Tese Carol Grillo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA

FAZENDO O DOZE NA PISTA Um estudo de caso do mercado ilegal de drogas na classe mdia

Carolina Christoph Grillo

Rio de Janeiro 2008

Carolina Christoph Grillo

Fazendo o Doze na Pista: Um estudo de caso do mercado ilegal de drogas na classe mdia

Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro como um dos requisitos necessrios obteno do ttulo de mestre. rea de concentrao: Sociologia Orientador: Prof. Dr. Michel Misse

Rio de Janeiro 2008

Carolina Christoph Grillo

Fazendo o Doze na Pista: Um estudo de caso do mercado ilegal de drogas na classe mdia

Rio de Janeiro, 09 de Abril de 2008. Aprovada por: _______________________________________ Prof. Dr. Michel Misse, presidente, IFCS/UFRJ

____________________________________________ Prof. Dr. Pedro Paulo de Oliveira Martins, IFCS/UFRJ

_______________________________________ Prof. Dr. Antnio Carlos Rafael Barbosa, UFF

_____________________________________________ Prof. Dr. Liz Antnio Machado da Silva, IFCS/UFRJ (suplente)

_______________________________________________ Prof. Dr. Marco Antnio Mello da Silva, UFF (suplente)

Rio de Janeiro 2008

Grillo, Carolina Christoph Fazendo o Doze na Pista: Um estudo de caso do mercado ilegal de drogas na classe mdia / Carolina Christoph Grillo. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2008 Orientador: Michel Misse Xi, 128f Dissertao de mestrado UFRJ/ IFCS/ Programa de PsGraduao em Sociologia e Antropologia, 2008. Referncias Bibliogrficas : f. 108 112 1. Drogas. 2. Mercados ilegais. 3. Classe mdia. 4. Juventude. 5. Sociabilidade. I. Misse, Michel. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Programa de Ps Graduao em Sociologia e Antropologia. III. Fazendo o Doze na Pista: Um estudo de caso do mercado ilegal de drogas na classe mdia

RESUMO

Nesta dissertao so apresentados os resultados de uma pesquisa de campo realizada com traficantes de classe mdia do Rio de Janeiro e Niteri, com idades entre os vinte e os trinta e cinco anos. Os dados foram colhidos atravs da observao participante e de entrevistas informais realizadas com traficantes em liberdade, dos quais a pesquisadora se aproximou, acionando redes de relaes a partir do conhecimento, anterior pesquisa, de vrios dos informantes estudados. As anlises debruam-se sobre os casos coletados e sobre o discurso dos traficantes com os quais foi possvel conversar, buscando elucidar a dinmica do mercado ilegal de drogas praticado por jovens de classe mdia, bem como compreender os sistemas de referncias compartilhados pelos mesmos, desenhando gradualmente um estilo de vida. O contraponto com as redes do trfico operantes nas aglomeraes de moradia de baixa renda permite conceber o chamado trfico da pista ou do asfalto enquanto uma modalidade particular desse mercado, caracterizada por uma sociabilidade prpria. So identificadas as formas de organizao, hierarquia e implantao territorial em que a rede estudada funciona, apontando as circunstncias sob as quais possvel a manuteno de uma sociabilidade normalizada em torno do comrcio ilegal de drogas, caracterizada pelo o repdio ao uso da violncia na resoluo dos conflitos. A descrio da circulao da confiana, dos interesses, do crdito e do prestgio completa o estudo de caso apresentado que trata de objeto ainda pouco explorado pelas cincias sociais, no Brasil.

ABSTRACT

In this essay, there are presented the results from a field research accomplished among middle class drug dealers from Rio de Janeiro and Niteri, with ages ranging from twenty to thirty-five years old, approximately. The data was gathered through participant observation and informal interviews with drug dealers in liberty, to which the researcher approached herself by activating networks of relations through previous acquaintance with many of the studied informers. This analysis focuses on the collected cases and on the discourse obtained from the dealers with whom it was possible to have a conversation with, seeking to clear out the commercial dynamics found in the illegal drugs market practiced by the middle class youth, as well as to comprehend their shared reference systems, gradually drawing out a life style. The counterpoint with the traffic networks operating in the low income residence clusters allow us to conceive the so called asphalt traffic as a particular modality in this market, characterized by its own sociability. The organizational, hierarchical and territorial implantation forms by which the studied network functions are identified, pointing out the circumstances under which it is possible to maintain a normalized sociability around the illegal drugs commerce, characterized by the disavowing of the use of violence as a mean to solve conflicts. The description of the trust, interests, credit and prestige circulation completes the presented case study which refers to an object yet little explored by the social sciences, in Brazil.

Para Lara.

AGRADECIMENTOS

Agradeo a todos aqueles que contriburam para a realizao dessa dissertao, a comear pelos meus pais Priscilla Christoph e Gilberto de Queiroz Grillo, cujo apoio foi sempre incondicional. Dentre os meus familiares, destaco tambm o papel crucial exercido pelo meu to amado irmo, Patrick, minha adorada av Teresa, minha irm Helena, meus padrinhos Gilda e Marcos, bem como a minha irm-prima Jlia e os seus fantsticos pais, Srgio e Nira. Declaro a minha especial gratido a Srgio de Abreu Fialho Nascimento Gurgel, meu querido vodrasto, o qual acabou por me proporcionar os momentos de reflexo mais importantes na escrita dessa dissertao. Declaro uma enorme gratido ao meu orientador, Michel Misse, que, alm de me auxiliar nesse trabalho, ofereceu-me a liberdade da qual eu tanto precisava para pensar. Agradeo tambm aos componentes da banca, Antnio Rafael Barbosa e Pedro Paulo de Oliveira, cujas sugestes oferecidas durante a qualificao foram de grande valia, influenciando bastante o texto final, e aos professores Marco Antnio da Silva Mello e Luis Antnio Machado da Silva, por terem aceitado esse convite. No devo me

esquecer dos excelentes professores com os quais tive a oportunidade de aprender, durante a graduao e a ps-graduao, destacando a importncia de Mirian Goldenberg, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, Letcia Veloso, Bila Sorj, Peter Fry, Maria Ligia Barbosa, Maria Dulce Gaspar, Olvia Cunha, Paulo Bahia e, mais uma vez, Luis Antnio Machado da Silva. Tive a grande sorte de estudar no IFCS, que um ambiente muito favorvel reflexo e do qual surgem pessoas maravilhosas. No podendo citar tantos, agradeo a toda a turma de mestrado 2006 e a todos os integrantes do NECVU, mais especialmente Andrea Ana do Nascimento, Natasha Neri e Bruno de Vasconcelos Cardoso. Devo

tambm lembrar a relevncia dos dilogos travados com Thiago Coutinho Cavalcante, o qual me ofereceu algumas boas contribuies. Agradeo especialmente a Frederico Policarpo Mendona Filho que, alm de me socorrer tantas vezes, forneceu importantes sugestes e um grande estmulo na fase mais decisiva da escrita dessa dissertao. Agradeo pela oportunidade de ter sido educada no Centro Educacional Ansio Teixeira, a escola que estabeleceu todos os alicerces do meu pensamento e que, ainda, colocou-me em contato com as melhores amigas que uma pessoa ter. Elas tornaram a minha vida sempre to boa, permitindo-me engajar-me em qualquer atividade. Sou imensamente grata minha quase irm gmea Olvia Tenrio de Oliveira Marangoni, quem me mostrou a alegria, minha irm de alma, Maria Clara Seplveda Faria, que me ensinou a gostar de ler, e a Joana Marques Chaves, pelo apoio sem o qual eu no teria sobrevivido s piores dificuldades. Agradeo a Rita Lameira, Renata da Graa Aranha Boiteux, Marina Cascardo, Flora Moana Van de Beuque, Lvia Franco Cavalcanti, Natlia Parahba, Tatiane Mazzoto, Patrcia Ferreira, Manoela Vianna, Mariana Santoro, Marisa Ferrari, Iaci dAssuno Santos e Suy Quintslr, sempre to especiais. Dentre as minhas amigas, destaco o incalculvel apoio oferecido por Bruna Praa, uma pessoa incrvel, para quem prometi uma boa dissertao. Agradeo a inestimvel ajuda de Franco Grain Botelho, a quem devo muitas coisas nessa vida, a comear pela nossa to amada filha, Lara. Agradeo a Pablo, ngela, Dona Jacy, Dona Jaby e Seu Botelho, uma famlia que ganhei e no deixei que se perdesse. Termino revelando uma infindvel gratido a todos aqueles que definitivamente no posso citar e sem os quais, essa pesquisa no teria acontecido.

SUMRIO: 1 INTRODUO 1.1 O PROBLEMA DA ACUSAO 1.2 METODOLOGIA 2 O TRFICO NA PISTA 2.1 SOCIABILIDADE NORMALIZADA 2.2 TERRITORIALIDADE 2.3 ORGANIZAO E HIERARQUIA 3 AS RELAES COMERCIAIS 3.1 DE CONFIANA E INTERESSES 3.2 CONFIANA 3.3 FICAR DEVENDO 3.4 A PROFISSIONALIZAO 4 O MORRO E A PISTA 4.1 FONTES ALTERNATIVAS 4.2 O CONTEXTO NO MORRO 4.3 O PLAYBOY 4.4 A COMPETIO 5 SUCESSO E FRACASSO 5.1 ADIANTAR 5.2 CAPACIDADES INDIVUAIS 5.3 SEGURANA 5.4 COMUNICAO EM SEGURANA 5.5 EXPLANAR A BASE 5.6 OS PAIS 5.7 OS AMIGOS 6 O CONSUMO 6.1 DO CONSUMO AO TRFICO 1 3 5 10 16 18 22 27 30 33 35 38 45 46 48 49 51 56 60 63 65 67 70 71 74 77 79

6.2 TRFICO IDEOLGICO 6.3 CONSUMO CONSPCUO 6.4 CIOS DO OFCIO 6.5 O ABUSO 7 A VIOLNCIA NA PISTA 7.1 A NORMALIDADE DO TRFICO 8 CONCLUSO REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS GLOSSRIO APNDICE

82 85 87 88 95 98 104 108 112 116

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1 INTRODUO

O consumo de drogas, a criminalidade e a delinqncia juvenil so temas clssicos que j inspiraram diversas pesquisas em cincias sociais e assumem um destaque cada vez maior no imaginrio pblico, apresentando-se sob a forma de fantasmas sociais (MISSE,1999). O presente trabalho engloba estes trs assuntos, pois remete ao comrcio ilegal de drogas praticado por jovens de classe mdia. Entretanto, no os aborda como problemas, mas adota uma perspectiva compreensiva do crime, entendido como algo socialmente construdo. Ainda que eu revele informaes sobre a dinmica operacional das redes do mercado ilegal estudado, devo ressaltar que no incorporo uma postura denuncista. Busco uma abordagem elucidativa de uma questo polmica que vem levantando tantas opinies contraditrias. Apesar de existirem diversos estudos a respeito do narcotrfico em locais de moradia de baixa renda e sobre o consumo de drogas por grupos da classe mdia, so poucos os que se referem comercializao dessas substncias pelos prprios integrantes das camadas mdias. Diante dessa lacuna, encontramos nos meios de comunicao representaes um tanto equivocadas desse fenmeno to atual. O objetivo desse trabalho justamente o de promover um debate mais fundamentado a cerca do objeto estudado, desconstruindo os pressupostos vigentes e oferecendo dados empricos que contribuam para essa reflexo. Nesta dissertao apresento os resultados de uma pesquisa de campo etnogrfica realizada junto a uma rede social de traficantes de drogas do Rio de Janeiro oriundos de famlias de classe mdia e, na sua maioria, pertencentes a uma faixa etria entre os vinte e os trinta e cinco anos de idade. Tive a oportunidade de perceber que, apesar do carter ilegal dos empreendimentos, no havia uma cultura de violncia no meio estudado, sendo o uso da fora evitado e condenado em questes relativas ao trfico. Procurei identificar, nas

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circunstncias sob as quais essas redes funcionam, as explicaes para a manuteno dos modos de sociabilidade normalizados nas interaes entre os prprios traficantes e deles com os demais. Engajei-me, portanto, na compreenso das formas de operao desse trfico, atentando-me para as relaes desenvolvidas com os territrios e para os modelos de organizao e hierarquia assumidos na configurao dessas redes A partir de casos colhidos no discurso ou na observao das prticas, foi possvel desenvolver algumas questes prprias comercializao de drogas nessa modalidade do trfico, descrevendo-a atravs da lgica presente nesse mercado. Foram selecionados alguns temas que pareceram mais relevantes, como o da circulao da confiana e dos interesses que influenciam diretamente as prticas. Relatos sobre os fluxos de endividamento e de

mercadorias visam situar o leitor com respeito dinmica comercial que organiza essas redes, complementando-os com uma anlise das flutuaes de status no decorrer das carreiras desses traficantes. Os valores compartilhados entre os pesquisados permeiam a exposio dos dados selecionados, evidenciando-se na fala dos mesmos e acenando para a possibilidade de se compreender o mercado ilegal de drogas no exclusivamente pela sua qualidade de crime, mas tambm pela sua condio de construto social ordenado por um sistema de referncias prprio. Se o lucro um dos objetivos almejados pelos traficantes, tambm o pelos profissionais de qualquer modalidade aquisitiva e os modos observados de regulao das atividades comerciais atendem a um repertrio de regras constitudo nas prprias relaes intersubjetivas. No convvio com os indivduos estudados, identifiquei as estratgias atravs das quais eles lidam com o problema da necessidade de encobrir as suas prticas ilcitas, o que influi tanto nas formas de interao para o trfico quanto na maneira de se relacionar com o resto do mundo. Destaco tambm o papel do consumo de drogas na composio dos hbitos desses

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traficantes, isto , da subjetivao efetiva da materialidade com a qual trabalham. Desta maneira, desenho ao longo do texto o estilo de vida dentro do qual as experincias se organizam e atravs do qual uma apresentao de si mesmo se faz real. Este trabalho consiste to simplesmente de expor aspectos da vida do traficante de classe mdia a partir de um olhar para o mercado que se constitui no conjunto de suas prticas. Procuro descrever o objeto, levando em considerao a tica dos prprios

pesquisados.

1.1 O PROBLEMA DA ACUSAO Antes de mais nada, preciso que se faa uma ressalva. Aps ter aplicado repetidas vezes a categoria traficante devo problematiz-la um pouco, para no incorrer no risco de tom-la como pr-concebida. Segundo Turk (1966), o status de um indivduo no avaliado pelo que ele ou faz, mas atravs da reao dos outros que o percebem, utilizando algum de seus atributos ou um aspecto do seu comportamento como critrio. O autor distingue os processos acusatoriais da criminalizao e da estigmatizao, de modo que o primeiro a atribuio de um rtulo por parte das autoridades legais, sendo esta a origem da criminalidade do indivduo, e o segundo remete s sanes aplicadas por pessoas sem autoridade legal ou aos casos cujos critrios no tm relevncia oficial. (TURK,1966) Misse (1999), por sua vez, aprofunda o entendimento dos processos sociais atravs dos quais se materializa a criminalizao distinguindo as etapas da criminalizao de um curso de ao tpico idealmente definido como um crime; da criminao de um evento, que o encaixa na classificao criminalizadora; da incriminao do suposto sujeito autor do evento; e, por fim, da sujeio criminal, atravs da qual os sujeitos considerados potencialmente criminosos passam a compor um tipo social. (MISSE,1999)

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Os indivduos e comportamentos so, portanto, desviantes, quando so assim acusados. Segundo Becker (1977), os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infrao constitui desvio e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotul-las como marginais e desviantes (BECKER, 1977, p.60). Para o autor, no h um consenso em torno das regras a serem aplicadas s situaes especficas nas sociedades modernas e verificam-se disputas polticas de significaes morais para a definio das regras a serem impostas aos outros. Desta maneira, um comportamento percebido como desviante com referncia a um arranjo particular de regras, pode estar de acordo com as regras de um grupo do qual o indivduo participa e cujos controles sociais operam com motivaes concorrentes s do outro grupo. Para a realizao da pesquisa, foi utilizada a categoria de acusao traficante, levando em conta uma classificao penal, mesmo que a maioria dos indivduos pesquisados no tenham passado por processos legais de incriminao ou que sequer sejam assim acusados pelas demais pessoas com as quais se relacionam. No entanto, o uso dessa categoria se justifica pelo possvel enquadramento das prticas desses atores no que constitui o crime de trfico de entorpecentes e pela ampla conscincia que eles tm de que devem encobrir suas atividades para no sofrerem as sanes prescritas em lei. Como resposta s crticas ao seu conceito de desviante secreto, em virtude da ausncia da acusao para que se possa falar em desvio, o prprio Becker (1991) concluiu que o desvio secreto consiste em estar vulnervel aos procedimentos comumente usados para descobrir os desvios de um tipo particular e em estar numa posio na qual ser fcil fazer a definio proceder (BECKER, 1991, p.187, traduo minha). Tendo em vista essas ponderaes, considero as perspectivas dos indivduos estudados, sem adotar qualquer proposta corretiva e empenhando-me na compreenso da organizao social dessa modalidade do comrcio informal ilegal de drogas, definido como

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crime por processos sociais complexos.

No contexto atual, no qual a problemtica da

segurana pblica ganha um destaque cada vez maior, sob a hegemonia dos discursos conservadores veiculados pela mdia, a realizao de estudos compreensivos de prticas criminalizadas se faz primordial. Por menor que seja a contribuio desse tipo de pesquisa para a elaborao de polticas pblicas, importante que as cincias sociais assumam o seu papel de esclarecer as dimenses de conflitos representados sob o signo da acusao social hegemnica.

1.2 METODOLOGIA Este trabalho baseia-se em um estudo de caso que tomou por referncia uma rede social (social network) e selecionou os informantes com base no seu envolvimento com atividades passveis de enquadramento na classificao penal de trfico de entorpecentes. Esta rede social foi acessada a partir de um informante principal, Joo, o qual ofereceu contribuies fundamentais para o trabalho, tanto por fornecer ricos depoimentos, quanto por inserir a pesquisadora na rede estudada, de maneira que a sua participao fosse percebida com naturalidade. Verificou-se um contedo (content) referente ao significado bsico que os indivduos atribuem ao seu relacionamento (MITCHEL, 1969) e que, entre os membros da rede estudada, est determinado pelo desenvolvimento das relaes paralelas de amizade e negcios. Esta rede bastante complexa e, por mais que Joo seja o ponto de partida, no assume qualquer centralidade objetiva. Ao longo da pesquisa, apareceram personagens que conectam diferentes redes s quais no tive tanto acesso, mas que permitem conceber uma integrao de diversas delas em torno do trfico de drogas. Eu pude constatar uma

superposio de redes indistinguveis umas das outras, porm observei uma variao significativa da conexidade (BOTT, 1976) nas suas diversas ramificaes, compondo

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alguns ncleos ou crculos de amizade que se alteram com o tempo.

Compreendo

conexidade segundo a definio elaborada por Bott (1976) para distinguir entre malha estreita e malha frouxa nas redes sociais das famlias que estudou, tratando-se da extenso em que as pessoas conhecidas por uma famlia se conhecem e se encontram umas com as outras, independentemente da famlia (BOTT, 1976, p. 76). Partindo da constatao de que as redes se interconectam, os depoimentos e observaes tiradas da interao com indivduos sem ligao direta com a rede social que a base para o trabalho, foram igualmente considerados, uma vez que se inserem no contexto do mercado ilegal de drogas praticado por jovens de classe mdia. Para a realizao da pesquisa de campo, foi utilizado o mtodo da observao participante e das entrevistas informais, nas quais perguntei somente o que foi coerente com o andamento da conversa. Segundo Becker e Geer (1970b), tais conversas so, de diversas maneiras o equivalente funcional da entrevista e podem ser usadas para colher o mesmo tipo de informaes (BECKER e GEER, 1970b, P.151, traduo minha). Para os autores, a observao participante oferece ao pesquisador um rico contexto de experincias que lhe possibilita dar-se conta de fatos incongruentes e no explicados, sensibilizando-o para as suas implicaes e conexes com outros fatos observados, impulsionando-o a revisar continuamente as suas orientaes tericas e as questes de pesquisa (BECKER e GEER, 1970a). Tratando-se do estudo de um objeto ainda pouco explorado pelas cincias sociais, no Brasil, foi somente atravs da imerso etnogrfica que os problemas especficos a serem estudados puderam ser levantados e continuamente reformulados, dada a oportunidade ir e voltar e de testar diferentes hipteses, que as conversaes informais oferecem. A ilegalidade dos empreendimentos e a postura de encobrimento assumida pelos indivduos pesquisados tambm impossibilitou a realizao de entrevistas formais e a aplicao de questionrio,

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sendo mal aceita a mera suposio de realiz-los, quando sondada a viabilidade desse meio investigativo. Tanto melhor, pois alm de afastar os meus informantes, eu teria

comprometido a absoluta naturalidade da qual surgiram os depoimentos colhidos. A ausncia de uma implantao territorial identificvel ou mesmo de uma delimitao mais ou menos precisa de um grupo representaram alguns dos obstculos realizao do trabalho de campo. No havia nenhuma esquina ou centro comunitrio para que eu pudesse passar o tempo com os meus rapazes tal como Foote Whyte (1993) fez com os seus, em sua exemplar etnografia. Nem to pouco me era possvel tornar-me uma traficante de drogas para experimentar o objeto, da mesma maneira em que Wacquant (2002) tornou-se um boxeador, integrando-se ao grupo estudado e assimilando as suas experincias com o prprio corpo. Era preciso inovar os mtodos de pesquisa para torn-la possvel. A insero no campo no foi posterior ao interesse pelo objeto, mas antecedeu a sua escolha. Posso adiantar que fui uma freqentadora assdua de forrs entre os anos de 1999 e 2002, passando algumas temporadas de frias em Itanas, uma cidade de veraneio no Esprito Santo e espcie de capital dos forrozeiros do sudeste, onde passei a conhecer alguns traficantes de drogas. Esse foi o perodo de auge do forr entre os jovens de classe mdia tanto no Rio de Janeiro, como em So Paulo, Vitria e Belo Horizonte e, dado o usual consumo de maconha e LSD pelos forrozeiros da poca, diversas conexes interestaduais foram promovidas entre os traficantes-participantes. Mais do que um estilo musical, o forr representou um verdadeiro estilo de vida para muitos jovens que assumiam uma postura hedonista e despreocupada, viajando atrs de boa msica, bons parceiros de dana e amores de vero. Foi nesse contexto que eu conheci a maior parte dos que vieram a se tornar os informantes da minha pesquisa e eles prprios haviam me apresentado s festas rave que passei a freqentar. Curiosamente, h grandes semelhanas quanto forma de envolvimento

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dos jovens das capitais do sudeste brasileiro com estes dois movimentos culturais. Tais traficantes importaram o prestgio de que gozavam no forr para a cena do eletrnico e alguns deles assumiram um papel de destaque neste meio. Atualmente, encontram-se, na sua maioria, afastados de ambos os circuitos. Os mtodos empregados para estudar os traficantes de classe mdia, assim como em Adler (1993), foram diretos e pessoais (direct and personal). Se no me aprofundo nas explicaes sobre a maneira atravs da qual me inseri na rede em especial estudada, para preservar o anonimato dos informantes que se dispuseram a colaborar com a pesquisa, bem como o daqueles que acabaram contribuindo sem que eu tivesse a oportunidade adequada de expor as minhas intenes de pesquisadora. Ao longo do texto, menciono alguns contextos nos quais as observaes foram feitas, esclarecendo progressivamente as tcnicas de imerso etnogrfica empregadas. Dentre elas destaco: a oferta de caronas para festas ou to

simplesmente de um lugar para o outro, forjando uma inteno de tambm estar indo pra l; a freqncia em noitadas somada a uma bajulao necessria; e a convivncia com alguns dos pesquisados nas suas rodas mais ntimas de socializao. A minha presena em campo no foi interpretada somente como uma iniciativa de trabalho investigativo (salvo no meu foro mais ntimo) e eu estive ao lado das pessoas pesquisadas por motivaes outras que no apenas as da pesquisa. Numa ocasio, cheguei a comentar com alguns informantes: vocs nem percebem quando eu estou entrevistando, no ?, ao que me foi respondido por apenas um deles: Eu percebo. Na apresentao do texto, utilizo pseudnimos para referir-me aos informantes e privilegio a exposio volumosa dos relatos, procurando mant-los os mais integrais dentro do possvel, ciente da crtica de Gluckman (1994) ao uso do caso e do caso desdobrado. O autor prope que o uso mais fecundo do material etnogrfico deve estabelecer as devidas conexes entre uma srie de incidentes ligados s mesmas pessoas ou grupos, no decorrer de

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um perodo suficientemente longo e demonstrar como esses incidentes se relacionam com o desenvolvimento e a mudana nas relaes sociais entre essas pessoas e grupos, agindo no quadro de sua cultura e de seu sistema social (GLUCKMAN, 1994). No entanto, ressalto que as redes que estudo no oferecem a mesma possibilidade de abordagem que as sociedades pesquisadas nas grandes monografias aludidas pelo autor, dado o carter fractal da realidade observada e a conseqente fragmentao dos dados que se permitem ser colhidos. Devo assinalar que esta dissertao no oferece uma descrio fidedigna de uma realidade emprica apreensvel, mas apresenta os resultados da negociao historicamente contingente de uma verdade produzida no contexto da realizao da etnografia.O trabalho de campo no pode aparecer fundamentalmente como um processo cumulativo de coletar experincias ou de aprendizado cultural por um sujeito autnomo. Ele deve, antes, ser visto como um encontro historicamente contingente, no controlado e dialgico, envolvendo, em alguma medida, tanto o conflito, quanto a colaborao na produo dos textos. (CLIFFORD, 2002, p.223)

Se, de certo modo, dirijo a ordem de apresentao dos relatos de maneira a encadelos em concordncia com os temas que trato em cada sesso, fazendo valer a minha autoridade de pesquisadora, por outro lado, dou voz aos meus informantes e deixo que as observaes de campo falem mais do que eu mesma, construindo um texto at certo ponto polifnico (CLIFFORD, 2002).

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2 O TRFICO DA PISTA

Vm sendo noticiadas na mdia sucessivas operaes das polcias civil e federal para prender jovens de classe mdia envolvidos com o trfico de drogas, baseadas em investigaes que se utilizam de escutas telefnicas e, na maioria das vezes, iniciadas a partir de denncias. Diante dessa realidade sobre a qual se conhece muito pouco, os meios de comunicao vm aplicando algumas categorias para simplificar a exposio do material publicado sobre a emergncia dessa nova modalidade de trfico, mas se confundem na complexidade dos casos que aparecem. Algumas reportagens referem-se aos traficantes de classe mdia como jovens que freqentam raves, onde vendem drogas sintticas, afastando-os radicalmente de qualquer envolvimento com as redes do trfico que operam nas favelas. Entretanto essa classificao no d conta das prises de traficantes acusados de vender paralelamente ecstasy e LSD importados e maconha adquirida em algum morro. H

tambm sempre um esforo em tratar os presos de uma mesma operao enquanto uma quadrilha, mas no fundamentam essas afirmaes e sequer explicam como que traficantes surpreendidos com drogas diferentes e acusados de negoci-las por meios diversos so agrupados em uma mesma quadrilha. Como, ento, podem os mais variados casos que vm a pblico pertencer a uma mesma modalidade de trfico na qual so compiladas as ocorrncias envolvendo jovens de classe mdia e, no entanto, incluir pessoas com mais de trinta anos e menos de vinte, filhos de taxistas e filhos de empresrios? O que particulariza essas redes do trfico de drogas em relao s demais, distinguindo-as tanto daquelas que operam nas favelas, quanto dos grupos organizados de classe alta que movimentam grandes volumes de drogas e desenvolvem esquemas de suborno das autoridades e de lavagem de dinheiro?

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Utilizo classe mdia como categoria nativa, de maneira a abranger sob essa definio, os diversos estratos sociais que se auto-intitulam enquanto tal. J para facilitar a compreenso do que tomo por jovens de em mdia vinte a trinta e cinco anos de idade, exemplifico com a maneira como Eugnio (2006) definiu a faixa-etria dos freqentadores da cena carioca a qual estudou: Aderir a um estilo de vida jovem o que permite, tambm, para a cena como um todo, a convivncia como iguais a sujeitos pertencentes a pelo menos duas geraes, resultando em um conjunto que recobre uma ampla faixa etria, impossvel de ser concebido como grupo de idade (EUGNIO, 2006, p. 170). Os recortes etrio e de classe, portanto, no so eficientes para delimitar o que pode ser compreendido nessa modalidade do trfico praticada principalmente, mas no exclusivamente, por jovens de classe mdia. Nem to pouco podemos classificar em funo do tipo de droga vendida, pois vrias delas so comercializadas nessas redes, podendo um mesmo traficante negociar diferentes mercadorias. At o tradicional recorte entre o atacado e o varejo insuficiente para caracterizar tal modalidade de trfico, uma vez que ela engloba essas duas dimenses da atividade comercial. A mesma dificuldade que os jornais encontram para definir categorias que renam esses novos casos que passaram a comparecer nas pginas policiais se coloca tambm na proposta de delimitar essa modalidade de trfico enquanto um objeto em particular a ser estudado. Torna-se necessrio estabelecer relaes de semelhana e diferena, concorrncia e cooperao com as demais modalidades praticadas nesse mercado ilegal, privilegiando a comparao com o trfico das favelas, por ser um campo de estudos consolidado, alm de guardar uma srie de relaes e possveis comparaes com o chamado trfico da pista ou do asfalto. A definio do objeto permeia todo o trabalho, pois se tratando de um tema ainda pouco explorado pelas cincias sociais, a demanda por um recorte adequado se faz primordial.

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Barbosa (2005) assinala a existncia das esticas, isto , pontos de venda no asfalto subordinados aos grupos que dominam o trfico nos morros, os quais no devem ser confundidos com aqueles que tambm trabalham no asfalto, porm o fazem por encomenda telefnica (BARBOSA, 2005). Tais articulaes hbridas aumentam a dificuldade na

realizao de um recorte suficientemente preciso. No entanto, ressalto que as redes estudadas do trfico da pista aproximam-se mais das tais encomendas telefnicas do que das esticas, embora adquiram feies bem mais complexas e passem a compor uma modalidade especfica do mercado ilegal de drogas com extenses do varejo ao atacado e com uma ampla variedade de drogas sendo comercializadas. Procurei compreender o funcionamento dessa modalidade do trfico articulada em redes relacionais fundadas na amizade e cuja operao no territorializada, mas pulverizada, sem que existam pontos de venda reconhecveis. Trata-se de uma investigao da

organizao de um mercado ilegal de entorpecentes, no qual no se observa uma estrutura de crime organizado. Empreendedores individuais associam-se, mas no compem grupos com diferenciao funcional interna e nem devem respeito a uma hierarquia de mando. Este trabalho refere-se, assim, ao estudo de uma sociabilidade especfica em torno do trfico de drogas, que se distingue de todas as demais formas de interao observadas no conjunto mais amplo desse mercado. O trfico da pista rene indivduos oriundos de esferas de significao distintas e que no se orientam por um sistema de referncias comum a no ser no que diz respeito s suas prticas comerciais. Eles freqentam lugares diferentes, no compartilham dos mesmos gostos, origem social, nvel educacional ou posturas polticas e ainda assim podemos observar um sistema de crenas e valores que orientam as condutas relativas a esse mercado ilegal. A outra possibilidade mais prxima de agrupar esses traficantes em um mesmo espao social onde possa haver algum sistema simblico compartilhado falar em juventude urbana ou

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carioca (mesmo que o universo da anlise tambm inclua Niteri) de classe mdia (na sua definio mais abrangente). No h uma sobreposio precisa entre trfico de drogas e festas rave, tal como a mdia sugere, nem com qualquer movimento cultural especfico. As redes desse comrcio se articulam atravessando as fronteiras do eletrnico, forr, reggae, boates, posto nove ou dez, Itacoatiara, academias de ginstica, escolas, universidades, galeras de condomnio ou de rua, etc. Uma vez que os jovens transitam por diferentes espaos de socializao, tambm transitam os traficantes de classe mdia, formando contatos variados para a obteno das mercadorias e comercializando-as entre amigos e conhecidos com os quais se relacionam em quaisquer desses espaos. Em sua etnografia dos festivais de msica eletrnica, Cavalcante (2005) ressalta o papel das drogas psicoativas na obteno de um xtase coletivo e menciona o desenvolvimento de um mercado internacional de drogas viabilizado pela atuao de comerciantes-participantes que estabelecem conexes entre esse comrcio internacional e os freqentadores dos festivais. Apesar do trfico praticado por jovens de classe mdia se estender para outros contextos que no o dos festivais ou das raves, necessrio elucidar a relao da proliferao desses eventos com a aparente expanso dessas redes, cujo fluxo comercial est em boa parte associado s drogas que atendem demanda de consumo produzida nesses contextos. Tendo em vista que a juventude de classe mdia representa o principal mercado consumidor para as drogas ilegalmente comercializadas, a adeso desses jovens a tais prticas comerciais um desdobramento coerente com essas circunstncias. Certamente, prefervel ao usurio comprar drogas com seus prprios amigos, acionando redes de relao, do que expor-se, procurando pontos de venda reconhecveis e, portanto, perigosos, em vista dos

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riscos que essa visibilidade proporciona.1 O traficante de classe mdia, portanto, opera em grande vantagem com relao ao que se estabelece nas favelas da cidade. O motivo do espanto das pessoas ao saber do envolvimento desses jovens a crena no argumento da falta de oportunidade como a causa dos comportamentos que violam as leis, o que no cabe de modo algum para explicar o caso em questo.2 Mesmo que esses traficantes no sejam todos filhinhos de papai tal como a mdia s vezes sugere, so indivduos oriundos de famlias que lhes oferecem algum suporte para buscar o xito na estrutura de classes atravs de meios lcitos, podendo aspirar a uma insero bem remunerada no mercado de trabalho. Entretanto, as suas escolhas os conduzem infrao da lei, incorrendo no risco de serem severamente penalizados pela justia e terem os seus projetos individuais arruinados. A identificao das motivaes que os induzem a tal comportamento, entendendo motivao como uma expresso, ao nvel individual, de representaes coletivas (VELHO, 2004, p. 42), muito nos revelam a respeito da juventude das camadas mdias urbanas. Os traficantes de drogas estudados so, na sua maioria, indivduos descolados3 que transitam pelos diversos espaos simblicos que compem o chamado mundo jovem assumindo um papel mediador entre os sistemas de referncias concorrentes. Quanto mais eclticos forem os seus contatos, maior ser o sucesso de suas prticas comerciais, pois essa profisso consiste justamente em fazer a ponte entre pessoas que no se conhecem ou pelo menos no se relacionam. Dessa maneira, as redes de relaes que se configuram no mercado ilegal de drogas atravessam as mais diferentes esferas de sentido e desenvolvem um cdigo comum em torno da negociao dessas mercadorias.

A visibilidade do movimento o submete s disputas por territrio entre grupos do trfico e o coloca na mira da polcia que cobra o arrego para no invadir em combate armado e nem sufocar os consumidores. A necessidade de se estabelecer pontos de venda reconhecveis est intimamente relacionada demanda pelo armamento pesado empregado na defesa da rea de atuao. Ver detalhes mais adiante. 2 Para uma crtica s teorias materialistas de explicao do comportamento criminoso, ver Katz,1988, captulo IX. 3 Gria popular para designar pessoas extrovertidas, capazes de improvisar e hbeis nas inteiraes sociais diversas. O seu oposto seriam as pessoas agarradas.

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Ao longo da pesquisa, pude observar que os traficantes manipulam a contradio entre a necessidade de encobrir suas prticas ilcitas, restringindo a rede de indivduos com os quais se relacionam comercialmente e a vantagem de expandir essas redes, lucrando com a diversificao de contatos para compra e venda de mercadorias. Em respeito s normas de segurana dessa modalidade do trfico, no se pode colocar um amigo na fita de um traficante, a no ser que este seja antes consultado e esteja de acordo. Assim, o jovem interessado em adiantar (ajudar) seus amigos que queiram adquirir drogas, no pode oferecer o contato de seu fornecedor e deve ele mesmo comprar em maior quantidade e repassar aos amigos.4 Este o mecanismo pelo qual as redes se ampliam sem expor demais os traficantes e tambm o primeiro passo no envolvimento de um indivduo na prtica do trfico. Essa passagem de usurio a vendedor no se d por uma deciso interna que produz algum marco numa trajetria, mas por uma seqncia de empreendimentos

descompromissados, atravs dos quais o jovem se encaminha para o trfico, sem se dar conta da gravidade do processo. As complexas redes acabam por conectar os mais diferentes grupos que figuram a juventude urbana. Seguindo uma rede de amigos que conheci no forr, dentre os quais muitos vendiam drogas, fui parar nas raves, apartamentos e boates de msica eletrnica da zona sul, reggaes, posto nove e dez de Ipanema, na praia de Itacoatiara, em churrascos no quintal de casas na regio ocenica de Niteri, carrocinhas de cachorro-quente no Rio Comprido, botecos do Cubango, feriados no Sana5, etc.. Isso por que nunca me inteirei a respeito das redes que eu poderia acionar a partir da universidade ou da academia de ginstica que dizem serem lugares centrais na ampliao dos contatos para o comrcio ilegal de drogas.

As vendas eram, na verdade, uma ajuda aos colegas que no tinham um bom contato para comprar drogas (O Globo, tera feira, 13/11/2007, 2 edio)5

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Distrito na regio serrana de Maca.

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Posso afirmar com segurana que os traficantes estudados no constituem um grupo e nem compartilham dos mesmos gostos, crenas e valores a no ser no sentido mais amplo do que podemos chamar de juventude urbana de classe mdia. O que os unifica e diferencia enquanto um objeto para a pesquisa etnogrfica a modalidade do seu envolvimento com a prtica da transao de entorpecentes, caracterizada por uma sociabilidade especfica que particulariza o que chamei de trfico da pista (ou do asfalto). Complexas redes conectam jovens de todas as partes e de todos os gostos em torno da distribuio e consumo de drogas e a possibilidade dessa integrao se d atravs de uma sociabilidade especfica caracterstica desse mercado ilegal, cuja forma preciso assimilar para poder se inserir nesses arranjos relacionais. Tomando por referncia o Rio de Janeiro e Niteri, penetrei nessas redes para compreender essa maneira de se relacionar que organiza os contatos de compra e venda, tanto no varejo quanto no atacado, e demarca as possibilidades de interao, apreendendo no discurso e na observao das prticas, os sistemas de referncias que orientam as atividades do trfico de drogas entre os jovens de classe mdia.

2.1 SOCIABILIDADE NORMALIZADA O mercado informal ilegal de drogas operante nas aglomeraes urbanas de baixa renda do Rio de Janeiro, ou o movimento, caracteriza-se pela sociabilidade violenta,6 isto , pela interao baseada em um individualismo que promove a relao objetal com o outro e a interao fundada nos princpios de subjugao pela fora (MACHADO DA SILVA, 1999). Esse volume de violncia no prprio ao trfico de drogas, uma vez que o mesmo no se verifica em outras grandes cidades de outros pases (MISSE, 2003) e a particularidade do movimento pode ser compreendida atravs da anlise dos processos de acumulao social

Segundo a hiptese de Machado da Silva (1999), as organizaes criminosas so portadoras de uma viso de mundo em formao que cancela a relao de alteridade que tem sido pensada como fundamento da vida coletiva (MACHADO DA SILVA, 1999, p.123).

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da violncia (MISSE,1999). Para Zaluar (2004), dentre os elementos que produzem uma cultura na qual generalizado o recurso violncia para a resoluo de conflitos esto a:[...] interiorizao de uma ideologia individualista moderna em que a iluso quanto liberdade da pessoa est atrelada a uma concepo extremamente autoritria de poder e o ethos da virilidade, que impe ao homem que no deixe nenhuma provocao sem resposta. (ZALUAR, 2004, p.62)

No entanto, nas redes de trfico da pista, j pude observar que o emprego da fora condenado e evitado, mesmo nas situaes como a volta (o no pagamento de dbitos) ou a suspeita de delao, em que se faria necessrio, segundo a lgica habitual dos mercados nos quais so comercializadas mercadorias criminalizadas. No so raros os casos de vacilao (falha ou trapaa) nas relaes de crdito entre os prprios traficantes e houve casos narrados nos quais a retaliao violenta foi at cogitada, mas nunca colocada em prtica. A prpria ausncia da posse de armas pelos traficantes j um forte indicador da predominncia de uma sociabilidade normalizada nas interaes em torno da negociao das drogas. Tomo por referncia o conceito de normalizao tal como utilizado por Misse que, inspirado por Elias, Foucault, Hirshman, Bellah e outros, o definiu como o:[...] complexo processo histrico-social que mobilizou os indivduos (que so, por definio, imaginados como potencialmente desafiliados no interior de uma formao social que reclama a sua filiao) a auto-regularem sua premncia e sua ganncia (de necessidades, interesses e desejos), atravs da socializao do valor de si como valor prprio que deriva do desempenho do auto-controle (MISSE,1999, p.48).

A criminalizao das mercadorias determina que o comrcio das mesmas no esteja sujeito ao controle do Estado e , portanto, comum que se desenvolvam estratgias violentas para a regulao dos mercados ilegais, especialmente por envolver a circulao do capital econmico. Ainda assim, insisto em afirmar que no trfico da pista, mesmo que alguns informantes possam lembrar algum caso no qual algum tenha sido coagido por uma arma durante algum procedimento de cobrana, esse comportamento moralmente condenado

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pelos traficantes e as armas lhes so artigos dispensveis. Outros mecanismos de controle social atuam na inibio traio da confiana depositada em um agente. Como ento possvel a existncia de um rentvel mercado informal de drogas ilegais caracterizado por uma sociabilidade normalizada? O contraponto com as redes de trfico que se espalham pelos redutos de moradia de baixa renda no Rio de Janeiro evidencia as diferenas de circunstncias nas quais se desenvolvem estas distintas modalidades de associao para a mesma transgresso. A comparao das dinmicas territorial e

organizacional dessas redes fornece elementos importantes para a compreenso dos aspectos que contribuem ou no para a demanda pelas armas e toda a cultura de violncia que se constri em torno delas. possvel destacar tambm, o papel das diferentes relaes com o Estado e a circulao das mercadorias polticas7 na formao dos modos violentos ou normalizados de interao na associao para o trfico.

2.2 TERRITORIALIDADE As redes do trfico das favelas apostam na visibilidade para facilitar a identificao dos pontos de venda pelos consumidores, que no so apenas conhecidos, mas tambm estranhos que procuram as bocas para comprar drogas, estabelecendo relaes estritamente comerciais. A dimenso territorial ganha, ento, uma enorme importncia, de modo que os traficantes passam a disputar os territrios para a venda entre si e ainda precisam defend-los da polcia que, sabendo localiz-los, cobram o arrego (suborno) para no as invadirem em combate armado. bastante bvia a relao da territorialidade desse trfico com a demanda pelas armas, com a organizao do crime e com a compra de mercadorias polticas (MISSE, 1999). Essa associao tambm se encontra em Barbosa (2005), segundo o qual o trfico de drogas um comrcio que precisa estar plantado num territrio e formar umaMisse define mercadoria poltica como toda mercadoria cuja produo ou reproduo depende fundamentalmente da combinao de custos e recursos polticos, para produzir um valor de troca poltico ou econmico (MISSE,1999, p.295).7

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freguesia, o que implica em negociar um alvar de funcionamento com a polcia (BARBOSA, 2005). Zaluar (1994) chamou a ateno para o papel do ethos da masculinidade na interpretao da invaso da rea ou vizinhana como uma tentativa de emasculao, articulando o territrio a um valor da cultura viril:rea invadida rea emasculada. Seus defensores ficam desmoralizados no local. Do mesmo modo que um homem no pode levar uma ofensa sem resposta tem que ter volta, a rea no pode ser pisada ou tomar tiros sem reagir, o que pode provocar as rixas interminveis e um processo interminvel de violncia, ou seja, a guerra. (ZALUAR, 1994, p.109)

Ao aplicar a Teoria dos Grafos para modelar as redes e os sistemas do trfico de drogas no Rio de Janeiro, Souza (1996), apesar de privilegiar vrtices diretamente vinculados com as favelas enquanto loci do trfico, inclui tambm:

[...] vrtices representativos de diversos loci do asfalto de onde operam atores sociais envolvidos com o trfico que mantm relaes com (...) pequenos traficantes, usurios-revendedores, etc. utilizando-se de apartamentos de classe mdia, boates, estabelecimentos de ensino etc.. (SOUZA, 1996, p.51)

O autor ainda distingue entre essas ramificaes e as redes dos grandes atacadistas que residem no asfalto, classificando as primeiras enquanto subssistemas do varejo. No entanto, a pesquisa realizada com traficantes da pista, identifica uma autonomia desses subssistemas em relao s redes articuladas nas favelas: no obedecendo a vnculos de subordinao; diversificando as fontes para o fornecimento de drogas que, s vezes, excluem tais redes dessa intermediao; comercializando paralelamente mercadorias obtidas diretamente atravs do trfico internacional, como no caso das drogas sintticas; e, por fim, chegando a inverter os fluxos comerciais, isto , fornecendo drogas para algumas bocas, em ocasies espordicas, sem que isso os coloque na posio de grandes atacadistas.

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Por mais fecunda que seja a iniciativa de modelar as redes e os sistemas do trfico de drogas, tomando por referncia os territrios nos quais operam os diferentes atores, no se pode perder de vista as relaes especficas que os traficantes mantm com esses territrios no cotidiano de suas prticas. Nos estudos sobre o varejo de drogas nas favelas do Rio de Janeiro, a dimenso scio-espacial central, de maneira que possvel falar em territrios contnuos (Souza, 1995), as favelas, e territrios descontnuos (Souza, 1995), abrangendo vrias favelas enquanto a base territorial de um dono. Contudo, as redes do trfico que operam no asfalto apresentam uma dinmica scio-espacial de outra ordem, conferindo novos significados ao territrio e utilizando-se de territorialidades alternativas. Os traficantes de classe mdia encontram, no seu prprio crculo de amigos e conhecidos, os clientes para quem comercializam drogas tanto para o consumo quanto para a revenda. atravs das relaes de amizade que se estabelecem todos os contatos que

viabilizam a circulao desse mercado configurando redes complexas e interconectadas. Mesmo quando o objetivo da relao estritamente comercial, fora-se alguma amizade, de modo que as partes se conheam melhor, uma vez que eles procuram sempre vender s para os camaradas. Tal caracterstica dessa modalidade de trfico permite o funcionamento de uma rede pulverizada, sem que seja preciso estabelecer pontos comerciais reconhecveis e, portanto, no se produz uma necessidade imediata de defesa armada, no havendo um territrio em jogo. Surgem novas territorialidades a serem exploradas envolvendo desde os espaos onde ocorrem as negociaes como a internet, telefonemas, lugares pblicos, academias de ginstica, universidades e residncias particulares, at a noo de clientela que demarca reas relacionais (no espaciais) fluidas para a atuao dos traficantes, implicando na existncia de uma espcie de diplomacia entre eles. A invisibilidade dessas redes s possvel mediante o:

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[...]desenvolvimento de complexos sistemas de reconhecimento para garantir alguma segurana de maneira a compor um mapa de classificao das pessoas e lugares, permitindo uma certa flexibilizao de reaes e comportamentos (VELHO, 1998, p.14).

Em contraste com a postura de enfrentamento e/ou suborno das autoridades, assumida pelos traficantes das favelas na sua relao com a polcia, os traficantes da pista encobrem as suas atividades e s recorrem ao suborno aps rodarem, isto , serem pegos com flagrante ou provas obtidas em escutas telefnicas, durante prolongadas investigaes policiais, normalmente iniciadas a partir de denncias. Coloca-se ento uma importante contradio a ser aprofundada, posto que os traficantes devem ampliar as suas redes relacionais para a comercializao das drogas, lucrando com a sua popularidade, mas por outro lado, eles precisam restringir seus contatos para minimizarem o risco de serem descobertos. Em reportagem recente sobre a priso de um traficante de classe mdia na Barra da Tijuca, aparece uma referncia (um tanto fantasiosa) s disputas por territrios para a atuao nesse comrcio ilegal:Mercado da droga conquistado tapa O delegado explicou que Carlo mantinha a exclusividade na venda de ecstasy em festas, principalmente na Regio da Zona Sul, com uma ttica simples. Acompanhado de amigos fortes como ele, costumava espancar eventuais concorrentes. No raro, o traficante se envolvia em brigas. Ele tem cinco passagens pela polcia por agresso e ameaa. Nas festas que realizava em casa, as confuses com vizinhos eram freqentes. tarde no condomnio, os vizinhos chegaram a comemorar a priso. (Jornal O Globo, 09/10/2007)

Para a infelicidade do delegado que acredita ter prendido o maior traficante de ecstasy do estado, aqueles que realmente movimentam grandes quantidades da droga sinttica no as vendem no varejo como foi dito sobre o acusado em questo e procuram restringir as suas vendas no atacado aos amigos de confiana, tornando-se cada vez mais discretos e,

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principalmente, jamais vendendo em festas. Os grandes traficantes desse mercado vendem muito mais do que mil comprimidos por semana, tal como a reportagem sugeriu que o Carlo vendesse, e no compram de fornecedores de So Paulo, mas trazem a mercadoria da Europa com as suas prprias mulas. Tomemos tambm o caso da disputa por territrio. Por mais desvairada que seja a idia de que um comerciante varejista pudesse monopolizar a venda de ecstasy na Barra da Tijuca e na Zona Sul do Rio de Janeiro, sendo este um mercado to amplo, plausvel supor que o pitboy do trfico, como foi chamado, de fato brigasse com os seus concorrentes. No entanto, ele no poderia conquistar qualquer exclusividade, pois a noite carioca se multiplica em inmeros espaos, enquanto um simples mortal s consegue ocupar um de cada vez. Alm disso, a venda dessas drogas ocorrem de maneira discreta para no chamar a ateno dos seguranas dos estabelecimentos e nem dos possveis policiais infiltrados. Acrescento ainda que uma prtica comum entre os consumidores tem sido comprar com antecedncia para garantir a droga, pois atualmente s os mais inexperientes ou inconseqentes vendem na noitada. Se a disputa territorial violenta era realmente praticada pelo acusado, sendo o seu envolvimento com o trfico ostensivo e exposto ao conhecimento pblico, no parece restar dvida sobre o motivo da sua priso, enquanto tantos outros traficantes passam despercebidos pela vigilncia policial e as festas continuam regadas a drogas sintticas por eles vendidas.

2.3 ORGANIZAO E HIERARQUIA As disputas por territrios, constitudas em guerras de fato, esto intimamente relacionadas com a organizao do movimento sob uma estrutura hierrquica local (em constante reorganizao) na qual os diferentes cargos se distribuem entre os integrantes, distinguindo as funes blicas das comerciais, que precisam estar coordenadas sob uma

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dominao legtima. Essa dinmica organizacional fundamental para a eficcia do comrcio e para a manuteno do poder sobre o territrio. O movimento no est diretamente subordinado a grupos estratgicos do crime organizado, mas constitui redes horizontais de proteo mtua (MISSE, 2003) para articular a defesa das suas reas de atuao. necessrio lembrar que o que denominamos de comando na verdade um espao de negociao permanente, construdo a partir das cadeias. No possvel pensar em uma organizao hierrquica rgida, com lideranas acima dos donos do morro. Trata-se de grupos que se apresentam como blocos territoriais, onde no existe uma oposio segmentar que possibilite a articulao de um sistema piramidal. (BARBOSA, 2005, p.389).

Mesmo os contatos para a obteno de drogas so independentes da participao dos comandos, de modo que cada dono de morro tem o seu matuto (fornecedor) e, se no o possuir, depende de outros donos aliados que o fortalecem com a droga (BARBOSA, 1998). Segundo Barbosa, a rede do trfico de drogas composta por diversas articulaes singulares quanto ao seu lucro, riscos e mecanismos de negociao, havendo distintos operadores nos processos de intermediao da droga at chegar ao comrcio varejista que, por sua vez, tambm possui o seu prprio lucro, riscos e mecanismos de negociao (BARBOSA, 2005).A estrutura dos grupos locais do varejo de drogas foi sempre baseada no sistema de consignao de vendas, a partir do dono ou gerente geral. A mercadoria adiantada para os subgerentes e o processo continua at os vendedores diretos, os vapores. O movimento de retorno do pagamento baseado na noo de dvida e deve ser feito, impreterivelmente, dentro de um prazo mnimo. O no-pagamento interpretado como banho (logro, furto ou falha) e o devedor, na primeira reincidncia, morto num ritual pblico de crueldade. O sistema de consignao articula-se, assim, a uma hierarquia mortal de credor/devedor (MISSE, 2003, p.6).

Assim como no movimento, a hierarquia do trfico de classe mdia remete a uma espcie de pirmide dos fluxos comerciais, tambm marcada pelas relaes de crdito, entretanto os empreendimentos so individuais, havendo associaes pontuais, nas quais a validade dos contratos firmados refere-se apenas s transaes em questo. No h uma

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hierarquia de mando, mas apenas de status, uma vez que no se configura qualquer organizao em torno de um territrio, mas um emaranhado de relaes atravs das quais circulam diferentes tipos de capitais, produzindo hierarquias fluidas e dinmicas. Estar por cima ou por baixo diz respeito a uma situao que pode ou no ser alterada pelos rearranjos relacionais contingenciais que caracterizam a instabilidade desse mercado. A amizade ou camaradagem recobre os negcios de modo que, mesmo nas transaes hierarquicamente verticais, est embutida uma perspectiva de cooperao horizontal a qual evoca alguns valores relativos ajuda recproca e fidelidade palavra empenhada. O aprofundamento da dimenso da circulao da confiana fundamental para a compreenso da viabilidade de uma sociabilidade normalizada nas interaes que compem essas redes do trfico de drogas. Existe sempre um risco envolvido e poucas garantias em jogo, uma vez que preciso confiar que a qualidade e a quantidade da mercadoria a combinada e, principalmente, confiar que os devedores pagaro seus dbitos, at por que as transaes no atacado costumam ser efetuadas a crdito. Ainda assim, o bom funcionamento desse mercado freqentemente atrapalhado pelos problemas de observao dos contratos firmados. Jnior, um dos informantes pertencentes rede social estudada, confessou j ter integrado o movimento em um morro nas imediaes do apartamento de classe mdia onde mora com os seus avs, mas atualmente privilegia-se dos contatos obtidos nessa poca para vender maconha, como autnomo, na pista. Quando perguntado sobre a diferena mais marcante entre essas duas experincias, ele respondeu:L no morro, se o patro falar que um maluco vacilou, tu tem que apagar o cara e isso a. Mas agora, tem um cara a me devendo mil e quinhentos h meses, um outro a tambm no erro. O que que eu vou fazer? Sair matando?.

Esse discurso aponta para o papel exercido pela hierarquia de mando na construo dos modos violentos de sociabilidade. O carter individual dos empreendimentos nas redes

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do asfalto isola e desorganiza os traficantes, dificultando o uso da violncia pela ausncia do respaldo de um grupo, gangue ou quadrilha. As formas de organizao desse trfico parecem determinantes na manuteno de uma sociabilidade normalizada, uma vez que qualquer atitude violenta parte de um indivduo que dever responsabilizar-se sozinho pelos seus atos. Mesmo que exista a vontade de realizar um acerto de contas violento quando se leva uma volta, falta a disposio para faz-lo. possvel enquadrar os trficos do morro e da pista, respectivamente, nos modelos propostos por Jonhson, Hamid e Sanabria (1992) para dar conta das diferentes formas emergentes de distribuio do crack. Os autores distinguem entre o modelo empresarial (business model), caracterizado por uma estrutura hierarquicamente estratificada, pelas relaes empregador-empregado, a verticalidade dos fluxos de capital, a distribuio dos territrios para a atuao e a fixidez dos preos para a venda; e o free-lance, no qual os atores cooperam voluntariamente e se associam em transaes pontuais, cujos termos do acerto so negociados entre as partes, podendo ou no se estender por relaes comerciais mais regulares, havendo uma ampla diversificao de parceiros e as drogas sendo pagas vista ou em consignao, dependendo das circunstncias (JONHSON, HAMIDE e SANABRIA, 1992). Essas dinmicas organizacionais diferenciadas contribuem para o abismo entre os modos de sociabilidade encontrados nessas duas modalidades da prtica do trfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro. Outros dois conceitos que procedem no contraste dessas duas formas de empreendimento do mercado ilegal de drogas so os de crime em organizao (crime in organization) e crime em associao (crime in association) (RUGGIERO e SOUTH, 1995) que remetem a dois modos de trabalho criminoso (criminal work) e dois modelos de organizao e estrutura. No primeiro, aplicvel ao trfico do morro, prevalece uma estrutura vertical e hierrquica de estilo industrial ou corporativo, no qual ocorre a venda da

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fora de trabalho criminosa (criminal labour) (RUGGIERO e SOUTH, 1995). J o conceito de crime em associao sintetiza a estrutura predominantemente horizontal e no hierrquica encontrada no trfico da pista, implicando numa diviso de trabalho tcnica e no social, fundada na distribuio das habilidades individuais. Ao longo dessa exposio e, mais especificamente no captulo sobre o sucesso e o fracasso, os modos organizacionais encontrados ficaro mais evidentes.

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3 AS RELAES COMERCIAIS

Joo, Pedro e Bernardo fumavam pedra (cocana virada em pedra) enquanto eu aproveitava a situao para indagar acerca de uma volta que eles haviam levado alguns anos antes, beneficiando-me da grande disposio para falar que a cocana proporcionava em meus informantes. Eu j estava bem familiarizada com a histria, pois os conhecera justamente na poca em que esses eventos haviam ocorrido, presenciando as expectativas e angstias por eles vivenciadas na ocasio. O meu interesse em resgatar essas lembranas se devia ao fato delas remeterem a uma sucesso de acontecimentos envolvendo transaes do trfico internacional de entorpecentes, trapaa, cobrana de dbitos, amizade e interesse, seguindo uma lgica prpria modalidade estudada desse comrcio. Os trs contaram essa histria em conjunto, criando um consenso ao somar os pontos de vista individuais e respondendo s perguntas que eram elaboradas a partir das minhas prprias recordaes sobre o assunto. produzida atravs dessa dinmica:No vero de 2001, os irmos Pedro e Joo conheceram Rodrigo, com quem tiveram uma grande afinidade. Os trs eram jovens de classe mdia, do Rio de Janeiro e encontravam-se em Itanas, um vilarejo de veraneio no norte do Esprito Santo, onde, ao som do forr, vendiam maconha para os outros jovens que tambm saiam das diferentes cidades da regio sudeste para passar uma temporada nas dunas. Eles estavam descobrindo tudo o que o status de traficante lhes podia proporcionar, fazendo muitos novos amigos e formando novos contatos. Aps encontrarem com Bernardo, um amigo antigo, Pedro e Joo subiram para Carava, enquanto Rodrigo permaneceu em Itanas. L, os dois irmos aproximaram-se de Cau e Mario, tambm irmos, que Bernardo j havia conhecido numa outra ocasio em Itanas. Sobre estes dois, j haviam alguns boatos a respeito de uma volta (trapaa) que teriam dado em algum, mas eles tinham bons contatos de LSD, e era justamente isso o que os trs queriam adquirir para revender em Itanas, ainda naquele vero. Joo e Bernardo deixaram que Pedro esperasse junto com Mrio pelos cidos (LSD) que estavam para chegar em Carava e voltaram para

Organizei uma espcie de resumo da narrativa

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Itanas. Ao ligar para casa, Joo ficou sabendo que Pedro e Mrio haviam sido presos, mas logo foram soltos com a ajuda de seus familiares que se mobilizaram para tal. Nem assim Joo retornou, mas, pelo contrrio, rumou para o norte ainda mais uma vez, seguindo para Trancoso com Rodrigo e, juntos, compraram LSD atravs de novos contatos. No perodo entre as frias, Pedro e Joo estreitaram seus laos de amizade com Rodrigo bem como com diversos outros de seus pares: traficantes de classe mdia freqentadores assduos dos forrs. Quando o ms de julho chegou, foram novamente para Itanas, desta vez hospedandose na mesma casa alugada, fechando junto a firma e vivendo o auge das suas carreiras de traficante at ento. Foi quando encontraram novamente Cau e Mrio, aproximando-se ainda mais dos mesmos. Estes ltimos h muito viviam viajando pelo Brasil e se virando como podiam, sem pertencer demais a lugar algum. Sua me morava em Vitria, mas um nascera em Braslia, o outro na Bahia, e agora ficavam ora em So Paulo, ora em Alto Paraso, ou Itanas, Carava, Trancoso... Apesar de no terem capital para investimento, conheciam muita gente para quem vender e com quem comprar drogas, portanto estavam sempre com as paradas. Eles representavam um bom contato para Pedro, Joo e Rodrigo. Durante a temporada de julho, Mrio, em especial, ficou muito amigo deles e os impressionou com histrias sobre as raves que freqentava e sobre a viagem que j havia feito, levando cocana para a Europa e trazendo, na volta, drogas sintticas. Aps fazer muito dinheiro ele j havia se derramado (gasto tudo) e precisava se levantar. S faltava-lhe o capital, pois ele tinha bons contatos l fora. Joo e Rodrigo, em especial, deslumbraram-se com essa idia e voltaram de Itanas com isso em mente. Aps a temporada e j em So Paulo, Cau e Mrio apresentaramlhes o ecstasy e a msica eletrnica. Enfeitiados por esse novo mundo que descobriam, Joo e Rodrigo convenceram-se a financiar uma viagem dessas, persuadindo Pedro a investir tambm. Mrio seguiu para a Espanha, onde venderia a cocana trazida por uma mula. Enquanto isso, os traficantes cariocas passaram a curtir as raves no Rio de Janeiro onde movimentavam e consumiam ecstasy, LSD, haxixe, skank e lana-perfume, sem jamais deixar de lado a maconha e o forr. Seus contatos vinham se expandindo, bem como elevava-se o seu status entre os traficantes, mas, certos de que as paradas iam chegar logo, Joo e Rodrigo se derramaram tomando e doando vrias balas (comprimidos de ecstasy) em todas as festas e gastando muito mais dinheiro do que lucravam com as suas movimentaes. Pressionado a oferecer algum parecer, Cau lhes disse que Mrio j havia negociado tudo, mas que era preciso mandar outra mula para buscar o MDMA (princpio ativo do ecstasy). Pedro, Rodrigo e Joo arrumaram uma mula de sua confiana, chamada Tina, e enviaram uma segunda viagem com mais meio quilo de cocana, que eles prprios haviam comprado numa favela carioca. Desta vez Bernardo e Carlos, um outro amigo deles, tambm investiram capital, s que numa quantia menor. Tina avisara que a situao parecia meio estranha e que mesmo na Espanha tinha gente que havia sido enrolada por Mrio. Quando chegou a hora da sua volta, Joo, que estava recebendo Cau na casa de sua me, disse que ia ali rapidinho e partiu, sem avisar, para So Paulo, onde receberia Tina. Ele pretendia receptar a droga sem a presena de Cau, j certo de que estava sendo enganado, mas Cau percebeu logo e o surpreendeu em So Paulo. A quantidade que chegou era pequena e mal pagava o investimento com a primeira viagem, mesmo assim Cau recebeu a sua parcela,

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convencendo-os de que em breve chegaria uma outra leva. Argumentou ainda que o p era ruim, o que teria dificultado a sua venda.8 A felicidade de Pedro, Rodrigo e Joo durou pouco, pois logo acabou o MDMA e no chegou mais nada. Cau ainda veio para o Rio nesse meio tempo, hospedando-se na casa de outras pessoas, em Ipanema. Eles saram juntos como amigos, mas os trs, sentindo-se enganados, j conversavam entre si sobre a possibilidade de fazer uma cobrana violenta e, se necessrio, mat-lo. Joo era quem mais insistia nessa idia, mas sentia falta do apoio de seus camaradas, os quais preferiam esperar que Mrio aparecesse com as mercadorias para ento eles efetuarem a cobrana armada, sem precisar matar ningum. Passado um tempo, alugaram um carro e foram at a casa da me dos dois, em Vitria. No entanto, ela disse no saber dos filhos h muito tempo. Finalmente tiveram a certeza de que no poderiam reaver seu prejuzo e passaram a culpar-se uns aos outros por tudo o que havia acontecido. Bernardo e Carlos tambm tinham sido prejudicados, mas no a ponto de querer se vingar, pois o investimento empenhado fora em quantia bem inferior. Pedro, Rodrigo e Joo, entretanto, estavam falidos, precisando correr atrs para se levantar e tornaram-se muito mais desconfiados com relao aos outros. No Vero de 2002, foi realizado um festival de msica eletrnica em Parati-mirim: a famosa Celebra. Certos de que pelo menos Cau estaria l, todos eles foram para a festa com a inteno de reaver o que lhes era devido, mas l chegando, Cau contornou a situao chamando-os para fumar um charas e agindo como se no lhes devesse nada. Todos tomaram gota (LSD), cheiraram lana-perfume e curtiram a festa, mas Joo, indignado com a apatia dos amigos, voltou para casa, antes do trmino do festival. A partir da, Mrio e Cau tornaram-se uns dos traficantes mais importantes desse circuito de drogas sintticas, movimentando quantidades bem expressivas. Bernardo tornou-se amigo de um traficante de Belo Horizonte, chamado Otvio, para quem os dois teriam vendido parte da droga trazida nas tais viagens. Segundo este ltimo, os irmos teriam dado a volta em vrias pessoas de uma s vez e agora vinham fazendo as paradas direito, pois estavam movimentando quantidades muito grandes e lidando com grupos mais organizados e perigosos. Em 2003, Mrio foi preso em So Paulo e, alguns meses depois, Cau tambm, desta vez, com repercusso em revistas e jornais que revelavam o seu esquema para o trfico internacional. No entanto, no vero de 2004, Cau j estava em liberdade e apareceu em Trancoso. Corriam boatos de que ele havia sado da priso para servir de isca na ao da polcia, mas o fato que ele estava devendo uma considervel soma de dinheiro para um grupo de israelenses, que ofereceram-lhe uma condio (mais crdito) para se levantar e pagar o que devia. Bernardo encontrou com ele, mas estava junto com Otvio que vinha negociando grandes quantidades com Cau. Este ainda deu-lhe duas cartelas de doce (LSD) e morreu o assunto. Afinal, Cau estava envolvido com uma espcie de mfia de italianos que, alm de intimidar, despertava o interesse de Bernardo. Pedro tambm encontrou com Cau na mesma ocasio e tambm pegou uns cidos com ele, mas sob a promessa de que ainda pagaria depois, mas no pagou. Sem sair de sua casa, Joo ficou revoltado ao saber que noDe fato, essa alegao procedia, pois a cocana enviada, mesmo que considerada muito boa para os parmetros cariocas, era ainda assim barreada, isto , misturada com outras substncias e, como enfatizado por Joo Guilherme Estrela, na sua biografia escrita por Fiuza (2005), a Europa s cheira cocana pura.8

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s eles, mas todos os seus outros amigos que se encontravam em Trancoso agora buscavam reaproximar-se de Cau para desfrutar de seus contatos, decepcionando-se com eles. No s tornara-se impossvel tomar medidas mais severas sem que isso lhes causasse muitos problemas, como eram fortes os interesses em questo.

3.1 DE CONFIANA E INTERESSES Atravs dessa histria, compreendemos que as relaes de confiana se estabelecem no compartilhamento de experincias significativas. A qualidade do tempo passado ao lado de algum parece mais relevante do que a quantidade, de modo que amigos novos desenvolveram entre si um grau de confiana elevado aps uma convivncia em viagens de lazer e viagens sob o efeito de substncias psicoativas. Aps levar uma volta, Joo se queixava da traio por parte de Mrio e no de Cau, alegando que: Mrio tinha curtido vrias ondas maneiras do nosso lado. Eu tinha ele como um amigo de verdade. Mesmo as ms referncias que esses irmos traziam no os fizeram parecer indignos de confiana, diante da intensidade dos momentos que vivenciaram juntos. Inclusive a amizade entre Joo e Rodrigo tambm se constituiu nesses mesmos moldes, porm, se provando duradoura. No entanto, no podemos ignorar o importante papel do interesse na boa disposio para a consolidao de novos vnculos de amizade. A ambio os cegou para os riscos reais do empreendimento. Ainda que estivessem cientes de que deveriam tomar mais cuidado, o deslumbre com a possibilidade de uma ascenso fulminante na hierarquia de status do trfico, somada a um lucro muito superior quele ao qual estavam acostumados, os motivou a desconsiderar os perigos envolvidos. Afinal, Cau e Mrio representavam o acesso s drogas, o que lhes interessava o bastante para embaar o seu discernimento. Rodrigo dizia: quem quer ganhar tem que arriscar! O interesse no apenas altera o calculo racional dos riscos e benefcios, como tambm atropela alguns valores compartilhados entre os traficantes, como o da honra. Cau e Mario j haviam agido de maneira desonesta com os seus associados cariocas, enganando-os e

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causando-lhes prejuzos tanto econmicos como morais e, apesar de ter se mostrado indigno de confiana e faltoso em relao to valorizada palavra empenhada, Cau reconquistou a estima, ainda que uma falsa estima, dos amigos mais prximos daqueles que tinham sido trados, ou pior ainda, dos prprios trados. Bernardo aproveitou-se da perspectiva de que Cau lhe devia algo e que, portanto, era chegada a hora de recompensar, para deixar a inimizade de lado e beneficiar-se dos bons contatos do seu at ento ex-amigo. Mesmo Pedro chegou a fumar um ou vrios com Cau e, ao invs de buscar um acerto de contas, tal qual esperaramos em um filme de ao sobre traficantes de drogas, contentou-se com duas cartelas de LSD (50 unidades) e morreu o assunto. Sobre isso, justificou-se:Os moleques que ficaram l pelando o saco dos caras. Eu s falei que ele ia ter que me adiantar, peguei uns doces, fiquei de pagar e no paguei. O Bernardo que pagou, renovou, ficou fazendo negcio com os caras. Eu no queria nem saber. Nem fiquei perto deles.

O nico que se manteve irredutvel foi Joo que, por sua vez, continuou a acreditar que o correto seria a realizao de uma cobrana de dbitos armada. No deixemos de levar em conta que ele no estava em Trancoso na ocasio, de maneira que no sabemos se ele teria se rendido aos encantos de um bom contato para curtir um vero de patro, tal como Bernardo, ou se sacrificaria o seu bem estar para comprar uma briga perigosa e desgastante. Lembremos que Joo no podia contar com o apoio de seus amigos, que jamais se convenceram dessa necessidade de limpeza da honra. O carter individual dos empreendimentos, nas redes estudadas, isola e desorganiza os traficantes, dificultando o uso da violncia pela ausncia do respaldo de um grupo, gangue ou quadrilha. A prevalncia do modelo free-lance de distribuio de drogas (JONHSON, HAMIDE e SANABRIA, 1992) parece determinante na manuteno de uma sociabilidade normalizada, uma vez que qualquer atitude violenta parte de um indivduo que dever arcar sozinho com as conseqncias de seus atos. Mesmo que exista a vontade de realizar um

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acerto de contas violento quando se leva uma volta, falta a disposio (coragem) para faz-lo. O traficante de classe mdia, alm de no estar inserido em um grupo que o incentivaria e apoiaria em tal empreendimento, tem a conscincia de que no poderia matar outro jovem de classe mdia e sair impune, pois a investigao dedicada pela polcia a um caso dessa sorte, certamente conduziria ao seu esclarecimento. Tratando-se de jovens que sequer aceitam ser chamados de traficantes e encobrem as suas prticas ilegais, manipulando a informao social sobre o estigma que os torna desacreditveis (GOFFMAN,1988) ou sobre o seu comportamento secretamente desviante (BECKER, 1991), seria mais custoso revidar a falta de um devedor do que arcar com tal prejuzo, pois uma atitude violenta acabaria por arremessar o agressor nas garras da sujeio criminal9. O repdio ao emprego da fora para a cobrana dos dbitos envolve, portanto, um clculo de custo e benefcio que lhes acessvel. Gambetta (2000a) afirma que a violncia substitui e pode ser substituda por valores, interesses e vnculos pessoais. Nas redes do trfico que vm sendo estudadas, esses trs mecanismos de inibio ao emprego da fora aparecem de maneira decisiva: alm de serem compartilhados valores em torno da fidelidade aos contratos firmados, a coero do outro uma prtica moralmente recriminada entre pares e que fere a estratgia oculta de distino desses traficantes em relao aos do morro; h uma interdependncia entre credores e devedores, ampliando as motivaes para a cooperao e os traficantes percebem as vantagens j citadas de manter os modos normalizados de interao; as transaes comerciais e, principalmente, as de crdito so efetuadas entre amigos, sendo maiores os constrangimentos traio e retaliao violenta.

Misse (1999) desenvolve o conceito de sujeio criminal de modo que abrange tanto os processos de criminalizao preventiva dos tipos-sociais potencialmente criminosos, quanto os de subjetivao dos rtulos que lhes so atribudos.

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No caso acima narrado, os interesses definitivamente se sobrepem aos valores e vnculos pessoais enquanto substituto para o uso da fora, uma vez que as relaes entre Cau, Mario e seus associados decepcionados j no passava mais por qualquer lao afetivo e nem to pouco atendia moral que costuma ordenar as movimentaes desse mercado ilegal. Ainda que, no meio estudado, a absteno ao uso da violncia aparea como um valor em si, descolada dessa perspectiva do clculo racional, foi o interesse quem falou mais alto e impediu que fosse aplicado sequer um tapa na cara, o que no seria interpretado como uma violncia, considerada a dimenso da traio em questo

3.2 CONFIANA Segundo Gambetta (2000b), a confiana o nvel particular de probabilidade subjetiva avaliado pelo agente sobre o comportamento do outro e a incerteza sobre tal comportamento central para a noo de confiana, uma vez que esta s relevante se houver uma possibilidade de traio. Nas relaes cooperativas possvel economizar confiana com base nos interesses e nas potenciais retaliaes que tornam a traio uma opo custosa (GAMBETTA, 2000b). No caso das redes do trfico de drogas estudadas, em se tratando de um comrcio ilegal, no h qualquer regulamentao das atividades que produza alguma garantia de que o outro cumprir com a sua parte dos contratos e a ausncia de uma cultura de cobrana violenta nesse meio intensifica essa incerteza. , portanto, limitada a possibilidade de economizar confiana, fazendo-o apenas com base nos benefcios da troca de interesses e na conscincia de que a traio acarreta custos sociais para o traidor, abalando a sua reputao entre seus pares.Rodrigo se queixou de que medida que ele vinha gradualmente parando de movimentar, todos os seus amigos, a quem ele sempre dera uma condio, passaram a enrolar demais para pagar. Quando ele era o cara e os outros apostavam numa boa relao com ele para obter drogas a crdito, a preocupao em no ficar devendo era muito maior, mas como ele vinha se afastando do doze (trfico) e desacelerando o ritmo de renovao de mercadorias, todos comearam a vacilar.

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A principal garantia nas relaes cooperativas o interesse.

Quando se um

contato imperdvel, a probabilidade de ser decepcionado no crdito concedido aos seus associados reduz-se drasticamente, de modo que o devedor s falhar se ele realmente se enrolar. Desta maneira, comum que os traficantes que ocupam posies privilegiadas na hierarquia de crdito desse mercado concedam aos seus devedores oportunidades para se levantarem e quitarem seus dbitos. Afinal, se o contato for bom, d-se um jeito de no perd-lo, a no ser que ocorra uma sucesso de imprevistos ou a incompetncia prevalea.Caz e Thiago restringiam os seus contatos para compra e venda, selecionando apenas aqueles capazes de movimentar grandes quantidades com liquidez. Eles confiavam 50Kg de maconha a Bernardo no fio (fiado) e a um preo timo, sabendo que este faria de tudo para pagar corretamente e no desperdiar essa oportunidade. Bernardo sabia inspirar nos outros essa confiana e, apesar de tantas vezes ter se enrolado para pagar, acabava ganhando uma condio para se levantar e conseguia quitar tudo. Ainda assim, ele continuava a pegar grandes quantidades no fio, confiadas por diferentes contatos, pois era a mesma vida social ativa na qual gastava o seu dinheiro, que lhe proporcionava uma ampla rede de contatos para compra e venda.

O interesse nessas relaes cooperativas mtuo, pois todos os traficantes atacadistas dependem daqueles que do vazo s suas mercadorias e os que giram as maiores quantidades so justamente os que mais se arriscam e os que esto mais sujeitos a se atrapalhar nos clculos.Joo sempre deixava um quilo de maconha no fio para Antnio, um vizinho e amigo. Este acabava vendendo no varejo para alguns dos clientes a quem o prprio Joo poderia vender tambm, mas era prefervel deixar essa correria para Antnio de modo a no se sobrecarregar com muitas vendas no varejo que do muita dor de cabea. Contudo, este ltimo era casado, tinha gastos com sua casa e vivia enrolando para pagar. Ainda assim, Joo administrava essa situao, pois mesmo no precisando de Antnio, ele sabia que sendo este seu amigo, nunca lhe daria uma volta e, portanto, valia pena continuar dando-lhe sempre uma condio. Certa vez, presenciei Bernardo, que at ento vendia para Antnio, dizer a Joo que se quisesse, ficasse com ele como cliente, pois j estava sem pacincia de ficar esquentando a cabea.

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No apenas nos interesses que se fundamenta a cooperao nas relaes de crdito, mas tambm nos vnculos pessoais e nos valores morais compartilhados que permitem ao indivduo confiar no outro (GAMBETTA, 2000b). Esta modalidade desse comrcio ilegal se constitui atravs de redes relacionais baseadas nos laos de amizade entre os traficantes, e so reproduzidas expectativas positivas em relao ao comportamento dos outros, tomando por referncia a crena no valor de amizade. Mesmo indivduos desacreditados e de m reputao podem encontrar quem confie neles. possvel a um amigo atrasar o outro, atrapalhandose com seus clculos, perdendo-se no consumo exagerado de drogas, etc., mas no possvel que seja declarada uma moratria, isto , que se d, de fato, uma volta em um amigo. Se isso ocorrer, explica-se pela falsidade da amizade e muito se comenta sobre os falsos amigos e os amigos das drogas.

3.3 FICAR DEVENDO Em algumas ocasies aparece algum desentendimento sobre o que dvida ou no, tal como no seguinte caso narrado por Joo:O Antnio me apresentou esse tal de Gustavo, que veio morar agora l na rea, e o maluco insistiu em me apresentar a planta dele. Eu falei que no queria, por que eu pegava uma planta bem melhor e mais barata (no morro), mas o Gustavo ficou insistindo para eu ver a que tava na casa dele. Eu fui l achando que ele ia me apresentar um pedao de fumar para eu ver qual era a da planta, mas quando cheguei, ele j saiu empurrando um metro pra cima de mim e eu falando que no queria. O maluco tanto insistiu que eu podia levar e no tinha pressa pra pagar que eu acabei levando e disse que ia tentar adiantar o cara. S que quando eu cheguei em casa, botei na borracha e fumei da planta, vi que era uma palha braba e que na borracha ia ficando pior ainda. Eu voltei no cara e falei: T aqui a planta de volta, por que pro tipo de clientela que eu trabalho, isso aqui no tem sada e se eu ficar com essa planta, eu no vou vender e ela vai ficar velha. Toma ela de volta e vende voc mesmo. O maluco no aceitou e ficou dizendo que eu tinha pego a planta e que agora ela era minha e que eu ia ter que pagar. Eu expliquei pro cara que eu sempre prefiro que os meus clientes me devolvam a planta se acharem que no vo vender, por que a eu dou o meu jeito, mas no fico no prejuzo e no deixo os caras se enrolarem. Mas o cara no quis aceitar a planta de volta e eu falei: Tu t me empurrando essa merda, por que tu sabe que uma merda e quer se livrar dela de qualquer jeito, mas eu tentei te adiantar e no

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consegui. Se isso que tu quer, beleza. Eu fico com essa porcaria envelhecendo na minha mo e se eu conseguir botar pra fora, eu te pago, se ficar empacada e j te avisei que no tenho sada pra essa qualidade aqui, eu no vou pagar porra nenhuma, valeu? O cara fica resmungando e agora o Antnio fica fazendo fofoquinha na rua, mas vai se fuder! No pedi nada a ningum, os caras que empurraram essa merda pra cima de mim.

Contudo, o mais comum que haja um consenso em torno das relaes de crdito, de modo que os acordos firmados, apesar de serem sempre orais, costumam ter a sua validade inquestionvel. Pelas regras compartilhadas entre os traficantes, a devoluo de mercadoria uma possibilidade, porm um tanto polmica. Foi da que surgiu o problema narrado

anteriormente, pois caso a qualidade da planta fosse boa e Joo no a quisesse devolver, a quantia combinada seria ressarcida conforme combinado. O sistema de crdito vigente marcado pela informalidade prpria a uma economia fundada na sociabilidade primria. A prtica do fiado facilita o escoamento das mercadorias, beneficiando tanto o devedor que pode estar sem capital para investir, quanto o credor que, alm de encontrar no fiado um meio mais gil de comrcio, deseja livrar-se do flagrante o mais rpido possvel. O preo estipulado na venda a prazo fixo, de maneira que no sofre a imputao de juros, multas ou qualquer outra correo vinculada ao atraso. Observei apenas que, para as compras vista, podem ser oferecidos descontos bem improvveis quelas a crdito. Mesmo que se estabeleam margens de prazo para os pagamentos, no h uma rigidez no acerto de datas, prevalecendo um consenso implcito sobre o quando se espera que os dbitos sejam quitados e recorrente a protelao dos mesmos. Em circunstncias diferentes da narrativa anterior, perguntei a Joo se ele j havia conseguido saldar suas dvidas com Cad, a quem ele j devia h alguns meses, ao que me respondeu que estava tranqilo:Agora que o Cad voltou, eu paguei R$3.000,00 e ele abateu mais R$1.000,00 do dinheiro que eu mandei para Bernardo antes dele rodar l fora. Ento fiquei devendo s mil, mas eu estou devendo R$5.000,00 para o Bruno dos doces que eu estou girando agora. Mas t tudo dentro do

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clculo, por que eu ainda tenho bastante dinheiro na pista. S o Jnior me deve uns R$600,00 e se juntar com o Igor, o James e uns outros a, j d quase dois contos. Assim t tranqilo. Agora, eu ainda sou o nico aqui da rea nesse contato... O Moiss foi cortado. Ele sim se enrolou de verdade. Eu tava l na casa dos caras e ele, que t devendo R$12,000,00, h mais tempo do que eu, aparece com R$2.000,00 e ainda teve a cara de pau de pedir para levar mais no fio. Quero ver como que ele vai pagar o resto... Eu pelo menos gastei o din, mas depois fiquei me arriscando, indo l no Jaca para levantar o dinheiro de volta. Ele no demonstrou nada de que t correndo atrs. E foda, por que o Cad mesmo t devendo muito mais.

A dvida uma constante na vida desses traficantes e acaba sendo bem tolerada, uma vez que todos ficam devendo na maior parte do tempo. A contabilidade realizada

individualmente por cada traficante ilusria e desconsidera o seu padro real de gastos, alm de no incluir uma margem de segurana para lidar com os imprevistos que sempre atrapalham o clculo, ao qual tanto se referem. Desta maneira, se enrolar torna-se to corriqueiro que deixa de ser um motivo para acerto de contas. O bom pagador que cumpre os prazos, enfim, quem faz as paradas direito, estimado nas redes desse mercado e mantm a sua credibilidade junto aos seus contatos. No obstante, ainda mais valorizado aquele que movimenta grandes quantidades, isto , bota pra fora, e isso envolve um risco maior, pois depende de deixar drogas no fio com outros traficantes que acabam se enrolando, demorando para pagar... Os atacadistas, com maior contexto (crdito, estima) junto aos melhores contatos (fornecedores) so justamente os que mais ficam devendo, uma vez que esto sempre girando muita mercadoria e concentrando as dvidas dos outros sob a sua responsabilidade. Ficar devendo envolve muita ansiedade, pois desejvel a quitao das dvidas para a manuteno da relao de crdito estabelecida e, no entanto, isso depende da liquidez da mercadoria, da colaborao dos seus devedores e do controle dos seus prprios gastos, o que no fcil para jovens que gostam de viajar, sair noite, consumir drogas caras, etc.. O prprio ofcio de traficante demanda por uma vida social ativa, por altas contas de celular e

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custos com deslocamento. Em face s dificuldades de cumprir os prazos de pagamento combinados, levado em considerao, na avaliao da postura de um traficante, o empenho empregado para saldar seus dbitos e para tranqilizar os seus credores. Por mais que se prolongue a quitao integral da dvida, essa situao amenizada pelo pagamento parcelado da mesma, isto , na medida em que o dinheiro vai entrando, e tambm pela preocupao em dar satisfao sobre o atraso, sem desaparecer. A no observao desses cuidados compreendida como uma volta (logro) e produz conflitos, desacreditando o devedor junto rede de relaes do seu credor e aos demais que ficarem informados a respeito. No entanto, como evidenciado no caso que abre este captulo, um indivduo pode vacilar bastante, tornando-se desacreditado junto a uma rede social de traficantes, mas acessar outros contatos e dar continuidade sua carreira, podendo inclusive ascender na hierarquia de status do mercado ilegal de drogas e despertar novamente o interesse de seus antigos companheiros. No deixemos, contudo, de notar que o indivduo no recupera mais o crdito dentre aqueles que passam a perceb-lo como indigno de confiana, ainda que restabeleam a camaradagem e a abertura para efetuar transaes comerciais. Apesar da pouca nfase conferida defesa da honra pessoal, a perda da confiana um caminho sem volta, pois envolve o risco de se levar novamente um prejuzo.

3.4 A PROFISSIONALIZAO O caso narrado no incio desse captulo remete a um empreendimento absolutamente amador para o trfico internacional e que, portanto, acabou frustrado pelo menos para uma parte dos envolvidos. De fato ocorrem esses empreendimentos isolados, organizados por pequenos grupos de amigos, e dizem ser tambm comum que alguns jovens de classe mdia ou mdia alta, em viagem para a Europa, tragam consigo uma quantia de drogas sintticas e

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haxixe ou charas, sem abastecer o mercado europeu com cocana. A lucratividade fica muito reduzida, pois a cocana vendida a preos muito altos, o que multiplica o capital de investimento em mercadorias para a importao. A demanda por drogas sintticas vm crescendo bastante, principalmente pela popularizao das boates e festas de msica eletrnicas (raves) nas quais os participantes cultivam e disseminam o hbito de ingerir psicoativos como o ecstasy e o LSD. Foi incrementada tambm a demanda por cannabis de alta potncia como o haxixe, skank (ou green), charas ou plen que, por sua vez, alm de apresentarem aroma e sabor acentuados, atuam como smbolo distintivo entre os consumidores que ostentam o seu poder aquisitivo e o acesso aos bons contatos, quando apresentam um baseado (cigarro) que no seja de bagulho (maconha). As drogas solicitadas pelo mercado consumidor que se amplia so trazidas da Europa, ainda que algumas sejam produzidas no Marrocos, na ndia, ou demais pases da frica ou da sia. Essa demanda crescente exige a formao de associaes mais duradou