Tese de Doutoramento Helena Caspurro

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    ndice

    Introduo 11

    Parte Terica

    Audio, audiao e improvisao musical:

    reflexo sobre teorias e modelos de ensino-aprendizagem

    Captulo I. Audiao e improvisao: problemticas conceptuais,

    epistemolgicas e educativas 27

    1.1. Questes conceptuais e terminolgicas 29

    1.1.1. Audio e audiao 34

    1.1.2. Audiao: estdios e tipos 48

    1.1.3. Sintaxe e linguagem: o significado da audiao como pensamento

    sintctico da msica 53

    a) audiao da sintaxe tonal 58

    b) audiao da sintaxe rtmica 62

    c) audiao objectiva e subjectiva 63

    1.1.4. Improvisao e criatividade 65

    1.1.5. Improvisao, audiao e aptido musical 70

    a) aptido musical 71

    b) aptido, audiao e improvisao 74

    1.2. Problemticas educativas em torno do conceito de audiao e sua relao

    com a improvisao 79

    1.2.1. Sequncia de aprendizagem 79

    a) padres tonais e padres rtmicos 83

    b) sequncia de aprendizagem de competncias 89

    c) sequncia de contedos 93

    d) relao entre sequncia de aprendizagem, estdios e tipos de

    audiao 95

    1.2.2. Aprendizagem da improvisao 100

    a) questes sobre sequncia, eficincia e readiness 103

    b) relao entre readiness e qualidade/quantidade das experincias

    de aprendizagem musical 113

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    c) organizao da instruo: modelo todo-parte-todo e sua relao

    com competncias e contedos 116

    1.2.3. Elementos de uma reflexo pessoal: a improvisao como processo de

    significao - para uma perspectiva transversal da improvisao naaprendizagem curricular da msica com base na audiao 123

    Captulo II. Improvisao: reviso de literatura no domnio da investigao em

    Psicologia, Educao e Etnomusicologia 135

    2. Contributos para a definio de improvisao 137

    2.1. Expanso de estudos 137

    2.1.1. O contributo da Psicologia 140

    a) estudos sobre o processo generativo da improvisao 143

    b) estudos sobre o processo cognitivo, desenvolvimental e de

    aprendizagem da improvisao 157

    c) estudos psicomtricos 183

    2.1.2. Contributos pedaggico-didcticos 185

    a) perspectiva histrico-estilstica 185

    b) perspectiva centrada na Eurritmia de Jaques-Dalcroze 186

    c) perspectiva centrada na imitao e auto-descoberta 187

    d) perspectiva centrada na compreenso da sintaxe musical 187

    2.1.3. O contributo da Etnomusicologia 190

    a) elementos para a definio de improvisao na cultura Ocidental

    193

    b) elementos para a definio de improvisao em civilizaes no-

    ocidentais 198

    c) elementos para a definio de improvisao no Jazz 200

    2.2. Improvisao: da reviso de literatura a uma perspectiva pessoal 209

    Captulo III. Descrio e fundamentao da metodologia de ensino-aprendizagem

    implementada 219

    3. Ensino-aprendizagem da audiao da sintaxe harmnica 221

    3.1. Fundamentao genrica da metodologia 221

    3.1.1. Objectivo especfico e descrio genrica da metodologia 223

    3.2. Descrio e taxonomia de contedos 229

    3.2.1. Contedos Essenciais 229

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    3.2.2. Contedos Transversais 231

    3.3. Descrio de taxonomia de competncias 233

    3.3.1. Relao entre aprendizagem por discriminao, aprendizagem por

    inferncia e taxonomia de contedo tonal 2343.3.2. Relao entre aprendizagem por discriminao, aprendizagem por

    inferncia e modos de ensino 236

    3.4. Descrio dos materiais musicais 237

    a) canes 237

    b) padres tonais 238

    c) sequncias diatnicas 241

    3.5. Natureza, organizao e sequncia dos recursos metodolgicos 243

    3.5.1. Canto 243

    3.5.2. Actividades Sequenciais 245

    3.5.3. Actividades de Sntese 250

    3.5.4. Estratgias auxiliares de ensino 254

    3.5.5. Avaliao 255

    Parte Emprica

    Estudo sobre efeitos da aprendizagem da audiao da sintaxe tonalna improvisao meldica

    Captulo IV. Metodologia 259

    4. Objectivo, problemas, instrumentos e procedimento do estudo 261

    4.1. Objectivo e problemas do estudo 261

    4.2. Definio e constituio da amostra 263

    4.3. Instrumentos 265

    4.3.1. Teste de Audiao de Funes Harmnicas (TAF) 265

    4.3.2. Testes de Improvisao (TI 1 e TI2) 272

    4.3.3. Testes de aptido musical: Advanced Measures of Music Audiation

    (AMMA), Harmonic Improvisation Readiness Record & Rhythm

    Improvisation Readiness Record (HIRR & RIRR) 283

    4.4. Procedimento 285

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    Captulo V. Anlise e interpretao de resultados 289

    5. Apresentao de resultados 291

    5.1. Anlise separada da amostra 291

    5.2. Anlise global da amostra 2955.3. Outros dados: sobre audiao de funes tonais e improvisao 299

    5.4. Discusso de resultados 303

    5.5. Limitaes 307

    Concluses 309

    Bibliografia 321

    Discografia 343

    Anexos 345

    Anexo A 347

    Anexo B 369

    Dossier de Materiais udio 429

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    ndice de Quadros

    Captulo I

    Quadro 1.1.: Estdios de Audiao 49

    Quadro 1.2.: Tipos de Audiao 50

    Quadro 1.3.: Nveis e subnveis da aprendizagem de competncias realizada atravs da

    discriminao e da inferncia 90

    Quadro 1.4.: Taxonomia de contedo tonal: nveis e subnveis da sequncia de aprendizagem

    do contedo tonal 94

    Quadro 1.5.: Taxonomia de contedo rtmico: nveis e subnveis da sequncia de

    aprendizagem do contedo rtmico 95

    Quadro 1.6.: Relao entre estdios de audiao e sequncia de aprendizagem de

    competncias de Gordon 109

    Quadro 1.7.: Relao entre taxonomia do domnio cognitivo de Bloom e estdios de audiao

    de Gordon 110

    Quadro 1.8.: Relao entre taxonomia de aprendizagem de Frabboni, sequncia de

    aprendizagem e estdios de audiao de Gordon 111

    Captulo IIIQuadro 3.1.: Taxonomia de Contedos Essenciais: nveis e subnveis da sequncia tonal 230

    Quadro 3.2.: Relao entre a sequncia de Contedos Essenciais e o domnio de Contedos

    Transversais desenvolvidos nas Actividades de Sntese 232

    Quadro 3.3.: Princpios da aprendizagem por discriminao e por inferncia no contexto

    genrico dos Contedos Essenciais e na sua relao com o processo de

    instruo 233

    Quadro 3.4.: Relao entre sequncia de competncias e sequncia de contedos tonais 235

    Quadro 3.5.: Modos de ensino da aprendizagem por discriminao e por inferncia 236

    Quadro 3.6.: Contedo sintctico, autor e fonte bibliogrfica das canes 238

    Quadro 3.7.: Tipo e natureza dos problemas abordados nas Actividades Sequenciais para o

    desenvolvimento da audiao da sintaxe tonal, respectivo modo de ensino, quer

    ao nvel discriminativo, quer ao nvel inferencial da aprendizagem 247

    Quadro 3.8.: Organizao dos materiais e recursos metodolgicos em funo da

    aprendizagem por discriminao e por inferncia 253

    Quadro 3.9.: Relao de contedos e competncias avaliados ao longo da experincia de

    instruo de acordo com objectivos sequenciais estipulados para a audiao da

    sintaxe tonal 256

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    Captulo IV

    Quadro 4.1.: Distribuio da amostra por sexo e classe instrumental 263

    Quadro 4.2.: Distribuio da amostra por idade e classe instrumental 263

    Quadro 4.3.: Critrios de contedo musical e cognitivo do TAF 267

    Quadro 4.4.: Contedo do TAF 268

    Quadro 4.5.: Caracterizao dos problemas e nveis sintcticos presentes nos testes de

    improvisao TI 1 e TI 2 275

    Captulo V

    Quadro 5.1.: Turma A: teste s diferenas entre TI 1 e TI 2 nas dimenses S/ORM/E em cada

    condio de realizao das improvisaes a capella/acompanhada 292

    Quadro 5.2.: Turma A: teste s diferenas entre TI 1 e TI 2 nas dimenses S/ORM/E 292

    Quadro 5.3.: Turma B: teste s diferenas entre TI 1 e TI 2 nas dimenses S/ORM/E em cadacondio de realizao das improvisaes a capella/acompanhada 293

    Quadro 5.4.: Turma B: teste s diferenas entre TI 1 e TI 2 nas dimenses S/ORM/E 294

    Quadro 5.5.: Teste global s diferenas entre TI 1 e TI 2 nas dimenses S/ORM/E em cada

    condio de realizao das improvisaes a capella/acompanhada 296

    Quadro 5.6.: Teste global s diferenas entre TI 1 e TI 2 nas dimenses S/ORM/E 297

    Quadro 5.7.: Correlaes entre HIRR, RIRR, AMMA e TI 1, TI 2 298

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    ndice de Figuras

    Captulo I

    Fig. 1.1.: Viso micro-sequencial da taxonomia de contedos de Gordon 119

    Fig. 1.2.: Viso figurativa micro e macro-sequencial da taxonomia de padres de Gordon 120

    Captulo II

    Fig. 2.1.: Estdios de desenvolvimento da improvisao segundo Kratus 160

    Captulo IIIFig. 3.1.: Melodias utilizadas durante o perodo de instruo 224

    Fig. 3.2.: Padres tonais de Tnica e Dominante - modos M e m 239

    Fig. 3.3.: Padres tonais de Tnica, Dominante e Subdominante - modos M e m 240

    Fig. 3.4.: Exemplos de sequncias diatnicas de Tnica e Dominante - modos M e m 241

    Fig. 3.5.: Exemplos de sequncias diatnicas de Tnica, Subdominante e Dominante - modos

    M e m 242

    Fig. 3.6.: Critrios didcticos 248

    Fig. 3.7.: Exemplos de Actividades de Sntese aplicando CCE e CCT 251

    Fig. 3.8.: Exemplos de Actividades de Sntese aplicando CCT 252

    Captulo IV

    Fig. 4.1.: Folha de Resposta do TAF 269

    Fig. 4.2.: Frase incompleta para criao de Coda (m: i-iv-V7-i) 273

    Fig. 4.3.: Frase incompleta para criao de Coda (m: i-iv-V7-i) 274

    Fig. 4.4.: Contedos do teste TI 1 de acordo com Manual de Instrues 276

    Fig. 4.5.: Explanao dos contedos e tarefas solicitadas ao longo da realizao de TI1 de

    acordo com Manual de Instrues 277

    Fig. 4.6.: Contedos do teste TI 2 de acordo com Manual de Instrues 278

    Fig. 4.7.: Explanao dos contedos e das tarefas dadas ao longo da realizao de TI2 de

    acordo com Manual de Instrues 279

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    A msica que fazemos tem dois ps: o p esquerdo o que est mais ligado ao

    Jazz, improvisao; o outro p o p ladro, que copia tudo, que anda por todo

    o lado." "Costumas dizer que o p esponja...

    Mrio Laginha e Maria Joo (Pblico, Nov. 2002)

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    Introduo

    Carlos Paredes(A Capital, 1980; Dirio de Notcias, 1990)

    A investigao que aqui apresento pretende ser um contributo para a prtica da

    improvisao e para o desenvolvimento da compreenso tonal nos curricula de

    msica. Nomeadamente, pretende chamar a ateno para a importncia da

    audiao da sintaxe harmnica no desenvolvimento da improvisao meldica,

    apresentando um conjunto de dados e reflexes que espero venham melhorar o

    actual sistema de ensino da msica.

    Confesso que me difcil saber exactamente quais os motivos que me levaram a

    este tipo de pesquisa. A insatisfao com que me senti mergulhada na hora de

    finalizar o curso superior de piano, por no ter sido dado qualquer momento de

    voo minha necessidade intrnseca de improvisar, colocou-me num confronto

    artstico e educativo que me tem acompanhado at aos dias de hoje. Parte deste

    conflito seria resolvido com a passagem por alguns anos na Escola de Jazz do

    Porto, depois de um interregno devotado s interminveis questes de pedagogia.

    Julgo serem estes os primeiros apeadeiros de uma viagem que dificilmente

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    deixar de me suspender nesta procura fascinante da interaco entre a arte de

    falarmsica e a aprendizagem.

    O desenrolar da caminhada (que j no propriamente curta) no difcil de

    descrever. Grande parte da sua histria no mais do que um relato de

    momentos e lugares cujo valor para a minha busca enquanto instrumentista e

    educadora, a ser possvel resumir em palavras, se abrevia atravs da mensagem

    que desejo deixar testemunhada nesta dissertao.

    No deixo contudo de enumerar aqueles que me parecem ser os principais

    catalisadores da partida. O contacto com investigadores capazes de me fazer

    pousar o olhar sobre caminhos at ento pouco consciencializados; aenternecedora experincia com adolescentes e crianas dos 4 aos 10 anos de

    idade, numa srie de projectos de educao musical em vrios pontos do pas; a

    partilha de ideias com um j consideravelmente numeroso universo de alunos de

    Escolas Superiores de Educao (Guarda e Coimbra) e da Universidade de

    Aveiro (onde encontrei desde h meia dzia de anos a minha mais emocionante

    morada), ento sequiosos de descobrir os meandros da pedagogia esse lugar

    onde se julga estar guardada a chave da arte da motivao e da inspirao para

    aprender; a orientao de estgios da disciplina de Formao Musical em alguns

    conservatrios nacionais, onde o tema da compreenso musical particularmente

    caro; um conjunto de seminrios sobre a problemtica da improvisao como

    processo de significao musical, dirigidos a professores em exerccio mas no

    menos inquietos relativamente ao tema; alguns textos escritos sobre a mesma

    questo; por fim: as saborosas vivncias com os msicos com quem tenho

    partilhado o meu projecto artstico de originais de que resultou o CD Mulher

    Avestruz (cujo lanamento foi integrado nas cerimnias comemorativas do 30

    aniversrio da Universidade de Aveiro).

    Um enquadramento biogrfico como o que acabo de descrever parece-me ser

    suficientemente abrangente e esclarecedor para responder pergunta sobre a

    escolha de uma temtica que, embora pertinente para a educao musical,

    continua a ser de certo modo rf de reflexo e questionamento. Refiro-me,

    claro, ao que me parece ser uma postura generalizada dos educadores do

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    denominado crculo de cultura erudita, afinal de contas os principais obreiros da

    formao artstica e pedaggica no nosso pas.

    Efectivamente pouco se tem debatido acerca do papel da improvisao no

    processo de aprendizagem musical, nomeadamente o significado psicolgico e

    educativo que revela revestir enquanto meio de manifestao ou exteriorizao de

    conhecimento interiorizado pelo sujeito. Um olhar alargado sobre as prprias

    prticas e estilos de ensino perpetuados nos nossos conservatrios ao longo do

    ltimo sculo permite comprovar facilmente o que acabo de constatar. Com efeito

    raros so os professores de msica que promovem a prtica da improvisao

    junto dos seus alunos. Mais raros so ainda aqueles que se questionam sobre as

    razes inerentes ao facto da maioria desses alunos no ser capaz de improvisar.

    O mesmo se passa alis com a maioria dos processos de aquisio e realizao

    de conhecimento musical que envolvem a concretizao de pensamento

    eminentemente criativo, como a composio. Salvo raras excepes, quer a

    improvisao quer a composio so observadas como regies demarcadas nos

    curricula a maioria das vezes tambm com poucas afinidades entre si cujo

    desenvolvimento fruto ou resultado, no tanto de experincias ou percursos

    criativos promovidos ao longo das diversas aprendizagens, mas sobretudo de

    opes e interesses artsticos assumidos por sujeitos particulares. Isto , para a

    maior parte dos educadores o pensamento e a realizao criativa dos alunos so

    perspectivados mais como fins artsticos a atingir em reas curriculares

    especficas do que como meios atravs dos quais se aprende msica.

    Ao procurar com cuidado uma srie de literatura relacionada com o tema, sou

    levada a concluir contudo, que no apenas a criatividade constitui um objecto caro

    de estudo para a maioria dos psiclogos e educadores contemporneos, como na

    sequncia disto o interesse pelas relaes particulares deste fenmeno com a

    Msica comea a atrair a ateno de um cada vez mais numeroso crculo de

    investigadores. Sem dvida que as razes para este movimento reflexivo se

    prendem no caso concreto da msica s questes atrs levantadas

    nomeadamente pela pertinncia que assumem revestir numa rea que, por

    definio, conotada com a criao e produo de conhecimento esttico.

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    Na sequncia desta anlise, o que me parece ser digno de referncia o facto de

    o fenmeno de expanso de estudos sobre criatividade se desenvolver no sem

    repercusses no terreno da reflexo educativa, contrariando de alguma maneira o

    que comecei por referir, mormente acerca daquilo que caracteriza a realidade

    musical e escolar do nosso pas. Um exemplo disto a urgncia com que no

    mbito das sucessivas tentativas de reforma do ensino artstico levadas a cabo

    desde h uns tantos anos (com sistemtico insucesso, alis), o argumento da

    criatividade, nomeadamente a improvisao, invocado e solicitado enquanto

    princpio orientador do processo curricular e formativo dos msicos. Outro

    exemplo a forma como praticamente toda a comunidade educativa dos msicos,

    quando se trata de promover debates em torno da arte e do artstico naeducao, no ousa pr em causa a questo da importncia da criatividade na

    aprendizagem. No ser menos verdade afirmar tambm que a seriedade e a

    nobreza que os msicos depositam no assunto est relacionada, quase

    exclusivamente, com a forma como reconhecido indubitvel certificado de

    garantia a uma das poucas reas de realizao criativa do currculo: a

    composio.

    claro que, em face do que acabo de expor, surge-me uma nova pergunta: como

    explicar ento que a suposta valorao da criatividade no processo formativo e

    global dos alunos, entretanto invocada pelos educadores dos crculos eruditos e

    artsticos da msica, no seja acompanhada por gestos e prticas pedaggicas

    concretas? Ou de outro modo: por que razo a frequente incapacidade de

    improvisao dos alunos denuncia uma certa incongruncia entre as intenes

    educativas e curriculares e a realidade escolar de ensino?

    Sem dvida que a problemtica da criatividade , pela sua estreita ligao ao

    controverso debate em torno da definio de conhecimento e de inteligncia,

    assunto particularmente privilegiado para filsofos, psiclogos e educadores do

    mundo contemporneo. O desenvolvimento de uma srie de estudos dedicados

    questo da qualidade dos processos de realizao, produo e criao de

    conhecimento parece comear a suscitar de facto, na comunidade cientfica e

    educativa musical, uma maior ateno relativamente ao tema da improvisao.

    Algo que parece ter algum peso para o desenrolar deste fenmeno a

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    proliferao, na Europa, ao longo de todo o sculo XX, de prticas e costumes

    musicais alicerados na experimentao e criatividade espontnea, como por

    exemplo os movimentos avant garde e o Jazz, bem como outras tantas

    tendncias de fuso de linguagens e culturas fortemente marcadas pela tradio

    oral e pela improvisao (africanas, afro-americanas, asiticas).

    Certamente que estes dados podem ser cruciais para explicar situaes

    aparentemente paradoxais no sistema educativo portugus. Isto : talvez seja

    verosmil pensar que o facto de os instrumentistas (de formao erudita) no

    conseguirem dar resposta a solicitaes decorrentes de diferentes modos de

    estar com a msica sobretudo os que dependem da cultura da criatividade

    espontnea, entretanto em franco desenvolvimento tambm no nosso pas

    possa estar na origem de sentimentos de insatisfao que se materializam,

    simultaneamente e de forma generalizada, em intenes de reformulao e

    mudana curricular. Talvez seja verosmil pensar ainda que a razo pela qual

    essas mesmas intenes no se consumam em prticas educativas concretas

    resida no carcter circular em que cai inevitavelmente o prprio problema.

    Efectivamente no pode ser arredada da questo a forma como os educadores

    observam a improvisao no contexto da sua prpria vivncia formativa e

    artstica. Sendo eles prprios produtos do sistema de ensino vigente, natural

    que no se sintam suficientemente confiantes para pr em prtica competncias

    relativamente s quais no se encontram habilitados nem, em virtude disso

    mesmo, atribuem um significado experiencial concreto. A circularidade do

    fenmeno manifesta-se tambm, como bvio, ao nvel da sua formao

    pedaggica. Isto : na qualidade do produto resultante da aco desenvolvida, de

    uma forma generalizada, pelos prprios agentes de formao.

    Creio que a ausncia de um edifcio terico capaz de explicar, com base em

    dados empricos concretos, qual o significado psicolgico e educativo da

    improvisao e da criatividade no processo de aprendizagem musical poder

    constituir um motor decisivo para o perpetuar do problema. O nmero de estudos

    desenvolvidos sobre este assunto particular da educao musical totalmente

    negligenciado, alis, nos circuitos cientficos nacionais no de facto

    abundante, assim como no o em Portugal a prtica e cultura da investigao.

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    Ora, considerando todos estes dados, no difcil duvidar que o problema da

    inconsistncia entre a teoria e a prtica dos educadores no que respeita

    abordagem da improvisao e da criatividade no ensino da msica se torne, no

    nosso pas, inevitvel. Ou seja: por um lado dados existem que confirmam a

    necessidade de procurar modelos capazes de dar resposta ao desenvolvimento

    da improvisao e do pensamento criativo dos alunos aquilo que o paradigma

    tradicional de ensino musical tem revelado no conseguir promover, e que conduz

    necessariamente a esforos e tentativas de reformulao. Por outro lado a

    ausncia de informao, sobretudo no terreno da reflexo nacional, relativamente

    ao que em termos psicolgicos e educativos pode definir, caracterizar e

    fundamentar aquele tipo de conhecimento, torna-se, juntamente com a escassainvestigao existente, um obstculo prpria actuao e esforo de mudana,

    perpetuando a inconsistncia entre a articulao das intenes dos educadores e

    a respectiva prtica curricular e pedaggica. Algo que, sobretudo em matria de

    criatividade, parece ser generalizvel alis a praticamente toda a realidade

    escolar. Segundo numerosa bibliografia consultada o fenmeno, concretamente

    no ensino da msica, no deixa de se verificar ainda noutros pases do continente

    europeu e no europeu (como por exemplo nos Estados Unidos da Amrica).

    Torna-se claro portanto que a definio do problema levantado na presente

    dissertao no pode deixar de ser realizada fora deste conjunto de questes,

    nomeadamente aquelas que, estando directamente relacionadas com alteraes

    paradigmticas dos processos de ensino e aprendizagem da msica, ainda no

    se conseguiram concretizar, apesar de alguns esforos, e que so decisivas para

    o desenvolvimento da criatividade e da improvisao nos curricula.

    De facto todos conhecemos as dificuldades com que, de uma forma generalizada,

    se deparam os msicos mesmo os de elevado nvel de conhecimento de anlise

    e de performance quando so expostos a situaes que esto para alm da

    manipulao das competncias de interpretao, leitura, memria ou tcnica

    instrumental.

    Improvisar, mormente no contexto de um padro ou estrutura estilstica que lhes

    familiar como o discurso tonal, por exemplo , tarefa particularmente digna

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    de desorientao e inquietude. Isto passa-se, como tive j oportunidade de referir,

    no terreno institucional onde se move a principal educao artstica do pas

    (Conservatrios, Academias, Escolas Profissionais, etc.). No difcil encontrar-

    se aqui a morada de alguns preconceitos sobejamente conhecidos. A

    improvisao enquanto aptido, queda, herana gentica ou at mesmo

    genialidade; a improvisao como terreno estilstico herdado por uns tantos

    domnios afectos tradio oral, onde se destaca o Jazz; a improvisao por fim,

    decorrente disto, como objectivo puramente artstico, pouco susceptvel de ser

    validada enquanto competncia transversal e sequencial da aprendizagem.

    Obviamente que a anlise de literatura dedicada ao tema, mormente de carcter

    musicolgico e psicolgico, faz de imediato levantar questes acerca da validade

    daqueles pressupostos.

    Por um lado, musiclogos como entre outros Michels (1987), Netll (1998; 2001),

    Bailey (1992), Clarke (1992), Blacking (1995) vm demonstrar-nos que a prtica

    da improvisao no s est decisivamente intrincada na histria da cultura de

    diferentes civilizaes, como reflecte os valores que as prprias sociedades

    constroem em torno do conceito de msica, nomeadamente no que respeita s

    dimenses criativas e expressivas do processo de realizao que lhe inerente.

    A ideia de que a proeminncia ou no da improvisao numa dada cultura

    depende sobretudo (Netll, 2001: 95) permite compreender, para alm de outros

    problemas, o lugar pouco privilegiado da improvisao no contexto generalizado

    da cultura ocidental do ltimo sculo.

    Por outro lado, quer psiclogos quer educadores comparam a improvisao com

    o fenmeno de significao da linguagem, encontrando na aprendizagem

    nomeadamente ao nvel dos processos de assimilao e aquisio de vocabulrio

    musical a principal causa para a sua realizao nos sujeitos. Azzara (1993),

    Kratus (1991), Gordon (2000b), Pressing (2000), Sloboda (2000) so alguns

    desses autores.

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    A preocupao particular de Gordon pela questo da compreenso musical, da

    qual resulta a sua inovadora teoria de aprendizagem musical, fez-me sem dvida

    concretizar o contacto duradouro com o autor. justo referir, portanto, que devo a

    Edwin Gordon a concretizao de uma srie de reflexes e pesquisas em torno

    da psicologia e pedagogia da msica, concretamente na rea da improvisao

    meldica no contexto do sistema funcional, das quais resulta a presente

    dissertao. Sem dvida que o devo ainda a Edgar Willems, cuja obra

    metodolgica, moldada pelo trabalho criativo e enriquecedor de dedicados

    discpulos portugueses, acabaria por marcar decisivamente, na Juventude

    Musical Portuguesa do Porto, todo o meu percurso como estudante de msica.

    A evidncia de que improvisar constitui um processo em constante

    desenvolvimento e que tender a culminar, caso as circunstncias no se

    manifestem adversamente, na sua expresso simblica mais abstracta a leitura

    e a escrita assunto a retirar daquela teoria, ou no fosse a sua sistemtica

    orientao para o tema da sequncia de aprender a compreender o significado

    musical dos sons. A problemtica torna-se ento decisivamente apaixonante.

    Volto realidade escolar e constato que, salvo rarssimas excepes, os msicos

    sabem ler e escrever notas, no se encontrando contudo habilitados para aquela

    que deveria ser a sua primeira competncia: falar msica. Ou seja: improvisar.

    Mais ainda: so efectivamente estes mesmos alunos que melhor me conseguem

    surpreender pelo que revelam de desorientao auditiva quando confrontados

    com tarefas de identificao harmnica no mbito de discursos tonais

    particularmente familiares.

    Dando razo reflexo referida, algo se passa naquele modo de aprender msica

    que no permite a concretizao de relaes de significao entre o que

    executado (ou simplesmente teorizado) e o que percepcionado auditivamente,

    levantando dvidas sobre a interiorizao de contedos e competncias

    essenciais ao processo espontneo de comunicao e realizao musical

    caracterstico da improvisao. A compreenso da sintaxe harmnica que,

    inspirada na teoria do autor, identifico aqui, por comparao aprendizagem da

    linguagem, s necessidades de significao de um qualquer discurso tonal

    (atravs das respectivas funes e estrutura de progresso harmnica) parece

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    constituir um factor decisivo para o desenvolvimento da improvisao meldica.

    Esta considerao torna-se ainda mais pertinente se no perdermos de vista o

    problema do imediatismo que o seu gesto performativo encerra a execuo e a

    criao de msica em tempo real.

    Vrios so os msicos do universo jazzstico para j no falar da minha prpria

    experincia como instrumentista nesta rea estilstica particular que nos

    testemunham estas evidncias.

    Vrios so os estudos tambm, dentro e fora do terreno artstico, que nos

    relembram que o conhecer uma tcnica no significa necessariamente ser capaz

    de a utilizar, nomeadamente fora de contextos pouco ou nada familiares. Oproblema da criatividade e do pensamento divergente, concretamente no domnio

    da improvisao musical, parece alis comear aqui: que tipo de conhecimento

    est implicado no processo de realizao musical exigido pela improvisao? Ou

    de outra forma: o que necessrio saber ou conhecer para, em tempo imediato

    performance, criar msica, descobrir outros caminhos ou solues,

    nomeadamente em contextos tonais e em termos meldicos? Em suma: que tipo

    de vocabulrio ou conhecimento necessrio adquirir e desenvolver para se falar

    melodicamente?

    A hiptese de que a aprendizagem da sintaxe tonal e rtmica fundamental para

    o desenvolvimento da competncia para falar msica constitui um facto

    indiscutvel para qualquer msico que tenha por hbito, profisso ou prazer,

    improvisar. Evidncia como esta encontra fundamento, alis, na constatao de

    que a compreenso auditiva da melodia est dependente, no da maneira como

    ouvimos notas isoladas, mas da forma como percepcionada a sua estrutura e

    contexto harmnico (Dowling, 1984, 1991; Clarke, 1989, 1999, 2000; Johnson-

    Laird, 1989, 2002; Bamberger, 1991, 1994, 2000; Pressing, 1991, 1998, 2000;

    Cuddy (1993), Sloboda, 1993; Aiello, 1994; Bharuca, 1994; Deutsch, 1999; Kenny

    & Gellrich, 2002; Povel & Jansen, 2002a). Ou seja: a questo da definio das

    competncias envolvidas no processo de improvisao meldica parece estar

    decisivamente relacionada, no plano cognitivo, com aquilo que, previamente

    improvisao propriamente dita, o executante capaz de ouvir e interpretar

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    perceptivamente no contexto da melodia em causa. Algo que sem dvida est

    para alm da simples performance (tcnica), imitao ou memorizao da

    horizontalidade frsica, da lgica das escalas ou do conhecimento de intervalos, e

    que Gordon (2002b) denomina, de forma inovadora, poraudiao.

    Ainda que o trabalho dos citados investigadores permita sublinhar, com o rigor

    sistemtico que caracteriza a observao e reflexo cientfica, aquele facto, nada

    melhor do que ir ao encontro dos prprios obreiros da arte e ouvi-los,

    compreend-los. O comentrio de Laginha a propsito do seu trabalho em duo

    com o pianista Sasseti pareceu-me, neste caso, particularmente sugestivo. Dizia

    ele: (Magalhes, 2002).

    Ora, voltando aos fundamentos tericos do objecto de estudo que aqui apresento,

    compreender a provocao harmnica implcita ou explcita no discurso meldico

    de qualquer cano ou motivo meldico transmitido por um eventual interlocutor

    ou simplesmente evocado do arquivo musical e silencioso das nossas memrias

    constitui, em suma, o cerne da questo. Seguramente que se trata tambm, e

    em rota simultnea com a aferio dos problemas em estudo, do objectivo capital

    da experincia educativa que implementei em duas turmas do 9 ano do curso

    profissional e artstico de msica da Escola ARTAVE. Objectivo esse que, tendo

    em considerao o quadro predominante de ensino, parece no fazer parte,

    desde h longa data, dos programas e prticas educativas da maioria das escolas

    e conservatrios de msica do pas e que, como referi, parece oferecer srias

    razes para o facto da incapacidade de improvisao meldica dos alunos se ter

    tornado, no decurso do seu caminho formativo, um porto de chegada frequente.

    O facto de no existir praticamente nenhuma investigao acerca da validade

    destes pressupostos no processo de ensino-aprendizagem da msica explica o

    objecto de estudo que apresento nesta dissertao. Assim e mais concretamente,

    os problemas que pretendo investigar so:

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    1) verificar se uma metodologia de ensino-aprendizagem baseada na

    audiao da sintaxe harmnica ao nvel auditivo-oral tem efeitos no

    desenvolvimento da capacidade para improvisar melodicamente;

    2) verificar se resultados obtidos nos testes estandardizados de aptido

    Advanced Measures of Music Aptitude (AMMA, 1989) e Harmonic

    Improvisation Readiness Record & Rhythm Improvisation Readiness

    Record (HIRR & RIRR, 1998) de Edwin Gordon se relacionam com os

    resultados obtidos nos testes de desempenho de improvisao meldica

    desenvolvidos na experincia.

    No que toca ao teor e valor educativo da problemtica em causa acompreenso da sintaxe musical h que dar razo aos princpios filosficos que

    moveram pedagogos do incio do sculo XX, como entre outros Jaques-Dalcroze

    (1916), Mathay (1913), Mursell (1958; 1971), Willems (1970; 1975), Mainwaring

    (in McPherson & Gabrielsson, 2002). Desprovidos dos instrumentos que a cincia

    educativa hoje disponibiliza, as suas ideias sobre o que constitui o pensamento

    musical exigido a qualquer instrumentista adquirem foros de contemporaneidade,

    para no dizer lucidez reflexiva. No posso deixar de referir o carcter de

    antecipao pedaggica que qualquer um destes msicos revela traduzir.

    Testemunhado de forma inevitvel pela escola que ainda hoje no conseguimos

    deixar mexer pelo menos tanto quanto desejaramos suficientemente rico

    para no deixar de ser relevado neste estudo.

    A exigncia de contextualizao e fundamentao de todas estas questes,

    requerida pelo prprio objecto de estudo da dissertao, nomeadamente o

    significado psicolgico e educativo do termo audiao, justifica um conjunto de

    reflexes de carcter epistemolgico, pedaggico e histrico a abrir o trabalho.

    Com efeito considero que a teoria de aprendizagem de Edwin Gordon consegue

    dar resposta, atravs do princpio da audiao, ao conjunto das problemticas

    relativas quer compreenso sintctica da msica, quer aprendizagem da

    improvisao. A complexidade subjacente sistematizao de todo o processo

    de aprender a audiar msica, bem como a relao daquele novo conceito com o

    prprio desempenho da improvisao, explicam o tratamento exaustivo que

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    caracteriza o texto apresentado no Cap. I. Daqui se pode concluir portanto, que

    tendo em vista a fundamentao da metodologia de ensino-aprendizagem

    proposta para a experincia educativa em estudo, a abordagem desenvolvida

    neste captulo era essencial.

    Efectivamente foi com base na teoria de Edwin Gordon que criei e desenvolvi

    uma srie de instrumentos de trabalho que julgo poderem prestar um particular

    contributo reflexo e prtica educativa dos professores, sobretudo aos que se

    interessam pelo tema da compreenso e improvisao tonal.

    No deixo de apontar ainda a maneira por vezes enfatizada com que, no mbito

    do tratamento das temticas apresentadas no mesmo captulo, exponho visescrticas e pessoais. A justificao da escolha por um tipo de discurso mais livre

    ou potico, a ser devida dado o contexto acadmico e cientfico do trabalho

    no poder ir para alm de razes intrinsecamente estilsticas e emocionais. A

    principal prende-se ao facto de no ter sido capaz de evitar a presena da minha

    histria de vida como instrumentista, estudante, educadora, enfim, cidad do

    mundo. A outra, no menos decisiva, com a minha relao apaixonada com a

    improvisao e com a prtica de ensinar msica.

    Resta-me fazer uma chamada de ateno relativamente a aspectos de

    organizao desta dissertao, o que julgo poder facilitar a sua leitura e

    compreenso.

    Assim, esta dissertao constituda por duas partes: uma parte terica e uma

    parte emprica. Na parte terica apresento uma reflexo sobre as problemticas

    entretanto descritas, concernentes quer audiao quer improvisao.

    Enumerando: a reflexo epistemolgica, histrica e educativa sobre aproblemtica da audiao no contexto da teoria de aprendizagem de Edwin

    Gordon (Cap. I), a reviso dos principais estudos e trabalhos educativos

    publicados sobre improvisao (Cap. II), a fundamentao da metodologia de

    ensino-aprendizagem que implementei na experincia de instruo sobre a qual

    dirigido o objecto de estudo apresentado na presente dissertao (Cap. III). Na

    parte prtica relato a metodologia da investigao, descrevendo o conjunto de

    instrumentos que utilizei para tratamento emprico das questes em estudo (Cap.

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    IV), tendo em vista a anlise, discusso e interpretao dos resultados (Cap. V), a

    que se seguem as Concluses da dissertao.

    A dissertao apresentada com um conjunto de 6 CDs udio, compreendendo o

    contedo dos diversos testes que criei para tratamento emprico. Do conjunto,

    cinco so relativos s gravaes das avaliaes das performances dos alunos

    realizadas no mbito dos Testes de Improvisao administrados antes da

    experincia (TI1: CD I & CD II) e depois da experincia (TI 2: CD III, CD IV & CD

    V). O restante diz respeito ao contedo musical do Teste de Audiao de Funes

    (TAF: CD VI). Os CDsforam arquivados no final do documento da dissertao, na

    seco denominada por Dossier de Materiais udio.

    Foram criados ainda dois Anexos A e B onde podem ser consultados os

    materiais referentes aos instrumentos descritos no Cap. IV, bem como o registo

    enumerado do contedo udio dos CDs atrs enunciados. Assim e por questes

    de organizao, remeteu-se para Anexo A o conjunto de materiais relativos ao

    Teste de Audiao de Funes (TAF): grelha de correco, Rating Scales, TAFPreparatrio (contedo do teste, folha de resposta e grelha de correco) e

    relao enumerada de contedos udio do CD VI. Para Anexo B remeteu-se o

    conjunto de materiais relativos aos Testes de Improvisao (TI 1 e TI 2): grelhas

    de correco, Rating Scales, relao enumerada de contedo udio dos CDs I &

    II (TI1) e dos CDs III, IV & V (TI2).

    Todas as citaes so apresentadas na lngua da edio consultada de forma a

    preservar ao mximo as fontes de informao. Os destaques apresentados a bold

    no mbito das citaes correspondem integralmente aos que so apresentados

    pelos seus autores. As datas correspondem tambm s da edio consultada.

    Quando, ao longo do texto, a referncia a termos ou expresses especficas

    suscitou problemas de traduo, optei por citar o termo original em itlico e,

    sempre que possvel, os seus equivalentes em portugus, de forma a preservar o

    pensamento dos respectivos autores. A utilizao de itlico foi aplicada ainda a

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    termos ou expresses que considerei merecerem destaque em situaes

    particulares do discurso, e que julgo poderem contribuir para um melhor

    entendimento crtico das ideias defendidas.

    Para o tratamento de questes de citao e referncia bibliogrfica ou electrnica

    (Internet), optei por seguir as normas indicadas na mais recente edio do manual

    publicado pela American Psychological Association (APA, 2002).

    Finalmente, no posso deixar de expressar o desejo de que este trabalho

    contribua para o desenvolvimento da compreenso harmnica da msica nas

    prticas e programas escolares, e simultaneamente para um renascer da cultura

    da improvisao no dia-a-dia das vivncias pessoais e artsticas dos alunos.

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    Parte Terica

    Audio, audiao e improvisao musical:

    reflexo sobre teorias e modelos de ensino-aprendizagem

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    Captulo I

    Audiao e improvisao: problemticas conceptuais,

    epistemolgicas e educativas

    Neste captulo faz-se uma reflexo de carcter filosfico e histrico-

    pedaggico sobre a problemtica da audio e da compreenso musical,

    com o objectivo de fundamentar a metodologia de instruo musical

    proposta na presente dissertao. Considera-se que as questes

    educativas suscitadas pela aprendizagem da improvisao se fundam na

    discusso inaugurada por uma srie de pedagogos do sculo XX, da qual

    resulta o conceito de audiao proposto na Teoria de Aprendizagem

    Musical de Edwin Gordon. Pretende-se que esta fundamentao terica,

    percorrendo contributos da Psicologia e da Pedagogia da Msica a partir

    do incio do sculo XX, ajude a compreender as razes que estiveram na

    base da escolha de uma metodologia de ensino-aprendizagem alicerada

    no pensamento daquele autor.

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    1.1. Questes conceptuais e terminolgicas

    Jaques-Dalcroze (1915, p. 10)

    Mainwaring (in McPherson & Gabrielsson, 2002, p. 103)

    No de todo sustentvel que a realizao do msico possa ser concretizada,

    no importa a que nvel, sem ouvir. Da mesma maneira que a aco do pintor, do

    bailarino, do escritor ou do matemtico so inconcebveis sem, respectivamente,

    ver, percepcionar as funes da linguagem corporal, dominar os cdigos de

    significao da linguagem ou pensar em termos abstractos e simblicos. Contudo,

    qualquer uma destas evidncias no suficiente para definir a qualidade dos

    processos envolvidos nos diferentes domnios de conhecimento que so exigidos

    a cada um dos seus actores. No basta, portanto, ver para se ser pintor, escrever

    para se dominar a arte da escrita, coordenar os movimentos do corpo para se ser

    bailarino, saber as regras do raciocnio numrico para se ser matemtico.

    Tambm na msica no ser de todo suficiente ouvir para se cantar ou tocar com

    excelncia, compor uma obra polifnica, nem to-pouco harmonizar de ouvido

    uma bela cano de Mozart ou improvisar sobre um tema conhecido.

    Ainda que no seja necessrio grande erudio para se concluir tudo isto, o certo

    que foi sobre esta problemtica que, no terreno da msica, a maioria dos

    pedagogos da primeira metade do sculo XX dedicou a sua obra educativa,

    abrindo caminho para uma das principais discusses filosficas e cientficas da

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    actualidade: como definir o conhecimento musical e qual o papel da educao no

    seu processo de desenvolvimento. A ideia de que a manifestao de produtos ou

    desempenhos no suficiente para a definio de conhecimento

    verdadeiramente assimilado a questo levantada.

    um facto que a tentativa de definir o conhecimento musical com base em

    processos decorrentes da assimilao sonora resulta da reflexo sobre o

    paradigma tradicional de ensino, nomeadamente a sua pouca eficcia para

    responder a problemas de realizao que esto para alm da performance

    propriamente dita, da reproduo imitativa de notao e do conhecimento de

    teoria musical. A desorientao frequentemente manifestada pelos alunos quando

    confrontados com o desempenho da improvisao, bem como uma srie de

    outras dificuldades demonstradas no mbito da compreenso harmnica, da

    leitura primeira vista, da transposio, do tocar de ouvido e da criatividade

    musical em geral, so exemplos sugestivos.

    No ser preciso ler os textos de Jaques-Dalcroze para se perceber, portanto,

    que a insistncia por estratgias de ensino fundadas logo em fases iniciais de

    aprendizagem musical na teorizao do discurso sonoro (pautas, escalas,

    intervalos, acordes, notas, armaes de clave, etc.), no treino obsessivo do

    ditado e do exerccio repetitivo muitas das vezes desprovido de critrio

    esttico e na sobrevalorizao da memria e da tcnica performativa, continua

    ainda hoje a dar provas de no conseguir atender quela que constitui a principal

    ferramenta do msico: o ouvido. Tambm so conhecidas as razes de elevados

    ndices de desmotivao e insucesso escolar no nosso pas (cf. Ministrio da

    Educao-DES, 1997). Aquilo que, pela boca de alunos, continua a ser frequente

    ouvir-se dizer a dificuldade em compreender a msica que se d no

    Conservatrio as notas, as pautas, o solfejo deveria constituir um sinal de

    questionamento e reflexo para os educadores.

    Ou seja: as questes levantadas pelos pedagogos do incio do sculo XX no so

    muito diferentes das que preocupam os psiclogos e educadores

    contemporneos.

    O significado filosfico e epistemolgico deste debate, nomeadamente para a

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    reflexo sobre uma das problemticas capitais da psicologia do desenvolvimento

    curricular e da aprendizagem a definio de conhecimento torna-se evidente.

    No que se refere concretamente msica, poder-se- afirmar que questionar o

    produto ou resultado de mtodos de ensino fundamentalmente assentes na

    memria e teoria musical questionar o prprio conceito de saber. Como defende

    Elliot (1995) (p. 60). Ou

    seja: saber msica no a mesma coisa que saber acerca de msica. Ou melhor

    ainda: conhecer notas e figuras no a mesma coisa que ouvir e identificaro som

    que esses smbolos representam. A qualidade do conhecimento isto dos

    processos ou percursos desenvolvidos pelos sujeitos para a sua realizao emanifestao , em sntese, o cerne da questo.

    Alguns exemplos podem ser esclarecedores: tocar eximiamente a melodia Jingle

    Bells que se memorizou por partitura no a mesma coisa que ser-se capaz de a

    tirar de ouvido, de a transpor, de a reconstruir tocando-a noutra tonalidade ou

    noutro contexto rtmico nem muito menos descortinar o seu Baixo ou

    progresso harmnica. Assim como cantar um standard jazzstico, mesmo com

    um groove inigualvel, no a mesma coisa que improvisar sobre a sua

    estrutura harmnica e estilstica. Um facto fica evidenciado, contudo, em qualquer

    um dos casos: o produto resultante da reproduo ou teorizao de msica

    mesmo quando selado pelo crivo da excelncia da interioridade e fidelidade dos

    processos de memorizao nem sempre suficiente para caracterizar

    conhecimentos musicais verdadeiramente assimilados pelo sujeito. A chave do

    problema , sem dvida, a compreenso auditiva da msica algo que apela

    para um tipo de apropriao de processos e factos que apenas pode serdesenvolvido de forma intrnseca ao indivduo. Efectivamente uma coisa

    compreender msica descortinar o significado sonoro de uma estrutura

    meldica, harmnica, rtmica que memorizmos, que acabmos de ouvir,

    executar ou que estamos a ler, escrever, improvisar ou compor. Outra coisa

    conhecerescalas, intervalos, notas e figuras representadas numa folha pautada

    ou simplesmente relembradas na execuo.

    Em face do exposto torna-se evidente que a discusso em torno de como se

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    assimila msica? tem na histria da reflexo pedaggica um outro significado

    epistemolgico. Implica com efeito uma mudana de atitude dos educadores

    relativamente s grandes questes da educao: a passagem da reflexo acerca

    de como se ensina?para a problemtica em torno de como se aprende?. Ou

    mais concretamente: como se aprende a compreender auditivamente msica?.

    No se trata, como bvio, de questionar o valor da memria, da tcnica, da

    leitura ou da escrita. Nem sequer da teoria musical. Trata-se, isso sim, de

    perceberquando que a aprendizagem da notao e da teoria devem surgir no

    processo educativo, e qualo papel da memria e da tcnica no decurso do seu

    desenvolvimento.

    Jaques-Dalcroze (1916), ao chamar a ateno para a importncia do

    conhecimento perceptivo loreille no desenvolvimento da aprendizagem dos

    mais variados tipos de competncia musical, no o primeiro autor a levantar

    questes acerca da qualidade dos produtos de ensino resultantes de modelos

    pouco atentos problemtica da assimilao. Desde o sculo XVII que

    pensadores como Comenius, Pestalozzi, Rousseau, confrontados com questes

    semelhantes noutros domnios do conhecimento e da aprendizagem, defendem o

    princpio de que a experincia concreta com os problemas deve preceder a

    teorizao, lanando as bases para a emergncia do que pode ser considerado o

    bero do novo paradigma de reflexo pedaggica da msica. So seus

    protagonistas autores como H. Naef e L. Mason (in McPherson & Gabrielsson,

    2002) que, j no incio do sculo XIX, defendiam a ideia de que a aprendizagem

    musical se deve iniciar com a exposio ao fenmeno sonoro, e s

    posteriormente passar sua expresso grfica.

    Parece ser certo que para qualquer um dos autores referidos a resposta s

    questes acerca do saber msica se funda na prpria problemtica da

    compreenso sonora no processo de aprendizagem. Para aqueles pensadores

    ser, portanto, a forma como se processa a compreenso do que se ouve que

    explica o facto de estarmos ou no perante um msico. Assim como a forma

    como se processa a compreenso do que se v poderia explicar a circunstncia

    de estarmos ou no perante a presena de um artista plstico, e por a fora.

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    Desde ento que a problemtica do pensamento sonoro passa a fazer parte de

    numerosos discursos educativos, dando lugar a diversas terminologias todas

    elas decorrentes da necessidade de definir a qualidade dos processos de

    conhecimento com base na assimilao perceptiva da msica. Audio interior,

    thinking in sound, apreenso, so alguns dos exemplos que mais no traduzem

    do que uma urgncia dos pedagogos em destacar o processo de interiorizao de

    vocabulrio sonoro exigido pela compreenso intrnseca da msica, sobretudo

    nas fases que precedem a leitura, a escrita e a teorizao musical.

    O conceito de audiao de Gordon do qual depende a noo de compreenso

    sintctica da msica e sobre o qual se definiu o problema de estudo tem uma

    histria de gestao fundada, toda ela, no contexto daquela problemtica. A

    improvisao musical, ao manifestar-se como uma forma particular de realizao

    de conhecimento interiorizado, no escapa, como bvio, discusso.

    Como ser analisado, atravs do conceito de audiao que vrios estudiosos

    contemporneos fundamentam o processo de improvisar msica. O que significa

    que as problemticas educativas inerentes ao desenvolvimento da improvisao

    devem ser compreendidas luz das questes em torno da qualidade dos

    processos de conhecimento e assimilao musical. Concretamente, a

    compreenso auditiva da sintaxe da msica. Ou seja: a audiao.

    A referncia a uma srie de estudos desenvolvidos, quer no domnio da psicologia

    cognitiva quer no domnio da educao, confirmando o valor educativo da Teoria

    de Aprendizagem Musical de Gordon, torna-se deste modo crucial para a

    fundamentao da abordagem pedaggica que se apresenta no presente estudo.

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    1.1.1. Audio e audiao

    Willems (1990, p. 25).

    A procura de terminologias ou alegorias que permitam explicar e sublinhar, de

    uma maneira clara e concreta, a qualidade do processo de assimilao musical

    um fenmeno constante na reflexo educativa de todo o sculo XX.

    Matthay (1913) que se preocupou com o processo psicolgico da aprendizagem

    dos instrumentistas na poca contempornea a Jaques-Dalcroze aborda o

    problema, sublinhando a diferena entre ouvire escutar: (p. 5).

    Audio interior outra das expresses fulcrais nos discursos pedaggicos

    desenvolvidos ao longo do sculo XX. Willems (1950, 1970, 1976,1977), Orff

    (1961,1974, 1978) sobretudo atravs de Keetman (1974) , Kodly (in Choksy,

    1981), Martenot (in Frega, 1996), usam frequentemente aquela expresso com o

    mesmo sentido de escuta proposto por Matthay.

    Mainwaring (cf. McPherson & Gabrielsson, 2002), um dos precursores da reflexo

    em Psicologia da Msica, insiste, no incio do sculo XX, na expresso thinking in

    sound, enquanto que Jaques-Dalcroze (1916) v no termo eurritmia com o qual

    intitula uma parte fundamental do seu mtodo de ensino a melhor forma de

    designar os princpios subjacentes escuta sonora e cinestsica da msica e,

    deste modo, a manifestao de desempenho musical intrinsecamente

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    interiorizado, do qual depende decisivamente o desempenho da improvisao

    (que constitui outra das componentes essenciais do seu mtodo).

    A aplicao dos conceitos de escuta e de audio interior ao ensino instrumental

    verifica-se ainda em obras didcticas de pedagogos e instrumentistas de meados

    do sculo XX como, entre outros, Gieseking & Leimer (in Aiello & Williamon, 2002)

    e Donald Pond (in Like, Enoch & Haydon, 1996).

    Outros educadores, como Y. Trotter ou mesmo Montessori (in McPherson &

    Gabrielsson, 2002), advogam genericamente, j no incio do sculo XX, o

    princpio de Pestallozi atrs referido facto que, na histria da pedagogia

    musical, lhes fez merecer, ao lado de autores como H. Naef e L. Mason, umestatuto de modernidade e vanguardismo filosfico.

    As abordagens de Jaques-Dalcroze, Willems, Kodly e Orff, todas elas marcadas

    pelas mesmas ideias que inspiraram os seus predecessores, so aplicadas e

    desenvolvidas por um numeroso conjunto de discpulos ao longo da segunda

    metade do sculo XX, alguns dos quais inauguram escolas de msica com os

    seus nomes como forma de homenagear o carcter ainda inovador da obra

    pedaggica dos respectivos mestres. Destacam-se, neste sentido, algunsnomes. Abramsom (1980; 1988; 1992), Steinitz (1988), Aronoff (1979) na linha de

    Jaques-Dalcroze. Chapuis (1990; 2001a e b), Simes (1967; 1990), Macedo

    (1990), Violante (cf. Perdigo, 1990), entre outros, desenvolvendo as ideias de

    Willems, nomeadamente no nosso pas. Hegyi (1979), Choksy (1981), Sznyi,

    (1983), Herboly-Kocsr (1984), Cruz (1995), Torres (que publica em 1998 uma

    abordagem educativa do cancioneiro portugus com base no mtodo de ensino

    hngaro) na linha de Kodly. Keetman (1974) tendo entretanto colaborado com

    Orff na publicao da Orff-Schulwerk(1961;1974) , Martins (a quem se deve a

    adaptao portuguesa da obra atrs citada), Bastin & Van-Hauwe (1976;1977),

    Wuytack (1989; 1990; 1991; 1998), Azevedo & Ferreira (a quem se deve a

    adaptao portuguesa de algumas obras de Van-Hauwe editadas em 2005),

    renovando e aplicando os princpios, quer da Orff-Schulwerk, quer do pensamento

    de Kodly cultura musical dos seus pases.

    Suzuki (1983; 1993), ao desenvolver um mtodo especfico para o ensino de

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    violino, expande os princpios da aprendizagem perceptiva dos sons educao

    genrica da msica (nomeadamente ao ensino de piano), sublinhando a ideia de

    que o processo de assimilao de conhecimento musical semelhante ao da

    lngua materna (mother tongue).

    Kohut (1992) fundamenta o seu nos princpios

    pedaggicos defendidos por Suzuky, salientando as vantagens da aprendizagem

    de ouvido no desenvolvimento da musicalidade e do desempenho dos

    instrumentistas.

    Para qualquer um dos autores citados o conceito de audio interior (ou de

    escuta) pe em destaque um problema que essencial na aprendizagem damsica a compreenso do fenmeno sonoro. Ou seja, mais do que fazer msica

    importa como de facto apreendida ou assimilada pelo sujeito. O destaque dado

    ao canto, ao movimento corporal, a actividades de escuta sonora, improvisao

    antes da aprendizagem da leitura e da escrita musical um exemplo de como,

    para aqueles pedagogos, a maneira como a msica assimilada que

    determinante para o desenvolvimento de nveis ou mbitos de conhecimento e

    realizao musical qualitativamente diferenciados. O texto de Willems (1975),

    atrs citado, particularmente sugestivo.

    claro que as questes em torno de como se desenvolve a audio? se podem

    traduzir numa s pergunta: como se aprende msica?. Se diferentes concepes

    de saber e, portanto, de conhecer msica determinam produtos ou

    desempenhos qualitativamente diferenciados; se ao nvel do contacto com o

    som ou das vivncias perceptivas com os problemas dele resultantes que se

    fundamenta um modo de estarmusicalmente com a msica de ser msico , de

    que falam ento, concretamente, pedagogos e msicos quando se referem, nos

    seus manuais ou textos educativos, audio e criatividade musical? O que

    significa desenvolver a musicalidade tema caro a qualquer programa de ensino

    artstico e como desenvolv-la? Qual a relao com o saber msica,

    nomeadamente em termos prticos, e qual o papel do conhecimento terico no

    contexto deste processo? Qual a relao entre o saber ouvir, o saber

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    performativo, o saber criativo e o saber teoria musical? O que , enfim, saber

    msica?

    A obra pedaggica desenvolvida pelos pedagogos do sculo XX foi, toda ela,

    concebida com o objectivo de resolver as questes levantadas. justo referir que,

    de um modo geral, prestou um valioso contributo renovao e desenvolvimento

    da educao musical em vrias partes do mundo. No entanto, a realidade escolar

    dos conservatrios (ou outras instituies com tradio de ensino semelhante)

    continua a dar sinais de que existem problemas de aprendizagem que ainda no

    se conseguiram resolver. As dificuldades de desempenho ao nvel da

    improvisao e genericamente do pensamento e expresso criativos , da

    audio, sobretudo ao nvel harmnico, bem como a iliteracia notacional so os

    principais exemplos de problemas verificados ainda hoje nos alunos,

    nomeadamente em Portugal.

    Segundo alguns estudiosos esta situao pode ser explicada, em grande medida,

    pelo facto da maioria das abordagens pedaggico-didcticas no basear os seus

    mtodos de aprendizagem pelo menos de forma suficientemente sistematizada

    numa teoria psicolgica e sequencial dos processos envolvidos no acto de

    ouvir. Ser por estas razes que autores como Waltters (1992) ou Gordon

    (2000b) argumentam que o conceito de mtodo com o qual se identifica o

    trabalho de Jaques-Dalcroze, Willems, Kodly, Orff e Suzuky no suficiente,

    em termos educativos, para explicar e resolver os problemas cognitivos

    decorrentes da audio interior ao longo das vrias fases do processo de

    realizao e aprendizagem musical. Sem dvida que a questo do

    desenvolvimento dos processos de compreenso musical constituiu o centro

    nevrlgico da reflexo de qualquer um daqueles pedagogos. A importncia que

    todos depositaram ao que se ensina, sobretudo durante as fases iniciais de

    escolaridade musical, no oferece dvidas quanto ao que implcita ou mesmo

    explicitamente era defendido em termos de sequncia de aprendizagem.

    Contudo, a resposta ao quando e porque se aprende que a obra educativa

    daqueles metodlogos no chega a vias de sistematizao pelo menos ao

    nvel de uma teoria psicolgica facto que explica o apontamento crtico que lhes

    dirigido.

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    claro que para alm desta insuficincia de fundamentao terica e psicolgica

    dos mtodos de ensino musical, outras razes se podem argumentar para o

    insucesso educativo dos alunos, nomeadamente a diversidade de perfis dos

    professores em termos artsticos, cientficos e pedaggicos. Parece ser este,

    alis, um dos problemas mais pertinentes da educao, no apenas da msica

    como de qualquer outra rea do conhecimento. A julgar pela histria das reformas

    governativas e das prprias intenes individuais de mudana, no existem sinais

    suficientemente convincentes de que alguma vez venha a ficar resolvido, pelo

    menos escala macro-social e poltica das organizaes educativas.

    Mursell (1971) um dos primeiros autores a procurar responder problemtica

    da aprendizagem musical com base quer na fundamentao cognitiva dos

    processos de assimilao, quer no princpio de sequncia. Convicto de que o

    conceito de audio interior no suficiente para explicar a qualidade dos

    processos perceptivos envolvidos na realizao musical, afirma que

    (p. 203). Denomina a este modo de organizar e seleccionar as impresses

    auditivas em padres sonoros de apreenso musical.

    Para o autor apreender msica uma questo que est para alm da percepo

    propriamente dita. Envolve sobre esta ltima processos de seleco, triagem,

    organizao. De acordo com as suas prprias palavras, apreender msica

    (p. 50). Com base nesta ideia o

    autor chega a comparar as funes do ouvido s do microfone. Explica a ideia

    com base no seguinte exemplo: num acto de performance realizado em

    circunstncias de grande distrbio sonoro situao frequente, alis, em meios e

    espaos urbanos .Para reforar a imagem sugerida, acrescenta que:

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    which is obviously of the most vital importance for the apprehension of music>> (p.

    52).

    Ou seja, para Mursell, ainda que a percepo sonora (aural demands) seja o

    fundamento psicolgico do prprio conhecimento musical, para se compreender

    msica no basta recolher, arquivar ou imitar percepes (alturas, duraes,

    intensidade, forma). Mais do que isso, a forma como se seleccionam, organizam

    e representam cognitivamente (mind) essas percepes que traduz o facto de se

    estar ou no a atribuir significado musical ao que se ouve como a identificao

    da estrutura tonal (meldico-harmnica), rtmica (funes mtricas e temporais),

    ou mesmo tmbrica (textura) de uma obra. A noo de padro sonoro neste

    contexto, enquanto unidade perceptivamente organizada pelo sujeito,

    fundamental para explicao do fenmeno. Como ser oportunamente analisado,

    esta maneira de perspectivar o processo de percepo e compreenso musical

    contm os princpios psicolgicos daquilo que ir ser utilizado mais tarde, por

    outros autores, para fundamentar um conceito que crucial nesta dissertao: a

    aprendizagem da sintaxe musical. Com efeito, tendo por base algumas teorias

    contemporneas, a funo dos padres sonoros, tal como defendida por

    Mursell, pode ser comparvel ao papel que as palavras ocupam no

    desenvolvimento da significao sintctica da linguagem (cf. 1.1.3.).

    Apesar desta analogia no estar explicitada, perfeitamente verosmil suspeitar

    que a explicao para as dificuldades dos alunos em domnios como a audio

    harmnica ou a improvisao pudesse ser fundada, pelo autor, na questo da

    qualidade dos processos de significao musical. Isto , na incapacidade em

    organizar as percepes sonoras em unidades ou padres cujo significado seria,

    em termos cognitivos, essencial para a atribuio de sentido sintctico (tonal,

    rtmico, tmbrico) msica que esto a ouvir, recordar ou criar.

    Este facto encontra-se claramente evidenciado alis nas suas consideraes

    acerca de outros problemas de desempenho, nomeadamente a leitura e a escrita

    notacional. Como refere o autor

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    thought by providing a symbolism for what we hear or image>> (p. 223). Ou seja:

    a ideia segundo a qual a msica (que apreendemos e representamos

    cognitivamente) que d sentido ou significado s notas ou figuras simbolizadas

    graficamente na partitura e no o contrrio algo a inferir do pensamento de

    Mursell e que traduz, mais uma vez, o seu vanguardismo filosfico relativamente

    s questes de significao musical levantadas por alguns psiclogos e

    educadores contemporneos (Azzara, 1993; Aiello, 1994; Gordon, 2000b).

    Efectivamente a ideia de que o desenvolvimento dos processos de leitura e

    escrita musical est dependente da maneira como os sujeitos compreendem

    perceptivamente () os smbolos

    notacionais () outro

    dos dados a retirar da mais recente investigao em psicologia da msica e que

    evidencia, como ser analisado a seguir, aquele que constitui ainda hoje o

    principal problema do ensino musical: a sequncia dos processos de

    aprendizagem (cf. Sloboda, 1993; Aiello, 1994; Gordon, 2000b; McPherson &

    Gabrielsson, 2002).

    Em face do exposto, compreende-se que para Mursell quer a memria, quer a

    tcnica performativa devam ser perspectivadas no como um fim artstico em si,

    mas antes como dimenses de desempenho musical que, no plano cognitivo,

    esto ao servio das necessidades de significao do discurso sonoro. A sua

    definio de tcnica performativa neste contexto sugestiva: (p. 250). A ideia de que (p. 223) estende-se a outras dimenses da

    aprendizagem, nomeadamente notao, anlise e teoria musical. Em suma: a

    ideia sabiamente expressa por Willems segundo a qual, atrs citada parece ser uma maneira diferente de

    exprimir um pensamento gmeo entre os dois autores.

    No domnio das prticas educativas relativas anlise e teoria da msica, Mursell

    menciona a perspectiva de Helmholtz para explicar alguns princpios educativos

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    relativos quela questo. Note-se que para Helmholtz, a teoria musical (enquanto

    compndio de regras destinadas a sistematizar a composio ou os fenmenos

    musicais e sonoros) um instrumento de reflexo eminentemente musical. Isto :

    deve ser elaborada de forma a demonstrar que os elementos que se props

    analisar tm origem nas caractersticas perceptivas do rgo auditivo. Mursell

    serve-se desta ideia para explicar, com base em elementos psico-fsicos, uma

    srie de aspectos da percepo auditiva.

    Ao tentar situar e caracterizar filosoficamente o pensamento de Mursell na histria

    da pedagogia musical do sculo XX, no demais frisar aquele que constitui o

    seu mais valioso e pioneiro contributo epistemolgico. Sem dvida que o que faz

    legar ao autor o protagonismo educativo relativamente a todos os outros

    pedagogos a reflexo sobre a questo da sequncia da aprendizagem. Como

    se analisar mais adiante, o conceito de cyclical sequence ao qual se associam

    as noes de ou (Mursell, 1958, p. 156) determinante para a compreenso

    daquilo que, para o autor, constitui a chave para a reflexo sobre as questes de

    assimilao musical ao longo do desenvolvimento dos mais diversos mbitos de

    realizao artstica (cf. alnea 1.2.1.).

    Apreenso no sentido de uma total envolvncia dos sujeitos no processo de

    significao do discurso musical , em sntese, a palavra que para o autor

    melhor traduz a qualidade de conhecimento implicada na audio musical dos

    instrumentistas, cantores, compositores. Em termos educativos, aprender a

    apreender msica constitui o objectivo fundamental de qualquer curricula de

    msica, sem a concretizao do qual no pode ser plenamente desenvolvido

    aquele que, para Mursell, parece ser um dos fins ltimos da realizao artstica

    um encontro emocional e esttico. Isto significa, por conseguinte, que para o

    desenvolvimento do saber dos msicos, compreenso musical e musicalidade

    andam de mos dadas. Isto , partilham do mesmo projecto de chegada: a

    realizao do pensamento esttico.

    A ideia de que a qualidade dos produtos de desempenho de um msico est

    dependente da qualidade dos processos de atribuio de significado musical aos

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    sons que apreende e experiencia deu origem ao conceito de audiao de Gordon.

    Audiao a traduo proposta na verso portuguesa da obra Music Learning

    Theoryde Gordon (2000b) para o termo audiation conceito criado pelo autor em

    1980. Significa a capacidade de ouvir e compreender musicalmente quando o

    som no est fisicamente presente.

    O termo audiao que apesar do seu carcter jovem j uma referncia numa

    srie de estudos cientficos e manuais didcticos resulta da incontornvel

    subjectividade terminolgica que a simples palavra audio encerra.

    certo que expresses como audio interior no sentido de uma escuta

    qualitativamente diferenciada da audio quotidiana desenvolvida por qualquerouvinte ou thinking in sound encerram um significado terminolgico que se

    aproxima da ideia de compreenso musical definida atravs do conceito de

    audiao. A audio interior que, como se viu, foi insistentemente utilizada por

    Matthay, Jaques-Dalcroze, Willems, Kodly, Gieseking e Leimer, Orff, entre

    outros, faz parte do vocabulrio pedaggico usado ainda hoje por muitos

    professores de msica. Contudo, ainda que as intenes terminolgicas dos seus

    autores tivessem sido semelhantes s que Gordon prope para o conceitoaudiao, a interpretao a que a expresso audio interiortem sido submetida

    ao longo das prticas educativas susceptvel de criar alguma ambiguidade

    relativamente qualidade dos processos de assimilao em causa. Gordon

    explica-o da seguinte maneira: pode haver audio interior por processos de

    imitao, memorizao mecnica, sem que haja compreenso musical no

    sentido de um conhecimento perceptivo dos sons. Por exemplo:

    (Rodrigues, 2003, p. 72). Assim como se pode cantar interiormente a melodia que

    se memorizou e se est a executar sem se compreender, por exemplo, qual a

    relao de cada altura sonora com a sua funo e contexto harmnico. Este e

    outros casos semelhantes so alis recorrentes em situaes de ensino. A

    maioria das vezes pelo facto de os educadores estarem convencidos de que a

    audio interior resolve a mais profunda e intrnseca compreenso da msica.

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    Thinking in sound parece ser uma das expresses que melhor se aproxima do

    conceito de audiao. Para Mainwaring significa a capacidade mental de se

    produzir som imaginado quando se est a tocar de ouvido, a improvisar ou a ler

    uma partitura (cf. McPherson & Gabrielsson, 2002, p. 103). Tal como o termo

    audiao, refere-se a um processo que envolve uma capacidade de ouvir para

    dentro, um evocar a msica entretanto interiorizada e sem o qual no possvel

    compreender o que se percepciona, executa ou realiza aos mais variados nveis

    de exigncia e desenvolvimento reflexivos. (O autor chega a referir que um

    processo que se desenvolve prvia e independentemente a qualquer aco

    performativa baseada ou no na leitura.) Contudo, a definio com base na

    imagstica auditiva pode, tal como a audio interior, criar alguma ambiguidadeterminolgica, sobretudo quando aplicada ao processo de descodificao

    notacional no contexto da leitura musical. Em alguns casos, parafraseando

    Gordon (2000b), pode implicar a ideia de que se est a (p. 22).

    A ideia de seleco e organizao implicada no termo apreenso anda tambm

    bastante prxima do conceito de audiao. No entanto, no suficientemente

    concreta e abrangente para explicar o processo de antecipao e predio sonora

    exigido, por exemplo, pela criao de msica.

    Cr-se que o fenmeno de transferncia e generalizao permite compreender a

    qualidade e tipo de processo de conhecimento que subjacente manifestao

    de audiao aquando da realizao de determinado desempenho musical. A

    capacidade de tocar de ouvido como por exemplo harmonizar um Baixo de

    uma melodia , de ler primeira vista, de escrever um ditado, de tocar ao estilo

    de Mozart ou de improvisar sobre um standard conhecido, so exemplos de

    competncias para cuja realizao no suficiente, como se analisou, ter-se

    decorado msica, nem to-pouco repetido insistentemente exerccios de tcnica

    ou de notao. A qualidade dos processos envolvidos numa e noutra situao,

    exigindo ao aluno a inferncia de vocabulrio musical previamente interiorizado,

    pode ser comparada alis ao contexto de aprendizagem de uma lngua.

    diferente o produto de aprendizagem resultante da reproduo de uma frase ou

    de uma cpia de um texto, do que evidenciado por um dilogo espontneo ou

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    por uma composio escrita. No primeiro caso, o aluno demonstra que capaz de

    imitar correctamente o discurso oral e escrito, enquanto que no segundo fica

    evidenciado que compreendeu e inferiu as regras gramaticais e sintcticas da

    lngua, porque as transferiu e generalizou para novas situaes discursivas.

    Outro dos aspectos que ajuda a compreender o conceito de audiao o papel

    da memria. Para o autor, a memria uma competncia determinante para a

    realizao musical quando desenvolvida ao servio da audiao. Distingue-a,

    por estas razes, daquilo que denomina como memorizao mecnica que,

    relativamente anterior, implementada como uma simples finalidade educativa

    ou virtuosstica, sobrepondo-se aos princpios da compreenso e,

    consequentemente, da expresso criativa da msica.

    O conceito de memria enquanto ferramenta auxiliar do prprio pensamento e

    conhecimento musical expresso, alis, por vrios psiclogos contemporneos.

    Aiello & Williamon (2002), interessados em compreender os mecanismos

    psicolgicos da memria, defendem que , acrescentando que

    (p. 167).Sloboda (1993), chamando a ateno para a qualidade dos processos envolvidos

    no desenvolvimento da audio, da performance e da composio, acrescenta:

    (p. 3).

    Pressing (2000), indo ao encontro dos autores anteriores, faz questo em

    sublinhar a diferena entre declarative memoryeprocessual memory. Enquanto a

    primeira o resultado do reforo depositado no produto de desempenho, a

    segunda resulta de uma focalizao sobre o processo de conhecimento,

    mormente enquanto ferramenta de auxlio para a resoluo de problemas

    musicais e performativos.

    Ou seja, o destaque dado ao como se memoriza e no ao que se memoriza a

    questo levantada (cf. Cap. II). Do ponto de vista da teoria de Gordon, so estes

    dois processos de memorizar msica que permitem estabelecer a diferena entre

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    o que produto resultante da audiao e o que fruto de memorizao

    puramente mecnica.

    justo mencionar que esta forma de perspectivar a memria musical j

    verificada em vrios textos pedaggicos da primeira metade do sculo XX.

    Willems (1970, p. 119) por exemplo, dando continuidade s ideias defendidas por

    Jaques-Dalcroze, faz questo em destrinar as memrias instrumentais (tctil e

    muscular) das memrias musicais propriamente ditas (auditiva, rtmica,

    mental e intuitiva). Estas ideias parecem ser fulcrais, alis, para o pensamento

    pedaggico desenvolvido posteriormente por Suzuki.

    A expresso do clebre pianista e maestro americano L. Fleisher uma sntesesugestiva daquilo que, na linha dos autores citados, constitui para Gordon o papel

    da memria no processo de audiao: (in Aiello & Williamon, 2002, p. 175).

    Refira-se ainda que na histria do pensamento musical e musicolgico, so

    velhos os debates acerca do valor artstico de posturas sustentadas e centradas

    na performance, no virtuosismo da execuo ou na memria e tcnicareprodutiva. O pianista e musiclogo Schenker (2000), convicto de que a simples

    reproduo mecnica da msica no suficiente para garantir e perpetuar o valor

    da msica enquanto processo eminentemente criativo, afirmava no incio do

    sculo XIX que apenas a compreenso intrnseca dos elementos que constituem

    o contedo musical da obra escrita tal como exigida e realizada pelos

    compositores ao longo do processo de criao justifica a existncia ou definio

    do conceito de performance enquanto dimenso essencialmente artstica. Enfim,

    para o autor, o carcter suprfluo em que pode ficar reduzida a simples tarefa de

    reproduo de um texto explicava, por si, a inconsistncia ou fragilidade da

    performance enquanto conceito sustentado pelos valores que fundamentam o

    processo capital e intrnseco da realizao artstica: a criao. Expressava-o nos

    seguintes termos:

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    a score is sufficient to prove the existence of the composition. The mechanical

    realization of the work of art can thus be considerer superfluous>> (2000, p. 3).

    A questo da envolvncia do instrumentista com o prprio processo de

    construo e descoberta das ideias legadas no papel pelo criador parece ser o

    ponto fundamental da discusso na abordagem de Schenker. Sobretudo pelo que

    esse princpio significava em termos de definio das funes artsticas do

    intrprete face obra escrita: um recriador do que ficou silenciado no papel. Ou

    se se quiser, um pensador capaz de fazer reflectir para a audincia o que est

    para alm do registo da notao: o esprito crtico e de descoberta que moveu o

    obreiro das ideias sonoras das perguntas e respostas ou das meras

    suposies, nem sempre tornadas evidentes atravs de uma simples leitura.

    um facto que o pensamento do autor tem razes em algumas ideias defendidas

    por nomes clebres da Histria da Msica. Beethoven por exemplo, sublinhando o

    papel da criao enquanto reflexo da prpria comunho ntima dos

    instrumentistas com o processo sonoro e musical, dizia numa das cartas que

    escreveu a Tomaschek, em 1814: (in Schenker, 2000, p. 85).

    Em face do que se exps, resta por fim equacionar quais os contributos do debatepsicolgico e filosfico em torno da audio e audiao para o problema

    levantado na presente dissertao.

    O principal que parece no oferecer dvidas quanto ao valor educativo, quer da

    criatividade quer da compreenso da msica nos curricula. Obviamente que a

    pertinncia do assunto para a reflexo sobre as dificuldades de realizao

    musical, nomeadamente a improvisao, relaciona-se desde logo com a procura

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    de respostas para aquilo que, em termos de aprendizagem, parece ser a chave

    do problema: a qualidade dos processos de assimilao musical dos sujeitos.

    justo afirmar que, sob o ponto de vista da histria da pedagogia da msica, o

    interesse e a preocupao por este tipo de questes constitui, por si, o marco de

    referncia para o desenvolvimento da reflexo educativa contempornea, e que a

    criao por Edwin Gordon do conceito de audiao sintetiza a dimenso

    epistemolgica do conjunto de contributos encetados, ao longo do sculo XX,

    para esse empreendimento. A sntese capital encontra-se na sua teoria de

    aprendizagem musical. Ou seja: no significado psicolgico que acaba por revestir,

    enquanto ferramenta terica, para a construo de um paradigma de reflexo

    pedaggica, sem o qual dificilmente se consegue negligenciar ou dar resposta a

    problemas fundamentais da aprendizagem musical, como o que se debate na

    presente dissertao: a compreenso harmnica.

    Efectivamente, a definio do conceito de audiao lega pedagogia da audio,

    desenvolvida desde o sculo XIX, a fundamentao psicolgica necessria para

    se responder pergunta como se aprende a ouvir e compreender msica?. A

    substituio do termo mtodo de ensino por teoria de aprendizagem pe sem

    dvida em evidncia o carcter renovador da abordagem de Gordon no contexto

    de qualquer um dos outros contributos pedaggicos prestados reflexo

    educativa da msica ao longo do sculo XX, desde Jaques-Dalcroze a todos os

    educadores e investigadores da actualidade.

    Parece ficar claro, portanto, que a improvisao, sendo ela prpria a manifestao

    de conhecimento interiorizado pelo sujeito afinal de contas o produto ou espelho

    da aco conseguida pelos obreiros do ensino , dificilmente ser compreendida

    e implementada no terreno escolar e curricular se estes no se questionarem,

    primeiro, sobre como se aprende a audiar msica?.

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    1.1.2. Audiao: estdios e tipos

    Sloboda (1993, p. 69)

    Regresse-se definio que Gordon (2000b) prope para o processo de

    audiao: (p. 6).

    Pela leitura do excerto, possvel constatar que o processo de audiar implica um

    desenvolvimento ou evoluo qualitativos, quanto mais no seja porque, desde

    que o sujeito assimila at que compreende msica, h um percurso que no

    concretizado ou absorvido de forma imediata. Em termos cognitivos este percurso

    , digamos, a distncia entre a percepo dos estmulos sonoros e a sua

    representao organizada em padres ou estruturas musicais. Em sntese: a

    distncia entre a audio imediata de um som que ocorre aqui e agora e a

    atribuio de significado musical a esse mesmo som acontecimento que pode

    no estar a ocorrer no mesmo momento. Para o autor, esta distncia de

    acontecimentos aquilo que marca a diferena entre um singular ouvinte e um

    msico que audia ou se se quiser, entre um msico que apenas percepciona e

    memoriza mecanicamente um conjunto de sons e um msico que compreende o

    significado musical dos sons que percepciona ou evoca atravs da memria.

    A compreenso de msica no , contudo, um fenmeno linear. Isto : no se

    manifesta no msico apenas de uma maneira. Quando um msico executa uma

    dada obra por memria ou por leitura, improvisa ou compe, escreve por memria

    ou por ditado musical, ou simplesmente ouve, a forma como se processa a

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    compreenso pode manifestar diferentes nveis de atribuio de significado

    musical. A atribuio de significado musical a uma obra relaciona-se com a

    qualidade ou grau de complexidade com que se manifesta a compreenso do

    sujeito. Isto : traduz o seu estdio de audiao. Os estdios de audiao

    representam portanto nveis diferentes de desenvolvimento ou conscincia

    musical. Por este facto so sequenciais ou hierrquicos (v. Quadro 1.1.). Gordon

    distingue-os dos tipos de audiao. Segundo o autor, os tipos de audiao

    apenas representam diferentes modos de desempenho, atravs dos quais os

    sujeitos realizam a compreenso de msica, seja qual for o estdio de audiao

    em que se encontram (v. Quadro 1.2.). A relao entre os estdios de audiao e

    os tipos de audiao explicada por Gordon da seguinte maneira: (p. 28).

    Quadro 1.1.: Estdios de Audiao (Gordon, 2000b, p. 34)

    Estdio 1 Reteno momentnea

    Estdio 2 Imitao e audiao de padres tonais e rtmicos, e reconhecimento e identificaode um centro tonal e dos macrotempos

    Estdio 3 Estabelecimento da tonalidade e da mtrica, objectiva e subjectiva

    Estdio 4 Reteno, pela audiao, dos padres tonais e rtmicos organizados

    Estdio 5 Relembrana dos padres tonais e rtmicos organizados e audiados noutras peas

    musicais

    Estdio 6 Antecipao e predio de padres tonais e rtmicos

    Como se verifica, existem tipos de audiao e estdios de audiao cujas

    caractersticas, apesar de diferentes, facilmente se confundem ou identificam. Por

    exemplo, a improvisao e a composio so tipos de manifestao de audiao

    que, dada a sua natureza, traduzem um determinado estdio de desenvolvimento

    de compreenso musical. Igualmente, escrever implica ler, assim como compor

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    implica escrever ou, pelo menos, recordar o que se comps. Gordon explica

    esta aparente incongruncia da seguinte maneira: enquanto os estdios de

    audiao predizem e manifestam o nvel ou fase de compreenso musical em que

    se encontra o aluno (independentemente do grau de desempenho, tcnico ou

    performativo, subjacente a essa manifestao), os tipos de audiao nem sempre

    predizem ou traduzem o estdio de compreenso. Escutar, executar, ler ou

    escrever msica, por exemplo, constituem tipos de audiao que, quer no plano

    de contedos quer de competncias, podem manifestar diferentes estdios de

    compreenso musical. Por si mesmos nada traduzem ou predizem, portanto,

    quanto ao estdio de audiao em que se encontra o aluno.

    Quadro 1.2.: Tipos de Audiao (Gordon, 2000b, p. 29)

    Tipo 1 Escutar msica familiar ou no-familiar

    Tipo 2 Ler msica familiar ou no-familiar

    Tipo 3 Escrever msica familiar ou no-familiar ditada

    Tipo 4 Recordar e executar msica familiar memorizada

    Tipo 5 Recordar e escrever msica familiar memorizada

    Tipo 6 Criar e improvisar msica no-familiar, durante a execuo, ou em silncio

    Tipo 7 Criar e improvisar leitura de msica no-familiar

    Tipo 8 Criar e improvisar escrita de msica no-familiar

    Veja-se atravs do seguinte exemplo: o aluno A, que est a tirar de ouvido a

    msica que executa no piano, demonstra que apenas capaz de reconhecer e

    identificaras funes tonaisda msica (Estdio 5), apesar de a executar com um

    nvel tcnico de excelncia. O aluno B, por sua vez, executa a mesma pea com

    um grau tcnico inferior, mas demonstra que capaz de antecipar e predizer

    aquela mesma estrutura de progresso harmnica, manifestando-o atravs de

    uma improvisao sobre o tema (Estdio 6).

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    Outro exemplo, neste caso relativo leitura notacional, pode ser extrado das

    prprias consideraes de Sloboda, acima citadas. Efectivamente a competncia

    para ler msica (assim como para escrever) pode demonstrar diferentes estdios

    de compreenso notacional. Ser capaz de ler uma msica familiar diferente de

    ser capaz de ler uma pea no-familiar ( primeira vista). Assim como ler atravs

    do canto ou ler com auxlio de um instrumento, so desempenhos que podem

    traduzir qualidades diferentes de pensamento ou compreenso sonora.

    Quando um aluno l correctamente msica no-familiar atravs do canto

    demonstra que no apenas consegue d