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ANDR PEIXOTO DE SOUZA
DIREITO PBLICO E MODERNIZAO JURDICA:
Elementos para compreenso da formao da
cultura jurdica brasileira no sculo XIX
CURITIBA
2010
ii
ANDR PEIXOTO DE SOUZA
DIREITO PBLICO E MODERNIZAO JURDICA:
Elementos para compreenso da formao da
cultura jurdica brasileira no sculo XIX
Tese apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Direito, Setor de Cincias
Jurdicas da Universidade Federal do Paran,
como requisito parcial obteno do ttulo de
Doutor em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca
CURITIBA
2010
iii
TERMO DE APROVAO
ANDR PEIXOTO DE SOUZA
DIREITO PBLICO E MODERNIZAO JURDICA:
Elementos para compreenso da formao da
cultura jurdica brasileira no sculo XIX
Tese aprovada como requisito parcial obteno do grau de Doutor em Direito,
no Programa de Ps-Graduao em Direito, Setor de Cincias Jurdicas da
Universidade Federal do Paran, pela seguinte banca examinadora:
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca
Examinadores: Prof. Dr. Arno Dal Ri Jnior
Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig
Prof. Dr. Srgio Said Staut Jnior
Prof. Dr. Eduardo Henrique Lopes Figueiredo
Curitiba, 1 de julho de 2010.
iv
O ponto de referncia necessrio do direito
somente a sociedade, a sociedade como realidade
complexa, articuladssima, com a possibilidade
de que cada uma das suas articulaes produza
direito (...).
Paolo Grossi,
Em Primeira lio sobre direito
(...) a histria (e, em particular, a histria do
direito) pode ter outro escopo: o de explicar e
problematizar criticamente (e no somente
denunciar dados sepultados, como numa
curiosidade necrfila tanto intil quanto nociva),
fazendo-o de um modo tal que esse saber sirva,
de algum modo (de um modo crtico, que
complexifique e problematize), ao nosso
presente.
Ricardo Marcelo Fonseca,
em Introduo terica histria do direito
v
Essa vai para o Rapha...
vi
AGRADECIMENTOS
de mxima importncia expressar, antes de tudo, minha gratido a
todos os que, direta ou indiretamente, contriburam para com essa pesquisa.
Em primeirssimo lugar, ao meu orientador, Professor Doutor
Ricardo Marcelo Fonseca, quem me tem aturado h quase dez anos, desde o
mestrado, na perseguio insistente sobre o direito no Brasil imperial. Orientador
que aproximou o meu referencial terico e, na verdade, tem aproximado todas as
pesquisas na rea da histria do direito no Brasil escola florentina, desde seu
ps-doutoramento juntamente com o Maestro Paolo Grossi. Sem o seu incentivo e
as suas preciosas diretrizes esse trabalho certamente no teria acontecido. Ao
Maestro Ricardo Fonseca a minha eterna e sincera gratido.
Ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal
do Paran, na pessoa de seu Coordenador, Professor Doutor Jos Antnio Peres
Gediel, pela aceitao desse projeto e por toda a formao que me tem sido
proporcionada h quase dez anos.
Aos Professores do PPGD/UFPR, em especial aos Doutores Abili
Lzaro Castro de Lima, Cesar Antonio Serbena, Eduardo de Oliveira Leite, Luiz
Edson Fachin, Luiz Fernando Lopes Pereira, Manoel Eduardo Alves Camargo e
Gomes e Vera Karam de Chueiri, pela dedicao em trazer aprimoramentos a
todos os estudantes, sempre ocupados no rigorismo cientfico que faz deste um
dos melhores centros de estudos jurdicos do Pas.
Aos Professores que compuseram a banca de qualificao, Doutores
Arno Dal Ri Jnior, Celso Luiz Ludwig e Srgio Said Staut Jnior, pelas
preciosssimas contribuies na fase definitiva da pesquisa; reitero o
agradecimento para composio da banca final, agora acrescida do Professor
Doutor Eduardo Henrique Lopes Figueiredo, a quem igualmente agradeo.
Aos queridos e sempre disponveis servidores do PPGD/UFPR,
Laura, Sandra, Ftima e Rosana, pela dedicao e ateno incansvel no auxlio
cotidiano de nossas necessidades.
vii
Aos meus colegas e amigos, que so inmeros e cujo rol no caberia
em todas as pginas dessa tese mas que podem muito bem ser representados
pelo Professor Fabrzio Nicolai Mancini, e aos professores e estudantes da
Universidade Tuiuti do Paran, da Faculdade Radial-Estcio de Curitiba e da
Escola da Magistratura do Paran. Agradeo a todos pelos momentos de rduo
trabalho, assim como pelos de descontrao, igualmente necessrios.
s instituies que, de certa forma, sustentaram essa pesquisa,
aceitando minhas ausncias, e permitindo uma certa interlocuo atravs de
projetos de iniciao cientfica aprovados, a partir dos quais pude receber de
vrios colegas e estudantes crticas, comentrios, correes e sugestes.
Faculdade de Cincias Jurdicas da Universidade Tuiuti do Paran e Faculdade
Radial-Estcio de Curitiba, pelos seus respectivos coordenadores, Phillip Gil
Frana, Joo Baptista Nogueira Neto e Fernanda Schaefer Rivabem.
Por fim, e em verdade a quem mais importa: a minha famlia,
vastssima, nacional e internacionalmente espalhada, mas que aqui ressalto nas
pessoas de minha amada Aline, e de nossos pequenos Raphael e Maria Eduarda.
Vocs trs: razo de minha vida.
Ainda, aos meus pais, Clovis e Lucia, por tudo!
viii
SUMRIO
RESUMO ............................................................................................................................. x
ABSTRACT ........................................................................................................................ xi
RIASUNTO ....................................................................................................................... xii
INTRODUO .................................................................................................................. 1
1. O LUGAR DA FALA ..................................................................................................... 6
1.1. Cultura e civilizao ................................................................................................ 6
1.2. Histria cultural e histria do direito ................................................................. 16
1.2.1. A escola dos Annales, histria das mentalidades e histria cultural ................ 16
1.2.2. A escola florentina e a historiografia jurdica .................................................... 28
1.3. Cultura jurdica e pensamento jurdico .............................................................. 33
1.4. Cultura jurdica brasileira..................................................................................... 41
2. OS JURISTAS E A OCUPAO COM O DIREITO............................................ 53
2.1. O papel dos juristas na formao da cultura jurdica: quem o jurista? ...... 53
2.2. Juristas e cincia do direito................................................................................... 64
2.3. Pensamento jurdico e discursos jurdicos no Brasil imperial ........................ 70
2.3.1. Consagrao do Imprio e bacharelismo ............................................................ 72
2.3.2. Os juristas e o Conselho de Estado .................................................................... 79
2.3.3. O ensino jurdico ............................................................................................... 85
2.3.4. O Instituto dos Advogados Brasileiros .............................................................. 92
3. JURISTAS DO IMPRIO E SUA PRODUO .................................................... 96
3.1. Bernardo Pereira de Vasconcelos ...................................................................... 100
3.1.1. Obra ................................................................................................................. 110
3.1.2. O Cdigo Criminal .......................................................................................... 115
3.2. Jos Antnio Pimenta Bueno ............................................................................. 125
3.2.1. Obra ................................................................................................................. 126
3.2.2. Direito Pblico Brasileiro e Anlise da Constituio do Imprio .................... 128
ix
3.3. Paulino Jos Soares de Sousa ............................................................................. 144
3.3.1. Obra ................................................................................................................. 147
3.3.2. Ensaio sobre o Direito Administrativo ............................................................ 148
3.4. Tobias Barreto de Meneses ................................................................................. 158
3.4.1. Obra ................................................................................................................. 160
3.4.2. A Faculdade de Direito do Recife .................................................................... 162
3.4.3. O pensamento e o germanismo de Tobias Barreto ........................................... 165
CONCLUSES .............................................................................................................. 175
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................... 188
x
RESUMO
Esta pesquisa pretende investigar elementos de formao da cultura jurdica no
Brasil, em tempos de Imprio, desde a produo dos juristas notadamente
publicistas, no contexto da modernizao jurdica. Parte de uma anlise sobre as
possibilidades de uma cultura jurdica prpria, na fundamentada distino entre
cultura e civilizao. Admitindo a civilizao brasileira, e conseqentemente a
cultura brasileira, a produo doutrinria e legislativa dos juristas Bernardo
Pereira de Vasconcelos, Jos Antnio Pimenta Bueno, Paulino Jos Soares de Sousa
e Tobias Barreto de Meneses bem contriburam para com um redirecionamento no
desenvolvimento jurdico, e derivativamente poltico no Brasil. So ainda
verificados os espaos por onde a cultura jurdica se manifestava e se desenvolvia,
como o ensino jurdico, as entidades de classe (IAB), o Conselho de Estado e o
parlamento. E tem como caracterstica o legalismo, o centralismo e a soberania de
Estado, a cargo do Poder Moderador.
Palavras-chave: cultura jurdica brasileira, formao, Brasil Imprio, juristas,
doutrina, legislao, modernidade jurdica.
xi
ABSTRACT
The aim of this study was to investigate Brazilians legal culture formation
elements during the Empire from the work of jurists mainly publicists, in the legal
modernization context. It starts with an analysis on the possibilities of a legal
culture of its own, based on the distinction between culture and civilization.
Considering a Brazilian civilization, and therefore a Brazilian culture, the
legislative and legal doctrine work of Bernardo Pereira de Vasconcelos, Jos
Antnio Pimenta Bueno, Paulino Jos Soares de Sousa and Tobias Barreto de
Meneses contributed to redirect the development of legal and political views in
Brazil. There are still checked the areas where the legal culture had appeared and
developed, such as in legal education, representative bodies (IAB), the State
Council and the parliament. With characteristics including the legal, the centrality
and sovereignty of State, over Power Moderator.
Key-words: Brazilian legal culture, formation, Empire of Brazil, law, doctrine,
legislation, legal modernity.
xii
RIASUNTO
Questo studio intende indagare elementi di formazione della cultura giuridica in
Brasile allepoca dellimpero. Dalla produzione di giuristi soprattutto pubblicisti,
nel contesto della modernizzazione giuridica. Parte di unanalisi che riguarda la
possibilit di una cultura giuridica propria, basata sulla distinzione tra cultura e
civilt. Ammettendo la civilt brasiliana, compreso la cultura stessa, vero che le
inumerevole produzione delle dottrine giuridiche e legislative di nomi come
Bernardo Pereira de Vasconcelos, Jose Antonio Pimenta Bueno, Jos Paulino
Soares de Souza e Tobias Barreto de Meneses, contribuirono, di forma cospicua,
alla formazione di um nuovo pensiero legato allo sviluppo del diritto, della
poltica e dei derivati nel nostro paese. Sono controllati gli spazi in cui si
manifestano allinterno delle culture giuridiche e si sviluppano come l'istruzione
giuridica, associazioni di categoria (IAB), Consiglio di Stato e del parlamento. Con
caratteristiche tra cui legale, il centralismo e la sovranit del Stato sul Potere
Moderatore.
Parole chiave: cultura giuridica brasiliana, la formazione, Impero del Brasile, del
diritto, dottrina, legislazione, modernit giuridica.
1
INTRODUO
A presente pesquisa surge num contexto de busca incessante pela
formao da cultura jurdica brasileira. Ciente de ser, no Brasil, a histria do
direito disciplina ainda embrionria, tem sido objeto de pesquisa, em diversas
vertentes e em alguns programas de ps-graduao em direito e em histria, a
passagem das caracterizaes do direito portugus ao direito brasileiro, com
especial destaque cultura jurdica, expresso de uma nova modalidade de
pensamento jurdico aps 1822.
Alguns trabalhos de peso foram desenvolvidos no mbito do direito
privado1, at porque a tradio privatista no Brasil mais clara e contundente do
que a prtica no direito pblico: seus conceitos e categorias ainda estiveram
implicados, ao menos na primeira metade do sculo XIX, com as ordenaes
portuguesas, ao passo que a cultura jurdica de direito pblico no Brasil partiu da
negao s tradies at ento consolidadas, no evidente objetivo de modernizar
o Estado-nao que se constitua.
As diferenas de tratamento entre o pblico e o privado so ntidas e
merecem chaves de compreenso igualmente distintas. No perodo de transio
em que se configura o sculo XIX no Brasil, sob o ponto de vista poltico e jurdico,
1 A ttulo de exemplificao, apenas para ficar no PPGD-UFPR, cita-se a tese de STAUT JNIOR, Srgio
Said. A posse no direito brasileiro da segunda metade do sculo XIX ao Cdigo Civil de 1916. Tese doutoral
apresentada ao PPGD-UFPR, 2009. Ainda, a dissertao de FERREIRA, Breezy Miyazato Vizeu. O direito
matrimonial na segunda metade do sculo XIX: uma anlise histrico-jurdica. Dissertao de mestrado
apresentada ao PPGD-UFPR, 2008. E os textos de FONSECA, Ricardo Marcelo. A cultura jurdica
brasileira e a questo da codificao civil no sculo XIX. In: Revista da Faculdade de Direito. Universidade
Federal do Paran, v. 44, p. 61-76, 2006. _____. A lei de terras e o advento da propriedade moderna no
Brasil. In: Anuario Mexicano de Historia del Derecho, Mxico, v. XVII, p. 97-112, 2005. _____. Dal diritto
coloniale alla codificazione: appunti sulla cultura giuridica brasiliana tra setecento e novecento. In:
Quaderni Fiorentini Per La Storia Del Pensiero Giuridico Moderno, Milano, v. 33/34, p. 963-984, 2005.
2
o Estado-nao chegou dizendo-se estatal, pretendendo de incio uma
organizao poltica centralizada, em cuja modernidade estaria presente a
herana de princpios dos recentssimos Estados liberais burgueses.
Nessa toada, o Brasil (Imprio) nunca quis ser pr-moderno, nem
arcaico. E a fuga a esse expediente, to natural quanto bvio em termos de
tradies (portuguesas), estaria no ferramental elaborado pelo direito pblico. A
cultura jurdica de direito pblico se tornou, assim, verdadeiro instrumento de
emancipao do Brasil moderno.
A partir dessas observaes, torna-se oportuno o estudo dos
interstcios de direito pblico em formao, no Brasil imperial. Optou-se, para
tanto, a anlise interna das obras (ou produes) dos juristas publicistas de ento,
notadamente aqueles que contriburam efetivamente para com a construo desse
arcabouo tcnico capaz de alar o Brasil modernidade jurdica (e poltica, na
origem).
Eis o critrio para escolha desses autores: o encadeamento das
fontes dos juristas ligados quilo que a cincia jurdica passou a tratar como
direito pblico, tendo como objeto de anlise, portanto, a tentativa de
entendimento da cultura jurdica brasileira de direito pblico no j apontado
contexto histrico de transio. No Brasil, esses juristas o que se nota pelas suas
obras, referenciadas em inmeros outros trabalhos daquele mesmo contexto
histrico so os primeiros a colocar as tenses e distines no campo do direito
pblico.
3
A atividade legislativa de Bernardo Pereira de Vasconcelos crucial
para a instaurao do legalismo que pairava nessa modernizao jurdica e poltica
do Brasil imperial. As doutrinas de Jos Antonio Pimenta Bueno e Paulino Jos
Soares de Sousa, igualmente, demonstram uma das principais caractersticas desse
novo regime, o centralismo, pautado na fora do Poder Moderador e de seu rgo
auxiliar, o Conselho de Estado. Pimenta Bueno, ademais, discute as diferenas
entre pblico e privado, o que, em si, moderno e novo! Em Tobias Barreto de
Meneses, j em fins do Imprio, possvel observar o contraste dado a partir de
sua visualizao no direito comparado, especialmente no germanismo que lhe
peculiar.
E para encadear o tratamento comparativo dessa cincia jurdica
em ebulio durante o Imprio, prope-se as seguintes temticas: o papel da lei
como agente das liberdades; o papel da lei diante de outras fontes, alm da anlise
de direito comparado; os mtodos de interpretao da lei; o princpio da
soberania. Pois sabido que o princpio da legalidade, primazia fundamental da
Declarao de 1789, d o tom para a prpria liberdade! A redistribuio do poder
est, na modernidade, vinculada ao comando da lei, cuja definio fica a cargo do
Estado, englobante da vontade geral. Pois que a lei o critrio da liberdade.
Um novo sentido de cidadania vem tona, onde a relao entre
sujeito, comunidade poltica (Estado) e direito redesenhado: na modernidade, os
direitos dos sujeitos s podem ser expressos em lei, e estas, por sua vez, so
seguradas e garantidas pelo Estado.
4
Da Europa para o Brasil devem ser guardadas as propores, pois de
uma tradio medieval, de longa durao, a pesquisa presente passa para um
certo localismo, que nem tradio contm ainda. Mas, de qualquer forma, no se
pode menosprezar o intuito dos juristas do Imprio brasileiro em se espelhar no
modelo europeu liberal que consagra a cidadania no pretenso Estado-nao j
politicamente emancipado2.
claro que esses critrios (o legalismo, as fontes e o direito
comparado, a hermenutica e a soberania) aparecem em maior ou menor grau
numa ou noutra obra analisada, de modo que so reciprocamente
complementares, dando vazo, no todo, aos aspectos primordiais de redefinio
para a modernidade jurdica no Brasil, a partir das produes de direito pblico.
Assim, se a cultura jurdica de direito pblico que se coloca
explicitamente no projeto de modernizao do Brasil eficaz, parece estar
registrada de plano na cincia jurdica do Imprio, o que culmina com a tese aqui
proposta, levantada por hora enquanto problemtica: como esses juristas
publicistas ou o que a cultura jurdica de direito pblico brasileiro, por eles
representada entendiam a modernizao com relao aos pontos cardeais no
direito pblico? possvel identificar esses juristas como portadores de uma
cultura jurdica de direito pblico de transio?
2 A esse respeito, Pietro Costa bem define cidadania: (...) il termine cittadinanza ha acquisito un significato
pi ampio, tanto da divenire un termine corrente del discorso pubblico odierno. In questa prospettiva conviene intendere per cittadinanza il rapporto politico fondamentale, il rapporto fra un individuo e lordine politico-giuridico nel quale egli si inserisce. (...) Cittadinanza unespressione utilizzabile per mettere a fuoco il rapporto politico fondamentale e le sue principali articolazioni: le aspettative e le pretese, i diritti e i
doveri, le modalit di appartenenza e i criteri di differenziazione, le strategie di inclusione e di esclusione.
Studiare questi temi dal punto di vista della cittadinanza significa assumerli come profili di un oggetto di analisi di cui si intende sottolineare lunitariet. Em COSTA, Pietro. Cittadinanza. Roma-Bari: Laterza, 2005, pp. 3-4.
5
Para responder, o texto ser encadeado de maneira a abordar, numa
primeira parte, o referencial metodolgico da pesquisa. O lugar da fala contm
precisamente o posicionamento do historiador do direito que pretende verificar a
possibilidade de uma cultura jurdica no Brasil imperial. Para tanto, parte da
discusso acerca de cultura e civilizao, atinge o debate metodolgico entre a
Escola dos Annales e a Escola de Florena, e responde a indagao sobre cultura
jurdica brasileira.
Num segundo momento, ser importante definir jurista, em mais
uma clara inteno de posicionamento acerca do modo como ser tratada a
produo da cincia jurdica no contexto de anlise. O papel do jurista sua
produo, suas obras, suas atividades assume importante denominador na
construo de uma cultura jurdica, e as suas prticas podem ser percebidas no
Conselho de Estado, na instituio do bacharelismo, nos rgos de classe
(notadamente o Instituto dos Advogados Brasileiros) e no ensino jurdico.
Finalmente os juristas viro tese, numa abordagem estrutural de
sua produo legislativa ou doutrinria, para concluir a pretensa modernidade
jurdica. A anlise dos principais escritos de Bernardo Pereira de Vasconcelos, Jos
Antonio Pimenta Bueno, Paulino Jos Soares de Sousa e Tobias Barreto de
Meneses podem demonstrar que, apesar das dificuldades peculiares do Brasil em
transio, houve claro intento de definio de um modelo de Estado e de direito
prprios no sculo XIX, dentro dos parmetros do publicismo, que em muito se
diferem daquela tradio privatista remontante, ainda no Brasil imperial, ao jus
commune, ao direito romano e ao direito cannico.
6
1. O LUGAR DA FALA
Quando se pretende construir a tese que defende a formao da
cultura jurdica brasileira, inmeros conceitos preliminares devem ser
apresentados a fim de nortear a pesquisa. Para se atingir a concluso acerca de
uma possvel cultura jurdica brasileira mister decompor: seguir os conceitos
de cultura, de cultura jurdica, de cultura brasileira e, finalmente, de cultura
jurdica brasileira. Epistemologicamente, a pesquisa se encontra no campo da
histria do direito, razo para, em outro panorama, buscar as diferenas e
proximidades entre a historiografia social e a historiografia jurdica.
Por isso, antes de tudo cumpre demonstrar o lugar da fala, a
perspectiva do pesquisador, os conceitos fundamentais que embasam a tese e o
seu referencial terico-metodolgico de abordagem. Em suma, o posicionamento
sobre os conceitos de cultura jurdica e cultura jurdica brasileira, bem como as
bases tericas de tal posio.
1.1. Cultura e civilizao
Uma mesa cheia de feijes.
O gesto de os juntar num monto nico. E o gesto de
os separar, um por um, do dito monto.
O primeiro gesto bem mais simples e pede menos
tempo que o segundo.
Se em vez da mesa fosse um territrio, em lugar de
feijes estariam pessoas. Juntar todas as pessoas num
7
monto nico trabalho menos complicado do que o de
personalizar cada uma delas.
O primeiro gesto, o de reunir, aunar, tornar uno,
todas as pessoas de um mesmo territrio o processo
da CIVILIZAO.
O segundo gesto, o de personalizar cada ser que
pertence a uma civilizao o processo da
CULTURA.
mais difcil a passagem da civilizao para a cultura
do que a formao de civilizao.
A civilizao um fenmeno colectivo.
A cultura um fenmeno individual.
No h cultura sem civilizao, nem civilizao que
perdure sem cultura.
Jos Almada Negreiros, em Ensaios
Os textos redigidos na dcada de 1930 O processo civilizador (Norbert
Elias) e Histria da gnese das funes mentais superiores (Lev Vygotsky) esto muito
prximos na idia de que o homem obra do prprio homem. O processo
defendido por Elias pretende justificar uma lenta construo do homem pelo
homem, descartando fatos eventualmente provenientes da natureza, da metafsica
ou de qualquer outro fator externo. A constituio cultural percebida por
Vygotsky, na mesma medida, d sentido aos acontecimentos que constituem o
homem, em virtude de suas articulaes no decorrer do prprio processo
civilizador/cultural.
certo que os lugares da fala destes dois tericos so diferentes, pois
abordam a partir de questes terico-metodolgicas distintas: de um lado as
cincias sociais, de outro a psicologia da educao. Mas o ponto de encontro est
8
impressionantemente presente, pois o socilogo admite a obrigatoriedade de uma
passagem de cada indivduo pelo processo civilizador, a fim de que possa atingir
o padro em que a sociedade, pela histria, chegou, vertente essa que se identifica
na tese do educador, quando elabora que o desenvolvimento intelectual da criana
est diretamente vinculado s suas interaes sociais: ou seja, em Elias e em
Vygotsky, definitivamente, o homem se forma na e em funo da sociedade.3
O trabalho de Elias suscita desde o incio a clssica relao entre os
termos Kultur e Zivilisation, que, em ltima anlise, expressa a conscincia que o
Ocidente tem de si mesmo4. Para o autor, Zivilisation descreve um processo,
indica movimento, dinmica permanente com pretenso de resultados futuros,
estes tambm em constante movimento para a frente. J o conceito alemo de
Kultur implica em algo no necessariamente dinmico, mas delimitador: produtos
do homem e sistemas sociais onde sejam perceptveis as caracterizaes dos
povos.
A partir da apropriao da idia de Kultur possvel perceber a
nfase dada especialmente identidade de certos grupos sociais, posto refletir este
conceito na conscincia de si mesma de uma nao que teve de buscar e constituir
incessante e novamente suas fronteiras, tanto no sentido poltico como espiritual, e
repetidas vezes perguntar a si mesma: Qual , realmente, nossa identidade?5.
3 Essa tese que aborda a concepo de civilizao em Elias e Vygotsky foi desenvolvida em PINO, Angel.
Cultura e processo civilizador: um confronto de idias de N. Elias e Lev S. Vigotski. IX Simpsio
Internacional Processo Civilizador, Ponta Grossa, 2005. 4 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, v. 1: Uma histria dos costumes. Traduo de Ruy Jungmann. 2
ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 23. 5 Idem, p. 25.
9
Elias aborda com preciso as distines e proximidades entre os
conceitos alemo e francs, destacando Civilisation francesa, emergente dos
movimentos de oposio travados na segunda metade do sculo XVIII, pelo
contexto da Revoluo Francesa, uma correspondncia Kultur germnica. Em
bela pgina que retrata o discurso de Mirabeau, na dcada de 1760, o autor
surpreende com esta mxima dita pelo orateur du peuple:
Se perguntar o que civilizao, a maioria das pessoas responderia:
suavizao de maneiras, urbanidade, polidez, e a difuso do conhecimento
de tal modo que inclua o decoro no lugar de leis detalhadas: e tudo isso me
parece apenas a mscara da virtude, e no sua face, e civilizao nada faz
pela sociedade se no lhe d por igual a forma e a substncia da virtude.6
A partir das consideraes acerca da sociedade de corte, encontrada
nessa e em muitas outras obras de Elias7, destaca o autor que Mirabeau, com esse
discurso, vinculara o conceito de civilizao s caractersticas especficas da
aristocracia de corte, e com razo: isto porque o homme civilis nada mais era do
que uma verso um tanto ampliada daquele tipo humano que representava o
verdadeiro ideal da sociedade de corte, o honnte homme8. Dessa forma, se por um
lado o conceito de civilizao constitui a anttese de seu estgio anterior (a
barbrie), sentimento esse que verdadeiramente permeava a sociedade de corte
desde fins do sculo XVII, por outro lado a classe mdia burguesa
6 Idem, p. 54.
7 ELIAS, Norbert. A Sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. _____. A sociedade dos
indivduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. _____. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das
relaes de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. _____. Mozart:
sociologia de um gnio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 8 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Op. Cit., p. 54.
10
revolucionria estava convicta de que os povos ainda no estavam suficientemente
civilizados, acarretando nessa idia a perspectiva de que civilizao no pode ser
apenas um status (esttico), mas igualmente um processo (dinmico).
Enfim, para a corte, por si mesmo considerada civilizada, partcipe
de um padro elevado de sociedade em termos de moral e costumes, a barbrie
(burguesia) correspondia sociedade incivilizada: eis aqui a conotao francesa
da Civilisation. Assim,
o conceito francs de civilisation reflete o fado social especfico da burguesia
da nao exatamente como o conceito de Kultur reflete o alemo. O conceito
de civilisation inicialmente, como acontece com o de Kultur, um
instrumento dos crculos de classe mdia no conflito social interno. Com a
ascenso da burguesia, ele veio, tambm, a sintetizar a nao, a expressar a
auto-imagem nacional. Na prpria revoluo, a civilisation (que,
naturalmente, refere-se sobretudo a um processo gradual, a uma evoluo,
e no abandonou ainda seu significado original como programa de
reforma) no desempenha qualquer papel de relevo entre slogans
revolucionrios.9
Sendo de natureza interna, a civilizao se faz inicialmente mediante
conscientizao da classe e dos povos, e das naes acerca do processo pelo
qual devero passar, como fase primitiva fundamental na pretenso de atingir
determinado comportamento ou grau de Zivilisation, a sim dinmica, ou ao
menos paradigmtica (na cincia, na educao, na tecnologia, na arte e na poltica).
Essa fundamentao permite retomar a discusso sobre as
proximidades e distines entre cultura e civilizao.
9 Idem, pp. 63-64.
11
A primeira histria de Herdoto suscitou uma primeira problemtica
no que tange s diversidades dos costumes, ao observar a singularidade dos lcios:
Eles tm um costume singular pelo qual diferem de todas as outras naes
do mundo. Tomam o nome da me, e no o do pai. Pergunte-se a um lcio
quem , e ele responde dando o seu prprio nome e o de sua me, e assim
por diante, na linha feminina. Alm disso, se uma mulher livre desposa um
homem escravo, seus filhos so cidados integrais; mas se um homem livre
desposa uma mulher estrangeira, ou vive com uma concubina, embora seja
ele a primeira pessoa do Estado, os filhos no tero qualquer direito
cidadania.
Ao considerar os costumes dos lcios diferentes de todas as outras
naes do mundo, Herdoto estava tomando como referncia a sua
prpria sociedade patrilineal, agindo de uma maneira etnocntrica, embora
ele prprio tenha teoricamente renegado esta postura ao afirmar:
Se oferecssemos aos homens a escolha de todos os costumes do mundo,
aqueles que lhes parecessem melhor, eles examinariam a totalidade e
acabariam preferindo os seus prprios costumes, to convencidos esto de
que estes so melhores do que todos os outros.10
possvel destacar desta idia, alm daquilo que j restou observado
entre as concepes germnica e francesa dos termos, que a civilizao e a cultura
podem ser interpretadas, analisadas, entendidas ou compreendidas de distintas
maneiras, consideradas ou criticadas a partir do ponto de vista do lugar da fala
do crtico ou do considerante. E mais: que a civilizao e a cultura podem ser
forjadas a partir dos costumes, dos usos, das prticas daqueles que as vivenciam,
sendo essa forja pessoal/coletiva, dinmica e pragmtica, a verdadeira essncia
do processo civilizador/cultural.
10
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropolgico. 13 ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000, pp. 10-11.
12
A natureza dos homens a mesma; so os seus hbitos que os
mantm separados, j ensinava Confcio no sculo V a.C. E quando Edward
Tylor sintetizou os j referenciados termos Kultur e Civilisation, aquele na
pretenso de simbolizar os aspectos espirituais da comunidade, e este referindo-
se s realizaes materiais do povo, o vocbulo ingls culture atingiu o seu amplo
sentido etnogrfico, para dizer que, afinal, cultura este todo complexo que
inclui conhecimentos, crenas, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra
capacidade ou hbitos adquiridos pelo homem como membro de uma
sociedade11.
A culture de Tylor conseguiu abranger todas as possibilidades de
realizao humana, marcando definitivamente o seu carter dinmico e
progressivo, em oposio at ento consagrada premissa esttica de transmisso
biolgica ou transcendental de todos os conhecimentos e costumes dos povos.
Assim, definitivamente o homem resultado direto do meio cultural em que fora
socializado, herdeiro de todas as acumulaes de conhecimentos e experincias
que o precederam.
E como o debate ganhou o que era, desde seu projeto, inevitvel
propores antropolgicas12, cabvel a sntese apontada por Clifford Geertz,
quem remete ao que considera uma das melhores introdues gerais
antropologia, o Mirror for Man, de Clyde Kluckhohn, onde a definio de cultura
se apresenta da seguinte forma:
11
Edward Tylor apud LARAIA, Roque de Barros. Op. Cit., p. 25. 12
Kroeber escreveu em 1950 que a maior realizao da Antropologia na primeira metade do sculo XX foi a ampliao e a clarificao do conceito de cultura. Em LARAIA, Roque de Barros. Op. Cit., p. 28.
13
(1) o modo de vida global de um povo; (2) o legado social que o
indivduo adquire do seu grupo; (3) uma forma de pensar, sentir e
acreditar; (4) uma abstrao do comportamento; (5) uma teoria,
elaborada pelo antroplogo, sobre a forma pela qual um grupo de pessoas
se comporta realmente; (6) um celeiro de aprendizagem em comum; (7)
um conjunto de orientaes padronizadas para os problemas recorrentes;
(8) comportamento aprendido; (9) um mecanismo para a
regulamentao normativa do comportamento; (10) um conjunto de
tcnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como em relao aos
outros homens; (11) um precipitado da histria (...).13
Portanto, fcil perceber que o termo cultura pretende indicar a
maneira ou a forma de um grupo, povo ou nao viver, pensar, comportar-se,
transmitida / recebida ao longo do tempo, capaz de adaptar (movimento ativo) e
adaptar-se (movimento passivo) s novas perspectivas, aos novos modelos de
civilizao, de pensamento e de comportamento. assim que define Geertz:
A cultura consiste em estruturas de significado socialmente estabelecidas,
nos termos das quais as pessoas fazem certas coisas como sinais de
conspirao e se aliam ou percebem os insultos e respondem a eles (...).
(...) Como sistemas entrelaados de signos interpretveis (o que eu
chamaria de smbolos, ignorando as utilizaes provinciais), a cultura no
um poder, algo ao qual podem ser atribudos casualmente os
acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituies ou os processos;
ela um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma
inteligvel isto , descritos com densidade.14
13
Clyde Kluckhohn, apud GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Traduo de Gilberto Velho.
Rio de Janeiro: LTC, 1989, p. 14. 14
GEERTZ, Clifford. Op. Cit., pp. 23-24.
14
Importa, pois, destacar a precisa significao aqui pretendida, a fim
de determinar sua base social e sua importncia, ressalvadas as fugas ou
ciladas que o termo compreende: o folclorismo, o institucionalismo, o
estruturalismo, as classificaes, as colees, os rtulos.
No campo diverso porm prximo da historiografia, o historiador
britnico Edward P. Thompson identifica a cultura nos costumes que se
manifestaram na vida dos trabalhadores ingleses do sc. XVIII. Defende que parte
destes costumes eram, em verdade, reivindicaes de novos direitos que foram
efetivamente conquistados. A partir do momento em que o conjunto de costumes
adquire esse plural (costumes) e reduzido a mecanismos de sobrevivncia,
perde-se o sentido do costume no como posterior a algo, mas como sui generis:
ambincia, mentalit, um vocabulrio completo de discurso, de legitimao e de
expectativa15.
Com isso, sem desatentar para uma vertente crtica, Thompson
encontra no termo costume a origem da moderna expresso cultura:
No sculo XVIII, o costume constitua a retrica de legitimao de quase
todo uso, prtica ou direito reclamado. (...) Era um campo para a mudana
e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam
reivindicaes conflitantes. Essa uma razo pela qual precisamos ter
cuidado quanto a generalizaes como cultura popular. Esta pode
sugerir, numa inflexo antropolgica influente no mbito dos historiadores
sociais, uma perspectiva ultraconsensual dessa cultura, entendida como
sistema de atitudes, valores e significados compartilhados, e as formas
simblicas (desempenhos e artefatos) em que se acham incorporados. Mas
15
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional.
Traduo de Rosaura Eichemberg. So Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 14.
15
uma cultura tambm um conjunto de diferentes recursos, em que h
sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a
aldeia e a metrpole; uma arena de elementos conflitivos, que somente
sob uma presso imperiosa por exemplo, o nacionalismo, a conscincia de
classe ou a ortodoxia religiosa predominante assume a forma de um
sistema. E na verdade o prprio termo cultura, com sua invocao
confortvel de um consenso, pode distrair nossa ateno das contradies
sociais e culturais, das fraturas e oposies existentes dentro do conjunto.16
E alerta, assim como Geertz, para as armadilhas ocultas que
necessitam ser desarmadas, sob pena de perda do referencial e, afinal, do prprio
lugar da fala:
Mesmo assim, no podemos esquecer que cultura um termo
emaranhado, que, ao reunir tantas atividades e atributos em um s feixe,
pode na verdade confundir ou ocultar distines que precisam ser feitas.
Ser necessrio desfazer o feixe e examinar com mais cuidado os seus
componentes: ritos, modos simblicos, os atributos culturais da hegemonia,
a transmisso do costume de gerao para gerao e o desenvolvimento do
costume sob formas historicamente especficas das relaes sociais e de
trabalho.17
Cultura e civilizao se encontram e se separam a todo instante. Tal
qual o corpo e a conscincia: na viglia a conscincia est no corpo; no sono
profundo est fora do corpo, ou, melhor dizendo, o corpo no detm conscincia.
Civilizao corpo; cultura conscincia. Um grupo, uma sociedade, um povo,
uma nao podem, no transcurso do tempo, alterarem-se entre civilizao e
barbrie, e, seja como for, detero cultura: seus signos e ritos, seus costumes e
16
Idem, pp. 16-17. 17
Idem, p. 22.
16
comportamentos, suas crenas, suas prticas, suas racionalidades coexistentes, sua
histria.
1.2. Histria cultural e histria do direito
1.2.1. A escola dos Annales, histria das mentalidades e histria cultural
Le principal pch des historiens vis--vis de lhistoire
du droit est lignorance.
Jacques Le Goff
A histria cultural filha tempor da escola historiogrfica francesa
dos Annales, movimento iniciado em Estrasburgo nos fins da dcada de 1920, por
Marc Bloch e Lucien Febvre. Pretendiam os fundadores dessa prestigiada escola
desenvolver um conjunto de estratgias teis ao combate da histria tradicional,
historicizante, vnementielle. At ento predominava na academia francesa um
tipo de histria preocupada apenas com os grandes acontecimentos, com fatos
singulares de natureza poltica e militar, uma histria que se furtava ao debate e
ao dilogo com as demais cincias humanas (sobretudo a antropologia, a
psicologia, a geografia, a economia e a sociologia). Propunham, dessa forma, os
fundadores dos Annales dhistoire conomique et sociale, uma histria das estruturas
em movimento, uma nova histria baseada na interdisciplinaridade.
O que se via na Frana, e praticamente em toda a Europa, antes dessa
proposta era uma histria escrita sob a forma de crnica narrativa de eventos
17
especialmente polticos e militares. O dicionrio da Academia Francesa, na
primeira edio de 1694, assim dispunha sobre o conceito de histria: a
narrao das aes e das coisas dignas de memria. A oitava edio, de 1935,
ainda corroborou: histria o relato de aes, de acontecimentos, de coisas
dignas de memria.18 A segunda metade do sculo XIX foi muito frtil em
possibilidades metodolgicas, e apesar dos escritos de Jules Michelet, Jacob
Burkhardt, Marx, Comte, Spencer, Durkheim, Lamprecht, Lavisse, o clima
histrico, ou historiogrfico, ainda era de culto ao fetichismo dos fatos.
As produes de Bloch e Febvre cortaram essa tradio: em La societ
fodale Bloch apresenta toda uma cultura do feudalismo, analisando a sociedade
feudal como um todo, de 900 a 1300, trabalhando a idia de longa durao,
termo que ser aperfeioado por Fernand Braudel. Febvre, por sua vez, consegue
atingir o clmax de refutar toda e qualquer possibilidade de se pensar o atesmo no
sculo XVI, em seu Le problme de lincroyance au XVIe sicle: la rligion de Rabelais, a
partir de suas contestaes aos argumentos de Abel Lefranc, editor de Rabelais,
quem apontava infundadamente o autor da srie Gargntua e Pantagruel como um
ateu (e por isso injustamente acusado pelo Vaticano e pela Sorbonne).
Braudel, discpulo de Frebvre, escreveu o monumental La
Mditerrane et le monde mditerranen lpoque de Philippe II. Considerado o cone
da segunda gerao da escola, nessa obra, escrita praticamente de memria na
priso de Lbeck, aborda aspectos at ento impensados por historiadores: a
geologia e a geografia do mediterrneo, as sociedades e suas culturas, as relaes e
18
Em DOSSE, Franois. A Histria em Migalhas: dos Annales nova histria. Traduo de Dulce A. Silva
Ramos. Campinas: Edunicamp, 1992, p. 36.
18
as barreiras sociais e polticas daquele espao naquele tempo, a economia, a
conjuntura de um local que, por acaso, no sculo XVI, comandado por Filipe II
(dedica alis, ironicamente, ao final da obra, pouqussimas pginas a essa
personagem, quem, na histria tradicional, teria sido o ator principal da trama).
A partir do final da dcada de 1960 os historiadores recrutados por
Braudel passam a assumir e pulverizar a escola, fundando extraoficialmente
uma terceira gerao que se espalha pelo mundo todo: Jacques Revel, Jacques Le
Goff, Georges Duby, Michle Perrot, Emmanuel Le Roy Ladurie, Philippe Aris,
Jean Delumeau, Roger Chartier, alm de surtir influncias em inmeros
historiadores importantes, tais como Robert Darnton e Carlo Ginzburg. Os Annales
adquirem poder acadmico consistente, desde que passam a ocupar espaos
consagrados e importantes no meio intelectual francs e mundial: Le Figaro, Le
Monde, LExpress, Le Nouvel Observateur, Channel 7, Sorbonne, Collge de France,
Lcole des Hautes tudes en Sciences Sociales, universidades europias e norte-
americanas... e a crtica imediata, pois o projeto original da escola poderia estar
sendo abandonado, diante da preocupao hegemnica da nova historiografia
em aprender, pesquisar, ensinar, escrever, editar, comerciar, vender. Franois
Dosse chega ao ponto de ironizar a terceira gerao quando aduz que os
responsveis pelas colees histricas da maior parte das editoras so membros
dos Annales. Assim, ocupam uma posio de poder essencial, o de selecionar as
obras consideradas dignas de ser editadas e deixar de lado as outras. (...) A
produo histrica francesa tornou-se quase um monoplio dos Annales19. Mas o
19
Idem, p. 15.
19
mesmo crtico, por outro lado, assim bem sintetizou o esprito desse clima
intelectual terceira gerao da escola:
O Ocidente descobre os charmes discretos do tempo antigo, da idade do
ouro perdida, da belle poque, que preciso reencontrar. esse tempo
reencontrado que os historiadores se encarregam de reproduzir ao
tomarem emprestado os instrumentos de anlise e os cdigos dos
etnlogos. O reprimido torna-se portador de sentido. Tudo se torna objeto
de curiosidade para o historiador, que desloca seu olhar para as margens,
para o avesso dos valores estabelecidos, para os loucos, para as feiticeiras,
para os transgressores... O horizonte do historiador fecha-se sobre um
presente imvel, no h mais futuro (...). (...) Abandona-se os tempos fortes
e os movimentos voluntaristas de mudana, em direo memria do
quotidiano das pessoas simples.20
Ora, no difcil imaginar que a conjuntura pela qual passava a
prpria historiografia daria margem para discusses tericas acerca de seus
mtodos e conceitos. Convm destacar o debate que ora aproximou e ora
distanciou a histria cultural da histria das mentalidades. Esta, por vezes, criticada
em funo de um certo afastamento dos Annales, ou, se no afastada, herdeira de
seus defeitos.
A histria das mentalidades surgiu em oposio perspectiva
econmica da histria, que sob influncia marxista predominou na historiografia
francesa entre as dcadas de 1950-1960. O termo mentalit, usado para exprimir
algo prximo a uma psicologia histrica coletiva, pode ser identificado, no
entanto, com o prprio fundador da escola, Marc Bloch, onde no seu Les rois
20
Idem, p. 168.
20
thaumaturges apresentava um conjunto de crenas populares, um pensamento
coletivo, uma mentalit acerca do poder de cura do toque real dos reis taumaturgos
medievais. Alis, o mesmo se verifica no estudo de Febvre sobre a descrena no
sculo XVI (o suposto atesmo de Rabelais, j mencionado).
Veja-se o exemplo colhido de Philippe Aris acerca da presena da
mentalit em Febvre:
Outro exemplo foi dado por Lucien Febvre, o da compatibilidade entre
atitudes que se tornaram desde ento incompatveis. Margarida de
Navarra, irm de Francisco I, podia escrever sem escrpulos exagerados,
um aps o outro, o Heptamero, coletnea de contos licenciosos, e o Espelho
de uma alma pecadora, coletnea de poemas espirituais. Nossos costumes
tambm no tolerariam essa mistura ingnua e essa boa f.
Certas coisas, portanto, eram concebveis, aceitveis, em determinada
poca, em determinada cultura, e deixavam de s-lo em outra poca e
numa outra cultura. O fato de no podermos mais nos comportar hoje com
a mesma boa-f e a mesma naturalidade de nossos dois prncipes do sculo
XVI, nas mesmas situaes, indica precisamente que interveio entre elas e
ns uma mudana de mentalidade. No que no tenhamos mais os
mesmos valores, mas que os reflexos elementares no so mais os mesmos.
Eis mais ou menos o que entendemos, a partir de Lucien Febvre, por
atitudes mentais.21
Esse importante membro da terceira gerao da escola est convicto
de que o conceito de mentalit amplia as possibilidades (o territrio22) do
historiador. Isso est claro na seguinte passagem:
21
ARIS, Philippe. A histria das mentalidades. In: LE GOFF, Jacques. A histria nova. Traduo de
Eduardo Brando. 4 ed., So Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 154. 22
Territrio do historiador termo cunhado por outro partcipe da terceira gerao dos Annales, Emmanuel Le Roy Laudurie, em Le territoire de lhistorien.
21
O historiador rel hoje os documentos utilizados por seus predecessores,
mas com um novo olhar e outro gabarito. Os temas freqentados pelos
primeiros foram os que eram preparados pela histria econmica e
demogrfica: a vida do trabalho, a famlia, as idades da vida, a educao, o
sexo, a morte, isto , as zonas que se acham nas fronteiras do biolgico e do
mental, da natureza e da cultura. As publicaes sobre esses temas,
inimaginveis h mais de cinqenta anos, constituem hoje um conjunto
coerente e uma vasta biblioteca. o primeiro domnio conquistado pela
histria das mentalidades.23
E impugna toda a crtica (especialmente a de Dosse24) sobre a esttica
temporal da nova historiografia:
Assim, o passado, o tempo de diferena, se aproxima de ns, tornando-se
cada vez mais difcil ignor-lo, do mesmo modo que no nos mais
possvel ignorar a arte negra, a arte ndia ou a arte pr-colombiana: ela nos
queima os dedos. As diferenas de todas as idades nos assediam, contudo
nossa percepo ingnua, imediata, continua sempre sendo de nosso
prprio presente, nico ponto de ancoragem no tempo. A recente
aproximao entre presente e passado no ser a verdadeira razo da
histria das mentalidades?25
Mas a crtica se segue, ora por considerar a histria das mentalidades
demasiadamente antropolgica quando privilegia a estagnao das estruturas
23
Idem, p. 169. 24
Quem diz: O historiador dos Annales torna-se o especialista do tempo imvel em um presente congelado, petrificado de pavor diante de um futuro incerto (DOSSE, Franois. Op. Cit., p. 169). 25
Idem, p. 173.
22
na longa durao, ora por consider-la insuficientemente antropolgica ao
analisar e julgar as sociedades passadas com o olhar contemporneo.26
No Brasil, Ciro Flamarion Cardoso, nessa mesma linha crtica,
acusou os historiadores das mentalidades de se dedicarem ao estudo perifrico,
de iluminar fantasmas e, sobretudo, de negar as totalidades sintticas da histria,
renunciando a posturas explicativas e propagandeando uma histria reacionria
desprovida de contradies27.
E Ronaldo Vainfas retomou a crtica apresentando os argumentos do
novo presidente, Jacques Le Goff, a partir do artigo publicado no Faire de lhistoire
(1974) sobre a prpria ambigidade das mentalidades:
Do artigo de Le Goff podem ser extradas trs idias bsicas que, de certo
modo, procuram delimitar o campo conceitual das mentalidades.
Primeiramente, a questo do recorte social das mentalidades, que o autor
diz ser abrangente a ponto de diluir as diferenas inerentes estratificao social
da sociedade estudada. A mentalidade de um indivduo histrico, sendo esse
um grande homem, justamente o que ele tem de comum com outros
homens de seu tempo, afirma o autor logo no incio do artigo. E mais
adiante: O nvel da histria das mentalidades... o que escapa aos sujeitos
particulares da histria, porque revelador do contedo impessoal de seu
pensamento o que Csar e o ltimo soldado de suas legies, Cristvo
Colombo e o marinheiro de suas caravelas tm em comum. Em segundo
lugar, quanto a esse domnio de crenas e atitudes comuns a toda a
sociedade, Le Goff diz situar-se, de preferncia, no campo do irracional e
do extravagante, do que decorrem a noo de inconsciente coletivo e a
recomendao de uma pesquisa arqueopsicolgica para desvendar esse
26
VAINFAS, Ronaldo. Histria das mentalidades e histria cultural. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e
VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domnios da histria: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus,
1997, p. 128. 27
Idem.
23
ltimo em investigaes concretas. Enfim, a questo do tempo das
mentalidades que, conforme j disse, o tempo braudeliano da longa
durao: A mentalidade, afirma Le Goff, aquilo que muda mais
lentamente. Histria das mentalidades, histria da lentido na histria.28
Apesar disso, Le Goff revisa determinados conceitos em LHistoire
Aujourdhui (1980), inclinando a mentalidade ao cotidiano, o que demonstra um
certo desgaste do termo ou noo mentalidades no circuito acadmico francs.29
Mas no debate com Michel Vovelle, longe de intencionar uma
discusso entre no-marxista e marxista, que a noo de mentalidade atinge o seu
limite, pois este prope uma articulao da mentalidade com a ideologia. Ainda, tal
discusso permite observar certos dilemas no aparato conceitual das
mentalidades.30
A histria das mentalidades, afirmou Vovelle, o estudo das mediaes
entre, de um lado, as condies objetivas da vida dos homens e, de outro, a
maneira como eles narram e mesmo como a vivem. A esse nvel, as
contradies se diluem entre os dois esquemas conceituais: ideologias de
uma parte, mentalidades de outra. As mentalidades seriam mesmo, para
Vovelle, um terceiro nvel da estrutura social (ou do modo de produo),
afirmando-se no como um territrio estrangeiro, extico, mas como o
prolongamento natural e a ponta fina de toda histria social.31
Diante de todas essas perspectivas, oportuna a sntese trazida por
Vainfas sobre as possibilidades histricas ou variantes da histria das
mentalidades:
28
Idem, p. 139. 29
Idem. 30
Idem, pp. 140 e 141. 31
Idem, p. 141.
24
Numa viso de conjunto, seria pois errneo falar em uma histria das
mentalidades homognea e unificada, seja quanto a seus pressupostos
terico-metodolgicos, seja quanto aos resultados das investigaes.
Considerando apenas a historiografia sobre as mentalidades produzida na
Frana que, afinal, foi o bero desta corrente de pesquisas, talvez se possa
falar de pelo menos trs variantes da histria das mentalidades:
1. Uma histria das mentalidades herdeira da tradio dos Annales, seja
quanto valorizao do que Febvre chamava de outillage mental, seja
quanto ao reconhecimento de que o estudo do mental s faz sentido se
articulado a totalidades explicativas ( o caso de Le Goff, Duby, Le Roy
Ladurie etc., autores que, em certos casos, tambm transitaram pelo
marxismo).
2. Uma histria das mentalidades assumidamente marxista, preocupada em
relacionar os conceitos de mentalidade e ideologia, bem como em minorar a
frialdade da longa durao pela valorizao da ruptura e da dialtica entre
o tempo longo e o acontecimento revolucionrio (caso tpico de Vovelle).
3. Uma histria das mentalidades, esta sim, descompromissada de discutir
teoricamente os objetos, e unicamente dedicada a descrever e narrar pocas
ou episdios do passado, histria ctica quanto validez da explicao e da
prpria distino entre narrativa literria e narrativa histrica ( o caso de
alguns estudos da srie Histria da vida cotidiana e de certos trabalhos
monogrficos sobre microtemas como os cardpios, os modos de beijar ou
chorar, o imaginrio do onanismo etc.).
Trs variantes, portanto, trs maneiras de fazer a histria das mentalidades
que devem ser levadas em conta num balano crtico de conjunto, inclusive
para que se possa avaliar, sem preconceitos ou parti pris, as potencialidades
e limitaes desse campo de estudos.32
A crtica se encerra com os riscos a que a imaginao histrica da
nova histria assumiu, pois a ausncia de verossimilhana ou de provas das
32
Idem, pp. 143-144.
25
alegaes poderia indeferir a legitimidade da disciplina, pr em risco a sua
soberania e at mesmo extinguir a proposta da mentalidade. O resultado , alm
da desero de historiadores do campo das mentalidades para outros campos
rebatizados, o paradoxo em que se encontra a relao conceitual entre histria das
mentalidades e histria cultural.
Assim, a histria das mentalidades como disciplina do saber vem sendo
substituda por histria cultural alis campo este originrio dos prprios Annales e
de onde derivou a histria das mentalidades ou ainda por histria das idias,
histria de gnero, histria da sexualidade, ou at mesmo por conceitos como
cultura popular, imaginrio, vida privada, micro-histria etc.
A nova histria cultural rejeita o termo e o conceito de
mentalidade por ser vago, ambguo e impreciso quanto s relaes entre o mental
e o social. Mas na verdade histria cultural outro nome, outro rtulo, para a
histria das mentalidades, com sutis diferenas principalmente no campo do
popular, pois pretende ou ao menos intenciona resgatar o papel das classes
sociais, da estratificao, do conflito social, percorrendo enfim caminhos
alternativos para a investigao histrica.33
A exemplo disso tem-se a produo de Thompson, quem brindou a
histria e a historiografia com o clssico The making of the english working class,
dentre outras obras de mesmo calibre. Nesse trabalho procurou demonstrar a
formao da classe operria inglesa em meio ao processo de industrializao nos
33
Percebe-se esse intento no conceito de cultura popular apresentado por Ginzburg: conjunto de atitudes, crenas, cdigos de comportamento prprios das classes subalternas num certo perodo histrico. Em Ginzburg, a cultura popular se define antes de tudo pela sua oposio cultura letrada ou oficial das classes dominantes. (In: VAINFAS, Ronaldo. Op. Cit., p. 151).
26
sculos XVIII-XIX. De formao marxista, consagrou sua vertente histria
cultural, porquanto se afastou da tese tradicional segundo a qual as classes
dominantes seriam protetoras (e ao mesmo tempo, implicitamente, opressoras)
das classes dominadas, impedindo dessa forma a construo de valores e
identidades a estas. O making of de Thompson revela todo o carter autosuficiente
das classes populares (working class) que so capazes de se tornar classe, mediante
conscincia de sua explorao no processo capitalista de produo. A sua
conscientizao enquanto classe lhes permite uma perspectiva revolucionria,
onde no processo de luta ser forjada sua identidade, sua cultura, sua
independncia.
Na abertura do ensaio Centro e periferia nas estruturas administrativas
do Antigo Regime, sintetizando o que j havia publicado em Histria das instituies
e Une nouvelle histoire du droit? e que ser retomado no princpio de O direito dos
letrados no imprio portugus e da Cultura jurdica europia34 Antnio Manuel
Hespanha consolida a necessidade de um repensar metodolgico para a histria
do direito, dessa maneira:
34
No eram, portanto, estas orientaes metodolgicas que mereciam as crticas de formalismo que a primeira gerao da Escola dos Annales dirigiu contra a histria poltica e jurdica. Os destinatrios destas
crticas eram antes os historiadores do direito, que dominavam as faculdades jurdicas e que faziam uma
histria estritamente jurdica, dirigida unicamente para a descrio da evoluo do direito oficial e letrado, dos seus aspectos legislativos e conceituais (...), no considerando nem o contexto social destes, nem as
mltiplas formas de organizao e de constrangimento que no tm origem no poder oficial, nem abrigo no
discurso letrado sobre o direito. A crtica da Escola dos Annales era justa, se dirigida apenas contra quem a
merecia. Mas acabou por ter efeitos excessivos e prejudiciais. (...). HESPANHA, Antnio Manuel. O direito dos letrados no imprio portugus. Florianpolis: Fundao Boiteux, 2006, pp. 18-19.
27
Desde que, h j uns quarenta nos, a Escola dos Annales lanou a sua
campanha contra a histria anedtica, a histria poltica, institucional e
jurdica no cessou de ser apontada como o domnio irrecupervel do facto
isolado, do documento, do formalismo e do idealismo.
Verdade que a historiografia dominante neste sector justificava, em geral,
tal opinio. O poltico era a alta poltica e esta, por natureza, o campo de
aco das grandes figuras. O direito era o mundo das normas jurdicas
formais (i.e., expressamente editadas pelos poderes estabelecidos the Law
in the books), mundo que o direito da vida (the Law in action, produto da
fora ou da ignorncia e, logo, ignorado pelos jus-historiadores)
deixaria intocado. No que respeita actividade poltico-administrativa,
pouco interesse despertava. (...).
Os tempos mudam, porm. A histria poltica, jurdica e institucional vai
sendo hoje objecto de um tratamento semelhante ao dos outros territrios
historiogrficos.35
Em suma, entre histria das mentalidades, histria cultural e
novas historiografias a partir dos Annales, ainda no chegado o modelo terico
capaz de abordar com pertinncia a histria do direito, e que seja capaz de
contribuir para com a construo de um conceito de cultura jurdica na histria.
Haver, pois, uma escola italiana que, desde 197136, se ocupar com essa nova
proposta.
35
HESPANHA, Antnio Manuel. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime.
Disponvel em , coletado em 07/01/2010. 36
Data de fundao, por Paolo Grossi, do Centro studi per la storia del pensiero giuridico moderno,
vinculado Universit degli Studi di Firenze.
28
1.2.2. A escola florentina e a historiografia jurdica
Histria do direito no deixa de ser histria vinculada a determinado
ramo do conhecimento histrico. Fazer histria do direito pressupe, no entanto,
conhecimentos especficos acerca de categorias inerentes ao universo jurdico, o
que no lhe retira a condio de ser gnero da histria, mas que lhe confere uma
especificidade peculiar sob o ponto de vista historiogrfico.
Em Florena, desde a dcada de 1960, historiadores do direito vm se
ocupando com as maneiras de fazer histria do direito, delimitando o territrio
do historiador do direito, movimento esse que gerou frutos ora espalhados pelo
planeta: desde Paolo Grossi para Pietro Costa, Paolo Cappellini, Bernardo Sordi,
Maurzio Fioravanti, Mario Sbriccoli, Giovanni Cazzetta, e destes todos em
maior ou menor medida para Bartolom Clavero, Ricardo Marcelo Fonseca,
Arno Dal Ri Jnior, Jos Ramn Narvez Hernandes, Ezequiel Absolo, Srgio
Said Staut Jnior, dentre outros.
A smula que inicia o debate pode ser muito bem capturada em
Pietro Costa, quando expe o direito como objeto do conhecimento histrico e a
forma a que se deve tratar tal objeto:
A histria do direito apresenta problemas especficos que seria interessante
afrontar. Ela , porm, espcie de um gnero: pertence integralmente ao
ramo do conhecimento histrico. Uma caracterstica atual do conhecimento
histrico , de fato, de ser no um objeto, mas um ponto de vista: todo
aspecto da realidade humana pode ser objeto do conhecimento histrico.
Pode-se fazer, e se faz, histria de tudo: da poltica, das religies, da arte,
da msica, da agricultura, da sexualidade, do trabalho, da cultura material,
29
dos saberes, do direito. Cada uma destas historiografias afronta aspectos
especficos da experincia e deve, portanto, dispor de conhecimentos
adequados compreenso do seu objeto. Espera-se que o historiador da
msica saiba ler as notas de uma partitura e diferenciar uma fuga de uma
sonata, que o historiador da arte saiba como pintar um afresco, que o
historiador do direito no confunda propriedade com usufruto e o juiz
instrutor com o ministrio pblico (mas no por isso se pretende que o
historiador da msica componha uma sinfonia, que o historiador da arte
pinte um quadro ou que o historiador do direito defenda um
desafortunado no tribunal).37
Ressalte-se: todo aspecto da realidade humana pode ser objeto do
conhecimento histrico. E qualquer objeto que seja perseguido pela historiografia
merece anlise em todos os pontos de vista, sob pena de escapar ao historiador
e conseqentemente ao conhecimento histrico as nuances, os pormenores e at
mesmo os contrastes daquilo que se pretende conhecer.
Sem mutilar a histria38, tal anlise necessita de certo instrumental,
de um aparato metodolgico e conceitual capaz de adentrar no objeto sem feri-lo,
sem danific-lo, sem desvirtu-lo de seu verdadeiro ou pretenso sentido.
Por esse motivo, espera-se que o historiador do direito conhea o
territrio por onde anda, a rea e o espao em que dever dissecar o objeto do
conhecimento histrico-jurdico, as categorias e conceitos inerentes ao mundo do
direito.
perceptvel desde Marc Bloch, co-fundador dos Annales, a distino
e a reserva conferidas histria do direito.
37
COSTA, Pietro. Passado: dilemas e instrumentos da historiografia. Traduo de Ricardo Marcelo
Fonseca. In: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, n 47. Curitiba: UFPR, 2008, pp. 21-22. 38
Termo cunhado por Marc Bloch na sua inacabada porm brilhante Apologia da histria.
30
(...) histria do direito. O ensino e o manual, que so admirveis
instrumentos de esclerose, vulgarizaram o nome. Vejamos mais de perto,
porm, o que este abrange. Uma regra de direito uma norma social,
explicitamente imperativa; sancionada, alm disso, por uma autoridade
capaz de impor seu respeito com a ajuda de um sistema preciso de coeres
e de punies. Na prtica, tais preceitos podem reger as atividades mais
diversas. Nunca so os nicos a govern-las: obedecemos, constantemente,
em nosso comportamento cotidiano, a cdigos morais, profissionais,
mundanos, no raro muito mais imperiosos que o Cdigo puro e simples.
As fronteiras deste oscilam incessantemente, alis; e para ser ou no
inserida nele, uma obrigao socialmente reconhecida no muda
evidentemente de natureza. O direito, no sentido estrito do termo,
portanto o envoltrio formal de realidades em si mesmas extremamente
variadas para fornecer, com proveito, o objeto de um estudo nico; e no
esgota nenhum deles. Ser que para explorar a vida da famlia (...) basta
enumerar uns depois dos outros os artigos de um direito de famlia
qualquer? (...) No entanto, h, na noo do fato jurdico como distinto dos
outros, algo de exato. que, ao menos em numerosas sociedades, a
aplicao e, em larga medida, a prpria elaborao das regras de direito
foram obra prpria de um grupo de homens relativamente especializado e,
nesse papel (que seus membros podiam naturalmente combinar com outras
funes sociais), suficientemente autnoma para possuir suas tradies
prprias e, com freqncia, at uma lgica de raciocnio particular. A
histria do direito, em suma, poderia muito bem s ter existncia separada
como histria dos juristas: o que no , para um ramo de uma cincia dos
homens, maneira to ruim de existir. Entendida nesse sentido, ela lana
sobre fenmenos bastante diversos, mas submetidos a uma ao humana
comum, luzes forosamente incompletas, mas, em seus limites, bastante
reveladoras. Ela apresenta um ponto de vista sobre o real.39
39
BLOCH, Marc. Apologia da histria ou o ofcio do historiador. Traduo de Andr Telles. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001, pp. 130-131.
31
A escola florentina dialoga a todo instante com os Annales, e por esta
razo cabvel retirar de Bloch um dos preceitos da historiografia jurdica:
apresentando o seu ponto de vista sobre o real, a histria do direito observa que
o homem obedece no apenas a instrues normativas, legais, formais, mas a
cdigos morais e invisveis que, se no precedem o prprio direito, servem-lhe de
base e alicerce. O olhar do historiador do direito captura esse detalhe, o flash que
converte a idia, nas mos do jurista, em forma.
Bartolom Clavero, quando comenta o texto de Antnio Manuel
Hespanha40, oferece especial destaque posio metodolgica do professor
portugus, quem, ao analisar a doutrina histrico-jurdica, se embasa numa
historiografia peculiar acerca das presenas e funes de conceitos jurdicos a todo
um sistema corporativo histrico.41
A forte crtica de Clavero est na dependncia constante que a
histria do direito vem demonstrando em face de otras facultades, conquanto
vergonhosamente no demonstra seu objeto, suas origens, seu lastro doutrinal
para o prprio estudo do objeto jurdico. As sutilezas jurdicas cabveis e
perceptveis aos olhos do historiador do direito (e muitas vezes despercebidas ou
desprezadas pelo historiador social) ainda no so valorizadas, pois o historiador
do direito se apresenta, hoje, sin capacidad alguna para construir sus propias
40
HESPANHA, Antnio Manuel. Historia das instituies. poca medieval e moderna. Coimbra: Almedina,
1982. 41
CLAVERO, Bartolom. Del pensamiento juridico en el estudio de la histria. In: Quaderni fiorentini per
la storia del pensiero giuridico moderno, n. 13. Milano: Giuffr, 1984, p. 564.
32
herramientas conceptuales y para concurrir al desarrollo de uma ciencia histrica
con mucho ms que documentacin ordenada42.
possvel sumular, pois, com Paolo Grossi, a importncia da
experincia jurdica, ou do manuseio de conceitos e categorias prprias do direito
historiografia jurdica, da seguinte forma:
Se cosi , senza voler nulla togliere ai meriti dello storico della filosofia del
diritto, il personagio professionalmente pi vocato a comprendere il
divenire del pensiero giuridico ci appare lo storico del diritto. Prprio
perch avvezzo all globalit dellesperienza, delle singole esperienze che
ha di fronte, egli sara il pi capace a cogliere i nessi tra pensiero e strutture
circostanti, a individuare in qual misura la veste tecnico-giuridica abbia o
non abbia costituito adeguata risposta alle domande delle forze
economiche e culturali, a storicizzare insomma le trame de un discorso
giuridico, che potrebbe a tutta prima sembrare artefatto ed astratto.43
No ensaio eminentemente historiogrfico Uno storico del diritto alla
ricerca di se stesso, Paolo Grossi brinda o mundo acadmico com a [provavelmente]
mais completa verificao acerca da formao de sua escola florentina. Partindo
do questionamento sobre uma possvel identidade para o historiador do direito,
conduz a (auto)reflexo de que a hermafrodita investigao histrico-jurdica
necessita, inevitavelmente, de conhecimentos e tcnicas jurdicas somadas s mais
profundas fundamentaes e sedimentaes histricas.44
42
Idem, p. 576. 43
GROSSI, Paolo. Sulla storia del pensiero giuridico. In: Quaderni fiorentini per la storia del pensiero
giuridico moderno, n. 11/12, Tomo II. Milano: Giuffr, 1982/1983, p. 1149. 44
...che significava essere storico del diritto? storico e giurista? storico o giurista? storia e diritto, che si fondono in uma stessa persona, dano forse vita a un raro quanto negativo esemplare di ermafrodito?. In: GROSSI, Paolo. Uno storico del diritto alla ricerca di se stesso. Bologna: Il Mulino, 2008, p. 22.
33
Uma vez consciente de sua tarefa, o professor florentino vincula
definitivamente Faculdade de Direito da Universidade de Florena, em 1980
(embrionrio, no entanto, desde 1966, e atuante desde 1971), o Centro di studi per
la storia del pensiero giuridico moderno, com sua clebre publicao, os Quaderni
fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno (em circulao desde 1972). Este
projeto cultural amealhou um Gruppo em torno da nova historiografia,
necessria produo de uma nova histria do direito, para alm do que se fazia a
partir do direito romano e do direito cannico.
O Centro di studi e os Quaderni fiorentini chegam hoje ao patamar de
referncia mundial na produo histrica e historiogrfica jurdica, a partir da
direo do Professor Paolo Grossi e seu Gruppo. Sumula esse intento as
seguintes palavras autobiogrficas: A Firenze: un Centro di studi, una Rivista
scientifica, una comunit di studiosi.
1.3. Cultura jurdica e pensamento jurdico
A busca de uma cultura do direito no significa a busca da melhor
cultura jurdica. a busca por um conjunto de significados que efetivamente
circulam na produo do direito e so aceitos e prevalecem nas instituies
jurdicas. O conjunto de significados remete ao arcabouo doutrinrio e aos seus
marcos de autoridade nacionais e estrangeiras, aos padres de anlise e
interpretao, s influncias e usos particulares de ideologias e concepes
jusfilosficas. As instituies jurdicas so as faculdades de Direito, os institutos
34
profissionais de advogados, magistrados, notrios e juristas, o foro e o parlamento,
as reparties pblicas, o estamento burocrtico.45
ainda necessrio delimitar o lugar da fala e perceber as distines
que a historiografia consagra aos conceitos de cultura jurdica e pensamento
jurdico. Alertando para uma certa autonomia da epistemologia jurdica, e ao
mesmo tempo para a impossibilidade de reduo do direito ao campo
instrumental de poder poltico, assim como para a errnea simplificao do direito
mera sistematizao de regras, Paolo Grossi ensina que a cincia jurdica,
alforriada de toda servido exegtica, liberada do condicionamento
necessrio da vontade do legislador, individuada como intrprete no
significado mais intenso do termo, no como tecedeira de argumentaes
lgicas no interior de um sistema fechado que ela no contribuiu a
construir e do qual ela simplesmente sofreu a incidncia, mas sim como
mediadora entre as exigncias sociais e culturais gerais e a cultura jurdica,
fora viva e criativa da histria na elaborao de arquiteturas adequadas e
eficazes a sustentar, mais que o produto de um legislador contingente, uma
inteira civilizao em movimento.46
Assim sendo, somente se o direito est no centro de uma civilizao
em movimento e dela constitui um tecido fundamental, que se pode afirmar
correta e plenamente sobre a existncia de um pensamento jurdico47.
No obstante o falso reducionismo contido na expresso, essa
premissa implica em considerar que apenas as civilizaes possuem pensamento
45
Conforme FONSECA, Ricardo Marcelo. Os juristas e a cultura jurdica brasileira na segunda metade do
sculo XIX. In: Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, n. 35. Milano: Giuffr, 2006. 46
GROSSI, Paolo. Pensamento Jurdico. In: GROSSI, Paolo. Histria da propriedade e outros ensaios.
Traduo de Ricardo Marcelo Fonseca e Luiz Ernani Fritoli. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 140. 47
Idem, p. 141.
35
jurdico, e que este, na realidade, o responsvel por tecer todo o modelo da
prpria civilizao: num processo simbitico ou matrimonial (relao de co-
dependncia), civilizao e pensamento jurdico se fazem.
Mas o pensamento jurdico, importante que se ressalte, no vigora
desde os mecanismos de poder da civilizao; no nasce no mbito pblico do
Estado, o que reduziria o seu conceito mera manifestao decorrente das
estruturas formais da civilizao. No est ligado, como pretende a leitura
ortodoxa do marxismo, aos mecanismos de coero disponibilizados pelo poder
poltico. Vem, antes, dos fatos e dos costumes, do cotidiano, e volta-se, ordenado,
a ele. Possui suas razes na prpria sociedade, constituda anteriormente ao
Estado. possvel fundamentar em Grossi:
O pensamento jurdico (...) nasce de baixo, das coisas, dos fatos, e sobre
estes torna a voltar-se revelando o seu ntimo carter ordenador; a tenso
co-natural que o domina e o caracteriza encarnar-se, no flutuar sobre as
experincias, mas orden-las. O pensamento jurdico no pode prescindir
do mundo da ao, onde est sempre sepultado o grmen que o desperta:
aes singulares, aes coletivas mas aes particulares que so, no
momento ordenador, recuperadas dos seus particularismos e subtradas da
misria do cotidiano. E aqui o pensamento jurdico desvela a sua natureza
complexa: a dimenso especulativa se insere sempre na capilar vida
cotidiana, que constitui uma espcie de ineliminvel dimenso submersa.
Ele no pode nunca prescindir da laboriosa oficina onde, ao lado de
elaboradssimos princpios, fala-se e opera-se em leis e atos
administrativos, contratos e testamentos, citaes em juzo e tipificaes de
crimes, contratos de trabalho e sociedades comerciais, uma dispora de
fatos sados de suas prprias cascas e inseridos, num nvel mais elevado,
em uma sociedade e em uma cultura, como objetos de pensamento.
36
Pensamento jurdico sem dvida uma filosofia, mas muito
freqentemente uma filosofia subtrada do filsofo profissional: o balbucio,
que se tornar sucessivamente discurso mas que j um embrio de
discurso, toma incio no canteiro de obras dos advogados, dos juzes, dos
notrios, dos doctores iuris, todos partcipes da fundao de um pensamento
jurdico no menos do que o sapientssimo speculator ou do que o
legislador. O pensamento jurdico tambm uma mentalidade, uma vez
que sempre fruto dessa realidade plural exatamente porque sntese de
ao e conhecimento, de compreenso dos tantos institutos e tipificaes
legais individuais cada um pesadamente impregnado de lugar, de tempo,
de motivos, de interesses dentro do tecido dos modelos gerais sobre os
quais se ordena uma civilizao histrica.48
Nesse ponto, o pensamento jurdico inerente civilizao remete o
conceito mentalidade do povo que a participa.49
Tambm e ainda em Paolo Grossi se encontra a noo de
mentalidade jurdica, uma fora invisvel e abstrata, mas determinante para se
precisar todo o universo jurdico observado: il diritto si manifesta attraverso un
universo di segni che sono i mile istituti della organizzazione e della circolazione
giuridica, cspidi affioranti di un enorme universo sommerso di valori storici,
appunto il sostrato delle mentalit50.
Assim, confia o professor florentino na anlise da vida cotidiana
como instrumento mais seguro para alcanar a mentalidade jurdica de uma
48
Idem, pp. 143-144. 49
Sobre a concepo de mentalidade no mbito da cultura jurdica, importa verificar o estudo de Grossi que trata da cultura jurdica e direito cannico, onde surge a seguinte mxima: Il diritto canonico non solo un ammasso di regole e di cnoni; , innanzi tutto, una certa mentalit giuridica che, in quanto tipicissima e
peculiarissima, in quanto provvedutamente costruita da scienza e prassi, in quanto capillarmente assorbita
nella lunga durata, gnera incisivi influssi proprio a livello di mentalit ben oltre i confini della comunit
ecclesiale. GROSSI, Paolo. Diritto canonico e cultura giuridica. In: Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, n. 32. Milano: Giuffr, 2003, p. 377. 50
GROSSI, Paolo. LOrdine giuridico medievale. Roma-Bari: Laterza, 2006. p. 6.
37
sociedade, o que confere mentalidade um patamar experimental. cabvel,
pois, a observao dos procedimentos que hoje seriam classificados como direito
privado como signos mais expressivos e seguros para vislumbrar as idias,
ideologias e convices de um tempo, em suma, de uma determinada mentalidade
jurdica.
Eis o reforo do argumento que coloca o pensamento jurdico como
arquitetura da vida cotidiana na perspectiva histrica:
Il pensiero giuridico appare rarefatto, monco, quase insensato, se non si
propone come architettura sapienziale duma concreta orditura sociale,
come sapere tecnico che riveste, sorregge, raddrizza istituti del vivere
quotidiano. Il pensiero giuridico ha e non pu non avere una struttura
complessa: la capilare vitta quotidiana costituisce la sua ineliminabile
dimensione sommersa; i suoi canoni logici, la sua cifra teoretica nascono e
si sviluppano come tentativo di lettura, di interpretazione e comprensione
di questo o quel mondo storico.51
E mais: o direito, na vida cotidiana, manifesta-se em usos de
populaes, leis dos detentores do poder poltico, atos da administrao pblica,
sentenas de juzes, praxe de operadores econmicos e assim por diante52.
O direito pode ordenar o social porque realidade com razes, e razes
profundas; seria um problema se s tantas revelaes no cotidiano usos,
leis, atos administrativos, sentenas, invenes prticas ns no
correlacionssemos a intensa e incessante atividade que se d que
preparatria, mas j direito nos estratos mais recnditos de uma
51
GROSSI, Paolo. Sulla storia del pensiero giuridico. Op. Cit., p. 1148. 52
GROSSI, Paolo. Primeira lio sobre direito. Traduo de Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, p. 69.
38
civilizao, do mesmo modo como a nascente na qual o revelar-se da gua
na fenda da rocha apenas o ltimo momento, ainda que o nico aparente,
de uma longa vida subterrnea.53
Afinal, esta configurao somente pode ser avaliada a partir de uma
anlise interna que compreenda seu significado e seus efeitos na sociedade, ou
seja, a partir de uma anlise eminentemente histrica. Para o historiador do direito
isso desempenha um papel importante na compreenso do seu objeto, visto que o
direito escrito na histria.
Partindo de uma anlise antropolgica e at certo ponto metafsica,
Otto Brusiin questiona:
(...) qu consecuencias se desprenden del hecho de que semejantes seres
vivientes co-existan em sociedad? La fundamental diferencia entre
sociedad animal y sociedad humana, puede expresarse de la siguiente
manera: las sociedades de animales se mantienen unidas por el instinto,
mientras que las sociedades de hombres lo estn, en cambio, por las
normas. El obrar del animal que vive en una sociedad sigue por su instinto
patrones de vida biolgicamente condicionados que, con referencia a cada
espcie zoolgica y dentro de su mundo peculiar, permanecen inmutables
en lo esencial de generacin em generacin. El hombre no carece por
completo de los patrones de vida que le marcan los instintos, pero solo
desempean un papel secundario en su vida social. En su lugar dominan
normas sociales cuya existncia es una emanacin de la posicin objetivada
e idealizada del hombre, referida a lo supraemprico. Por tanto, las normas
53
Idem, pp. 69-70.
39
son algo especfico para el hombre y estn condicionadas por su vida en
sociedad. Las normas contienen esquemas para la accin proyectados hacia
el futuro y fundametalmente variables, a diferencia de los patrones de vida
que representan los instinctos.
Cabe preguntar quines dictan las normas sociales. No cabe duda que es
procedente formular esta pregunta, pero no parece ser un punto de vista
adecuado para nuestro presente estdio. Norma y mandato deberan
mantenerse radicalmente separados. En la situacin creada por un mandato
tenemos a alguien que manda y a outro a quien se dirige lo ordenado. Por
el contrario, las normas sociales se desarrollan en la sociedad como una
manifestacin de la permanente vida en comn de los hombres. Un
mandato puede dar lugar a una norma vlida para el futuro, pero no es
indispensable que as suceda. Nos parece indudable que la colectiva
cualidad humana de producir normas en comn se halla ligada a la
capacidad del hombre de configurar el mundo a base de su conocimiento.
Un animal carece tanto de normas como de conocimiento objetivo.
Las sociedades humanas tienen distinto alcance y duracin. Cuan