que a Educao Ambiental Autopoitica
produz nas prticas do bairro entre os manguezais da Baa de Vitria e
as redes cotidianas escolares.
Apresentamos os movimentos da tese com aposta de se pensar o campo da
Educao Ambiental diante da potncia da existncia dos narradores da mar
e dos sujeitos praticantes produzidas nas redes de conversaes
(MATURANA, 1999), afetos, conflitos e tenses com as redes cotidianas
tecidas com os manguezais da Baa de Vitria.
O devir caranguejo3 entra em cena povoado por conflitos, experincias,
saberesfazeres, poderes, sabores, afetos, e pelos sujeitos praticantes e
narradores da mar, peixes pequenos, que vivem nos manguezais e margem
3 Posteriormente irei abordar a expresso devir caranguejo.
da sociedade. Apresentamos esses movimentos num devir caranguejo
constitudo com os manguezais da Baa de Vitria.
Do mesmo modo, mostramos mundos caticos em singularidades,
territorialidades e temporalidades. Devir caranguejo inspirado com a
sobreposio e atravessamento dos movimentos da andada, troca de casco e
engorda dos caranguejos, e que nos (des)organizam, para nos organizarmos e
pensarmos, com o campo problemtico da pesquisa, os tempos da pesquisa e
do pesquisador, a poltica da narratividade e a poltica cognitiva da tese, as
questes de investigao, o objeto de pesquisa e a tese em si. Esses
movimentos continuam...
Devir caranguejo!
Os movimentos da pesquisa foram assim pensados: no Captulo II
problematizamos as Educaes Ambientais Autopoiticas (MATURANA, 2006)
tecidas com as prticas do bairro (CERTEAU, 2009) entre os manguezais e os
cotidianos escolares da Ilha das Caieiras, com conversas com Humberto
Maturana e suas noes de autopoiese, espaos de convivncias e redes de
conversaes e as noes de sujeitos praticantes, prticas do bairro e
convenincias segundo Michel de Certeau.
Pensamos em problematizar os saberesfazeres socioambientais praticados
cotidianamente, com as redes de conversaes nos espaos de convivncia
entre os manguezais e os cotidianos escolares e entre os jogos de
convenincia que atravessam a vida coletiva do bairro como possibilidades
para pensarmos em Educaes Ambientais tecidas nos processos, nas
relaes, nas redes entre as coletividades vivas e no vivas praticadas nos
cotidianos das vidas manguezeiras.
No Captulo III delineamos os aportes metodolgicos da tese sob o vis das
pesquisas em Educao Ambiental, como proposto por Martha Tristo; nas
perspectivas das pesquisas em Educao com os cotidianos, como propostas
por Nilda Alves e Carlos Eduardo Ferrao; na pesquisa cartogrfica, baseada
em Gilles Deleuze, Flix Guattari, Virginia Kastrup e Janete Magalhes
Carvalho; e, por fim, com a noo de problematizao segundo Michel
Foucault.
Apresentamos os sujeitos praticantes como narradores da mar dos
manguezais da Baa de Vitria, catadores de caranguejos, desfiadeiras de siris,
pescadores artesanais, educandos, educadores, educadoras, professoras e
professores dos espaostempos das redes cotidianas escolares da regio.
Este captulo aborda ainda as prticas do bairro, ou seja, o narrar, o morar, o
pescar e o cozinhar no bairro Ilha das Caieiras, com zoons nos narradores da
mar e sujeitos praticantes dos manguezais, moradores da rua Felicidade
Correia dos Santos, apostando numa poltica cognitiva e de narratividade na
pesquisa-tese, que v o outro como legtimo outro na convivncia, tomando as
vidas manguezeiras como coletividades da pesquisa e no como objetos.
O Captulo IV mergulha e pousa nas nossas andanas pelos cotidianos de
duas escolas da regio, por meio das redes de conversaes, tecidas com os
movimentos desencadeados com as oficinas de mapas e as aulas de campo
no bairro Ilha das Caieiras.
Cotidianos escolares praticados pelos meninos-da-baa-de-Vitria4 que
carregam guas nas peneiras e peixes nos bolsos5. Saberesfazeres molhados-
de-peixe e enlameados pelo mundo da lama do bairroescola. Saberesfazeres
praticados, vividos e negociados nos espaostempos escolares e na oficina do
viver na Ilha das Caieiras.
No Captulo V focamos nos ventos-de-travessias sem fim..., inconcluindo a
pesquisa-tese, na provisoriedade. Acompanhamos processos com as redes de
pesca, redes de conversaes, redes de afetos, redes cotidianas escolares,
com as redes de conflitos. Redes...
4 Termo inspirado na msica Os Meninos da Baa de Vitria, do Grupo capixaba Moxuara, CD Pontos e ns, ES, 1999. 5 Expresso inspirada na poesia do poeta do pantanal, Manoel de Barros.
Temperos, sabores, saberesfazeres, poderes. O bairro fervilhando, o calor
cultural da Semana Santa e do Turismo Gastronmico. As guerras de mapas6
riscando geografias-territrios das vidas manguezeiras, praticadas com as
margens dos manguezais, e as geografias-territrios praticadas no mapa-
mvel-da-vida, com as Unidades de Conservaes.
Utilizamos algumas imagens que foram capturadas nas travessias com os
espaostempos da pesquisa, na inteno potica de compor o texto e produzir
sentidos. Inclumos tambm receitas culinrias dos principais pratos
comercializados e preparados na Ilha das Caieiras e utilizadas de diferentes
formas pelos sujeitos praticantes da pesquisa, no exerccio de trazer para o
texto os gostos e cheiros da pesquisa.
A expresso ilhs foi capturada do linguajar cotidiano em redes de
conversaes com os sujeitos praticantes da pesquisa, e a expresso guerra
de mapas denota os conflitos que atravessam as vidas dos sujeitos praticantes
e seus domnios de ao no narrar, morar, pescar e cozinhar nos manguezais
da Baa de Vitria, assim como a expresso margem, inspirada nas
singularidades naturais dos manguezais, que so ecossistemas que ocupam as
margens, e nas condies de vida dos que veem das margens e que so os
sujeitos praticantes da pesquisa.
Apresentamos tambm, inspirado nos ciclo de vida dos caranguejos, a noo
de devir caranguejo para discutir as relaes e os conflitos que foram nos
produzindo no exerccio de praticar o campo problemtico da pesquisa, com a
ateno focada nas artes de narrar, no morar, no pescar e no cozinhar da Ilha
das Caieiras e do praticar os cotidianos escolares da regio.
Entrar pelo meio no campo da pesquisa! Entrar e ser afetado com o devir
caranguejo, inspirado na noo de devir, que, segundo Deleuze e Parnet
(1998, p. 3),
6 Posteriormente explanarei o que denomino de guerra de mapas.
[...] no so fenmenos de imitao ou de assimilao, mas de dupla captura, de evoluo no paralela [...], no fingir, no fazer como ou imitar a criana, o animal, mas tornar-se tudo isso, para inventar novas foras e armas.
Nas travessias da pesquisa exercitamos os movimentos do devir caranguejo
com o curiosear, que, segundo Foucault, (2006, p. 196),
[...] o nico tipo de curiosidade que, de qualquer forma, vale a pena ser praticada com um pouco de obstinao: no aquela que busca se assimilar ao que convm conhecer, mas a que permite desprender-se de si mesmo.
Assim, com o devir caranguejo e o exerccio de curiosear com o campo
problemtico, conversamos e convivemos com mltiplas facetas e apostas
epistemolgicas em Educao Ambiental, deslocando-nos aos sentimentos de
incertezas nas travessias da pesquisa, desejando outros modos de caminhar,
em relao ao que havia feito no Mestrado.
Para alinhavar a composio da tese buscamos inspiraes na poesia de
Manoel de Barros, do livro Menino do Mato (2010), no exerccio de escrever e
desver o mundo e tentar pegar a semente da palavra, como um menino do
manguezal, um menino manguezeiro, menino da Baa de Vitria.
1.1. COMEANDO PELO MEIO
Invento para me conhecer.
Manoel de Barros.
Vrios estudantes vm aqui para nossa comunidade,
...fazem suas pesquisas sobre pescadores,
vo embora, no trazem um retorno,
no falam o que que aconteceu nas pesquisas deles...
(Desfiadeira de Siri)
Meus encontros e aproximaes com os manguezais iniciaram no devir-criana
nos ventos-de-travessias entre os manguezais de Guarapari, quando
morvamos na localidade de Peroco, uma vila de pescadores s margens do
rio de mesmo nome. Uma vila de pescadores com prticas do bairro
atravessadas pelo mar e com os manguezais. Sol, Brisa, praias, passeios de
barco, pescarias, brincadeiras na ponte e afetos familiares.
Os mundos da lama que embalam encontros e experincias nos implicando
politicamente no campo da Educao Ambiental e nas polticas cognitivas e de
narratividade desta pesquisa-tese.
Caminhos terrestres e flutuantes por entre as guas-turvas com a Educao
Ambiental produzida nas redes de saberesfazeres socioambientais com o
narrar, o morar, o pescar e cozinhar na Ilha das Caieiras entre os manguezais
da Baa de Vitria e os cotidianos escolares da regio. Caminhos, ingredientes
e experincias no navegar sem remo nem quilha, que atravessei e fui
atravessado, alimentado e encorajado com a fluidez e as multiplicidades das
guas-turvas da Baa de Vitria.
Aos oito anos de idade eu j frequentava o Campus Universitrio de Goiabeiras
e os cotidianos da comunidade universitria, devido s aproximaes familiares
com o local, sendo que as minhas primeiras aproximaes (polticas, ativistas e
acadmicas) com os manguezais aconteceram no incio do curso de graduao
em Geografia. Lembro-me bem dos encontros entre estudantes de diversos
cursos de graduao, pensando em aes que pudessem parar com a
destruio dos manguezais ao redor da universidade.
Queramos proteg-los da notria expanso da universidade e da duplicao
da avenida que d acesso ao campus universitrio. Nesses encontros criamos
a Organizao No-Governamental Amigos do Lameiro (ONGAL).
Participvamos intensamente das discusses em Conselhos de Meio Ambiente
e nos fazamos presentes tambm nos cenrios que envolviam os eventos de
Educao Ambiental na regio da Grande Vitria. Era a Educao Ambiental
que eu habitava! Os manguezais foram minhas pontes de contato com a
Educao Ambiental.
Visitava constantemente os mundos da lama da Baa de Vitria, e, de forma
mais intensa, os que recobriam as franjas da Ilha de Vitria. Foi assim por um
bom tempo! Mas, quis ampliar os olhares, dissolver os pontos de vistas, os
campos de viso. Ver o oposto, por entre os bosques dos manguezais, ver a
partir das margens prximas ao monte Mestre lvaro.
O monte Mestre lvaro, situado no municpio de Serra, e prximo foz do rio
Santa Maria, foi um importante ponto referencial para os primeiros
navegadores que desbravaram o litoral e os mares capixabas. O Mestre lvaro
referncia na historiografia capixaba e fonte de imaginao. A lenda do
Pssaro de Fogo uma destas inspiraes.
A lenda narra o amor proibido entre uma jovem ndia chamada Amanari, filha
do poderoso cacique Acau, com um jovem ndio, guerreiro de tribo rival,
chamado Cairi. Como reza a lenda, diante do sofrimento dos apaixonados,
uma ave misteriosa os conduzia a dois montes de onde podiam avistar um ao
outro.
Um dia, esse amor foi amaldioado por um encanto, que transformou o ndio no
Monte Mestre lvaro, e a ndia, no Monte Moxuara. Mas o pag, autor do
encanto, concedeu apenas a noite de So Joo, santo do amor, e padroeiro do
municpio de Cariacica, para que eles se encontrassem. Neste dia, uma bola
de fogo corta o cu... o Pssaro de Fogo!
Lendas, mitos e histrias que compem uma regio, reunindo num s lugar a
Baa Noroeste de Vitria, a Ilha das Caieiras, o pr-do-sol, o Moxuara, o Mestre
lvaro, os manguezais, as comunidades ribeirinhas, enfim uma corrente
atmosfrica repleta de imaginrios, amores e tipos culturais capixabas,
banhados e atravessados pelas guas do rio Santa Maria da Vitria.
A regio, os manguezais e o bairro Ilha das Caieiras invadiram a pesquisa,
deslocando-a para outros modos de caminhar, ao sabor das mars. Os
encontros com o Grupo de Pesquisa em Educao Ambiental (GPEA) e com o
Ncleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Educao Ambiental
(NIPEEA), coordenados pela professora Dra. Martha Tristo, foram me
constituindo, me autoproduzindo entre diferentes matizes, suscitando pistas e
curiosidades.
Com os atravessamentos e encontros nos horizontes do mestrado, desejei
compreender de que modo as relaes socioambientais de uma determinada
comunidade, situada na Baa Noroeste de Vitria, contribua com a
sustentabilidade da regio. Essa comunidade escolhida foi a Ilha das Caieiras.
Baa-me-das-guas dos rios Aribiri, Bubu, Itangu, Marinho e Santa Maria da
Vitria. A Baa de Vitria est entre as maiores reas de manguezais do Estado
Esprito Santo. Os manguezais abrangem quatro municpios da regio
metropolitana da Grande Vitria: Cariacica, Serra, Vila Velha e Vitria, e, de
acordo com o Censo de 2000 do IBGE, a populao desses municpios de
aproximadamente 1.283.735, correspondendo a 41,44% da populao do
Estado.
As reas de manguezais da Baa de Vitria esto configuradas como Unidades
de Conservao desses municpios, organizadas pela Lei 9.985/2000, que cria
o Sistema Nacional de Unidades de Conservao da Natureza (SNUC),
constituindo o Mosaico de reas Protegidas do Manguezal da Baa de Vitria,
cobrindo uma rea de 3.300 hectares.
O SNUC (2000) define uma Unidade de Conservao como um espao
territorial com recursos ambientais, incluindo as guas jurisdicionais e de
caractersticas naturais relevantes, legalmente institudos pelo poder pblico,
com o objetivo de conservar os limites definidos sob o regime especial de
administrao, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteo.
Com o reconhecimento do Mosaico das reas Protegidas da Baa de Vitria
(IPEMA, 2007) foram pensadas estratgias de gesto do conjunto de unidades
de conservao e reas protegidas que ele contempla. De acordo com esse
documento, a gesto ambiental das Unidades de Conservao seguir
princpios de integrao e de participao poltica e social, considerando-se os
seus distintos objetivos de conservao, de forma a compatibilizar a presena
da biodiversidade, a valorizao da sociobiodiversidade e o desenvolvimento
sustentvel no contexto regional.
As gestes das Unidades de Conservao so feitas por cada secretaria
municipal de meio ambiente dos municpios da Grande Vitria, perfazendo,
nesse Mosaico de reas Protegidas da Baa de Vitria, as seguintes unidades
de conservao: em Cariacica, a Reserva do Desenvolvimento Sustentvel do
Manguezal de Cariacica e o Parque Natural Municipal do Itangu; em Vila
Velha, o Parque Natural Municipal Morro da Manteigueira e o Monumento
Natural Morro do Penedo; e, sob a gesto da Secretaria de Meio Ambiente de
Vitria, a Estao Ecolgica Municipal Ilha do Lameiro, e o Parque Natural
Municipal Dom Luiz Gonzaga Fernandes.
No decorrer do Mestrado em Educao, me preocupei com a aposta no
biorregionalismo (SATO, 2001) em Educao Ambiental, que enfatiza o local
da cultura em suas dimenses geogrficas, biolgicas e inscritas na
constituio histrica dos sujeitos. Com esse movimento de pesquisa
apresentei a Dissertao, Educao Ambiental Biorregional: a comunidade
aprendente na Ilha das Caieiras, Vitria, ES, (GONZALEZ, 2006) com
orientao da professora Dra. Martha Tristo.
Desde o Mestrado desejava dialogar com a pesquisa em Educao Ambiental,
com mapas, com os espaos, com os territrios e com as representaes
cartogrficas. Esse desejo nos inclinou s abordagens biorregionais.
Articulamos, com a pesquisa do Mestrado, mapas e a produo de narrativas
com os pescadores da Ilha das Caieiras.
No incio dos horizontes do Doutorado em Educao, algumas questes
continuavam a me acompanhar, tornando-se potentes para o pensamento:
Podemos pensar a abordagem Biorregional em Educao Ambiental diante dos
processos de hibridizao das identidades culturais? Ou ainda: Os processos
de hibridizao cultural atravessam os saberesfazeres das prticas do bairro
Ilha das Caieiras?
Os manguezais da Baa de Vitria so reconhecidos pelas coletividades vivas
que nutrem famlias de pescadores e de catadores de caranguejos, as quais,
na atualidade, vivem dificuldades na atividade pesqueira, devido aos impactos
ambientais nos ecossistemas e principalmente por conta das proibies de
pesca na regio. Os manguezais foram cercados!
Prximo Ilha das Caieiras h um Parque e neste h um Centro de Educao
Ambiental. Integrei, em 2004, a equipe do Centro de Educao Ambiental do
Parque Natural Municipal da Baa Noroeste de Vitria organizando e
planejando atividades em Educao Ambiental com escolas da regio, grupo
de visitantes e comunidade em geral.
Nesses movimentos com o Centro de Educao Ambiental, conheci
pescadores e antigos moradores da Ilha das Caieiras. Era minha entrada pelo
meio, no campo problemtico desta pesquisa-tese, acompanhada de
conversas, memrias, marcas e acontecimentos; das artes de fazer e de narrar
das vidas manguezeiras de quem vive com as mars e os manguezais da Baa
de Vitria.
Mundos da lama temperados por temporalidades, conflitos, saberesfazeres,
poderes, cheiros e sabores, com estticas e ticas inventivas, produzidas pelos
sujeitos praticantes (CERTEAU, 2008) nas margens da Baa de Vitria:
Catadores de caranguejos, desfiadeiras de siris, pescadores artesanais,
educandos, educadores, educadoras, professoras e professores dos
espaostempos das redes cotidianas escolares da regio.
Os sujeitos praticantes para Certeau (2008) so sujeitos que inventam e
reinventam seus mundos, nos fluxos cotidianos, nas coletividades, nas artes de
fazer e narrar, com os usos de tticas e estratgias de resistncias,
reapropriando-se, a seu jeito, dos espaos, dos usos e dos lugares praticados.
Tentamos, nesta pesquisa-tese, acompanhar os movimentos dos territrios
existenciais das coletividades dos sujeitos praticantes que vivem nas margens
dos manguezais. Movimentos que compem mapas-mveis desta pesquisa
cartogrfica, povoada por experincias e saberesfazeres no bairro Ilha das
Caieiras. Os movimentos com sujeitos praticantes que vivem nas margens
inspiraram nossa poltica de narratividade (PASSOS; KASTRUP; ESCSSIA,
2010) para a tese.
A poltica de narratividade (PASSOS; KASTRUP; ESCSSIA, 2010) enquanto
escolha de uma posio narrativa o ethos desta pesquisa em Educao
Ambiental. uma posio que tomamos quando, em relao ao mundo e a si
mesmo, definimos uma forma de expresso do que se passa, do que acontece.
Movimentos polticos me levaram aos terrenos lamacentos entre diferentes
geografias que compem as reas protegidas de manguezais e delimitadas por
leis ambientais. reas de preservao ambiental que so atravessadas por
geografias dos cotidianos escolares, alimentadas na atualidade pelo calor
cultural do Turismo Gastronmico e da Semana Santa na regio.
Uma guerra de mapas, com conflitos, tenses e negociaes ambientais entre
os territrios das vidas manguezeiras e os territrios de controle, de
subjetivao e de preservao das reas de manguezais, coengendrando
coletivos de foras, desejos, poderes e tticas de resistncias e de
(re)existncias, que deixaram emergir saberesfazeres socioambientais
produzidos nas prticas do bairro e nas redes de conversaes cotidianas.
Unidades de Conservao que emergiram das discusses governamentais em
gabinetes, envolvendo representantes da sociedade civil, que foram engolidos
como peixes pequenos pelos discursos da preservao e da sustentabilidade
para um futuro melhor das geraes. Territrios de poderes que afetam as
prticas do bairro principalmente o narrar, o morar, o pescar e o cozinhar na
Ilha das Caieiras.
Discursos e narratividades pautados na expanso do futuro e encolhimento do
presente vieram tona, desperdiando as experincias e saberesfazeres das
vidas manguezeiras das famlias que sobrevivem na atualidade da pesca na
Baa de Vitria. Os manguezais sendo banhados pelos discursos e
narratividades do mercado verde? Criao de Unidades de Conservao
voltada para o fomento do Turismo Gastronmico? E as vidas manguezeiras?
A Baa Noroeste de Vitria compe encantos e recantos. Suas guas geram
afetos, conflitos e poderes. Vrios so os relatos de acontecimentos histricos
na regio, dentre eles as lembranas dos canoeiros do rio Santa Maria.
A obra Canoeiros do Rio Santa Maria, de Joo Ribas da Costa (1951),
descreve, numa linguagem folclrica, os momentos de desenvolvimento
econmico-social do municpio Santa Leopoldina, localizado na regio serrana
do Estado e banhado tambm pela bacia hidrogrfica deste rio, tendo como
foco desse progresso os canoeiros do Rio Santa Maria, [...] annimos
trabalhadores desajustados pela invaso dos caminhes trazidos pelas mos
do Progresso, que cobrou tributo usurrio a toda uma coletividade que vivia do
transporte fluvial [...] (COSTA, 1951, p. 25).
No sculo XIX, o escoamento da produo cafeeira da regio serrana do
Estado era feito em tropas, por terras, at o ponto onde o rio no era
encachoeirado, sendo que entre a ltima cachoeira e o porto de Vitria o
trfego comercial se valia de canoas. [...] o trfego de canoas era e tinha de
ser intenso, uma vez que servia de canal exclusivo para todo o comrcio
exportador e importador de vastssima regio (COSTA, 1951 p. 27).
Em decorrncia dos movimentos migratrios do campo para a cidade,
estimulados pela crise cafeeira da poca, o rio Santa Maria incorporou, no
sculo XX, outra importncia socioeconmica frente recente ocupao
humana sobre as margens da Baa Noroeste de Vitria.
Nesses movimentos de ocupao, expanso e urbanizao das margens da
Baa de Vitria, os manguezais se consolidaram como fonte de sobrevivncia,
com a extrao de madeiras para habitao e com a atividade pesqueira. A
Baa Noroeste de Vitria se destacou, diante desse panorama, como uma
regio com enorme potencial pesqueiro, provendo de alimentos a crescente
populao, que habitava suas margens.
As desfiadeiras de siri, as paneleiras do bairro Goiabeiras, os catadores de
caranguejos e pescadores so exemplos de grupos sociais lembrados quando
nos referimos regio e tambm descritos em vrias obras e trabalhos
documentais, incluindo a pesquisa de Mestrado em Educao (PPGE/UFES)
por mim desenvolvida.
Ilha-refgio! Geografias: de mosaicos de formas, foras e tenses
interconectadas. A Ilha das Caieiras j foi ilha e atualmente est circundada por
quase todos os lados pela Regio da Grande So Pedro, e nesse turbilho eu
atuava como Educador Ambiental no Centro de Educao Ambiental do Parque
Municipal da Baa Noroeste de Vitria. No decorrer do Mestrado e Doutorado
visitei o Parque algumas vezes, e ao visit-lo questionava comigo mesmo:
ativismo ambiental? Carreirismo ecolgico? Formao de educadores sobre o
manguezal?
Os mundos da lama e sua guerra de mapas, de geografias, reunies com
grupos organizados de catadores de caranguejos, escolas locais, campanhas e
aes educativas em perodos de andadas e defesos dos caranguejos. Que
Educao Ambiental balizava o meu fazer educativo? De que modo me
constituo poltico-tico e epistemologicamente com esta pesquisa-tese em
Educao Ambiental?
Nas pocas de reproduo e de proteo dos caranguejos, nas andadas e nos
defesos do caranguejo fazamos reunies com catadores de caranguejos. Da
mesma forma, fazamos abordagens em bares e restaurantes, divulgando
materiais informativos e atividades educativas em escolas, feiras livres e em
outros espaos comunitrios. Prticas que ainda so referncias para as aes
realizadas pela gerncia de Educao Ambiental, da Secretaria Municipal de
Meio Ambiente de Vitria.
A equipe do Centro de Educao Ambiental atuava basicamente com visitas
tcnicas e parcerias pedaggicas, com escolas e grupos organizados locais,
dentre eles os catadores de caranguejos, que nos acompanhavam em aes
educativas, nos perodos da andada e defeso dos caranguejos, envolvendo
tambm grupos de jovens organizados na rea de influncia do Centro de
Educao Ambiental.
No perodo em que trabalhei na Secretaria Municipal de Meio Ambiente de
Vitria aproximei-me do bairro Ilha das Caieiras, das prticas do bairro, dos
saberesfazeres socioambientais dos moradores e de suas relaes com os
manguezais. Bons encontros foram possveis e fundamentais nesse processo
de produo de subjetividades. Os movimentos da pesquisa produziram em
mim o devir caranguejo.
Durante as andadas e os defesos dos caranguejos, a equipe do Centro de
Educao Ambiental do Parque Municipal da Baa Noroeste de Vitria
participava de campanhas educativas em parcerias com as equipes de outros
setores da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Vitria (SEMMAM).
Os catadores de caranguejos eram convidados a participar das campanhas
durante as andadas e os defesos dos caranguejos. Saamos com eles em
canoas manguezal a dentro, e eles indicavam os lugares preferidos para a
captura dos caranguejos. Eram os saberesfazeres dos sujeitos praticantes nas
margens orientando as aes dos tcnicos e peritos.
Essas prticas produziram em mim questes que me moveram o pensar-e-
fazer enquanto Educador Ambiental. Desterritorializando-me diante da
Educao Ambiental, andando em lamas... devir caranguejo.
Pensava nas Educaes Ambientais que tambm se fazem no presente
cambiante (MATURANA; YNEZ, 2009) e na inveno coletiva. Educaes
Ambientais tecidas nas relaes e, no caso desta pesquisa-tese, no
compartilhar saberesfazeres socioambientais que habitam as tenses e os
conflitos cotidianos locais. Educaes Ambientais de quem as vivem, as
inventam cotidianamente.
Os municpios banhados pelos manguezais da Baa de Vitria tambm
desenvolvem aes e projetos em Educao Ambiental em parcerias entre
secretarias, com foco na preservao dos manguezais e fiscalizao da pesca
e da venda de caranguejos e guaiamuns em pocas de defeso e de andada.
So exemplos de aes em Educao Ambiental: Mangueando na Educao7,
Projeto Mangue Vivo, Campanhas de Andada e Defeso do Caranguejo e de
Gesto Sustentvel da Pesca de Caranguejos e Guaiamuns e o Programa
Mar Viva.
Nmeros de participantes envolvidos, objetivos e metas alcanadas, usos
sustentveis dos habitantes dos mundos da lama, relatrios descritivos,
reunies, limpeza dos manguezais, panfletagens, discusses de tcnicos e
peritos, participao de pescadores: tempo chrnos organizando o mundo da
lama dos manguezais.
7 O Projeto Mangueando na Educao, da Gerncia de Educao Ambiental da
Secretaria de Meio Ambiente, j atendeu 20 mil alunos em 72 escolas pblicas e particulares nos seus seis anos de existncia. So alunos de diferentes faixas etrias, de Ensino Fundamental, Mdio e Superior, inclusive de outros municpios. Alm do pblico escolar, o projeto tambm desenvolve atividades com grupos organizados; frequentadores e proprietrios de bares e restaurantes; catadores de caranguejo; Paneleiras; marisqueiras/desfiadeiras de siri; casqueiros; pescadores; instituies envolvidas com o tema; populao em geral. Disponvel em . Acessado em: 04 jul. 2013.
Aes nascidas em gabinetes e corredores distantes das lamas: mudanas de
comportamentos, conscientizao da populao, falta de informao, falta
disso e daquilo, busca por modelos, controles, formas, receitas, nmeros de
estudantes e professores, busca por indicadores. Participao?! Ou participar-
da-ao?!
Nas andadas com o Doutorado em Educao conheci uma localidade, situada
exatamente na outra extremidade da Ilha das Caieiras. Do lado de l do rio. O
contato com os espaos educativos da Ilha das Caieiras e com os
saberesfazeres produzidos na comunidade aguaram em mim o desejo em
conhecer tambm o outro lado da mar.
Nas aproximaes com o outro lado da mar, cheguei ao municpio de
Cariacica, aos ps do Monte Moxuara. Entro nos sculos XVIII e XIX
rastreando temporalidades em casarios, causos, lendas, festejos, carnaval dos
Mascarados do Congo de Roda Dgua (RAMOS, 2013), histrias, localidades
de Roda Dgua, Ibiapaba, Marirac, Roas Velhas, dentre outras, dissolvendo
os pontos de vistas e potencializando outros olhares do municpio de Cariacica
e da Baa de Vitria.
Dentre os lugarejos que compem o chamado Circuito Histrico-Cultural de
Cariacica, uma localidade me chamou a ateno: a Vila Cajueiro. Situada nas
proximidades da foz do rio Santa Maria, e com exuberantes manguezais,
margeando cenrios de nossa histria, como o Canal dos Escravos e o Porto
das Pedras, com seus sambaquis8 e runas.
A regio da foz do rio Santa Maria foi um importante acesso tanto s rotas de
colonizao, como navegao dos destemidos Canoeiros do rio Santa Maria,
e atualmente as marcas dos processos civilizatrios da modernidade impem
uma nova funo ao lugar. O mercado verde se impe. Os manguezais virando
loteamentos de luxo? O lugar de toda pobreza se metamorfoseando em
lugares de todas as riquezas?
8 Sambaquis so acmulos de restos e vestgios arqueolgicos de povos que ocuparam
uma determinada regio.
Navegando nas proximidades da foz d-se a impresso de haver um tipo de
invaso ou conflito, decorrente das interferncias ambientais, provocadas por
empreendimentos imobilirios, que transformaram os manguezais da Baa de
Vitria em grandes files para o mercado imobilirio, com a promessa de
oferecer tranquilidade, segurana, qualidade de vida e sustentabilidades.
Tanto a Vila Cajueiro como o Parque Natural Municipal do Itangu esto ambos
na Reserva de Desenvolvimento Sustentvel dos Manguezais de Cariacica,
criada em 2007, com o Mosaico das reas Protegidas de Manguezais da Baa
de Vitria (IPEMA, 2007).
Em 2010, algumas comunidades pesqueiras dessa Reserva de
Desenvolvimento Sustentvel foram envolvidas em oficinas de produo de
vdeo, como a comunidade de Nova Rosa da Penha, vizinha Vila Cajueiro.
Os resultados dessas oficinas garantiram a elaborao de vdeos-
documentrios, de cada uma delas, que integram o Projeto Povos e Mangues,
apoiado pelas Secretarias Municipais de Educao e Meio Ambiente de
Cariacica.
Falando em vdeos e documentrios e em busca deles, deparei-me com
produes audiovisuais locais e sobre a Baa de Vitria. Com ventos-de-
travessias, transportei-me para 1993, quando os jornais, livros, televiso e
documentrios da poca apresentavam a paisagem da regio, como Lugar de
toda pobreza9, em aluso ao documentrio-denncia de mesmo nome,
produzido pelo cineasta Amylton de Almeida, e que retrata o perodo em que a
Grande So Pedro era um grande lixo cu aberto.
9 Em So Pedro (bairro de Vitria, ES), sobreviviam, na dcada de 80, de forma quase
inacreditvel milhares de pessoas que do lixo tiravam o sustento, a comear pela alimentao. As cenas de mulheres, crianas e homens misturados aos dejetos e aos urubus inspiraram o cineasta Amylton de Almeida. O documentrio chocou o pas e pressionou as autoridades a iniciarem o processo de urbanizao e humanizao da regio. Disponvel em: . Acessado em: 18 jul. 2013.
Um lugar de toda pobreza que foi escondido? Estratgias para a consolidao
do Turismo Gastronmico? Estratgias do poder pblico e das agncias
miditicas e de telecomunicaes aliciadas pelo mercado verde?
Lugar (e tempo) de toda pobreza?! Lugar tambm de devires e de resistncias
cotidianas. Lugares dos sambaquis-de-restos consumidos, descartados,
acumulados e reinventados na contemporaneidade com seus diferentes usos.
Lugar com temporalidades e territrios inventados, compondo uma rede de
saberesfazeres socioambientais, numa guerra de mapas entre as reas de
preservao ambiental criada por leis, territrios das vidas manguezeiras dos
sujeitos praticantes nas margens e jogos de interesses, que mobilizam a
especulao imobiliria e o Turismo Gastronmico.
Ilha-refgio! Cercadas por conversas conectadas com as geografias
sentimentais e afetivas dos mundos da lama, banhados por diferentes tempos
e geografias: as mars, a pesca, as artes de cozinhar e de narrar.
Os espaos de controle das Unidades de Conservao: geografias-molares?
Diferentes ritmos, sons e cores entre os perodos de reproduo de
coletividades vivas dos manguezais, a supervalorizao do Turismo
Gastronmico na regio e a Semana Santa, que se prolonga por vrias luas!
Tempos chrnos dos depsitos-sambaquis de lixos, inventando outra cidade,
da regio da Grande So Pedro. Tempos kairs das coletividades vivas e no
vivas dos manguezais, envolvidas em jogos de poderes que alimentam o
caldeiro cultural do Turismo Gastronmico e da Semana Santa na Ilha das
Caieiras. Tempos ains das intensidades, potencialidades, possibilidades,
afetos, tenses, conflitos, saberesfazeres e de mudanas de vida, para os que
comiam restos e que ainda vivem das margens dos manguezais.
Temporalidades e territrios inventados com a criao do Turismo
Gastronmico, atravessando os ritmos das prticas do bairro, apresentando
pistas metodolgicas para a pesquisa-tese. Pistas e movimentos que veremos
a seguir, com os movimentos da pesquisa, acompanhados pelos sujeitos
praticantes nas margens, moradores da rua Felicidade Correia dos Santos e
narradores da mar.
CARANGUEJADA CAPIXABA 18 caranguejos gordos 2 pimentas-malagueta
1 cebola grande 4 tomates
Azeite Sal
1.2. ANDADAS E DEVIR CARANGUEJO
Eu fao travessuras com palavras. No sei nem me pular, quanto mais obstculos.
Manoel de Barros
Nas travessias desta tese em Educao Ambiental Autopoitica optamos pela
atitude de problematizar a produo de dados da pesquisa aproximando-se da
noo de problematizao de Foucault, destacadas no Dicionrio de
Foucault, de Judith Revel (2011). Problematizar, no reformar, mas instaurar
uma distncia crtica; fazer atuar o desprendimento, redescobrir os
problemas.
Nos movimentos de problematizar e em devires autopoiticos com o campo
problemtico surgiram questes: Que saberesfazeres so praticados pelas
famlias que vivem das coletividades vivas e no vivas dos manguezais da Baa
de Vitria? A quem cabe proteger e garantir os sustentos das vidas
manguezeiras que povoam essas guas, esses territrios e essas lamas, em
busca dos leites das mars, das carnes dos caranguejos, siris e peixes? De
que modo pensar a preservao dos manguezais, esteio da sobrevivncia de
milhares de famlias manguezeiras da Baa de Vitria? Que ecologias polticas
so praticadas na regio? Que Educaes Ambientais so praticadas?
Bons-encontros! Educaes Ambientais em redes de conversaes!
Autoproduo de si e de mundos! Educao Ambiental Autopoitica! Questes
problematizadoras inflamando o caminhar e o praticar do campo problemtico.
O que pode uma comunidade que vive na oficina do viver entre os
manguezais? De que modo as sabedorias do caos dos mundos da lama na
Baa de Vitria atravessam as prticas do bairro Ilha das Caieiras? Como as
Unidades de Conservao interferem nas artes de narrar, morar, pescar e
cozinhar, ou seja, nas prticas do bairro da Ilha das Caieiras?
Nos manguezais as temporalidades so outras. Os veres so fervilhados com
calor cultural que contagiam os sujeitos praticantes das margens e moradores
da Ilha das Caieiras. Os moradores, numa organizao comunitria e familiar,
aceleram-se com os ritmos embalados com o Turismo Gastronmico e a
proximidade da Semana Santa, quando so comercializadas tortas e
moquecas capixabas, fazendo o bairro respirar temperos, gostos e cheiros.
Inspirado no perodo ou ciclo de vida dos caranguejos, marcado pelas fases da
andada, engorda e troca de casco, fui entrando nas travessias e me deixando
atravessar por elas. O devir caranguejo meu prprio domnio de ao
autopoitica e de atitude epistemolgica e metodolgica, tudo junto e
misturado, como as carapaas dos caranguejos, embalando enlaces
objetivosubjetivos da pesquisa e do pesquisador.
Com as andadas nas Secretarias de Meio Ambiente e nos rgos ambientais
federais, estaduais e municipais, encontramos calendrios oficiais, indicando
os dias em que os caranguejos iro andar, facilitando assim o controle da
captura e da comercializao dessas espcies. Mas as vidas manguezeiras
so rizomticas. Caranguejos so rizomas. Devires a riscar e furar as margens
das mars. Os caranguejos, no manguezal, no se deixam capitalizar e serem
controlados pelo tempo chrnos. E os caranguejos nada se importam com
esses calendrios! Caranguejo devir!
Nas andadas, os hormnios dos caranguejos ficam alterados, sendo facilmente
capturados, tanto machos e fmeas, que saem de suas tocas para acasalarem.
Nesta fase proibida a captura e a comercializao dos caranguejos.
As andadas so temporalidades das paixes nos berrios dos mares,
territrios de coletividades vivas que acompanham luas, chuvas e o calor dos
veres. Geralmente as andadas acontecem nas primeiras luas de Janeiro, lua
cheia ou nova, e so anunciadas quando os machos espumam e exalam seus
cheiros de hormnios nos manguezais, e que segundo os catadores de
caranguejos: ...parece at com o cheiro do caranguejo cozido.
Os tempos ains e kairs agem nas andadas dos caranguejos? Agem tambm
nos veres das frias escolares, quando os meninos-da-baa-de-Vitria ficam
molhados de peixes e carregam guas nas peneiras? Os tempos ains e kairs
povoam as coletividades das oficinas de viver da escolabairro?
Questes atravessavam e acompanham os movimentos das mars e dos
ventos-de-travessias com os sujeitos praticantes nas margens. Eu me
organizando, posso me desorganizar... eu me desorganizando, posso me
organizar. Da lama ao caos, do caos lama. O homem roubado nunca se
engana (CHICO SCIENSE; NAO ZUMBI, 2000).
As astcias dos jogos de poderes e das prticas do bairro nesse
ambientemanguezal, rizomtico, da escolabairro e da oficina do viver ganham
sonoridades e caricaturas nos ilhs. Um jeito singular e carnavalesco do
conversar os encontros, tecendo redes de conversaes sobre as tticas de
sobrevivncias dos sujeitos praticantes nas margens diante dos territrios de
preservao ambiental.
Nossas apostas andam tambm em direo s potncias dos saberesfazeres
socioambientais, que riscam as geografias e os territrios das prticas do bairro
da Ilha das Caieiras e das vidas manguezeiras criadas com os leites das mars
da Baa de Vitria.
So apostas epistemolgicas, ontolgicas, polticas e metodolgicas me
autoproduzindo com o devir caranguejo, entre os fluxos das guas-turvas de
um rio, e que trazem tona multiplicidades e singularidades de saberesfazeres
socioambientais com as prticas do bairro Ilha das Caieiras.
Apostas no sentido de pr entre parnteses (MATURANA, 2006) meus prprios
olhares diante das Educaes Ambientais que pratico, entendendo que nossos
territrios existenciais so praticados por Educaes Ambientais encarnadas e
atualizadas, assim como as coletividades dos sujeitos praticantes nas margens.
Manguezais em margens banhadas por coletivos de foras entre relaes de
poderes e de controles. O homem um rio turvo. preciso ser um mar para,
sem se toldar, receber um rio turvo (NIETZSCHE, 2002, p. 26).
Ambiente de manguezal rizomtico, rizo-flora, rizoflora! Catico em
multiplicidades de foras e de poderes, num jogo de estratgias e tticas,
inventando geografias cotidianas com o bairro e entre os manguezais, nutrindo
vidas, saberesfazeres, sabores, poderes e desejos com as prticas do
Bairroescola ou Escolabairro, que se com-fundem e se atravessam.
Nas andadas com a escolabairro e as guas-turvas percebemos as
proliferaes de Educaes Ambientais em fluxos nas coletividades, nos
entres, nas margens! guas e ventos modelando corpos vibrteis, criando
enlaces com as vidas cotidianas com as mars e com as interfaces msticas e
sagradas das artes de narrar, cozinhar, morar, pescar e comercializar, e que
alimentam o Turismo Gastronmico e a Semana Santa na regio.
Andando por entre as abordagens do nosso Ncleo de pesquisa, o NIPEEA,
coordenado pela professora Dra. Martha Tristo encontrei pesquisas em
Educao Ambiental (TRISTO, 2012). Mapas, territrios, regies, lugares,
rios, manguezais..., dimenses que me acompanham no caminhar da pesquisa
e as andadas continuaram. Estvamos andando, trocando o casco e
engordando! Alguns silncios e sussurros soavam fortes nas leituras do
Doutorado.
Um caminhar interessado em ventilar, furar e rachar as noes de identidades
fixas, percebendo-as como fluidas, descentradas, inacabadas, hbridas e em
negociaes nas redes de saberesfazeres e poderes das vidas cotidianas.
Essa aposta poltica e epistemolgica assumida aqui advm tambm dos
envolvimentos em elaborao de projetos e artigos com aproximaes
cartogrficas e das leituras de engorda e de trocas do casco, com os grupos de
pesquisas dos quais participamos na UFES, alm dos espaos de formao
com professores/as das redes municipais de ensino.
As leituras das pesquisas anteriormente comentadas, o devir caranguejo pelos
caminhos do campo de pesquisa, as conversas, os movimentos tticos, o ilhs
falado na comunidade e as vidas cotidianas dos sujeitos praticantes nas
margens deslocaram-me de maneira objetivasubjetiva entre os mundos da
lama e os meus mundos e nos movimentos de pesquisa e de escrita desta
tese.
Com o devir caranguejo no campo problemtico da pesquisa, acompanhei
pistas que indicaram Educaes Ambientais Autopoiticas produzidas com as
prticas do bairro e com os ritmos das vidas cotidianas dos homens sem
qualidades dos mundos da lama da Baa de Vitria.
Educaes Ambientais Autopoiticas que acompanham as vidas manguezeiras
de quem vive nas mars. Famlias que esto sendo proibidas de viver da pesca
na Baa de Vitria. E o Turismo Gastronmico? E a Semana Santa?
Sustentabilidade! Sustentabilidades! Que sustentabilidade essa? A quem ela
serve?
O que pode o devir caranguejo nas minhas andanas por entre o campo
problemtico da pesquisa? O devir caranguejo e seus movimentos de
desterritorializao, reterritorializao e territorializao do pesquisador,
traando imagens-movimentos de Educaes Ambientais Autopoiticas,
negociadas e enunciadas com as andadas, engordas e trocas de casco da
pesquisa e com as prticas do bairro e os cotidianos escolares da regio da
Ilha das Caieiras.
Educaes Ambientais Autopoiticas produzidas com as conversas
consideradas como dimenses ontolgicas, estticas e polticas dos seres
humanos, geradas no linguajar, criando subjetividades e saberesfazeres
socioambientais que problematizam discursos jurdicos, tcnicos, oficiais e os
difundidos nas mdias.
As conversas, as narrativas, as oficinas de mapas, as prticas do bairro, os
dirios de campo, as fotografias, as Semanas Santa, os Turismos
Gastronmicos, os ilhs falados na Ilha, as leituras e os cotidianos escolares
proporcionaram-me encontros com diferentes Educaes Ambientais, em
caminhos solitrios, porm acompanhados, povoados e abertos s
experincias metodolgicas no campo problemtico.
A Educao Ambiental Autopoitica sendo engordada e discutida nos
encontros no curso de Doutorado em Educao, com os pesquisadores do
Ncleo Interdisciplinar de Pesquisas e Estudos em Educao Ambiental, o
NIPEEA, coordenado pela professora Dra. Martha Tristo, e com os grupos de
pesquisa em Educao, coordenados, pelos professores Carlos Eduardo
Ferrao e Janete Magalhes Carvalho, do Ncleo de Pesquisa Culturas,
Currculos e Cotidianos, o NUPEC.
Dos encontros e das discusses nasceram parcerias e produes com a
pesquisadora e mestra em Educao Andria Teixeira Ramos, que juntos
apostamos em pensar em Educaes Ambientais Autopoiticas e que teve
como dispositivo as redes de conversaes nos movimentos iniciais da
produo do artigo Conversas com Humberto Maturana. Aproveito o devir para
uma licena amorosa no texto e dizer que essas produes constituem e
compem nossas vidas acadmicas, pessoais e profissionais em movimentos
autopoiticos, com invenes de si e dos mundos praticados por ns.
Foram produzidas tambm parceiras com orientandas e estudantes do
Mestrado em Biologia (UFES), possibilitando a publicao de um artigo na
Revista do Mestrado em Educao Ambiental, da UFRGS. Nessas parcerias,
os cotidianos escolares e os manguezais se apresentaram em diferentes
perspectivas.
Os encontros, discusses e demais publicaes nos diferentes espaostempos
acadmicos foram aqui compilados e adaptados ao corpo-movimento desta
pesquisa em Educao Ambiental, concentrando esforos e criando espaos
para nos colocarmos mesa de discusso e pormos conversa nossas
apostas ontolgicas, ticas, estticas e polticas na Educao Ambiental
Autopoitica, praticada nas coletividades das relaes com e no apenas para
algum. Educao Ambiental Autopoitica enquanto fluxos, produes de
subjetividades que se inventam a outros e a seus mundos.
Nossa aposta pensar na Educao Ambiental Autopoitica com os estudos
de Maturana (1994). pensar que produzimos, desde nossos ancestrais,
modos de vida como seres amorosos no compartilhar alimentos e cuidados,
nos acoplando com as realidades e constituindo aquilo que Maturana denomina
de Biologia do Conhecer ou Autopoiese. Autopoiese vem do grego: auts,
prprio; poieu, poiein, poiesis, fao, fazer, o feito, a produo de si mesmo,
autofazimento um sistema autopoitico uma teia de processos que vo se
produzindo atravs de transformaes e interaes (ASSMANN, 1998).
Apostamos assim nas aprendizagens como processos pautados nos
comprometimentos ticos e solidrios, no compartilhar a ideia de que No o
conhecimento, mas sim o conhecimento do conhecimento que cria o
comprometimento (MATURANA; VARELA, 1995, p. 270). Pensando assim, a
Educao Ambiental Autopoitica um exerccio de compromisso e
responsabilidade em propiciar aprendizagens coletivas, compartilhadas com
solidariedades e cooperaes.
Portanto, pensar a Educao Ambiental Autopoitica na sociedade
contempornea pressupe relaes ticas fundamentais aos processos de
aprendizagens coletivas, produzidas com as redes de conversaes escolares
e em seus diferentes espaos de convivncias com os sujeitos, que, por sua
vez, so potentes ao exercitarem, nessas coletividades, a aceitao do outro
junto a ns, na convivncia, desejando potencializar redes de conversaes
cotidianas alegres, afetuosas e acolhedoras.
Queremos agora colocar mesa de discusso a Biologia do Conhecer e a
Biologia do Amor, ressaltando a potncia da emoo do amor e seus
entrelaamentos possveis com a Educao Ambiental Autopoitica,
principalmente com o fenmeno biolgico das aprendizagens inventivas
(KASTRUP, 2007a) nas coletividades vivas e no-vivas. Assim, com o devir
caranguejo enquanto domnio autopoitico e biolgico dos seres vivos na
oficina do viver e em ventos-de-travessias com as mars e os sujeitos
praticantes nas margens dos manguezais da Baa de Vitria, encontrei as
noes-inspiraes epistemolgicas, polticas, filosficas, ontolgicas e
metodolgicas para esta pesquisa-tese.
Os caminhos e enlaces metodolgicos ganharam outros matizes e se
aproximaram de noes e referenciais que entendem as identidades e as
culturas como plurais, complexas, dinmicas, em processos de permanente
inveno e de negociaes de sentidos, encarnados nas redes de
saberesfazeres e de poderes, que tencionam incessantemente a vida cotidiana
com as formas-foras e os processos de subjetivao da sociedade de
controle.
O devir caranguejo est sendo, com os encontros, os projetos em Educao
Ambiental, as experincias com as Semanas Santas, o Turismo Gastronmico,
os conflitos da pesca, as prticas do bairro, a carpintaria da canoa, passeios de
barco, os restaurantes, a pesca do sururu, o cotidiano de trabalho dos
pescadores e das desfiadeiras de siris, o permanguezal e seus embalos nos
finais de semana, os meninos-da-baa-de-Vitria, que carregam guas nas
peneiras, o Museu do Pescador, as escolas da regio, a Rua Felicidade
Correia dos Santos.
Nos ventos-de-travessias da pesquisa-tese, a produo de dados acompanhou
processos: o morar na Ilha das Caieiras, as redes de conversaes nos
espaostempos de convivncias e convenincias dos cotidianos escolares, os
lugares, os trajetos cotidianos, os conflitos com as lei, as artes de narrar,
cozinhar e pescar, as relaes de parentescos...
Conflitos ambientais! Bifurcaes! Mesmo diante desse quadro pintado e
veiculado nas mdias, divulgando as restries dos usos que os pescadores
praticam e vangloriando os avanos e progressos dos peixes grandes; apesar
disso, as vidas cotidianas e manguezeiras acontecem e escapam. As astcias
dos sujeitos praticantes nas margens e as formas inventivas e de
(re)existncias compem potencialidades e permitem a comunidade da Ilha das
Caieiras navegar por outros modos de caminhar, inventando geografias,
prticas do bairro, saberesfazeres, levando alimentos e nutrindo os desejos da
coletividade local.
2. EDUCAES AMBIENTAIS AUTOPOITICAS COM AS PRTICAS DO
BAIRRO ENTRE OS MANGUEZAIS E OS COTIDIANOS ESCOLARES DA
ILHA DAS CAIEIRAS.
Eu sustento com palavras o silncio do meu abandono.
Manoel de Barros
2.1. CONVERSAS E APROXIMAES COM HUMBERTO MATURANA E MICHEL DE CERTEAU: PRTICAS DO BAIRRO E DOMNIOS DE AES, CONVENINCIA E CONVIVNCIA.
Eu sempre guardei nas palavras os meus desconcertos.
Manoel de Barros
Neste captulo acompanhamos os movimentos do narrar, morar, pescar,
cozinhar, comercializar e dos cotidianos escolares, apostando e
problematizando Educaes Ambientais Autopoiticas praticadas pelos sujeitos
praticantes nas margens dos manguezais da Baa de Vitria. Um captulo que
emergiu com o que acontece nos domnios de aes cotidianas em redes de
conversaes na convivncia e nas convenincias e no compartilhar os
espaos pblicos e privados da vida comunitria do bairro Ilha das Caieiras.
As conversas reunidas neste captulo foram inspiraes produzidas a partir das
leituras de Humberto Maturana e Michel de Certeau. Conversas que apontaram
para uma poltica da narratividade que considera que os saberesfazeres
socioambientais das prticas do bairro so inventados nas relaes de
convivncia e convenincia, no linguajar das redes de conversaes com as
artes de narrar que atravessam os manguezais e os cotidianos escolares da
Ilha das Caieiras.
Destacamos que a discusso de Maturana est circunscrita na sua condio de
bilogo, refletindo sobre a cincia como domnio cognitivo gerado como
atividade biolgica humana. Nesse sentido, reforamos as ideias de Maturana
(2006) ao questionar as explicaes cientficas como uma verdade absoluta,
inquestionvel e inerente aos discursos da racionalidade moderna, diluindo os
pontos de vista e colocando entre parnteses a objetividade das explicaes
cientficas. Apresentamos o trecho do livro Cognio, cincia e vida cotidiana
de Humberto Maturana (2006, p. 147):
Ns no encontramos problemas ou questes a serem estudados e explicados cientificamente fora de ns mesmos num mundo independente. [...] Ento, a cincia, como um domnio cognitivo, existe e se desenvolve como tal sempre expressando os interesses,
desejos, ambies, aspiraes e fantasias dos cientistas, apesar de suas alegaes de objetividade e independncia emocional.
Suas proposies no pretendem oferecer respostas s dicotomias extremas
que caracterizam o pensamento moderno; pelo contrrio, suas noes indicam
que as histrias dessas distines a nossa histria enquanto seres biolgicos
e sociais, e que o jogo das explicaes do nosso estar no mundo e na vida
cotidiana um jogo cujas regras forjamos medida que vamos avanando no
jogar.
Iniciamos as conversas entre Maturana e Certeau com as redes de
conversaes entre a escolabairro, o cotidianomanguezal, o bairromanguezal e
a familiamanguezal. Assim, podemos afirmar que as noes de prticas do
bairro em Certeau se aproximam das noes de domnios de aes de
Maturana? O narrar, o morar, o pescar e o cozinhar so tambm domnios de
aes ontolgicos dos seres humanos, no viver cotidiano e coletivo? As
conversas e as artes de narrar em Certeau se aproximam das conversas com
Maturana? Conversas que queremos costurar. Conversas que trazem pistas
para pensamos a Educao Ambiental Autopoitica.
Vamos aos lampejos dessas conversas, comeando com as noes de
prticas do bairro e domnios de aes, que, neste caso, Maturana (2006, p.
128) define do seguinte modo:
Estou chamando de aes tudo o que fazemos em qualquer domnio operacional que geramos em nosso discurso, por mais abstrato que ele possa parecer. Assim, pensar agir no domnio do pensar, andar agir no domnio do andar, refletir agir no domnio do refletir, (...), e assim por diante, e explicar cientificamente agir no domnio do explicar cientfico.
No bairro Ilha das Caieiras, as relaes familiares e parentais se destacam na
organizao social e comunitria do narrar, morar, pescar e cozinhar. O
praticar o cotidiano do bairro Ilha das Caieiras conviver em famlia, com os
manguezais e com a estrutura fervilhante da rua (CERTEAU; GIARD; MAYOL,
2009). As famlias, com seus ilhs, so os narradores da mar.
Prticas do bairro que so aqui pensadas como os saberesfazeres
socioambientais praticados nas relaes e nos vnculos que unem e organizam
os espaos privados e pblicos da vida do bairro, como um tecido social,
organizado e inventado [...] como aes especficas, como tticas
(CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2009, p. 38), e reunindo condies de
possibilidades da vida cotidiana no espao urbano do bairro.
O narrar, o morar, o pescar e o cozinhar enquanto prticas do bairro e aes
tticas permitem, de certa maneira, a permanncia dessas aes no contexto
da guerra de mapas que atravessam as vidas manguezeiras e as reas de
manguezais.
As artes de narrar com o sonoro linguajar dos ilhs dos sujeitos praticantes das
margens, percebemos as redes de conversaes e os comportamentos que
organizam as prticas do bairro instaurando jogos de poder negociados na
coletividade, traduzindo-os como benefcios simblicos conquistados com as
regras de convivncias do bairro. Segundo Certeau, Giard e Mayol (2009, p.
39), e pensando com os domnios de aes e as prticas do bairro, os
benefcios simblicos aparecem [...] de maneira parcial, fragmentada, no modo
como caminha, ou, de maneira mais geral, atravs do modo como consome o
espao publico.
Podemos pensar, com Maturana, o conviver com o outro como legtimo outro
na convivncia, no conversar e a convenincia que organizam as vidas dos
usurios do bairro, como nos apresenta Certeau? Que aproximaes podemos
fazer entre a convivncia segundo Maturana e a convenincia de acordo com
Certeau?
As prticas do bairro entre os manguezais e os cotidianos escolares da Ilha das
Caieiras so pensadas aqui como formas, fluxos e relaes de convivncias,
criando espaos de aceitao, de tenses e conflitos, negociados nas relaes
sociais, num domnio emocional que [...] constitui um espao de aceitao
mtua no qual pode dar-se a convivncia (MATURANA, 2002, p. 74).
Assim, pensando com Certeau, quais as relaes e aproximaes entre a
noo de convenincia com o dar-se a convivncia segundo Maturana, por
suas palavras?
[...] sem aceitao mtua no pode haver coincidncias nos desejos no h harmonia na convivncia, nem na ao nem na razo e, portanto, no h liberdade social. Alm do mais, se no compreendermos isto, no podemos compreender porque h tantas divergncias que nunca iro se resolver sem um ato declarativo que as elimine (MATURANA, 2002, p. 74-75).
As prticas do bairro entre os manguezais e os cotidianos escolares da Ilha das
Caieiras, considerados como espaos de convivncias (MATURANA, 2002),
geram tambm espaos de convenincias (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2009)
e polticas do bairro, que atravessam os espaos pblicos e privados com as
artes de pescar, cozinhar, morar e narrar. Espaos de desejos que inventam a
vida cotidiana no bairro. Certeau, Giard e Mayol (2009, p. 39) nos apresenta a
convenincia em jogo com a vida coletiva.
A convenincia grosso modo comparvel ao sistema de caixinha (ou vaquinha): representa, no nvel dos comportamentos, um compromisso pelo qual cada pessoa, renunciando anarquia das pulses individuais, contribui com sua cota para a vida coletiva, com o filtro de retirar da benefcios simblicos necessariamente protelados. Por esse preo a pagar (saber comportar-se, ser conveniente), o usurio se torna parceiro de um contrato social que ele se obriga a respeitar para que seja possvel a vida cotidiana.
Nesse sentido, as prticas do bairro entre os manguezais e os cotidianos
escolares da Ilha das Caieiras inventam Educaes Ambientais Autopoiticas
nas redes de conversaes cotidianas? Que saberesfazeres socioambientais
so praticados na convivncia entre os sujeitos praticantes nas margens dos
manguezais da Baa de Vitria?
Na convivncia com o bairro, so tecidos tambm os benefcios simblicos que
se espera obter pela maneira de se portar no bairro; neste caso, pela maneira
de se portar no narrar, morar, pescar e cozinhar, pensados enquanto
materializao das relaes de convivncia e produtora de benefcios
simblicos, assentados em relaes culturais que organizam e possibilitam a
vida no bairro.
As artes de narrar, morar, pescar e cozinhar na Ilha das Caieiras so
coengendradas por relaes de convivncias e de convenincias familiares e
comunitrias, com ritmos de usos e consumos dos espaostempos da vida do
bairro, entremeados de conflitos, afetos, interesses e poderes que atravessam
as vidas dos sujeitos praticantes nas margens.
Como afirma Certeau, Giard e Mayol (2009), a convenincia da vida no bairro
como um contrato social que, no caso da Ilha das Caieiras, os sujeitos
praticantes nas margens negociam para que seja possvel a convivncia no
bairro e na vida cotidiana. Convenincia tem a ver com os pontos de vistas dos
observadores? O conveniente no bairro Ilha das Caieiras a vida manguezeira
alimentar o Turismo Gastronmico?
Pensando nisso, a convenincia e convivncia entre os sujeitos praticantes nas
margens inventam saberesfazeres socioambientais entre as prticas do bairro,
os manguezais e os cotidianos escolares, constituindo o que denomino de
Educaes Ambientais Autopoiticas, enquanto domnios de aes cognitivos e
ontolgicos produzidos nas redes de conversaes nos processos de conhecer
e no agir nas coletividades da vida cotidiana.
Os domnios de aes cognitivos e ontolgicos do ser humano enquanto ser
social e biolgico so prticas que nos ajudaram a problematizar, como nas
palavras de Certeau, Giard e Mayol (2009, p. 39-40), essa grande
desconhecida que a vida cotidiana,
[...] a combinao mais ou menos coerente, mais ou menos fluida, de elementos cotidianos concretos (menu gastronmico) ou ideolgicos (religiosos, polticos), ao mesmo tempo passados por uma tradio (de uma famlia, de um grupo social) e realizados dia a dia atravs dos comportamentos que traduzem em uma visibilidade social fragmentos desse dispositivo cultural, da mesma maneira que a enunciao traduz na palavra fragmentos de discurso. Prtico vem a ser aquilo que decisivo para a identidade de um usurio ou de um grupo, na medida em que essa identidade lhe permite assumir o seu lugar na rede de relaes sociais inscritas no ambiente.
Praticamos o campo problemtico da pesquisa-tese em Educao Ambiental
com as prticas do bairro Ilha das Caieiras e com ateno flutuante por entre
as margens dos manguezais e dos cotidianos escolares da regio. Com isso,
nossos zoons esto menos focados na descrio dos sujeitos praticantes e
mais nas relaes, nas redes de conversaes, nas artes de narrar, nos fluxos,
nas travessias e nos saberesfazeres socioambientais que realizam no
bairroescola.
A noo de bairro, nas palavras de Certeau, Giard e Mayol (2009, p. 42), pode
ser considerada [...] como a privatizao progressiva do espao pblico.
Ainda para esse autor,
[...] o bairro pensado enquanto [...] dispositivo prtico que tem por funo garantir uma soluo de continuidade entre aquilo que mais ntimo (o espao privado da residncia) e o que mais desconhecido (CERTEAU, 2009, p. 42).
Assim, as singularidades das prticas do bairro produzem saberesfazeres
socioambientais que atravessam os cotidianos escolares e a vida comunitria
praticada na oficina do viver (MATURANA, 2006) do bairroescolamanguezal.
Para Maturana (2006), vivemos em nossos cotidianos uma oficina do viver e do
aprender. Desse modo, pensando com Certeau, Giard e Mayol (2009), o narrar,
o morar, o pescar e o cozinhar so domnios de aes cognitivos e ontolgicos
dessa oficina do viver e do aprender humano sobre o espao da vida
comunitria, na qual os sujeitos praticantes poetizam o bairro a sua maneira,
numa autoproduo de saberesfazeres e da vida coletiva do bairro. Nas
palavras de Certeau, Giard e Mayol (2009, p. 42), caminhante assumido, o
bairro
[...] constitui o termo mdio de uma dialtica existencial entre o dentro e o fora. E na tenso entre esses dois termos, um dentro e um fora, que vai aos poucos se tornando o prolongamento de um dentro, que se efetua na apropriao do espao. O bairro, poder-se-ia dizer, assim a ampliao do habitculo; para o usurio, ele se resume soma das trajetrias inauguradas a partir do seu local de habitao. No propriamente uma superfcie urbana transparente para todos ou estatisticamente mensurvel, mas antes a possibilidade oferecida a cada um de inscrever na cidade um sem-nmero de trajetrias cujo ncleo irredutvel continua sendo a esfera do privado.
O bairroescola une a vida privada e a vida pblica de quem vive na coletividade
do bairro, de quem pratica o bairro, numa caminhada que, conforme Certeau,
Giard e Mayol (2009, p. 42),
[...] sempre portadora de diversos sentidos [...], inmeros segmentos de sentido que podem ir um tomando o lugar do outro conforme se vai caminhando, sem ordem e sem regra, despertadas ao acaso dos encontros, suscitadas pela ateno flutuante aos acontecimentos que, sem cessar, se vo produzindo na rua.
A vida em coletividade enredada entre o narrar, o morar, o pescar e o
cozinhar com os manguezais e os cotidianos de duas escolas da regio,
inventando espaos de relaes com o outro, e acordos de convivncia e
convenincia, entre o que pode e no pode fazer ou deixar de ser feito.
Os cotidianos escolares dessas escolas so atravessados pelos manguezais e
o narrar, o morar, o pescar e o cozinhar na Ilha das Caieiras, com corredores e
quadras escolares se tornando rizomas. Rhizophora mangle10 que invadem e
torcem as formas, temporalidades, saberesfazeres, poderes, impregnando as
cozinhas escolares e as casas dos estudantes e professores/as.
Os cotidianos escolares praticados pelos narradores da mar provocaram
encontros e atividades com os estudantes e professores/as de duas escolas
que acompanhamos. Corredores, ptios, salas de aulas, per, rua Felicidade
Correia dos Santos, familiares, manguezal, fotos, vdeos, mapas, msicas,
conversas, narrativas, com encontros molhados-de-peixe e rodeados de
conflitos e afetos.
Nesses encontros foram problematizadas as redes de saberesfazeres das
prticas do bairro e seus atravessamentos com os manguezais e os cotidianos
escolares como possibilidades para pensarmos em Educaes Ambientais que
so produzidas nas relaes entre as coletividades vivas e no vivas,
configurando em Educaes Ambientais Autopoiticas encharcadas de
resistncias das vidas manguezeiras.
10
Nome cientfico da rvore do mangue-vermelho.
A aposta em pensar na Educao Ambiental Autopoitica foi inspirada nos
pensamentos do bilogo chileno Humberto Maturana, que nasceu em 1928, e
que, em 1948, ingressou no Curso de Medicina. Logo nos primeiros anos de
estudos, como bilogo, pesquisou o funcionamento dos seres vivos, do sistema
nervoso e da cognio. Maturana evidencia no trecho abaixo, as suas
experincias e curiosidades cientficas:
Eu como bilogo, interessei-me pelo estudo do sistema nervoso e dos fenmenos da percepo, em particular [...] desde muito jovem me preparei no mbito biolgico mais amplo possvel: interessaram-me a anatomia, a biologia, a gentica, a antropologia, a cardiologia. Quer dizer, na minha curiosidade, eu me movi nesse mbito amplamente. Tambm me interessei pela filosofia. Fiz ainda medicina durante quatro anos (MATURANA, 2006, p. 20).
Humberto Maturana, em parceria com Francisco Varela, abalaram as fortes
influncias do representacionismo, principalmente com a noo de Autopoiese.
Autopoiese vem do grego: auts, prprio; poieu, poiein, poiesis, fao, fazer, o
feito. Autopoiese a produo de si mesmo, um autofazimento de um sistema
autopoitico, por fluxos, transformaes e interaes. Abaixo segue, nas
palavras de Maturana e Varela, um conceito sobre sermos seres vivos e
autopoiticos:
O que nos define como seres vivos, que somos sistemas autopoiticos moleculares, e que entre tantos sistemas moleculares diferentes, somos sistemas autopoiticos. [...] Considero que necessrio tomar conscincia de que os seres vivos so entes histricos partcipes de um presente histrico em contnua transformao para compreender [...] que como seres vivos somos sistemas autopoiticos moleculares, e o que dizemos ao afirmar que o viver se d na realizao da autopoiese (MATURANA; VARELA, 1997, pp. 18; 31).
Os estudos da cognio desenvolvidos por Maturana com a Biologia do
Conhecer ou Autopoiese desencadearam mudanas no campo dos estudos da
cognio, inspirando epistemologicamente a escrita desta tese e nossos modos
de ver e entender os domnios do viver e do aprender. Como o prprio
Matur