204
I OZÉAS CORRÊA LOPES FILHO INQUÉRITO POLICIAL – UMA ALTERNATIVA DEMOCRÁTICO- DISCURSIVA PARA O MODELO BRASILEIRO Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Ciências Jurídicas e Sociais. Orientador: Professor Doutor Gilvan Luiz Hansen Niterói, 2011 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRAUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO

Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

I

OZÉAS CORRÊA LOPES FILHO

INQUÉRITO POLICIAL – UMA ALTERNATIVA DEMOCRÁTICO-DISCURSIVA PARA O MODELO BRASILEIRO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Ciências Jurídicas e Sociais. Orientador: Professor Doutor Gilvan Luiz Hansen Niterói, 2011

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRAUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO

Page 2: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

II

LOPES FILHO, Ozéas Corrêa

Inquérito Policial, Direitos Fundamentais, Justiça Social e Cidadania – uma alternativa democrático-discursiva para o modelo brasileiro / Ozéas Corrêa Lopes Filho /, UFF / Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito. Niterói, 2011. 148 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais) – Universidade Federal Fluminense, 2011. 1. Interdisciplinaridade. 2. Justiça Penal. 3. Direitos Humanos, Justiça Social e Cidadania. I. Dissertação (Mestrado). II. Título

Page 3: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

III

OZÉAS CORRÊA LOPES FILHO

INQUÉRITO POLICIAL – UMA ALTERNATIVA DEMOCRÁTICO-

DISCURSIVA PARA O MODELO BRASILEIRO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Ciências Jurídicas e Sociais.

Aprovada em 23 de agosto de 2011

BANCA EXAMINADORA: ________________________________________________________________

Prof. Dr. Gilvan Luiz Hansen

________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Letícia Veloso

________________________________________________________________ Prof. Dr. Elve Miguel Cenci

Niterói, 2011

Page 4: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

IV

Dedicatória

Cinco pessoas, cinco razões:

Companheirismo;

Dedicação;

Inspiração;

Saudade;

Direção;

Modelo;

Amor.

Page 5: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

V

Agradecimentos

Ao amigo Gilvan Luiz Hansen

“O capitão! meu capitão! nossa viagem medonha terminou;

O navio resistiu a todas as tormentas, o prêmio que perseguimos foi ganho;”

Walt Whitman – 1865

Page 6: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

VI

RESUMO

O presente trabalho se propõe a discutir, a partir de uma perspectiva discursiva do direito, o significado e a legitimidade do inquérito policial enquanto instrumento de viabilização da justiça social. Isso porque, embora o inquérito policial não componha, em sentido estrito, o processo judiciário, nominado pela linguagem sistêmica de procedimento pré-processual – afirmação que com o desenvolver das críticas, será negada e demonstrada através de sua facticidade – o instrumento é parte integrante da ação penal, interferindo diretamente no desenvolvimento e até no desfecho das lides, todavia, por estar alicerçado em pré-conceitos dogmáticos, não possibilitam ao investigado acesso a instrumentos protetivos, constantes do ordenamento constitucional. Não só como instrumento de produção de conhecimentos, que vise à ação coercitiva do Estado, em face de infratores da lei penal, o inquérito, também se presta para conservar as relações do poder estabelecido, ainda que a linguagem oficial não assuma essa faceta, entretanto, por sua natureza, características e essência, observados através de análise crítica, possui escamoteada condição ambivalente; numa sociedade estratificada em classes, onde resta aos menos favorecidos a obediência e o cumprimento inconteste das normas postas, carentes de legitimação geral, o inquérito acentua as exclusões sociais, bem como, identifica de maneira seletiva os inimigos do poder. Resquício e remanescente de concepções estatais pré-modernas, ou então de concepções estatais modernas de cunho totalitário, o inquérito policial conserva um caráter inquisitorial que, por suas características, não só retarda o caminhar emancipatório da sociedade brasileira, como põe em risco a proteção dos direitos humanos e da cidadania no Estado Democrático de Direito.

Inquérito policial; alternativa democrática; processo penal; ação comunicativa; teoria discursiva; Jürgen Habermas;

Page 7: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

VII

SUMMARY

This paper aims to discuss, from a discursive perspective of law, the meaning and legitimacy of the police inquiry as a tool for enabling social justice. That's because while the police inquiry did not compose in a strict sense, the judicial process, nominated by the systemic language of the pre-trial – a statement that with the development of criticism, will be denied, and demonstrated through their facticity – the instrument is part of the prosecution, interfering directly in the development and even the outcome of disputes, however, by being grounded in dogmatic preconceptions, does not allow access to investigate the protective instruments listed in the constitutional system. Not only as a tool for knowledge production, aimed at the state enforcement action in the face of criminal law violators, the inquiry also lends itself to conserve power relations established, although the official language does not take that aspect, however by their nature, characteristics and essence, observed through critical analysis, has concealed ambivalent condition, a class-stratified society where the underprivileged remains the unquestioned obedience and compliance with the rules made, lacking legitimacy general, the survey highlights the exclusions social as well as selectively identifies the enemies of power. And the remaining vestige of pre-modern conceptions state, or modern conceptions of nature totalitarian state, the inquiry keep a character that inquisitorial, given its characteristics, not only retards the emancipatory walk of brazilian society, and puts at risk the protection of human rights and citizenship in a democratic state.

Police inquiry; democratic alternative; criminal proceedings; communicative action, discourse theory, Jürgen Habermas;

Page 8: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

VIII

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 01

I PARTE APRESENTAÇÃO CRÍTICA DO MODELO

1. O INQUÉRITO POLICIAL ATRAVÉS DA HISTÓRIA 08 1.1 ANTIGUIDADE 08 1.2 IDADE MÉDIA 11 1.3 BRUXAS, DEMONOLOGIA E ELEIÇÃO DO INIMIGO 13

2. O INQUÉRITO POLICIAL NO BRASIL 16 2.1. GÊNESE PORTUGUESA 16 2.2. CRONOLOGIA LEGISLATIVA 18 2.3. A HISTÓRIA DO INQUÉRITO POLICIAL A PARTIR DE 1942 21

3. O CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS 28

4. DE QUAL DEMOCRACIA SE ESTÁ FALANDO? 32

5. SISTEMA ACUSATÓRIO E SISTEMA INQUISITORIAL 36

6. A FACTICIDADE DO INQUÉRITO POLICIAL NO BRASIL 40 6.1. CARACTERÍSTICAS 43

7. QUESTÕES PULSANTES NO INQUÉRITO POLICIAL 51 7.1. JUSTA CAUSA 51 7.2. VERIFICAÇÃO DA PROCEDÊNCIA DE INFORMAÇÕES 52 7.3. FORMALISMO 56 7.4. SISTEMA ÚNICO E INDICIAMENTO 60 7.5. A ILEGALIDADE DA PROVA 63 7.6. O MEDO, O MERCADO E A MIDIATIZAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL 67

Page 9: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

IX

II PARTE O DIREITO, O INQUÉRITO E A NECESSIDADE DE SUA TRANSFORMAÇÃO 8. PODER, INIMIGOS E CONHECIMENTO 79 8.1 “SABER É PODER” 79 8.2 OS INIMIGOS DO PODER 82 8.3 O SABER, O PODER DOMINANTE E O INQUÉRITO POLICIAL 84 8.4 OBVIEDADE, DOGMÁTICA E FORMALISMO 87 9. INQUÉRITO POLICIAL E A LEGITIMAÇÃO DA CONFIANÇA 90

10. DIREITO E SOLUÇÃO DE CONFLITOS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 96

11. O INQUÉRITO POLICIAL NO CENÁRIO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 99 11.1. O INQUÉRITO POLICIAL E OS PRESSUPOSTOS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 103 11.2. PARIDADE DAS ARMAS 105 11.3. GARANTIAS DA PROTEÇÃO JURÍDICA INDIVIDUAL 108 11.4. A DISCRICIONARIEDADE E O CONHECIMENTO 112 11.4.1 Discricionariedade 112 11.4.2 Conhecimento 114

11.5. MAIS QUE UM MERO PROCEDIMENTO 117 11.6. ESTRATÉGIA DE LEGITIMAÇÃO 120 CONCLUSÃO: O INQUÉRITO POLICIAL NA PERSPECTIVA DISCURSIVA 126 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 138 1. BIBLIOGRAFIA CITADA 138 2. BIBLIOGRAFIA NÃO CITADA 143 3. LIVROS E ARTIGOS RETIRADOS DA INTERNET 144 4. DEMAIS PESQUISAS NA INTERNET 145 ANEXOS 149 1. RESOLUÇÃO SEPC 605 149 2. RESOLUÇÃO SEPC 092 166 3. INSTRUÇÃO NORMATIVA 11 168 4. DADOS SISVIP 2004 195

Page 10: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

X

ABREVIATURAS UTILIZADAS ADPF – Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal ADEPOL – Associação dos Delegados de Polícia AP – Autoridade policial CPP – Código de processo Penal CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil DPF – Departamento de Polícia Federal GI – Grupo de investigação IN – Instrução Normativa IP – Inquérito policial MP – Ministério Público PC – Polícia Civil RO – Registro de ocorrência SSDPF/RJ – Sindicato dos Servidores do Departamento de Polícia Federal no Estado do Rio de Janeiro VPI – Verificação da Procedência de Informações

Page 11: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

XI

“E um fato novo se viu Que a todos admirava: O que o operário dizia

Outro operário escutava. E foi assim que o operário Do edifício em construção

Que sempre dizia sim Começou a dizer não.

E aprendeu a notar coisas A que não dava atenção...”

(Vinícius de Moraes, “Operário em Construção”, 1956)

Page 12: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

1

INTRODUÇÃO Conforme rol exaustivo, constante no artigo 144 da Constituição da República

Federativa do Brasil, a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, sendo exercida pela polícia no que concerne a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. A atividade policial pode ser genericamente classificada, como preventiva e repressiva; a primeira encarregada de evitar o acontecimento criminoso e garantir a ordem pública, atuando preventivamente e de forma ostensiva (Polícia Rodoviária Federal e Polícia Militar).

Quanto a segunda, a polícia judiciária, conforme o sistema federativo adotado no Brasil, esta é organizada por lei nos Estados e no âmbito federal, cabendo, conforme atribuição constitucional, investigar as infrações penais que lhes forem destinadas, a exceção dos chamados crimes militares, que serão apurados pelas respectivas corporações militares, através de polícias próprias.

Apesar de seu nome, a polícia judiciária, não é órgão ligado ao Poder Judiciário, estando afeta ao Poder Executivo a que estiver ligado na federação, sendo nominada de polícia civil, de âmbito estadual ou federal.

Dentre as precípuas atribuições da polícia judiciária, duas são elencadas com destaque: 1) de polícia investigativa; 2) de órgão encarregado no atender ao Poder Judiciário, no cumprimento de suas determinações, como nos casos de mandados de buscas, prisões cautelares, diligências ordenadas etc.. Todavia, não há que se falar em duas polícias, mas em diferenciação de atividades realizadas por um mesmo órgão da administração pública.

No curso da atividade investigatória, a polícia judiciária utiliza-se de um instrumento próprio, formalizador do conjunto de diligências realizadas, que serve, de regra, como base e elementos iniciais necessários à propositura da ação penal, na maioria das vezes, titularizada pelo Ministério Público.

É sobre esse instrumento, de registro formal das investigações realizadas pela polícia judiciária, que dissertará o presente trabalho, o inquérito policial.

O recorte pretendido será delimitado pelo próprio título que é atribuído ao trabalho: INQUÉRITO POLICIAL – UMA ALTERNATIVA DEMOCRÁTICO-DISCURSIVA PARA O MODELO BRASILEIRO

Page 13: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

2

Pretendemos, examinar a partir de uma perspectiva discursiva do direito, o significado e a legitimidade do inquérito policial, enquanto instrumento de viabilização da justiça social. Isso porque, embora, numa primeira leitura, o inquérito policial não componha, em sentido estrito, o processo judiciário, é um procedimento pré-processual (?), que interfere diretamente no desenvolvimento e até no desfecho das lides penais, decididas pelo Poder Judiciário.

Como opção na consecução dos objetivos pretendidos, optamos em dividir a dissertação em duas partes: I - APRESENTAÇÃO CRÍTICA DO MODELO; e II - O DIREITO, O INQUÉRITO E A NECESSIDADE DE SUA TRANSFORMAÇÃO; esperamos assim, que através de uma leitura mais didática, possamos dar maior compreensão dos elementos que integram o trabalho, organizado em momentos distintos. Está reservada, para sua primeira parte, maior ênfase, às questões mais comuns, presentes na maioria das obras que tratam sobre o tema, entretanto, sem deixar de lado em nenhum momento o viés crítico-acadêmico; na segunda parte, alcançados os objetivos de compreensão, quanto aos elementos fundantes e fundamentais do inquérito policial, serão acentuados outros temas, inicialmente isolados, mas que representam abordagens particulares e temáticas, merecedores de destaques, o que viabilizará o diálogo entre os dois momentos; embora distintos, se justificam, completam e fundamentam; finalmente seguirá as conclusões, fruto da interação dos dois capítulos e da abordagem discursiva pretendida.

Outra observação que fazemos, ainda quanto ao modo de apresentação do trabalho, é que optamos por desenvolvê-lo através de um maior fracionamento temático, em maior número de capítulos, isso porque, entendemos que ao serem abordados em menores períodos, possibilitaremos uma melhor compreensão do assunto em discussão, além de torná-lo menos enfadonho e passível de interrupção da leitura para reflexões específicas; que, porém, na apreciação final, integralizada, se poderá perceber a umbilical ligação que todos os fragmentos guardam ente si.

Iniciamos nossa tarefa, oferecendo uma breve abordagem histórica, quanto as origens nas soluções dos conflitos, dissertando, sobre a produção da verdade na Antiguidade, época marcada pelo uso de práticas que com o tempo foram sendo substituídas por um ordenamento mais elaborado, montado sob um modelo inspirado nos tribunais eclesiásticos. Nosso ponto de partida será a sociedade grega.

Page 14: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

3

A seguir, após não menos sumária referência ao modelo romano, iremos discorrer sobre a Idade Média na Europa, período da história, que se constata a ausência de um modelo único de resolução dos conflitos, ainda marcado pelas soluções senhoriais e particulares.

Mais adiante, ainda na Europa medieval, serão apresentadas as transformações ocorridas a partir do século XII, quando se altera substancialmente o modelo até então vigente, desembocando na aplicação de um direito comum, inicialmente de inspiração eclesiástica, para posterior manifestação através da autoridade pública do Estado como solucionador dos conflitos.

No roteiro traçado, destacaremos interessante aspecto presente na Idade Média, a questão da eleição dos inimigos do Estado, quando será oferecido destaque a leitura e interpretação da obra de Hilton Japiassu, sobre a demonologia; tal compreensão é necessária, no estudo da legitimação das práticas do Santo Ofício da Inquisição, que mais adiante iremos demonstrar guardar, na sua essência, o “DNA” de identidade do atual modelo de investigação penal brasileiro.

A partir dessa inicial análise, nosso objetivo será discorrer sobre as origens do inquérito policial brasileiro, construindo uma hipotética linha do tempo, elaborada a partir das alterações produzidas em Portugal, por D. Afonso IV, que séculos mais tarde, identificaremos como a gênese do inquérito policial do Brasil Império.

Após a abordagem histórica européia, com repercussões na colônia brasileira, serão apresentados os principais diplomas que serviram à regulamentação das atividades policiais e investigativas no Brasil; desde então, iremos prosseguir até o Estado Novo, já no Brasil República, no início do século passado.

A produção legislativa processual penal da ditadura de Getúlio Vargas, é nosso ponto de partida, para a análise contemporânea do inquérito policial brasileiro, isso porque, é nesse arcabouço legislativo que reside a última e significa alteração do sistema investigatório e seu instrumento formalizador.

De Vargas a Rousseff, demonstraremos, que o modelo em análise já se perpetua por sete décadas, passando por toda sorte de conturbações políticas, momentos que oscilam entre ditaduras e normalidade democráticas, entretanto, sem que tenha sido alterado no seu fazer e na sua essência inquisitorial pré-moderna, servindo de igual forma a qualquer regime ou governante.

Page 15: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

4

No capítulo seguinte, faremos considerações sobre os três modelos processuais consagrados pela doutrina jurídica, identificando no final, através de processo crítico, qual o adotado e seguido no Brasil, bem como suas repercussões no campo investigativo; Destarte, seguirá outro capítulo, com devidos esclarecimentos sobre o modelo de controle de constitucionalidade das normas adotado no Brasil; do que tudo se aferirá, quanto à inconstitucionalidade da legislação que fundamenta o inquérito policial – sob o ponto de vista da sua não recepção.

Também, consideramos importante discorrer sobre as características que compõem o inquérito brasileiro, mesmo porque, sendo a presente dissertação, fruto de uma pesquisa interdisciplinar em sociologia e direito, a linguagem do sistema direito não é de domínio comum, portanto, para inteira compreensão dos objetivos pretendidos, se fará necessário essa abordagem pormenorizada.

Como expressão da linguagem do direito, o inquérito possui vocabulário, instrumentos e práticas próprias, que por vezes se apresentam como “polêmicas”, portanto, são necessários enfrentamentos e explicações, ao que chamamos de “questões pulsantes”; polêmicas ou pulsantes, o certo é que nem sempre essas questões são unanimidades entre seus diversos aplicadores (autores, advogados, juízes, promotores e policiais). Assim, um capítulo será dedicado a essas dissensões, com ênfase nos que nominamos de “justa causa”, “verificação da procedência de informações”, “sistema único”, “formalismo” e “ilegalidade da prova”.

Ainda, dentro desse mesmo capítulo, faremos especial abordagem quanto à “midiatização do inquérito”, isso porque, nos parece que esses instrumentos de cultura de massa, servem como instrumento à existência de um substrato de cultura da violência, criador de verdadeiro produto de consumo, e fomentador de camuflado interessante de grupos privados, na justificativa de suas práticas dominantes, úteis na manutenção do status quo.

Na segunda parte da dissertação, o olhar crítico será direcionado com maior agudez, para problemas crônicos da sociedade, relacionados à utilização do inquérito, como instrumento de poder e dominação através do conhecimento. Questões, entre o saber e o poder, serão objetos de pormenorizadas considerações, isso porque, como produtor de um conhecimento, ainda que específico, o inquérito policial nutre-se das fontes tradicionais da produção do conhecimento, assim, demonstraremos que sua

Page 16: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

5

utilização vai bem mais além que um simples instrumento armazenador de informações policiais.

Os investigados, objetos do inquérito, também receberão destaque, ao demonstramos, que ao contrário de um imaginário comum, são mais que óbvios infratores; mostraremos que os investigados são e recebem tratamentos de inimigos do Estado, perdendo suas plenas condições cidadãs, ao se insurgirem contra a submissão exigida e estabelecida pelo establishment. A partir de então, estabelecida a identificação dos inimigos do poder, poderemos retornar à questão da intima relação, que envolve saber, poder e o inquérito policial.

Por fim, ainda no trato das relações de conhecimento, não deixaremos de oferecer severas críticas a legitimação do instrumento policial; partiremos da premissa, que as obviedades dogmáticas, são mais que meras considerações de uma linguagem sistêmica, que se apresentam como subterfúgios formais à ocultação verdadeira de seus reais objetivos ideológicos.

Logo a seguir, verificaremos a confiança depositada no modelo de investigação vigente, sob a ótica da ignorância e do saber perito – Giddens –, que se transformaram em barreiras às críticas mais contundentes, ou a proposições de avanço do modelo.

Antes de adentrar na questão específica do inquérito policial inserido no Estado Democrático de Direito, em um capítulo a parte, destacaremos as expectativas do direito como sistema de solução dos conflitos na sociedade contemporânea, quando o posicionaremos, como factível negociador entre o “mundo da vida” e os “sistemas”, embora, também não deixemos de admitir, que pretenda se impor como sistema hegemônico; desse ponto, discorreremos um pouco mais sobre o reconhecimento de sua dimensão emancipatória.

Chegando à parte final do trabalho, o que pretendemos demonstrar é necessidade de se discutir a democracia, permanentemente, como instrumento transformador da sociedade, aplicando essa perspectiva ao inquérito policial; após o diagnostico e questionamento comparado, entre as práticas democráticas modernas com as medievais, que ainda estão presentes na investigação policial, iremos oferecer à crítica o modelo discursivo, entendido por nós, não só como viabilizador da atividade policial, mas também, como instrumento de resgate de uma cidadania comprometida.

Page 17: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

6

Nessa oportunidade, o objetivo da crítica recairá sobre a tese, que no Estado Democrático de Direito a pessoa do investigado ainda é tratada como objeto de investigação; que existe um relacionamento Estado�coisa na relação policial; que a pessoa do investigado é despossuída de direitos fundamentais; e quando investigado pela polícia, o cidadão fica a mercê de subjetivismos pessoais.

Em combate aberto, será enfrentado o saber discricionário produzido no momento do conhecimento investigativo, não só por ser autoritário, monológico, inquisitivo e preconceituoso, mas também, incapaz de realização efetiva dos fins a que se propõe.

Após todas as criticas realizadas, pretendemos inovar, oferecendo uma alternativa, com proposições concretas, plausíveis e consonantes com um Estado Democrático de Direito; será evidente o rompimento com os dogmas jurídicos estabelecidos, ao afirmarmos que o inquérito policial, por suas características, é muito mais que um mero procedimento sem valor jurídico, mas verdadeira parte integrante do processo judicial, portanto, todas as garantias do devido processo legal, também, lhes devem ser comuns e asseguradas.

Finalmente, depois de rechaçadas as estratégias de legitimação insubsistentes, que insistem e agonizam na perpetuação do instrumento investigativo questionado, ofereceremos como conclusão da dissertação, uma nova perspectiva, para tornar a investigação penal, mais um instrumento legítimo de avanço e consolidação da democracia.

Algumas questões serão ao longo do texto repetidas, reafirmadas e constantemente relembradas, propositalmente, para que o leitor perceba sua presencialidade a cada passo e instante. Entendemos que assim, além de estarmos deixando marcas profundas no roteiro que pretenderemos seguir, também manterá o foco nos pontos cruciais criticados, para que sejam revistos por vários ângulos, conforme se apresentem.

Portanto, nesse antagonismo, entre o Estado Democrático de Direito e as tradições inquisitivas, o inquérito não se justifica pelo preço que se paga por sua permanência; após se demonstrar, que são imputados elevados sacrifícios aos direitos e garantias fundamentais, em nome de valores, tradições, dogmas e interesses corporativos, a argumentação concluirá que a relação monológica estabelecida através

Page 18: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

7

do inquérito, é valor muito caro a se pagar, além de representar severos riscos à democracia brasileira.

Se há necessidade da apuração dos fatos e autorias quando se apresentam os delitos, e essa investigação exige um procedimento institucional; se o inquérito policial se revela ineficaz, no sentido de realizar as expectativas sociais, no que tange à justiça, cidadania e direitos humanos; as questões que se apresentam são a seguinte: O inquérito policial tem condições de sobreviver diante do novo modelo democrático? Existem mecanismos alternativos ao inquérito policial, que possam melhor cumprir a função pretendida por ele? Ou ainda, é possível pensar a investigação policial numa perspectiva diversa daquela com que hoje é realizada?

Tratamos de inquérito e investigação na mesma dimensão; a propósito, essa é nossa intenção, justificada pela derivação e dependência comum que os conceitos possuem; investigação e inquérito policial se entrelaçam e se confundem.

Entendemos que o modelo, excludente e autoritário, forjado no talho e com ranço de uma ditadura, notadamente, se encontra em descompasso com o atual estágio da sociedade brasileira; porém, quais seriam as alternativas a ele? É o caso de uma reconfiguração total do instrumento, ou seu abandono total na busca de novas formas?

Os objetivos, ora apresentados, tem a pretensão de discutir todos esses aspectos e, modestamente, contribuir com a apresentação de proposições, levando em conta a teoria discursiva do direito, desenvolvida por Jürgen Habermas. Acreditamos que, com esse autor, podemos vislumbrar uma nova perspectiva para a investigação penal, bem como, possíveis caminhos às soluções dos problemas que foram detectados.

Page 19: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

8

I PARTE APRESENTAÇÃO CRÍTICA DO MODELO

1. O INQUÉRITO POLICIAL ATRAVÉS DA HISTÓRIA O inquérito policial se apresenta como um fenômeno, presente em diversas

sociedades ao longo da história, portanto, discutir o instrumento no contexto contemporâneo, significa se deparar com elementos que remetem seus estudiosos a momentos remotos de outras culturas.

Para compreender a gênesis do inquérito policial, mister se faz, portanto, resgatar suas concepções, presentes na Antiguidade e na Idade Média, para posteriormente, através de Portugal, se adentrar no inquérito policial no Brasil

Com o objetivo de apresentar resumidamente, as origens do instrumento, embora a intenção com o presente trabalho não seja avançar nessa seara, se fará necessária uma breve leitura histórica, contínua e com mesma lógica de interpretação na sua manifestação.

1.1 ANTIGUIDADE Nesse caminhar sumário, um dos autores que examina os antecedentes históricos

do inquérito é Michel Foucault1, que descrever suas linhas iniciais a partir de registros antecedentes na Grécia.

Marcadamente, Foucault indica duas formas de resolução dos conflitos na sociedade grega (litígios e contestação ou disputa): a primeira, caracterizada por disputas através de combates, servia para aferir quem teria violado o direito de outrem; nesse modelo, a busca representava uma solução afirmativa de quem estava com a razão, porém, não importando com quem estava a “verdade”.

1 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas Tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais, supervisão final do texto Léa Porto Abreu Novaes... et al. J. Rio de janeiro, Nau, 2003.

Page 20: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

9

No procedimento de desafio ao adversário, como a solução da contenda era resultado da habilidade de cada um dos participantes, não havia uma terceira pessoa encarregada de aferir ou solucionar o conflito, privatizava-se a relação, tudo era decidido conforme o resultado da disputa.2 (1100-800 a.C.)

Na segunda forma indicada, o autor se reporta ao modelo presente no Período Clássico (500- 400 a.C.), quando surge a possibilidade da oposição a uma verdade indicada, apresentada à análise, através de contestação pela prova testemunhal, salienta, o que possibilita, inclusive, o julgamento dos próprios governantes.

Para Foucault, seria exemplo mítico desse modelo na história do direito grego a peça “Édipo Rei”, escrita no século V a.C., ao argumento que um escravo, pastor de ovelhas, se tornou testemunha fundamental, para contestar uma verdade real3, a da origem de Édipo, filho de Jocasta e Lion.

Assim, para o escritor Francês, o modelo primário, o grego, instaurado de forma definitiva em Atenas durante o século V a.C., possibilitava não somente a viabilidade de se opor a verdade ao poder4, mas também, de reconhecer a interferência de terceiros na relação.

2 “Em um procedimento como esse não há juiz, sentença, verdade, inquérito ou testemunho para se dizer a verdade. Confia-se o encargo de decidir não quem disse a verdade, mas que tem a razão, à luta, ao desafio, ao risco que cada um vai correr.” FOUCAULT, Michel. Idem. p. 53 3 A estória começa quando Édipo, príncipe de Corinto, é insultado por um bêbado, que o acusa de ser filho ilegítimo do Rei Políbios. Embora Políbios procure tranqüilizar Édipo, o príncipe, perturbado, recorre ao Oráculo de Píton, mais tarde conhecido como Delfos. O oráculo evita responder à sua dúvida, mas dá a terrível informação de que Édipo está destinado a matar o pai e casar-se com a mãe. Como Édipo não tem a menor intenção de deixar que isso aconteça, ele foge de Corinto e vai para Tebas. E aí começa a tragédia. Em uma encruzilhada, Édipo depara-se com uma carruagem. À frente vem o arauto, que ordena rudemente a Édipo que se afaste e tenta empurrá-lo para fora da estrada. O príncipe começa uma briga e termina matando todo mundo que nela se envolve. Para sua desgraça, um dos homens que vinha na carruagem era seu pai verdadeiro, o rei Lion de Tebas. Após resolver o enigma da esfinge e salvar Tebas desse flagelo, Édipo é proclamado rei e casa-se com a viúva de Lion, Jocasta, sua mãe verdadeira. Só depois que uma nova maldição cai sobre Tebas, maldição que seria afastada apenas quando o assassino de Lion fosse descoberto e expulso, é que os fatos vêm à tona. Édipo não consegue suportar a verdade e arranca os próprios olhos. Antes que Édipo tomasse a decisão de fugir da profecia do oráculo, Lion, sua vítima já tinha cometido o mesmo engano. Apolo havia advertido Lion de que seu próprio filho o mataria e, quando Édipo nasceu, o rei mandou perfurar com um cravo um dos pés da criança e abandoná-la em uma montanha. Mas o menino foi encontrado por um pastor e levado ao rei Políbios, que o adotou. Essa foi a origem da confusão de Édipo e foi daí que veio seu nome: "oidípous" significa "pé inflamado". http://www.netsaber.com.br/resumos/ver_resumo_c_1386.html (acessado em 13/03/2011 4 “Houve na Grécia, portanto, uma espécie de grande revolução, que através de uma série de lutas e contestações políticas, resultou na elaboração de uma determinada forma de descoberta judiciária, jurídica, da verdade. Essa constitui a matriz, o modelo a partir do qual uma série de outros saberes – filosóficos, retóricos e empíricos – puderam se desenvolver e caracterizar o pensamento grego. FOUCAULT, Michel. Idem. p. 55

Page 21: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

10

Conclui na sua obra, nessa hipótese histórica, pelo nascimento de um modelo investigativo, que “curiosamente” foi “esquecida(o) e se perdeu”; porém, nos séculos XII e XIII em nova manifestação, inicia seu renascimento, ainda que convivendo com características próprias da sociedade européia de época5.

Registre-se, que a partir do século II a.C., com a dominação romana, simbolizada pela anexação da península e ilhas gregas, embora haja continuidade da sociedade e cultura grega, destaca-se o implemento do processo penal romano, com seu Cognítio – que inclui todo o procedimento, da instrução ao julgamento.

Embora, o processo romano não tivesse rigorosa formalidade, operava-se através desse instituto, o Cognitio (exame judicial), que se baseava no princípio da inquisitio “realizado pelo próprio magistrado ou funcionário, mediante órgãos de polícia, freqüentemente valendo-se de delatores particulares.”6

Arremata GIORDANI, “O mesmo funcionário imperial que, mediante a inquisitio, colhia as provas, prolatava a sentença com ampla liberdade, limitada apenas por instruções imperiais ou por jurisprudência firmada do tribunal imperial.”7

Buscava-se, no Direito Romano, a prestação da jurisdição do Estado através da provocatio ad populum (provocação ou reclamação popular), porém, tal modelo não cabia nas hipóteses de delitos militares ou políticos.

Para os crimes contra o Estado, lesa pátria, ou lesa majestade, foram criados os questores e os comissários diúnviros, que atuavam assistidos por edis e censores, esses últimos, encarregados da segurança pública e do Cônsul. Os questores e os comissários diúnviros, nas práticas descritas, possuíam atribuição de reprimir, processar e julgar seus autores.

Ainda, no exercício policial, devem-se consignar os denuntiatores, os vigomagistri e stationarii; os primeiros, responsáveis pelas investigações; os segundos, encarregados de fazer observar a lei e prestar auxílio à polícia; os terceiros, responsáveis pelo policiamento. Também outros integravam o aparato policial do Estado: os curatores urbis, praefectus urbi, os auditorium sacrum, os praefectus vigilum etc., que, porém, não receberão maior destaque, face aos objetivos do trabalho.

Após essa breve abordagem da antiguidade, a seguir deve-se ingressar na Idade Média, período que para muitos, efetivamente caracteriza o embrião do modelo investigativo ainda presente. 5 “O poder punitivo havia desaparecido em grande medida com o ocaso de Roma e a generalização do feudalismo, renascendo nos séculos XII e XII. Até então, a conflitividade era resolvida mediante a luta, como ordália ou presença direta de Deus na tomada de decisões.” ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro, Revan, 2007, p. 38 6 GIORDANI. Mário Curtis. Direito Penal Romano. Rio de Janeiro, Forense, 1982, p. 108 7 GIORDANI. Mário Curtis. Direito Penal Romano. Idem p.108

Page 22: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

11

1.2 IDADE MÉDIA No inicio da Idade Média, a Europa ainda não havia desenvolvido um sistema

comum de resolução dos conflitos, isso porque, se por um lado faltava formulação, e conseqüente aplicação de um direito comum; por outro, o próprio sistema feudal, se encarregava de ditar os parâmetros de aplicação das normas, através de regras próprias dos senhores da terra, em seus espaços de poder.

Aos conflitos de interesses se aplicavam as regras senhorias, que através de decisões particulares ou comunitárias, punha fim às contendas com decisões próprias.

Essa situação de resolução particular, própria de cada comunidade, só vem a ser alterada no início do século XII, com o surgimento dos tribunais eclesiásticos, e posteriormente com a instauração dos tribunais seculares.

De regra, até a criação dos tribunais, às soluções dos conflitos se aplicavam provações, ou ainda, procedimentos judiciais rudimentares, próprios de cada localidade. Não havia, portanto, uma autoridade pública superior, representante do poder, encarregada de solução das lides. Nesse período, portanto, os juízes e príncipes não exerciam autoridade pública no tribunal.

Com o renascimento do direito romano, e do surgimento do direito canônico8, como um sistema jurídico, o papel da autoridade pública nos tribunais medievais mudou significativamente; príncipes e juízes passaram a ocupar lugar de destaque, interferindo publicamente na solução dos conflitos, configurando a ocupação de um poderoso espaço com a demonstração de suas autoridades.

Inicialmente, o processo jurídico-canônico romano, iudiciarius ordo, substituiu os ordálios9, vindo a se tornar o modelo para os tribunais seculares.

Considere-se, embora não seja o enfoque principal do presente trabalho, que essa passagem de poder decisório para o soberano, até então exercido conforme regras privadas, será de relevante importância para a viabilidade futura do contrato social no Estado Moderno. 8 É a partir do século VIII que o direito canônico começou a ser chamado assim, tornando-se ciência autônoma a partir do Decreto de Graziano em 1140. 9 “...nos primórdios da Idade Média, a culpa ou a inocência algumas vezes era determinada por um ordálio – como carregar ferro em brasa ou mergulhar a mão do suspeito na água fervente” BURKE, Peter. História e Teoria Social. Tradução de Klauss Brandini Gerhardt e Roneide Venâncio Majer, São Paulo, UNESP, 1992. p. 129

Page 23: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

12

Ao se apropriar das resoluções dos conflitos, função até então legitimada por costumes e valores morais específicos, o poder passa a ter uma finalidade estratégica; o soberano, ao exercer uma condição decisória superior a todos os demais sistemas particulares, realiza a concentração do poder administrativo, legislativo e judicante pelo Estado.

Diante dessa nova função, ainda que permanecendo atrelado a uma cosmovisão religiosa, na qual o direito se legitimava a partir de si mesmo, conforme um querer divino, o “rei-juiz”, necessitava formular postulados que fossem comuns a todos, que substituíssem os valores até então empregados por outros, que representem a própria soberania do julgador e por fim, que validassem “um direito faticamente imposto, que ultrapassa uma obrigatoriedade meramente moral”10. O direito que até então, se firmava por autoridade metafísica, transforma-se em fonte de criação e imposição dessas normas, consagrando o poder político do soberano.

Com a institucionalização dos tribunais, o Estado não só passa a decidir como superior instância, mas também, a exigir o cumprimento de suas decisões de forma coercitiva, para isso, vale-se igualmente das leis que o direito produz. Assim, o Estado instrumentaliza o direito para obter sua legitimidade, pode-se dizer então, que o direito serve ao poder que legitima, e o poder serve ao direito de igual maneira. Essa simbiose entre o direito e o poder político, será traço marcante na modernidade.

Outra transformação importante que ocorre, foi o fato da transição a um modelo investigatório em substituição ao sistema de provações, isso porque, com as transformações ocorridas, sendo os juízes e príncipes, responsáveis também pelos julgamentos dos crimes, se fez necessário aprimorar instrumentos capazes de demonstrar os acontecimentos de forma retrospectiva 11, àqueles interessados. Se Deus não é mais a figura central da justiça, as competições, provações e juramentos, não são mais referências para o se conhecer a verdade.

A seguir, serão consideradas questões específicas das perseguições religiosas, patrocinadas pela igreja e pelos soberanos, isso porque, no final dessa abordagem, se poderá constatar que as práticas patrocinadas por esses atores, bem como a produção de suas verdades, alcançam não só aquele período em específico, mas também a era atual. 10 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. V. 1, Tradução: Flávo Breno Siebeneichler. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2003, p. 180 11 http://faculty.cua.edu/pennington/law508/CriminalProcedure.htm (acessado em 06/04/11)

Page 24: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

13

1.3 BRUXAS, DEMONOLOGIA E ELEIÇÃO DO INIMIGO A demonologia, e seu substrato, a bruxaria, surgem no início dos tempos

modernos, sendo autêntica contradição com a revolução científica, iniciada dentre outros, por Galileu Galilei, em pleno contexto Renascentista, que embora tenha sido um período fecundo à valorização e à redescoberta do homem perante o Universo, também tem a marca das superstições como registro.

Segundo JAPIASSU12, a demonologia e a bruxaria, avançam mais nesse momento de chegada a Idade Moderna que propriamente na Idade Média. É no Renascimento, que a astrologia é mais destacada que a própria astronomia, que a física, ou a ontologia aristotélica, em nítida evidência que há “super valorização as letras e as artes” e menos inspiração científica, ou seja, “foi uma época pouco dotada de espírito crítico e povoada das mais grosseiras superstições, alimentando todos os tipos de crença na magia, na bruxaria, nos demônios e na astrologia.”13

E justamente nesse período, onde predominava a idéia de que “tudo é possível”, terreno fértil para a admissão da presença de bruxos, feiticeiros e demônios atormentadores, que suas manifestações se tornam incontestáveis14; diante do caldeirão supersticioso dominante, num mundo ocupado por demônios e bruxas, príncipes e religiosos se ocupam em perseguir seus representantes.

Assim, a igreja justificando seu papel salvador, fazia a eleição do inimigo comum, manifesto pelos rivais habitantes das trevas. Sob o argumento que anjos ou demônios, anunciadores do sobrenatural, habitavam entre os vivos e provavam a existência de outros reinos além da vida, iniciava-se uma batalha entre o bem e o mal.

Se o próprio Cristo, em provação, enfrentou o demônio no deserto, seria perfeitamente concebível que os homens, simples mortais, também fossem tentados pelo maligno. Não havia como negar a presença do mal, inclusive, sua negação

12 JAPIASSU, Hilton. As paixões da ciência. São Paulo, Letras e letras, 1991. 13 Idem, JAPIASSU, Hilton, p. 19 14 “A racionalidade científica e mecanicista nascente, tentando explicar que tudo é natural e que mesmo os fatos miraculosos se explicam por uma ação da Natureza, nem por isso consegue deter o avanço inexorável da feitiçaria e da magia satânica.” Idem, JAPIASSU, Hilton, p. 20/21

Page 25: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

14

representava a mentira e a encarnação da sua manifestação, portanto, também passível de perseguição.15

As provas eram fartas, fenômenos naturais, doenças, crises sociais, infertilidade feminina, impotência masculina e tudo mais, bem demonstravam que o mal estava presente, portanto, o bem não poderia olvidar forças em combatê-lo, para honra e gloria do Deus, que concedeu a igreja essa missão.

Numa sociedade, marcadamente dominada pelo poder masculino, alicerçada numa ontologia crédula de que as mulheres eram mais vulneráveis a presença do maligno, este, solto e pronto à atormentar a tudo e a todos, com seus propósitos destruidores, obviamente, as solteiras, viúvas e idosas, frágeis entre as frágeis, se tornavam suas principais vítimas16. Assim, a igreja em “reação” ao mal, cumpria seu papel, realizava a “caça às bruxas”, não medindo esforços e práticas, para finalmente levá-las às fogueiras purificadoras, bem como, convertendo seus patrimônios em mais recursos para a causa salvadora.

Como instrumento dessa perseguição, era utilizado o modelo do Santo Ofício da Inquisição, com a produção de provas através de denúncias sobre denúncias, interrogatórios e confissões através de sujeições e torturas violentíssimas, onde o investigado não passava de mero objeto de apuração por parte do inquisidor, sem possibilidade de defender-ser de maneira efetiva; mesmo quando defendido por um terceiro aceito pelo tribunal, seus defensores era tolidos de ampla expressão, sob o risco e ameaça de tornarem-se suas próximas vítimas.

As práticas da Santa Inquisição, podem ser comparadas as do inquérito policial atual, no que se refere a maneira monológica que produzir suas provas, quando vale-se do investigado como objeto, destituído de direitos fundamentais e impossibilitado de ampla defesa17; também, a própria escolha dos inimigos a serem perseguidos pelo 15 “Os piores inimigos eram aqueles que negavam a existência ou o poder das bruxas, pois negavam o poder dos inquisidores, que magnificavam a natureza do mal até o ponto de considerar a bruxaria um crime mais grave que o próprio pecado.” Idem, ZAFFARONI, Eugenio Raúl. p. 86 16 “Mas a quem atribuir a responsabilidade pelos crimes horrendos? Não é atribuída aos demônios. A responsabilidade é das próprias bruxas: elas é que são a causa dos males. São culpadas de intenção, de causa e de efeito.e por que existem mais feiticeiras mulheres do que feiticeiros homens? Os dodi inquisidores explicam: é porque as mulheres são mais frágeis e muito mais influenciáveis do que os homens, tanto na virtude espiritual quanto na depravação e no mal. Isto se explica pela inferioridade mental da mulher. Contudo, a mais decisiva razão é a sensualidade feminina.” Idem, JAPIASSU, Hilton, p. 25 17 “Quer dizer, quando uma bruxa é torturada, ou ela confessa logo ou, então, não confessa. Se confessa, é executada. Se não confessa continua torturada. Ou ela confessa, ou morre de tortura. Neste caso, os

Page 26: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

15

Estado, ontem as bruxas e demônios, hoje os criminosos e desajustados, guardam comparativas semelhanças, que mais adiante, em especial destaque, se demonstrará.

Porém, logo de início pode-se indagar: em que se diferem as famosas operações policiais, de ocupações as favelas e comunidades despossuídas de cidadania, insurgentes com o estado de abandono e pobreza a que estão relegadas, das lutas contra as bruxas, e conseqüente tomada das comunidades camponesas medievais18? Nos dois casos, pode-se notar, que o inimigo é “escolhido”, preferencialmente, entre aqueles que indiquem causar qualquer forma de ameaça ou alteração do status quo vigente; essas semelhantes escolhas legitimam-se, sob a rubrica maior do livramento da sociedade, em face dos destruidores da harmonia e do bem comum.

Ainda que se deva admitir, que nas perseguições medievais, sequer houvesse a necessidade de qualquer justificação, senão aquelas de foro íntimo de seus executores, enquanto na atualidade, essas justificações estejam respaldadas em nome da lei, a Santa Inquisição e o inquérito policial, no final das contas, como se vê e mais se dirá, guardam na essência a mesma identidade, ou seja, ambos, além de produzires suas “verdades”, a partir de enunciados formulados sob uma ótica unilateral, também se prestam, como instrumento de controle e dominação de determinado grupo social sobre outro.

Finda essas breves considerações, pode-se crer que já existam elementos mínimos e necessários, para se ingressar na história do inquérito policial a partir de Portugal, Estado colonizador brasileiro, portanto, responsável pela transferência de seu modelo de origem a uma de suas colônias.

acusadores dizem que ela morreu por obstinação e impenitência, preferindo permanecer fiel a seus amores culpados. Por amor de Deus, exclama Spee angustiado, como pode ela ser condenada sem ter nenhuma chance de provar que é inocente?” Idem, JAPIASSU, Hilton, p. 31 18 “A grande caçada às bruxas se torna mais intensa e feroz nos períodos em que ocorrem desastres, epidemias, calamidades e crises sociais profundas. Este é o caso justamente da Europa do final do século XVI e início do XVII: momento de grandes crises sociais, religiosas e políticas. Por isso, cresce o número de acusações de bruxaria. Aliado a isso, o episódio da caça às bruxas era quase sempre associado à repressão violenta aos movimentos de rebeldia dos camponeses. Em boa parte, perseguia-se ao mesmo tempo as revoltas camponesas masculinas e a feitiçaria feminina. Melhor ainda: perseguia-se as bruxas para se perseguir os pobres camponeses” Idem, JAPIASSU, Hilton, p. 35

Page 27: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

16

2. O INQUÉRITO POLICIAL NO BRASIL 2.1 GÊNESE PORTUGUESA Vigia em Portugal, no século XII, o sistema dos ordálios19, que consistia em

submeter os litigantes e seus interesses à apreciação divina, através de provas de resistência físicas e psicológicas, quando vencedores ou sobreviventes dos embates, passavam a ser detentores de verdades transcendentes, confirmadas por Deus. Dentre as diversas possibilidades e derivações do sistema encontravam-se os chamados “combates judiciários”20.

Conforme observado por R. KANT21, os “combates” passaram a ser contestados pela coroa portuguesa22, muito embora, até então tenha se firmado como procedimento mais conveniente a corte senhorial, que por meio destes, mantinha-se afastada dos procedimentos eclesiásticos, com seus inquéritos secretos preliminares (inquisitio), onde se buscava o reconhecimento (recognitio) pelo acusado de sua autoria e participação no ilícito. Registre-se que nesses inquéritos, o envolvimento do investigado, totalmente neutralizado por força do modelo, se dava somente ao final da apuração, quando através de sua confissão se completava a busca da verdade23.

19 “O poder punitivo havia desaparecido em grande medida com o ocaso de Roma e a generalização do feudalismo, renascendo nos séculos XII e XIII. Até então, a conflitividade era resolvida mediante luta, como órdália ou presença direta de Deus na tomada de decisões. A órdália do dolo era a via pela qual o Deus expressava sua decisão e, por conseguinte, decidia sobre a verdade. O juiz era uma espécie de árbitro que zelava pelo respeito às regras, pra que não houvesse sofismas que desvirtuasse ou impedisse a expressão da clara vontade divina. As partes – ou seus representantes – lutavam e o vencedor era o portador da verdade; sua condição era prova da razão.” Idem, ZAFFARONI, Eugenio Raúl. p. 38 20 O Panorama – Jornal Literário e Instructivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos úteis, Lisboa 1837.,p 117, disponívem em http://books.google.com.br/books?id=xHE-AAAAYAAJ&pg=RA1-PA117&lpg=RA1-PA117&dq=combates+judici%C3%A1rios&source=bl&ots=8Cwio4ScrB&sig=sP0zAQNYXPASV4pa52oDYKMSxBM&hl=pt-BR&ei=Rz52TfeXIMH88AaUhYCUCQ&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=1&ved=0CBoQ6AEwAA#=onepage&q=combates%20judici%C3%A1rios&f=false. Acessado em 08/03/2011 21 KANT, Roberto e MISSE, Michel. Ensaios de Antropologia e de Direito. Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2009. 22 “Portugal, no século XII, começa a contestar o sistema de provas, os combates judiciários nulos como formas de justiça para os fracos e pobres, que não podiam pagar campeões e assim não podiam ver seus direitos afirmados.” JÚNIOR, Mendes de Almeida, apud KANT, Roberto e MISSE, Michel. Idem p. 136 23 “Nessa passagem da disputatio para a inquisitio surge um saber que busca sempre o poder, ou seja, o sujeito interroga sempre o objeto para dominá-lo” Idem ZAFFARONI, Eugenio Raúl. p. 40

Page 28: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

17

Ocorre que, na segunda metade do mesmo século, D. Afonso IV regulamenta as chamadas “inquirições devassas” nos casos de crimes de mortes24, consistentes em procedimentos investigatórios realizados ex-officio pelo Estado25.

Na nova fórmula, o acusado também não participava desde o início na produção da verdade; o Estado buscava provas iniciais nos mesmos moldes adotados pela igreja, ou seja, inaugurava um inquérito secreto, através do qual colhia as informações que lhe pareciam verdadeiras, confirmando suas formulações iniciais, e a posteriori, já com os elementos arrecadados, trazia para os autos o investigado, desta feita não para confessar seus pecados, mas seu crime.26

Portanto, conforme registra Robert Kant, naquele momento passaram a conviver dois instrumentos de investigação no Estado português, “o inquérito propriamente dito, que exigia a presença do acusado, e a devassa, que era a inquirição feita ex officio (por iniciativa do Estado), sem o concurso do acusado”27, sendo o segundo, recepcionado e consagrado ao longo da história penal brasileira, permanecendo ainda hoje, mutatis mutandis, como o modelo adotado para investigação em todos os crimes, conforme se poderá observar mais adiante, através da enunciação das características do inquérito policial, nos moldes da legislação processual penal vigente.

Registre-se, para posterior cotejamento, que “também a denúncia dispensava a intervenção das partes no processo, que se centrava nas mãos do juiz a não ser nos casos de querelas, algo semelhante a nossa atual ação penal de iniciativa privada, em que a iniciativa acusatória era da parte lesada.”28

24 Ordenações Afonsinas, disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/l5pg131.htm. Acesso em 08/0/2011 25 “Com o surgimento do poder punitivo, abandonou-se a luta e a verdade começou a ser estabelecida através do interrogatório ou inquisitio. O sujeito do conhecimento - inquisidor interrogador ou investigador) – pergunta ao objeto de conhecimento - inquirido (interrogado ou investigado) – e desse modo se obtém a verdade. Se o objeto não responde o suficiente ou o faz sem clareza ou precisão demandada pelo sujeito, é violentado até a obtenção da resposta (mediante tortura). O inquisidor ou interrogador deixa de ser um árbitro e passa a ser um investigador; a virtude está do seu lado porque exerce o poder soberano, dado que este se considera vítima (usurpa ou confisca o papel da vítima). Deus já não decide entre dois iguais como partes, mas sim está seqüestrado pelo senhor, pelo dominus. Idem ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Idem p. 38 26 “Basicamente, a diferença entre o modelo secular e eclesiástico do inquérito seria a de que no inquérito propriamente dito, primeiro, pergunta-se o que não se sabe; no segundo, a inquirição, pergunta aquilo que já se descobriu, para que o acusado, anuindo e confessando, arrependa-se e volte purificado e perdoado ao rebanho” Kant, Roberto e MISSE, Michel. Idem p. 135 27 KANT, Roberto e MISSE, Michel. Idem p. 136 28 KANT, Roberto e MISSE, Michel. Idem p. 136

Page 29: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

18

Na descrição procedimental Afonsina, após a colheita de elementos julgados satisfatórios ao início do processo, citava-se e interrogava-se o réu, quando só então, ciente das imputações poderia contestá-las, inclusive, podendo exigir que fossem reinquiridas as testemunhas da devassa, na sua presença e do juiz, seguindo-se o processo com a apresentação de suas testemunhas, e outras que o juiz entendesse conveniente de ser arroladas, decidindo o magistrado ao final por sentença29.

No caso de obtenção da confissão, já no interrogatório, considerando, o que poderia anunciar como um modelo de tarifação das provas, ou seja, valorando a prova por força de norma, o juiz sentenciava sem a necessidade da produção de qualquer outro elemento.30

Essa sumária descrição do modelo português, já possibilita ao leitor compreender e caminhar por uma cronologia dos instrumentos legislativos, legitimadores do modelo de investigação e sua formalização no Brasil, portanto, se poderá avançar mais um pouco nesse tema, pelo menos até as proximidades da metade do último século, que mais adiante receberá o devido destaque.

2.2 CRONOLOGIA LEGISLATIVA Seguindo na história, o procedimento descrito vem sendo mantido em sua

essência, sobrevivendo às Ordenações Afonsinas (1416), Manuelinas (1514) e Filipinas (1595); no Brasil a Constituição de 1824, ao Código de Processo Criminal do Império (1832), sua alteração (1841) e posterior reforma (1871); a Constituição Republicana de 1891; ao Código Penal Brasileiro (1890); a Constituição Republicana de 1937 (e as que seguiram após ela: 1946; 1967; 1968 e 1988); e ao Código de Processo Penal (1941),

29 KANT, Roberto e MISSE, Michel. Idem p. 137 30 Quanto a importância da confissão como prova maior, ainda que não haja previsão hierárquica entre as meios admitidos em lei, observamos na atualidade o seguinte: “Ressaltamos que busca incessante da confissão, entendida com caráter de redenção dos pecados, presente no Tribunal do santo ofício, ainda se faz referida no ideário popular e acaba influenciando as decisões dos Tribunais atuais. Assim, a polícia encarregada de buscar a verdade, acaba sendo fomentada, pela própria sociedade, a exercer práticas que afrontam a dignidade humana, e por via de conseqüência à própria sociedade.” ANTUNES, Antonio José Abreu; CORRÊA, José Ricardo Ventura; e SOARES Márcio Palmiere. A tradição inquisitorial brasileira. Trabalho de conclusão do Curso de Pós-Graduação em Políticas Públicas de Justiça Criminal, UFF. Rio de Janeiro, 2009. p. 16

Page 30: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

19

com todas as suas alterações a partir de então, sendo a mais recente em junho de 200831, quando através de reforma parcial, foi alterado essencialmente quanto à produção da prova, aos ritos processuais, e em destaque, o momento do interrogatório do acusado, oportunidade que foi deslocada sua oitiva para o final da Audiência de Instrução e Julgamento, ou seja, depois de produzida toda a prova contra o réu, antecedendo somente as alegações finais da acusação e defesa, prestigiando-se assim, pela primeira vez, o amplo conhecimento de toda prova, antes de uma possível auto-incriminação do acusado.32, todavia, essa alteração é relacionada à instrução penal judicial.

Observe-se, entretanto, que tal como nas inquirições devassas, no rito processual mais atual, quando da propositura da ação, ainda nesse momento, a prova não está totalmente constituída, isso porque, o que serve de base à propositura da ação são “indícios”, assim formalmente nominados, colhidos na fase de investigação, onde sequer poderá haver participação do investigado, no momento da obtenção de tais elementos, portanto, segue-se o modelo primário33.

Com sua origem, formal/processual, nas inquirições devassas34 e, apesar da alteração de 184135, quando para alguns, se restabeleceu vários procedimentos 31 Existe última pontual alteração do CPP - Lei 12.403, de 04 de maio de 2011, que dispões sobre prisão processual, fiança, liberdade provisória, demais medidas cautelares, entrando em vigor a partir de 04/07/2011. 32 Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado. – Código de Processo Penal 33 “As devassas, sendo inquirições feitas sem a citação das partes, não eram consideradas inquirições judiciais, para efeito de julgamento, sem que as testemunhas fossem reperguntadas. Mas para efeito de prisão preventiva, não havia a necessidade dessa reiteração: supunha-se, já, sua culpa” Kant, Roberto e MISSE, Michel. Idem p. 138 34 As verdades produzidas pelas devassas especiais são concretas, não-universais, justamente porque foram largadas ao arbítrio, ao ardil, à estratégia do magistrado e, pelo fato do investigador ser um membro da justiça, se pressupõe que ele pode enunciar essa verdade. É uma verdade que surge visivelmente das relações de poder, uma verdade que acontece; verdade-acontecimento. O inquérito vem da necessidade e, ao contrário das devassas, surge como um procedimento administrativo detalhado. Detalhado, porque existe uma série de etapas que, caso alguém – o policial, por exemplo – fielmente obedeça, constatará a verdade. É uma maneira de constatar a verdade que, por se utilizar de um procedimento prévio, tornou-se universal, conhecível por todos, abstrata, e não mais local, concreta e estratégica. As devassas especiais tratavam de estratégia; o inquérito policial trata do método:uma vez aplicado o método – e qualquer um pode aplicá-lo –, se chegará à verdade que, por isso mesmo, é universal. Essa racionalização do procedimento investigativo operado pelo Inquérito Policial, fruto do Saber iluminista francês, ao assegurar alguns direitos individuais – inclusive, processuais – e padronizar o método de investigação, encobriu a verdade-acontecimento, que era produzida pelos que conduziam as devassas especiais. No entanto, seria uma ilusão afirmar que o Inquérito Policial surgiu como ruptura total das formas de produção da verdade realizadas pelas devassas especiais. O inquérito vem produzir aquilo que é

Page 31: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

20

inquisitoriais36, o inquérito policial, ingressou no ordenamento jurídico brasileiro através da Lei 2.033 de 20 de setembro de 1871, que no seu art. 10, estabelece: “Aos Chefes, Delegados e Subdelegados de Policia, além das suas actuaes attribuições (...) por escripto serão tomadas nos mesmos processos, com os depoimentos das testemunhas, as exposições da accusação e defesa”(sic)37; e regulamentado através do Decreto nº 4.824 de 22 de novembro de 187138, com previsão de: “Proceder ao inquerito qualificado como verdadeiro justamente para justificar uma racionalidade de uma identidade cultural – que só é possível segregando, apartando o diferente. MARTINS, Lucas Moraes UMA GENEALOGIA DAS DEVASSAS NA HISTÓRIA DO BRASIL http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3245.pdf ( acessado em 8/03/2011) 35 “A lei de 3 de dezembro criou, no município da Côrte e em cada província, um chefe de polícia e respectivos delegados e subdelegados, nomeados pelo imperador ou pelos presidentes das províncias” MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, São Paulo, Forense, 1962, Vol. I, p.. 99. 36 “Entretanto, as constantes agitações políticas de cunho republicano apontaram para a necessidade de se consolidar a autoridade do Império, ainda iniciante e frágil. Daí, em 1841, editou-se lei que restabeleceu vários procedimentos inquisitoriais, notadamente a atribuição de atividade judiciária à polícia, tudo com a finalidade de consolidar o Império. A Lei 2.033 e o Decreto 4.824, ambos de 1871,puseram fim a esse período reacionário, separando a função policial da atividade judiciária através da criação do inquérito policial” CHAVES. Andreya Alcântara Ferreira http://www.ejef.tjmg.jus.br/home/files/publicacoes/artigos/reforma_cod_proc_penal.pdf (acessado em 11/04/2011) 37 Art. 10. Aos Chefes, Delegados e Subdelegados de Policia, além das suas actuaes attribuições tão sómente restringidas pelas disposições do artigo antecedente, e § único, fica pertencendo o preparo do processo dos crimes, de que trata o art. 12 § 7º do Código do Processo Criminal até a sentença exclusivamente. Por escripto serão tomadas nos mesmos processos, com os depoimentos das testemunhas, as exposições da accusação e defesa; e os competentes julgadores, antes de proferirem suas decisões, deverão rectificar o processo no que fôr preciso. § 1º Para a formação da culpa nos crimes communs as mesmas autoridades policiaes deverão em seus districtos proceder ás diligencias necessarias para descobrimento dos factos criminosos e suas circumstancias, e transmittirão aos Promotores Publicos, com os autos de corpo de delicto e indicação das testemunhas mais idoneas, todos os esclarecimentos colligidos; e desta remessa ao mesmo tempo darão parte á autoridade competente para a formação da culpa. § 2º Pertence-lhes igualmente a concessão da fiança provisoria.- Lei 2.033 de 20 de setembro de 1871 38 Art. 10. As attribuições do Chefe, Delegados e Subdelegados de Policia subsistem com as seguintes reducções: 1º - A da formação da culpa e pronuncia nos crimes communs. 2º - A do julgamento dos crimes do art. 12, § 7º do Código do Processo Criminal, e do julgamento das infracções dos termos de segurança e de bem viver. Art. 38. Os Chefes, Delegados e Subdelegados de Policia, logo que por qualquer meio lhes chegue a noticia de se ter praticado algum crime commum, procederão em seus districtos ás diligencias necessarias para verificação da existencia do mesmo crime, descobrimento de todas as suas circumstancias e dos delinquentes. Art. 41. Quando, porém, não compareça logo a autoridade judiciária ou não instaure immediatamente o processo da formação da culpa, deve a autoridade policial proceder ao inquerito aceroa dos crimes communs de que tiver conhecimento proprio, cabendo a acção pública: ou por denuncia, ou a requerimento da parte interessada ou no caso de prisão em flagrante. Art. 42. O inquerito policial consiste em todas as diligencias necessarias para o descobrimento dos factos criminosos, de suas circumstancias e dos seus autores e complices; e deve ser reduzido a instrumento escripto, observando-se nelle o seguinte: Art. 11. Compete-lhes, porém: 1º - Preparar os processos dos crimes do art. 12, § 7º do citado Código; procedendo ex-oficio quanto aos crimes policiaes.

Page 32: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

21

policial e a todas as diligencias para o descobrimento dos factos criminosos e suas circumstancias, inclusive o corpo de delicto”(sic).

A partir desse ponto, ainda serão feitas algumas breves considerações quanto ao modelo no último período do Império, bem como do início da história republicana, porém, como se observará, o destaque ficará por conta da sua última manifestação legal, ou seja, a partir do início da década de 40 do século XX até os dias atuais.

2.3 A HISTÓRIA DO INQUERITO A PARTIR DE 1942 (sua última versão

legal) O primeiro modelo de código processual penal surge no Brasil em 1832, pela

Lei de 29 de novembro de 1832, com a denominação de Código de Processo Criminal de 1ª Instância; este diploma de características liberais, notadamente pelas garantias de defesa que conferidas aos acusados, também trazia no seu bojo outras, referentes à valorização dos juízes de direito, bem como aos juízes de paz, a quem eram atribuídas às funções policiais.

O diploma de 1832 sofreu alterações por duas vezes, sendo a primeira em 1841, através da Lei 261, que devido aos seus contornos de fortalecimento do aparato repressivo, quando, inclusive, foi retirada dos juízes de paz as atribuições, até então, pelas funções policiais, transferindo tal prerrogativa aos Chefes de Polícia e seus delegados, o que representou significativo retrocesso no modelo vigente; atribui-se tal reforma, em decorrência das rebeliões que surgiam após a abdicação do trono por parte de Pedro I.

A segunda alteração se deu através da Lei 2.033, no ano de 1871, que conforme anteriormente já foi mencionado, criou o inquérito policial, na forma essencial que ainda se conhece, como formalizador das investigações penais.

Com a Constituição Republicana de 1891, chega ao Brasil o federalismo e a descentralização do poder político, ou seja, a partir esse instante, cada Estado, membro da Federação, passava elaborar seu próprio ordenamento processual penal, como por exemplo, Amazonas, Maranhão, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

2º - Proceder ao inquerito policial e a todas as diligencias para o descobrimento dos factos criminosos e suas circumstancias, inclusive o corpo de delicto. 3º Conceder fiança provisoria. - Decreto nº 4.824 de 22 de novembro de 1871

Page 33: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

22

Na década de 30, coube a Francisco Campos, considerado um dos mais importantes ideólogos do regime de Getúlio Vargas, a tarefa de redigir uma nova Constituição para o país; também, ficou a cargo do seu então Ministro da Justiça, a elaboração de um novo Código Penal e, um novo Código de Processo Penal brasileiro, o que foi feito; com inspiração no Código de Processo Penal Italiano de 1930, que foi concebido durante o auge a ditadura fascista de Benito Mussolini, o CPP restou por concluído, entrando em vigor no dia 1º de janeiro de 1942.

A inspiração no modelo fascista, bem revela a essência política do regime em que foi concebido; no Brasil, através das normas constitucionais, penais e processuais, que eram introduzidas por Getúlio Vargas, se balizava o alcance do poder pretendido pelo ditador da ocasião.39

A partir da elaboração e decretação do atual Código de Processo Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 3.689/41), o inquérito configurado no período medieval chega ao Brasil do século XX. Após sobreviver até o final da década de 30, com os mesmo traços de sua origem, é positivado em sua última versão sem essenciais alterações.

A ditadura de Getúlio Vargas, iniciada em 1937, não é fato isolado de ausência de expressão plena de soberania popular na gestão do poder, durante todo período da história brasileira40.

A incipiente participação das massas populares, desde os tempos do Brasil Colônia, Império e Primeira República41, combinada a frágil e formal democracia que 39 “... os vários tipos de processo penal (acusatório ou inquisitório) estão em relação direta com um determinado tipo de civilização e, também, com a estrutura de uma determinada sociedade política;” (...) Assim, toda (sic) a disciplina da coerção processual pessoal (inquérito policial, prisão sem mandado, prisão resultante de mandado) está em função de uma escolha política feita pelo legislador entre ,uma "razão de Estado" e uma "razão do indivíduo". Não existe quase instituto do processo penal que não revele sua intrínseca natureza política e não seja ao mesmo tempo, a expressão de uma idéia que supera a realidade prática e a desenvolve em têrmos(sic) de sentido cultural.” BETTIOL, Giuseppe. Noções Sôbre(sic) Processo Penal Italiano, Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, n. 2, jul./dez. 1966 p. 17. Disponível em http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/20471/nocoes_processo_penal_italiano.pdf?sequence=3. Acesso em 14/05/2011 40 “O Brasil é uma sociedade com uma longa tradição de política autoritária. A predominância de um modelo de dominação oligárquico, patrimonialista e burocrático resultou em uma formação de Estado, um sistema político e uma cultura caracterizados pelos seguintes aspectos: a marginalização, política e social, das classes populares, ou a sua integração através do populismo e do clientelismo; a restriçãoda esfera pública e as sua privatização pelas ellites patrimonialistas; a “artificialidade” do jogo democrático e da ideologia liberal, originando uma imensa discrepância entre o ‘país legal’ e o ‘pais real’. A sociedade e a política brasileiras são, em suma, caracterizadas pela total predominância do Estado sobre a sociedade civil e pelos obstáculos enormes à construção da cidadania, ao exercício dos direitos e à participação popular autônoma”. SANTOS, Boaventura de Souza (organizador). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 2003. p. 458

Page 34: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

23

existia na ocasião, não resistiu ao apoderamento do poder e a consequente construção do Estado Getulista, onde mais uma vez, permanece prestigiado o inquérito policial, nos moldes que já vinha implantado.

A concentração de poder, e o desrespeito aos direito fundamentais, notadamente, são traço característicos dos Estados totalitários, esperar que precisamente, nesse momento de retrocesso democrático, ocorresses alguma transformação garantidora, seria no mínimo ingenuidade; o “Estado Novo” tinha no inquérito policial, poderosa arma de controle social, e valoroso instrumento aliado, na realização de sua política perseguidora e de combate a seus inimigos.42

O fim da primeira era Vargas se dá com o término da Segunda Guerra mundial; com mundo tomado pelo discurso dos ideais democráticos, inspirador da resistência contra o reich alemão sucumbe a primeira presidência getulista; através do voto, assume a Presidência da República o Marechal Dutra, período em que se inicia uma fase de experimento das brisas democráticas. Nessa oportunidade é promulgada a Carta Constitucional de 1946 de modelo liberal-democrático, sem que, contudo, o modelo consagrado no inquérito policial tenha sofrido alteração.

Novamente no poder, desta feita pela legitimação das urnas, Getúlio Vargas volta em 1951 à presidência, quando reafirma seu carisma43 junto às classes trabalhadoras, sem que, entretanto, seu brilho pessoal e interesse, façam avançar e estabilizar a causa da democracia brasileira.

Sucumbindo a pressões políticas da época, Getúlio fez-se ao final vítima de intrigas e denúncias de terrorismo de Estado; quando após a tentativa de assassinato de Carlos Lacerda, seu maior opositor, Getúlio Vargas se suicida em 1953. Tal como no seu primeiro governo, manteve-se o mesmo inquérito decretado em 1941. 41 O fio condutor, referente às experiências democráticas brasileira, foi o construído a partir de HAMEL, Márcio Renan. A política deliberativa em Habermas: uma perpectiva para o desenvolvimento da democracia brasileira. Passo fundo, Méritos, 2009. 42 “O delegado Rui Tavares Monteiro, da Superintendência de Segurança Política e Social de São Paulo, concluiu o inquérito policial em 1º de fevereiro de 1941, declarando que o dr. José Bento Monteiro Lobato, ‘sobre haver injuriado o Sr. Presidente da República, procura com notável persistência desmoralizar o Conselho Nacional de Petróleo, apresentando-o a soldo de companhias estrangeiras, em cujo exclusivo benefício toma todas as suas deliberações, o que, a ser verdade, constituiria, sem dúvida um crime de lesa-pátria, que comprometeria o próprio Governo Federal, de que ele é representante’”. A Prisão de Monteiro Lobato. Disponível emhttp://www.oabsp.org.br/institucional/grandes-causas/a-prisao-de-monteiro-lobato. Acesso em 13/05/2011 43 “Bota o retrato do velho outra vez, / bota no mesmo lugar, / o danado do velinho faz a gente trabalhar” marchinha carnavalesca de Haroldo Lobo e Marino Pinto no ano de 1950, em alusão ao retorno de Vargas à presidência. (cito de memória)

Page 35: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

24

Após a era Vargas, assume o governo do país Juscelino Kubitschek, em 1955. “O governo de JK obteve estabilidade política; entretanto, o regime democrático era tratado em certos limites, sempre com a prevenção da ordem interna.”44 Quanto ao inquérito, nenhuma novidade ou modificação digna de registro nesse período.

Após JK vem a era Jânio Quadro, que durou apenas sete meses, em razão de sua renúncia à presidência, causando na jovem e frágil democracia ferimento de morte, que prenunciava a chegada da próxima ditadura militar. Nesse curto período, tal como no de seu predecessor, o inquérito policial não foi alterado; também não há alteração quanto às práticas democráticas participativas.

Sucede a Jânio, seu vice-presidente João Goulart, ex-ministro do trabalho de Getúlio Vargas, e herdeiro do seu legado populista. “Jango” opera com práticas próprias, visa à construção de um modelo sindicalista de participação popular, e prestigio a outros movimentos e classes sociais (trabalhadores rurais, estudantes, militares de patentes inferiores, analfabetos etc.).

No caminho da solidificação das instituições democráticas, pouco ou nada se avançou. Jango representou o retorno do modelo personalista de Vargas, porém, com alterações direcionadas a uma mudança na correlação de forças ao exercício do poder, porém, sem preocupar-se com avanços da democracia como instituição; valendo-se da incipiente existente, acabou por dividir ainda mais a sociedade brasileira, já marcada pela polarização de classes antagônicas, não conseguindo atingir seu intento, tem seu fim determinado por sua inabilidade política, que culmina com o golpe militar de 1964.

Durante o governo de João Goulart, nada mudou no modelo inquisitivo de 1941. Com sua última formatação num modelo de Estado autoritário, o atual inquérito

policial, no seu primeiro convívio com a democracia, durante 23 anos, permaneceu inalterado em conteúdo e essência. Não seria diferente nos anos que seguiriam a partir do golpe militar de 1964, que se manteve até 1984.

Com práticas próprias dos sistemas pré-modernos45, o inquérito policial durante os vinte anos da ditadura militar, finalmente voltava a encontrar terreno próprio à sua

44 Idem, HAMEL, Márcio Renan. p. 49 45 “A modernidade é compreendida pelo período que se estende entre meados do século XV e o momento no qual nos encontramos. Diferentemente das classificações histórico-antropológicas, que dividem a existência humana na face da terra em períodos (Pré-história, Idade Antiga, I. Média, I. Moderna, I. Contemporânea) a partir de mudanças naturais (geológicas ou biológicas), sociais ou fatos políticos relevantes, a modernidade recebe essa denominação para configurar e denotar uma modificação no modo

Page 36: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

25

linguagem, não era mais uma aberração jurídica, sujeita a ser questionado a todo instante, posto ser a própria ditadura essa aberração maior, que abrigava em suas entranhas, as sementes medievais da tortura, incomunicabilidade, sigilo completo etc..

Prova é que a própria polícia judiciária da União, foi refundada e rebatizada através da Constituição de 1967, que conforme o seu art. 8º, inciso VII, alíneas “c” e “d’, tinha como uns de seus objetivos, respectivos, “a apuração de infrações penais contra a segurança nacional, a ordem política e social,” e “a censura de diversões públicas”, o que bem demonstravam seus propósitos. No âmbito estadual, outro exemplo de atividade policial de investigação a serviço da ditadura, pode ser recordado através do extinto Departamento Estadual de Ordem Política e Social, ou simplesmente “DOPS” – em triste lembrança o do Estado de São Paulo – comandado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, que com sua equipe torturou e matou inúmeros oposicionistas do regime. Dando por fim essas observações, grafamos: “mas tanto o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social, de âmbito estadual), como as delegacias regionais do DPF (Departamento de Polícia Federal) prosseguiram atuando também em faixas próprias, em todos os níveis de repressão: investigando, prendendo, interrogando e, conforme abundantes denúncias, torturando e matando.”46

Finda a ditadura militar, com marco jurídico a partir da nova Constituição em 1988, o país retoma a construção de um modelo de democracia, inicialmente ainda não tão claro quanto aos rumos a seguir, entretanto, de significativo avanço principalmente quanto a possibilidade de escolha direta de seus governantes, como no caso de Fernando Collor em 1989; Fernando Henrique Cardoso em 1994, com recondução até 2003; Luiz Inácio Lula da Silva também com oito anos de mandato, reeleito até 2010; e mais recentemente, a eleição de Dilma Rousseff.

Muito representou as últimas duas décadas para a consolidação do Estado Democrático de Direito no Brasil, entretanto, ao que pese qualquer contribuição formal e avanços pontuais na sua consolidação, parece que o inquérito policial, sobrevive a esse novo período de construção das instituições, de forma inabalável, quase que de compreensão do mundo que se observa a partir de meados do século XV e que se desenvolve até hoje.” HANSEN, Gilvan Luiz. Espaço e Tempo na Modernidade http://www.unipli.com.br/direito/PASTAS_DOS_PROFESSORES/Arquivos_/Espaco_e_tempo_na_modernidade.pdf (acessado em 29/04/2011) 46 Brasil: Nunca Mais. Prefaciador Cardeal D. Paulo Evaristo, pesquisa da Arquidiocese de São Paulo 2ª ed.,Petrópolis, Vozes, 1985. p. 74

Page 37: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

26

invisível, como se pertencesse a outra dimensão ou mundo externo, estranho aos avanços conseguidos.

Com todas as alternâncias e manifestações de poder ocorridas, idas e vindas no campo democrático, observando sua inflexibilidade e imutabilidade, durante todo esse percurso, bem se pode dizer, que o inquérito policial é o reflexo de uma distorção no campo das liberdades e direitos fundamentais, porém, sempre presente na história do país.

Em outras palavras, o inquérito policial, retrata como entre outras práticas totalitárias, legitimadas através da positivação legal e dos dogmas de ocasião, uma pseudodemocracia, sempre presente na história política brasileira47.

Descrita sua trajetória histórica, algumas questões devem ser previamente apresentadas ao conhecimento e reflexão, isso porque, as contribuições histórico-sociológicas até agora feitas, embora já sirvam de base à sustentação de algumas conclusões, estariam incompletas se não levasse em conta aspectos de natureza jurídica presentes no ordenamento brasileiro. Portanto, nos próximos capítulos, serão discutidas duas questões preliminares: a primeira relativa à legalidade e legitimidade do IP sob análise intra-sistêmica, através de sua adequação constitucional; e a segunda, ainda valendo-se de elementos interdisciplinares, concernentes a democracia. 47 “A simples (re)democratização do Brasil não resolveu todos os problemas cotidianos dos brasileiros excluídos, mas, tão-somente, os das elites políticas, as quais continuam utilizando o Estado para seus interesses particulares em detrimento de uma maioria paupérrima e excluída, que vive a ilusão de uma pseudodemocracia. Os chamados ‘canais institucionais’ – referendo, plebiscito, e iniciativa popular – são mecanismos raramente utilizados pelos poderes instituídos a fim de buscar a consulta ou a vontade popular, até porque dependem de votação e aprovação de projeto no Legislativo, o que acaba freando as intenções de consultas”. Hamel, Márcio Renan. Idem p. 116

Page 38: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

27

3. O CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS

Antes de se tratar da facticidade do inquérito policial, quando serão apresentadas suas características, é necessário abordar a questão da constitucionalidade das leis, isso porque, através dessa breve descrição dos controles, por quais as normas passam, se poderá caminhar por todo o trabalho com um olhar mais acurado, e assim, ao final, atingir conclusões fundamentais quanto à legitimidade do instrumento de investigação em estudo.

Independente da classificação que se adote – quanto à forma (escrita ou não escrita); origem (promulgada ou outorgada); modo de elaboração (dogmática ou consuetudinária); finalidade (sintética ou analítica); conteúdo (formal ou material); estabilidade (rígida ou flexível) – como norma, a Constituição representa o estatuto fundante do ordenamento jurídico de um Estado.

Ocupando lugar de primazia no sistema jurídico positivado, as constituições posicionam-se acima das demais normas que compõem o ordenamento, por esse

Page 39: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

28

atributo, possuem a qualidade de ser o fundamento de validade das leis que delas derivam48.

Assim, como normas superiores, são fontes de regras e princípios, que na maioria das vezes, ganham formas através de expressão escrita; tal como as leis que delas se nutrem, as constituições também possuem componentes de validade e eficácia, em razão de um legitimador comum; se no momento de suas formações, se deram por vontade popular, ou por outorga soberana, por ora, não é a questão, o certo, é que essa vontade foi manifesta através do que se denomina Poder Constituinte.

A principalidade contida nas normas constitucionais não tira, contudo, seu caráter normativo, regulador; as normas constitucionais, não são abstraídas da qualidade de mando, são normas integrantes do ordenamento jurídico, são leis; portanto, além de serem portadoras de um valor mandamental, também são dotadas de potencialização, devido à superioridade hierárquica que ocupam sobre as demais leis, logo, possuem eficácia inconteste49.

Nessa perspectiva, há muito consagrada, é imperioso que seus comandos sejam atendidos, sob pena de se adentrar no nebuloso caminho da inconstitucionalidade (lato sensu); o selo de efetividade que possuem as constituições, afiança, que seu não cumprimento, mobilizará todo aparato estatal e ensejará na sua aplicação coercitiva.

Como mecanismo de observância dessa efetividade, o sistema jurídico desenvolveu o controle de constitucionalidade das leis; esse controle visa atacar, toda e qualquer ação, ou omissão, contrária ao querer constituinte, por meio de mecanismos previstos no próprio texto constitucional, que em última instância, foram idealizados para sua autopreservação.

48 “O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma. Uma norma que representa o fundamento de validade de outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma outra norma que é, em relação a ela, a norma inferior.” (...) “A norma fundamental é a fonte comum de validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum.” (...) “É a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas pertencente a essa ordem normativa.” KELSEN, Hans Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado, São Paulo, Martins Fontes, 1999. P. 215 e 217 49 “Da eficácia jurídica cuidou, superiormente, José Afonso da Silva, para concluir que todas as normas constitucionais possuem e são aplicadas nos limites objetivos de seu teor normativo. Lastreando-se na lição de Ruy Barbosa, assentou que não há, em uma Constituição, cláusula a que deva atribuir meramente o valor moral de conselho, avisos ou lições. Todas têm a força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus órgãos. Deliberadamente, ao estudar-lhes a capacidade de produzir efeitos, deixou de lado a cogitação de saber se esses efeitos efetivamente se produzem.” BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas – Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 5ª ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro, Renovar, 2001. P. 84

Page 40: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

29

Quanto ao sistema de controle no Brasil, este foi concebido para atuar em dois momentos: o primeiro, ocorre ainda na fase da elaboração das leis, enquanto projetos, quando esses, poderão sofrer a incidência fiscalizadora do Poder Legislativo, através de suas respectivas Casas, ou ainda, mais adiante, pelo Poder Executivo, através da disponibilidade de veto do seu Chefe, é o nominado controle preventivo; o segundo, chamado de repressivo, exercido através do Poder Judiciário, se dá sobre a lei, não mais em tese, mas sancionada e tornada pública, quando aquela, mesmo tendo passado pelo crivo inicial preventivo, ainda traga consigo vícios insustentáveis diante do ordenamento constitucional.

O controle da constitucionalidade através do Poder Judiciário poderá ser exercido de duas formas: concentrado e difuso; diz-se concentrado, quando, através de ações judiciárias próprias, que visam a atacar possíveis ou reais prejuízos à ordem constitucional, ainda que a lei questionada não tenha sequer sido utilizada em qualquer situação, esse controle é realizado pelos Tribunais de última instância, com competência determinada conforme distribuição de poder, nos moldes federativos; e difuso, que pode ser realizado através de qualquer órgão do Poder judiciário, porém, sobre um caso concreto, que esteja sob análise do julgador. Nessa segunda forma, o controle poderá se ocorrer, inclusive, de ofício pelo juiz da causa, ou seja, ainda que não provocado por qualquer das partes, tal iniciativa do julgador dá-se, em razão do dever de zelar pela ordem constitucional.

Inobstante ao controle de constitucionalidade, que ocorre sobre as leis que tenham sido produzidas a partir da vigência da última Constituição, há o controle que se realiza sobre o ordenamento jurídico anterior a última edição constitucional, é o denominado controle sobre ordenamento jurídico preexistente.

Visando não desprezar todo arcabouço legal, concebido anteriormente a nova realidade constitucional, e, considerando, como anteriormente exposto, que o fundamento de validade das leis, reside na norma superior, o sistema jurídico, construiu um modo de aproveitamento daquelas leis anteriores, desde que não se atritem com a nova ordem.

Descartada a antiga Constituição, posto estar revogada pela existência de uma nova, e não havendo que se falar em aproveitamentos parciais do antigo modelo, restam, as normas que foram revogadas por aquela antiga Constituição revogadora, que hipoteticamente, poderiam ser revigoradas diante do novo ordenamento constitucional;

Page 41: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

30

ou seja, seria a restauração da norma revogada pela revogação da Constituição revogadora; assim, ocorreria o fenômeno jurídico da repristinação, que, a princípio, é inaceitável pelo sistema, salvo quando, expressamente previsto na nova Constituição, face ao seu caráter inovador e fundante de todo o sistema.

Nesse modelo de aproveitamento, também, e por último, há o fenômeno da recepção das leis, que em síntese, representa a aceitação dentro do novo ordenamento jurídico, de norma, editada ao tempo de Constituição passada, que não colida materialmente com o novo texto Constitucional. Ou seja, não importando sob qual fundamento de validade a lei tenha surgido, ai inclua-se desde a primeira Constituição, a norma que nunca foi revogada é mantida com plena eficácia e validade, isso porque, possui atributos e valores que se identificam com o novo querer constitucional. Nesse caso, desconsidera-se a incompatibilidade formal, ou seja, qualquer que seja sua natureza, mesmo assim será recepcionada (total ou parcialmente).

Finalmente, quanto à recepção, está pode ocorrer de maneira expressa, quando a própria Constituição dispuser sobre sua mantença no ordenamento; ou de maneira tácita, caso que ocorrerá, quando através da verificação de sua aplicabilidade nos casos concretos, os órgãos julgadores admitirá a norma no ordenamento, atribuindo-lhe compatibilidade constitucional.

Ao se discutir o inquérito policial, é mister entender como este ingressou no ordenamento jurídico atual. Previsto no bojo do Código de Processo Penal, através do Decreto-lei nº 3.689 de 3 de outubro de 1941, pelo que foi visto, tratando-se de norma editada à época da Constituição de 1937, o instrumento de investigação policial vem sendo recepcionado, sob o argumento de que é compatível com a Constituição de 1988.

A sua aplicabilidade, portanto, a exceção dos artigos referentes à requisição de instauração pelo juiz (art. 5º, II) e incomunicabilidade dos presos (art. 21), vem sendo entendida como total, ainda que a atual Constituição tenha se filiado ao sistema acusatório – tema que será abordado no próximo capítulo.

Entretanto, tal formulação, pelo que foi e ainda será visto, é insustentável, até porque, é flagrante a violação mandamental prevista na CRFB, em vários momentos, porém, em acomodada postura, os tribunais, afinam os olhares críticos e aceitam in totum os comandos reguladores do inquérito policial, ou por distorcida interpretação dos mais recentes comandos constitucionais, ou mesmo, pela falta de instrumento legal substituto ao ordenamento ora existente.

Page 42: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

31

É certo, que a recusa ao modelo inquisitivo vigente, pela afirmação de sua incompatibilidade constitucional, geraria um vácuo legislativo, de conseqüências imprevisíveis a curto e médio prazo, porém, tal risco não justifica a permanência do modelo em curso, sem mínimas providências, daqueles que tem o dever de zelar pelo ordenamento jurídico maior; como tal, o mesmo risco se oferece em maior gravidade, quando o Estado-Juiz se exime e desrespeita a Lei Consagrada. Sob a justificativa de não deixar impunes os que infringem as normas penais, igualmente o Judiciário tem se desviado da lei constitucional, caindo em autocontradição performativa, isto é, aquilo que diz e exige, não é aquilo que faz.

4. DE QUAL DEMOCRACIA SE ESTÁ FALANDO? Até agora, já se falou e muito se fará referência ao Estado Democrático de

Direito, embora ainda não se tenha balizado de maneira mais precisa, em que consiste esse componente democrático, próprio dos Estados-nação.

Para socorro dessa delimitação conceitual jurídica, necessária ao entendimento das discussões subseqüentes, se levará em conta os contributos da sociologia, que servirão ao estabelecimento dos parâmetros utilizados à compreensão das inconsistências políticas no Estado brasileiro no IP.

Em termos nominais, democracia encontra suas origens na palavra demokratia, fruto da junção de duas expressões de origem grega, demos (povo) e kratos (poder); em termos político-institucional, ainda com balisares gregos, de forma reducionista, democracia seria um sistema político onde a fonte e legitimidade do poder residiria na vontade popular.

Porém, o conceito sintático-gramatical não possui suficiente poder para definir seu real sentido, abrangência e contradições, sob o ponto de vista de sua aplicação

Page 43: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

32

jurídico-política; assim, a definição de democracia deve ser mais bem explorada, para se entender sobre qual democracia se está referindo no texto do presente trabalho.

De antemão, “a democracia, como que por natureza, suscita ásperas querelas ideológicas”50; logo, qualquer que seja a conceituação adotada, recairá sobre uma escolha, um modo de olhar individual, ainda que essa singularidade possa repousar numa aceitação de critérios mais comum dos demais agentes políticos globais, o que por sua vez, também, não lhe confere um caráter de unicidade.

Voltando a questão etimológica, a democracia é um modo de governo no qual o povo exerce seu poder, no caso brasileiro, precipuamente, adjetivada pelo seu caráter representativo, ou seja, através de pessoas eleitas com a finalidade do exercício do poder governamental, ainda que haja previsão no ordenamento constitucional de sua manifestação participativa direta, como nos casos dos plebiscitos, referendos e indicações a projetos de lei.

Conforme literatura específica, a democracia representativa, seria nos dias atuais a mais comum, considerando as dificuldades de aplicação em larga escala dos processos participativos diretos51.

Também, não perdendo de vista o horizonte ideológico contaminador, classifica-se a democracia em liberal, socialista e popular ou plural, bem como, podem ser definidas como constitucional, parlamentar ou pluripartidária.

Enfim, muito já se escreveu sobre essas questões conceituais, porém, conforme o propósito do presente capítulo, o que se pretende demonstrar é sobre qual escolha recai o entendimento pretendido e sua implicação com a desconformidade do IP como modelo.

Inicialmente, deve-se rechaçar que a democracia seja um processo sujeito a um evolucionismo histórico natural, até porque, embora o sistema que represente, se manifeste desde a antiguidade na sociedade grega, suas alterações factuais não podem ser interpretadas como um processo de aprimoramento permanente, muito pelo contrário, não raras vezes da antiguidade até a contemporaneidade, em nome da democracia diversas barbaridades foram cometidas em nome do povo, pelo povo e para

50 GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia?: a genealogia filosófica de uma grande aventura humana. Tradução Claudia Berliner, São Paulo, Martins Fontes, 2003. p. 2 51 GIDDENS, Anthony. Sociologia. Tradução de Sandra Regina Netz, Rio Grande do Sul, Artmed, 2005. p. 344

Page 44: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

33

o povo. Enganam-se aqueles que acreditam que a humanidade anda linearmente em direção ao aprimoramento, para se conferir tal afirmação, basta se olhar para a degradação ambiental que essa mesma humanidade tem praticado ou permitindo que se faça, para se ter um exemplo de retrocesso de valores fundamentais à dignidade humana e a integridade planetária.

Por outro lado, também não se pode negar que a democracia possa estar em processo expansionista ou de aprimoramento ao longo da história, mesmo com todas as suas falhas e paradoxos; em revés, como também, não se deve consagrar como definitivo qualquer que seja sua forma ou irreversibilidade de manifestação.

Portanto, para se enfrentar o tema inquérito policial no cenário democrático, se deverá assumir uma posição clara sobre o conceito.

A nosso ver, ainda que a opção escolhida possa comportar “zonas de sombras e contradições”, nos parece que princiologicamente, a democracia “destina-se a amarrar procedimentos de normatização legítima do direito. Ele significa, com efeito, que somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de normatização discursiva. O princípio da democracia explica noutros termos, o sentido performativo da prática de autodeterminação de membros do direito que se reconhecem mutuamente como membros iguais e livres de uma associação estabelecida livremente. (...) [O] princípio da democracia pressupõe preliminarmente a possibilidade da decisão racional de questões práticas, mais precisamente, a possibilidade de todas as fundamentações, a serem realizadas em discursos (e negociações reguladas pelo procedimento), das quais depende a legitimidade das leis.”52

Assim, o sistema democrático brasileiro, embora com todas as suas contradições internas e disjunções53, é terreno fértil para os avanços pretendidos, conforme os princípios informados, isso porque, tem sua manifestação através de realização de eleições regulares, com significativa dose de transparência e lisura, bem como, conta

52 Idem, HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia. v.1. p.145. 53 “A violência e o desrespeito aos direitos civis constituem uma das principais dimensões da democracia disjuntiva do Brasil. Ao denominá-la disjuntiva, James Holston e eu (1998) chamamos a atenção para seus processos contraditórios de simultânea expansão e desrespeito aos direitos da cidadania, processo que de fato marcam muitas democracias do mundo atual (Holston, manuscrito). A cidadania brasileira é disjuntiva porque, embora o Brasil seja uma democracia política e embora os direitos sociais sejam razoavelmente legitimados, os aspectos civis da cidadania são continuamente violados” CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros, Crime, segregação e cidadania em São Paulo. 34 ed, São Paulo, Edusp, 2000.. p. 343

Page 45: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

34

com a participação da população no processo de escolha, dotada de liberdades civis (expressão, discussão, associação etc.). Ou seja, ainda que frágil sobre diversos aspectos formais e expressões concretas junto à sociedade, a democracia brasileira, tem demonstrado fôlego na busca de avanços e progressos.

A propósito da referida disjunção que afeta a cidadania brasileira, o inquérito policial bem se adéqua como exemplo dessa prática, isso porque, embora haja consagração constitucional aos direitos cidadãos, por sua vez, seu modelo e práticas violam essas garantias, que a propósito, não se verifica somente no Brasil, mas também por outros cantos do planeta. Ou seja, retornando a conceitos habermanianos, trata-se e uma prática pseudodemocrática.

Todavia, a constatação dos grandes desafios que comportam sua construção, não pode servir de obstáculos irremovíveis ao seu aprofundamento, deve-se radicalizar a democracia. A propósito, GIDDENS também trata dessa questão ao sugerir a “democratização da democracia”54, ao sugerir a promoção de uma descentralização do poder e criando mecanismos que possibilitem tomadas de decisões mais próximas do cotidiano dos cidadãos, bem como, afastando vetores de mercado e Estado, que nas atuais democracias liberais se confundem, visando um maior equilíbrio entre governo, economia e sociedade civil.

Especificamente no caso brasileiro, nos referimos ao processo de construção da democracia através da expressão das diversas formas de manifestação do poder ao longo de sua história, o que nos força por vezes a tomar posturas aparentemente de dualidade, entre o bom e o ruim, entre o que foi e o que é, porém, o que não implica em uma simplificação crítico-analítica, mas reflexiva sobre erros e acertos no percurso de pavimentação da cidadania e sua emancipação.

É sobre a constatação factual da realidade democrática brasileira que se apresenta, que iremos construir nossas críticas, que poderiam ser estendidas a vários outros fatos e fazeres, que também merecem mais que reparos, entretanto, conforme a proposta temática, especificamos o recorte sob o inquérito policial.

E nessa interpretação que o presente trabalho se refere a Estado Democrático de Direito, como um Estado que encontre sua possibilidade e limite de ação dentro do campo delineado pela lei, porém, que este campo seja construído através da legitimação 54 GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole, o que a globalização está fazendo de nós. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges, 6ª ed., Rio de Janeiro, Record, 2007 p. 84

Page 46: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

35

da população, que como titulares do poder, possam decidir seus caminhos. Mais se dirá com o desenvolver dos temas, porém, cremos que a partir dessas breves explicações e tomadas de posição, poderemos avançar no objeto da pesquisa.

Ultrapassadas essas últimas e necessárias argumentações – constitucionalidade e democracia – o próximo passo deve ser dado na direção de suas associações, abordando-se o modelo de atuação do Estado na persecução penal, para finalmente, no encerramento desse primeiro capítulo se observar a manifestação do IP através de suas características e questões pulsantes.

5. SISTEMA ACUSATÓRIO E SISTEMA INQUISITORIAL De acordo a titularidade do órgão de acusação, podem ser elencados três

modelos de sistemas processuais: o inquisitivo, o acusatório e o misto; sendo característica do primeiro, a identidade única entre acusador e julgador num mesmo órgão; no segundo modelo, diferentemente, caberá a órgãos distintos a atribuição acusatória e de julgamento; e por fim, no terceiro, o traço marcante do sistema, se dá pela existência dos dois momentos durante a persecução penal, inicialmente, procede-se a uma instrução inquisitorial, e posteriormente, a aplicação de instrução moldada sob os pilares do sistema acusatório.

Ainda, é características de cada um, a existência de maior ou menor grau de participação do acusado/investigado na produção do conhecimento pretendido; isso porque, adotado o sistema inquisitorial, o investigado, torna-se despossuído de certas garantias, entre outras, a possibilidade de contra-afirmação do que lhe é imputado, bem como, toda a produção do conhecimento se realiza de maneira sigilosa, logo, sua participação no processo investigativo, se dá como mero objeto de conhecimento; já no sistema acusatório, a participação do acusado/investigado, dá-se de maneira efetiva, a

Page 47: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

36

começar pelo seu reconhecimento como pessoa de direito, e não objeto de pesquisa, portanto, capacitado de contra-argumentar, produzir provas em seu favor, e ter a segurança da publicidade das apurações ao seu lado; por conclusão, no sistema denominado misto, essas características se repetem, porém, dependendo de qual momento esteja persecução.

Conforme cotejamento entre os dois primeiros sistemas, seguem mais características: no acusatório, mesmo após a afirmação do fato, ainda não provado, mantém-se a presunção de inocência do indivíduo, o que prestigia seu status dignitati, evitando maculas decorrentes do processo; no sistema inquisitorial, o fato é afirmado, acredita-se plausível de existência, decorrente disso, presume-se que o indivíduo seja culpado, o que está em jogo nesse sistema, não é o interesse individual, mas o interesse público, previamente tido como lesado, portanto, o objetivo das pesquisas, não é no sentido do convencimento do juiz, da ocorrência do ato ilícito e seu autor, mas na confirmação de uma afirmação inicial de culpa55.

O modelo brasileiro, conforme majoritária doutrina, a princípio, consagrou o sistema misto, isso porque, durante a primeira fase da persecução penal, adotou o inquérito policial, com características que serão descritas mais a seguir; e na segunda fase, alinha-se com o “devido processo legal”56, com todas as suas garantias referentes a igualdade das partes, ao contraditório, ampla defesa, oralidade, publicidade de seus atos, etc..

Complete-se, quanto ao modelo consagrado na CRFB/88, pode-se dizer, que ao indicar o Ministério Público, como titular das ações penais públicas, e reservando

55 Leitura conforme JÚNIOR, Mendes de Almeida, apud LIMA, Roberto Kant. p. 270 56 “Os princípios do devido processo legal devem ser atendidos em qualquer processo que sirva à tomada de uma decisão que possa, de alguma forma, influir na esfera jurídica da pessoa, ainda que seja processo não-estatal. “ SLAIBI FILHO, Nagib. Direito Constitucional. Rio de Janeiro, Forense, 2004. p. 403 Da mesma forma: “É provável que a garantia do devido processo legal configure uma das mais amplas e relevantes garantias do direito constitucional, se considerarmos a sua aplicação nas relações de caráter processual e nas relações de caráter material (principio da proporcionalidade/direito substantivos). Todavia, somente no âmbito das garantias do processo é que o devido processo legal assume uma amplitude inigualável e significado impar como postulado que traduz uma série de garantias hoje devidamente especificadas e especializadas em várias ordens jurídicas. Assim, cogita-se de devido processo legal quando se fala de (1) direito ao contraditório e à ampla defesa, de (2) direito ao juiz natural, de (3) direito de não ser processado e condenado com base em prova ilícita, de (4) direito a não ser preso senão por determinação da autoridade competente e na forma estabelecida pela ordem jurídica. Daí ter Rogério Lauria Tucci afirmado que a incorporação da garantia do devido processo legal, de forma expressa no texto constitucional de 1988, juntamente com outras garantias específicas, acabou por criar uma situação de superafetação.” MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártines e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, São Paulo, Saraiva, 2008. p. 639

Page 48: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

37

exclusivamente ao Poder Judiciário a função julgadora, seguiu o sistema acusatório na segunda fase e, ao indicar a autoridade policial, como responsável pela primeira fase da investigação, pessoa diversa dos dois nominados, aplica-se o modo inquisitorial.

Porém, como afirmado, a classificação tradicional atribuída não é pacífica, isso porque, alguns institutos presentes no CPP, atribuem ao juiz da causa, semelhante poder de acusador, como nos casos da mutatio libelli, previsto no art. 38457, oportunidade que o magistrado pode dar nova definição ao fato criminoso, ou seja, atribuindo juízo de valor, como parte interessada, ferindo, pois, a sua imparcialidade.

Também, em claro exemplo violador do modelo acusatório, existe autorização expressa na lei processual, para que o juiz possa determinar de ofício, a produção de provas que ache interessantes ao seu conhecimento; essa situação é deveras comprometedora, considerando, que o juiz ao assumir tal prerrogativa, certamente o faz, porque tem algum objetivo a ser demonstrado, assumindo por decorrência, possuir uma tese não satisfeita por qualquer das partes, assim, chama para si função própria de uma delas; essa previsão violadora encontra-se no art. 15658, sendo consagrada pela doutrina e jurisprudência mais conservadora, em nome da “busca pela verdade real”. De igual modo, a leitura dos arts. 196 e 66159, afirmam o que ora se apresenta.

Ao confundir o julgador com uma das partes, o legislador infraconstitucional, de um só golpe, violou o princípio da iniciativa das partes, e autorizou a quebra da imparcialidade do julgador.

Outros princípios garantidores do sistema acusatório, erigidos ao status de normas superiores pelo legislador constituinte de 1988, portanto, fundamentos de 57 Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008). Código de Processo Penal. 58 Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008) I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008) II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008) Código de Processo Penal 59 Art. 196. A todo tempo o juiz poderá proceder a novo interrogatório de ofício ou a pedido fundamentado de qualquer das partes. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003) Art. 661. Em caso de competência originária do Tribunal de Apelação, a petição de habeas corpus será apresentada ao secretário, que a enviará imediatamente ao presidente do tribunal, ou da câmara criminal, ou da turma, que estiver reunida, ou primeiro tiver de reunir-se. Código de Processo Penal

Page 49: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

38

validade das normas infraconstitucionais60, foram desprestigiados em decorrência dessas permissões no CPP, tais como, o da presunção de inocência, do in dúbio pro reo, do contraditório e da ampla defesa.

Na mesma linha, os artigos 127, 209, 242, 311 e 385 do CPP61, revelam a forma “híbrida” adotada no processo penal brasileiro, ou como prefere chamar a dogmática jurídica, “modelo mitigado”; ora consagrando o sistema acusatório, ora mantendo suas raízes inquisitoriais, o processo penal brasileiro aplica-se segundo modelo próprio, muitas vezes dissonante da formulação constitucional. Assim, conforme a análise procedida, não se pode afirmar categoricamente, que no Brasil se aplica um sistema processual misto, muito embora, deva-se reconhecer da presença de seus traços marcantes.

Entretanto, em face do poder normativo presente na Constituição Federal, bem como, de sua superior posição hierárquica no sistema jurídico, as normas infraconstitucionais, devem ser lidas e interpretadas sob a ótica de seus princípios62. Os

60 A constituição é uma lei dotada de características especiais. Tem um brilho autônomo expresso através da forma, do procedimento de criação e da posição hierárquica das suas normas. Estes elementos permitem distingui-la de outros actos com valor legislativo presente na ordem jurídica. Em primeiro lugar, caracteriza-se por sua posição hierárquico-normativa superior relativamente às outras normas do ordenamento jurídico. Ressalvado algumas particularidades do direito comunitário, a superioridade hierárquico-normativa apresenta três expressões: (1) as normas constitucionais constituem uma lex superior que recolhe o fundamento de validade em si própria (autoprimazia normativa); (2) as normas da constituição são normas de normas (normae normarum) afirmando-se como uma fonte de produção jurídica de outras normas (leis, regulamentos, estatutos); (30 a superioridade normativa das normas constitucionais implica o princípio da conformidade de todos os actos dos poderes públicos com a Constituição.” CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Portugal, Almedina, 4ª ed, 2000.p. 1112 61 Art. 127. O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou do ofendido, ou mediante representação da autoridade policial, poderá ordenar o seqüestro, em qualquer fase do processo ou ainda antes de oferecida a denúncia ou queixa. Art. 209. O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes. Art. 242. A busca poderá ser determinada de ofício ou a requerimento de qualquer das partes. Art. 311. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou do querelante, ou mediante representação da autoridade policial. (Redação dada pela Lei nº 5.349, de 3.11.1967) Art. 385. Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada. 62 “Para se tratar de uma verdadeira constituição não basta um documento. É necessário que o conteúdo desse documento obedeça a princípios fundamentais progressivamente revelados pelo constitucionalismo. Por isso, a constituição deve ter conteúdo específico: (1) deve formar um corpo de regras jurídicas vinculativas do ‘corpo político’ e estabelecedoras de limites jurídicos ao poder, mesmo ao poder soberano (antidespotismo, antiabsolutismo); (2) esse corpo de regras vinculativas do corpo político deve ser informado por princípios materiais fundamentais, como o princípio da separação de poderes, a distribuição entre poder constituinte e poderes constituídos, a garantia de direitos e liberdades, a exigência de um governo representativo, o controlo político e/ou judicial do poder.

Page 50: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

39

valores garantistas nela inseridos, asseguram afirmar, da opção pelo sistema acusatório quando de sua elaboração, portanto, a subsunção de todas as normas processuais ao modelo maior é imperativa.

Assim, o modelo de sistema processual brasileiro é o acusatório, e não misto, ou qualquer outro nome que se queira dar, como solução particular e casuística, logo, o inquérito policial, alicerçado sob norma inferior, embora, amplamente aceito e consagrado, por suas características inquisitivas, viola a Constituição Federal.

6. A FACTICIDADE DO INQUÉRITO POLICIAL NO BRASIL O processo penal está abrigado em um sistema complexo, o direito, este,

possuidor de coerências e lógicas próprias, como também, dotado de linguagem, valores e formulações particulares. Internamente, identifica-se o processo penal, pela abrangência e limites, relativos a formulações e atuação no mundo jurídico; por outro lado, sua expressão externa, é traduzida como instrumento viabilizador da jurisdição, naquelas relações que se apresentem de natureza penal.

Conforme MARQUES, o Direito Processual Penal, se conceitua como “o conjunto de princípios e normas que regulam a aplicação jurisdicional do Direito Penal, bem como, as atividades persecutórias da Polícia Judiciária, e a estruturação dos órgãos da função jurisdicional e respectivos auxiliares.”63

Em definição mais contemporânea, construída sob leitura crítica-antropologia, contudo, sem desprezar o conceito moldado no tradicional discurso sistêmico, R. KANT, estende e identifica, com maiores detalhes, seus destinatários, alcance e objetivos.64

Como se vê, a constituição normativa não é mero conceito de um ser; é um conceito de dever ser. Pressupõe uma idéia de relação entre um texto e um conteúdo normativo específico. O texto vale como lei escrita superior porque consagra princípios considerados (em termos jusnaturalistas, em termos racionalistas, em termos fenomenológicos) fundamentais numa ordem jurídico-política materialmente legítima.” Idem, CANOTILHO, José Joaquim Gomes. p. 1094 63 Idem, MARQUEZ, José Frederico. Elementos de Direito processual Penal, Rio - São Paulo, Forense, v I, 1961 p. 20 64 “No Brasil, o processo penal, isto é, a descrição dos procedimentos que devem ser seguidos para que possa condenar ou absolver alguém pela prática de um delito, é regulado pelo Código de Processo Penal. Este Código é construído de acordo com a orientação dogmática jurídica, característica de nossa cultura legal, que consiste em uma concepção normativa, abstrata e formal do Direito. O “mundo” do Direito, assim, não equivale ao mundo dos fatos sociais. Para “entrar” no mundo do Direito, os “fatos” têm de ser submetidos a um tratamento lógico-formal, característico e próprio da “cultura jurídica” e daqueles que a detêm. Tal concepção é provavelmente responsável pela justificativa da estrutura de nossos

Page 51: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

40

Da compreensão conjunta, desses e de outros autores, que se aprofundaram no tema, podem ser destacados alguns elementos, que compõem, integram e realizam o Processo Penal: 1) conjunto de procedimentos, que devem ser seguidos, quando se buscam elementos justificadores de uma sentença judicial penal; 2) previsão de práticas e atos ritualísticos, a serem desenvolvidos durante as ações penais; 3) indicação de pessoas e órgãos que integram, ou funcionam na ação penal; 4) formulação de valores, conforme a cultura do sistema, seus dogmas; 5) positivação das suas normas através de legislação específica; 6) alcance e aplicação abrangente, a qualquer ameaça ao status libertatis do indivíduo.

Através da descrição da atividade investigatória penal, realizada pela Polícia Judiciária, no âmbito estadual e federal, pode-se traçar em linhas gerais, um esboço do instrumento consagrado na lei processual penal, destinado a tal finalidade.

A soma das atividades investigatórias à ação penal, promovidas AP, ou pelo Ministério Público, somado ao procedimento judicial, dá-se o nome de persecução penal, que em livre interpretação, significa a ação de perseguir o crime, é o que a doutrina jurídica chama de persecutio criminis.65 Assim, o jus puniendi (direito de punir) que surge para o Estado a partir da violação da norma penal, é exercido por este através do jus persequendi.

Conforme positivação legal, o inquérito foi concebido para servir à apuração das infrações penais, quando através da investigação policial, se busca elucidar sua autoria e materialidade; serve o inquérito, precipuamente, para emprestar justa causa ao titular da ação, quando do oferecimento de sua petição inicial no juízo criminal (denúncia ou queixa), ou subsidiariamente, às providências cautelares (prisões preventivas, buscas domiciliares, apreensões de objetos etc.), ou seja, o inquérito é o instrumento formalizador da investigação policial, utilizado por parte da autoridade a quem o Estado

procedimentos penais, concebidos, segundo o Código, em uma sucessão de “preliminares” a propriamente “judiciais”. A ficção legal implica dizer que os procedimentos iniciais de um procedimento judicial dele não se constituem, necessariamente, parte definitiva e substancial, porque não há processo. Kant, Roberto e MISSE, Michel. Idem p. 43. 65 “Verifica-se, portanto, que a persecutio criminis apresenta dois momentos distintos: o da investigação e o da ação penal. Idem, MARQUEZ, José Frederico. p. 130

Page 52: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

41

designa atribuição para tal, da existência ou não de delito e, em caso afirmativo, de sua provável autoria66.

Observe-se que, conforme a dogmática jurídica predominante, o inquérito é mero “procedimento administrativo persecutório”67, isso porque, fundamentam, por um lado não haver formalmente um acusado durante as investigações, e por outro, a fase judicial existir somente após o início da ação penal, portanto, como regra, os atos de convencimentos iniciais, colhidos na fase da investigação (indícios), deverão ser novamente realizados quando da instrução penal68; como também, sendo o inquérito policial procedimento informativo e não ato jurisdicional69, justifica-se, que os vícios que surjam no decorrer de sua realização, poderão a qualquer tempo ser sanados, e não afetarão a ação penal a que der origem.

Embora, apresentado sob uma roupagem diferente, porque não dizer escamoteado, não se justifica o titubeio em afirmar, que essa investigação formalizada seja parte vestibular do que poderá vir a ser chamado de “processo”. Justifica-se esse entendimento, divergente, porque no caso da propositura de ação penal, o inquérito passará a ser integrante daquele, não sendo desentranhado de seus autos; portanto, ainda que se tenha conferido uma capitis diminutio formal, apresentado-o como simples procedimento administrativo, porque desde sua instauração colhe elementos de 66 Conceito: "Conjunto de diligências realizadas pela polícia judiciária para a apuração de uma infração penal e de sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa ingressar em juízo." TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, vl. 1, ed. Ver. e atual, São Paulo, Ed. Saraiva, 2005, p. 194, 27.. 67 FEITOZA, Denison. Direito Processual Penal: teoria, crítica e práxis, Rio de Janeiro, Impetus, 2010, p. 172 68 "O inquérito policial não é um processo, mas simples procedimento. O Estado, por intermédio da polícia, exerce um dos poucos poderes de autodefesa que lhe é reservado na esfera de repressão ao crime, preparando a apresentação em juízo da pretensão punitiva que na ação penal será deduzida por meio da acusação. O seu caráter inquisitivo é, por isso mesmo, evidente. A polícia investiga o crime para que o Estado possa ingressar em juízo, e não para resolver uma lide, dando a cada um o que é seu. Donde ter dito BIRKMEYER que, na fase policial da persecutio criminis, "o réu é simples objeto de um procedimento administrativo, e não sujeito de um processo jurisdicionalmente garantido". Em face da polícia, o indiciado é apenas objeto de pesquisas e investigações, porquanto ela representa o Estado como titular do direito de punir, e não o Estado como juiz" Idem, MARQUES, José Frederico. Vol. II, p. 132. 69 “Como etapa ‘administrativa’ é inteiramente inquisitorial, isto é, como dela não participa o contraditório nem a produção de provas e tomadas de depoimentos que interesse à defesa – antes ou mesmo depoimento do indiciamento –, pode-se dizer que o inquérito policial, nessa forma, é único no mundo, pois reúne o estatuto da neutralidade da investigação policial com a potencial atribuição de formação da culpa que é inerente ao poder de ‘indiciar’ e de produzir provas por meio de depoimentos tomados em cartório, com vistas a servir para “demonstrar” a autoria do crime. É como se, no delegado de polícia brasileiro, as atribuições da polícia, no sistema inglês, estivessem, ao mesmo tempo, operando autônoma e subordinadamente às atribuições do juiz do sistema continental. Eu disse ‘é como’, e não ‘que é’ – pois o delegado também não tem o poder de decidir pela denúncia, atribuição que cabe ao Ministério Público. A questão aqui decorre da consagração, pela Corte Européia, do ‘separatismo’, que retira de quem investiga o direito de acusar, deixando-o a outra instância” MISSE, Michel, Idem p. 10 e 11

Page 53: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

42

convicção para prolação da sentença, o inquérito policial é processo na sua essência70, logo, sujeito aos postulados constitucionais que regem o assunto71.

Em análise mais comprometida com a proposta do presente trabalho, há que se afirmar, que o inquérito policial é um instrumento utilizado pelo Estado ao longo do tempo, no intuito de tornar mais forte o controle da vida em coletividade e evitar a desintegração do modelo social.

Notadamente de caráter inquisitorial72, marcado por possibilidade de informalidade e decisões subjetivas na sua condução, criticado pela inobservância do contraditório e da ampla defesa, é de se estranhar, que este instrumento continue a ser amplamente difundido e utilizado no interior do Estado Democrático de Direito.

6.1 CARACTERÍSTICAS Conforme a doutrina jurídica tradicional73 (Marques, Tourinho, Noronha,

Mirabete, Capez et alli)74, basicamente, o inquérito policial ainda se estabelece através 70 “Do ponto de vista normativo, a fase pré-processual deve restringir-se a apontar a probabilidade de materialidade e autoria de um crime, não lhe cabendo a produção de provas. Essa deve realizar-se em juízo (com exceção de exames periciais), onde são preservadas todas as garantias (LOPES, JR, 2006). A prática, como vimos, é outra e o inquérito policial encontra-se entranhado ao processo e, por isso, acaba por tornar-se referência essencial dos operadores na instrução processual (por ocasião da produção da prova), na fase de sentença (embasando decisões) e mesmo no Júri. Esse quadro de contaminação do processo com atos de investigação agrava-se, ainda mais, com a morosidade processual e consequente desaparecimento dos elementos probatórios, na fase judicial, tornado a instrução processual secundária em relação à fase preliminar” MISSE, Michel, Idem p. 184 71 Ahora bien, después de estas explicaciones, la palabra ‘processo’ nos há descubierto acaso um poço de su secreto. Se trata en honor a la verdad, de um proceder, de um caminhar, de um recorrer um largo camino, cuya meta parece señalada por um acto solemme, com el cual el juez declara la certeza, es decir, dice que es cierto: ¿el qué? Uma de estas cosas: o que el imputado es culpable o que el imputado es inocente” CARNELLUTTI, Francesco. Cómo se hace um processo. Tradução Santiago Sienís Melendo y Marino Ayerra Redín, Santa Fe, Bogotá, Colombia, Temis, 1977. p. 17 72 “Já no sistema inquisitorial, de tradição romana e canônica, feita uma denuncia, até anônima, efetuam-se pesquisas sigilosas antes de qualquer acusação, não só para proteger a reputação de quem é acusado, mas também para proteger aquele que acusa de eventuais represálias de um poderoso acusado [...] O sistema acusatório não afirma o fato; supõe sua probabilidade, presume um culpado e busca provas para condená-lo. (p. 46) diferentemente, “[...] no modelo acusatório, pelo qual só produz efeitos aquilo que é produzido publicamente (p. 52)”. Kant, Roberto e MISSE, Michel. 73 Entende-se por doutrina tradicional como aquela desenvolvida pela ampla maioria dos autores, que objetivam traduzir e explicar o sentido das normas por meio de processos de interpretação, valendo-se da hermenêutica jurídica (estudo de princípios e regras de interpretação do direito). Pretendem o significado das leis através dos métodos que emprega: gramatical, histórico, sistemático e teleológico, entretanto, na maioria das operações realizadas se distanciam de conteúdos sociológicos, antropológicos, psicológicos, econômicos, da filosofia em geral e de outros ramos do conhecimento não específicos do direito. A doutrina tradicional ou clássica, portanto, preponderantemente, limita sua exegese ao campo restrito do sistema jurídico. 74 MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, Rio - São Paulo, Forense, 1961.

Page 54: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

43

de outras características consensuais, a seguir elencadas e comentadas: é escrito, instrumental, prescindível, obrigatório, indisponível, sigiloso, informativo, discricionário e temporário.

A formalização de todos os atos investigativos é apresentada através de peça escrita75 única, todas as diligências realizadas no curso da atividade investigativa policial, são levadas a termo e finalmente relatadas76 pela autoridade responsável por sua condução, sendo a partir de então, objeto de apreciação e formação da opinio delicti pelo titular da ação.

Também, conforme a tradição jurídica, por mais que possa parecer estar robustecido de índicos veementes de autoria e materialidade delitiva, o inquérito policial não é em si instrumento apto a qualquer certeza77, e o titular da ação, poderá, inclusive, rejeitar integralmente toda a investigação, requerendo seu arquivamento78, ou ainda, não satisfeito com seus resultados, determinar novos caminhos a serem trilhados pelo investigador, restituindo-lhe os autos, conforme respaldo em comando constitucional79.

O inquérito não se basta em si, é instrumento, que poderá ou não ser utilizado, como base ao oferecimento da ação penal face ao Poder Judiciário, portanto, prescindível80, quando o titular da ação, obtém através de outros meios, os elementos

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 2009. NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual Penal, São Paulo, Saraiva, 1978. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal, revista e atualizada por Renato N. Fabbrini, São Paulo, atlas, 2005. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 2010. 75 “O inquérito sob o aspecto formal, inicia-se com a portaria da autoridade ou com o auto de prisão em flagrante e termina com o relatório do Delegado. É ele reduzido a instrumento escrito, compondo-se, além daquelas peças, de outros autos, de termos, certidões, mandados etc. Vulgarmente denomina-se esse instrumento autos do inquérito policial.” Idem, NORONHA, Edgard Magalhães. p. 20 76 Art. 10 ... § 1o A autoridade fará minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará autos ao juiz competente. 77 “O inquérito policial, portanto, é um procedimento administrativo-persecutório de instrução provisória, destinado a preparar a ação penal” Idem, MARQUES, José Frederico. p. 153 78 Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender. 79 Art. 129. São unções institucionais do Ministério Público: ... VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicando os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; - Constituição Federal 1988 80 “Se essa é a finalidade do inquérito, desde que o titular da ação penal (Ministério Publico) tenha em mãos as informações necessárias, isto é, os elementos imprescindíveis ao oferecimento de denúncia ou queixa, é evidente que o inquérito será perfeitamente dispensável.” Idem, TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. p. 69

Page 55: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

44

mínimos ao ajuizamento de sua pretensão81, a saber, uma justa causa ao impulso e motivação inicial da ação.

Entretanto, muito embora possa ser descartado, por quem tem a titularidade à propositura da ação penal, é obrigatório à autoridade policial, que tem o dever de ofício em proceder sua instauração, sempre que elementos mínimos justificadores estejam82, exigido na forma da lei, mediante manifestação da parte ofendida ou seu representante legal83.

Da mesma forma, não pode a autoridade policial, uma vez instaurada a investigação através do inquérito policial, encerrá-la por vontade própria84, estando nesse caso subordinada a decisão do titular da ação; essa indisponibilidade85 funciona como garantidora do preceito constitucional da fiscalização externa da atividade policial, por parte do Ministério Público.

A autoridade que conduz o inquérito deverá fazê-lo sob o manto do sigilo86, sob a justificativa: da paz social, da inviolabilidade da intimidade, da dignidade da pessoa, e dos princípios da oportunidade e conveniência, na busca pelo maior número de indícios e informações, para que possa concluir com êxito seu intento, resguardando, entretanto, acesso a tudo que seja obtido e informado nos auto, ao juízo competente, ao titular da ação e ao defensor da parte investigada, muito embora, por vezes, este último tenha dificuldades nas suas pesquisas, principalmente, quando sob o argumento da decretação judicial do “segredo de justiça”, lhe é negado acesso aos autos do inquérito, e não 81 Art. 39. ... § 5o O órgão do Ministério Público dispensará o inquérito, se com a representação forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal, e, neste caso, oferecerá a denúncia no prazo de quinze dias. - Código de Processo Penal 82 Art. 5º § 3o Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito. - Código de Processo Penal 83 § 4o O inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá sem ela ser iniciado. § 5o Nos crimes de ação privada, a autoridade policial somente poderá proceder a inquérito a requerimento de quem tenha qualidade para intentá-la. - Código de Processo Penal 84 Art. 17. A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito. - Código de Processo Penal 85 “Na hipótese de crime que se apura mediante ação penal pública, a abertura do inquérito policial é obrigatória pois a autoridade policial deverá instaurá-lo, de ofício, assim que tenha notícia da prática da infração (art. 5º, I). é também indisponível, pois, uma vez instaurado regularmente, em qualquer hipótese, não poderá a autoridade arquivar os autos (art. 17).” Idem, MIRABETE, Julio Fabbrini. p. 84 86 Art. 20. A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade. - Código de Processo Penal

Page 56: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

45

raramente, por força dessa negação, ter de invocar junto ao Poder Judiciário a autorização prevista em lei, para o acesso pretendido junto às delegacias policiais87.

Decretado o “segredo de justiça”, o advogado só pode ter acesso aos autos da investigação quando possuir o legitimatio ad procedimentuns, ou seja, munido de instrumento procuratório da parte que representa, desde que seja sobre esta que recaiam as investigações.88

Durante as investigações, não é autorizada a presença do defensor a todos os atos procedimentais, restritos de regra, a específicas oitivas, diante do princípio da inquisitoriedade, que norteia a investigação policial no Brasil, porém, o advogado poderá manusear e consultar os autos findos ou em andamento.

Como atividade fim, e não outra, conforme exposto, a investigação policial tem por meta a colheita de elementos de informação89, quanto à materialidade e autoria da infração penal, a nominada justa causa. Observe-se, entretanto, que conforme a dogmática jurídica há que se fazer a distinção, entre elementos de informação, que são aqueles colhidos na investigação (os indícios) e as provas, essas produzidas em juízo, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, elementos estranhos no inquérito.

Por fim, o IP deve ser realizado e finalizado em determinado espaço de tempo, conforme estabelecer a lei processual a que estiver vinculado, o inquérito está subsumido a uma temporariedade90. Não obstante a previsão legal, diante das inúmeras possibilidades de prorrogação do prazo para sua conclusão, admitindo ou não durante 87 Capez citando voto do Ministro Sepúlveda Pertence, STF, 1ª T., HC 90.232/AM, j. 18-12-20067: “Desta forma, ‘dispõe, em conseqüência, a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório. Habeas corpus de ofício deferido, para que aos advogados constituídos pelo paciente se facultem a consulta aos autos do inquérito policial e obtenção de cópias pertinentes, com as ressalvas mencionadas’” Idem, CAPEZ, Fernando. p. 115/116 88 “XIII - examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estejam sujeitos a sigilo, assegurada a obtenção de cópias, podendo tomar apontamentos; XIV - examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos; XV - ter vista dos processos judiciais ou administrativos de qualquer natureza, em cartório ou na repartição competente, ou retirá-los pelos prazos legais;, art. 7º, XIII a XV, e § 1º - Lei n. 8.906/94, Estatuto da OAB 89 “O inquérito policial é peça meramente informativa. Nele se apuram a infração penal com todas as suas circunstâncias e a respectiva autoria.” Idem, TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. p. 69 90 Art. 10. O inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela. - Código de Processo Penal

Page 57: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

46

sua realização a interferência externa, posto ser atividade discricionária,91 o inquérito deverá ser concluído em razoável espaço de tempo, quando ao final, a autoridade condutora deverá elaborar relatório conclusivo, encaminhando tudo o que foi apurado para aquele que decidirá ou não pelo oferecimento da ação penal.

Durante toda a fase investigativa, dentro do IP, a autoridade policial não está sujeita à suspeição92, portanto, goza de presunção (relativa) de imparcialidade na condução da investigação.

Justifica a dogmática, que não é possível acusar uma pessoa, formalmente em juízo, sem um conjunto probatório mínimo, sem uma justa razão ou causa. Estaria assim, justificado todo o arcabouço formal investigativo vigente, diante da premissa de não se poder acusar uma pessoa sem uma justa causa, vez que os efeitos de um processo são degradantes e atingem a dignidade da pessoa humana, fundamento constitucional, norteador da República Federativa do Brasil.

Quase uníssonos, os autores tradicionais indicam que o IP tem natureza jurídica – entendido no sentido de “o que representa para o direito” –, de “procedimento administrativo” (Polastri, Tourinho, Marques et alli),93 no entanto, isso não significa que haja uma pré-ordenação de atos que devam ser seguidos inflexivelmente pela autoridade policial; esta, na verdade, goza de relativa autonomia para escolha das diligências a serem encetadas, conforme cada situação que se apresente, ou linha investigativa que pretenda, tudo, conforme se pode aferir na leitura do art. 6º do CPP94.

91 “Como se viu, à autoridade policial não é permitido arquivar o inquérito que presidir. Entretanto, a escolha das diligências investigatórias a serem realizadas no curso do inquérito é discricionária da autoridade. O delegado de polícia, assim, efetivamente conduzirá o trabalho investigatório, ordenando a realização das diligências que julgar necessárias à apuração da infração penal.” BONFIM, Edilson Mougenot, Curso de processo penal, São Paulo, Saraiva, 2009. p. 107 92 Art. 107 - Não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer motivo legal - Código de Processo Penal 93 “Constitui o inquérito policial procedimento escrito, inquisitivo, com fim de apurar existência da infração penal e sua autoria, sendo destinado imediatamente ao Ministério Público, titular privativo da ação penal pública, ou ao ofendido nos casos de ação privada” LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal, V. I, Rio de Janeiro, Lumen Juris. p. 82 94 Art. 6º - Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: I - dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais; II - apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; IV - ouvir o ofendido; V - ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por 2 (duas) testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura; Vl - proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações;

Page 58: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

47

Ainda que não haja, uma ordem pré-estabelecida, mas a possibilidade de várias linhas de condução das investigações por uma só lógica, dependendo da capitulação formal realizada pela autoridade policial; de como e quais elementos surjam para investigação; do caminho que pretenda adotar etc., não há como negar, a presença de um rigor formal, próprio da linguagem do sistema jurídico, característico dos processos judiciais.

O ato de polícia é auto-executável, pois independe de prévia autorização do Poder Judiciário para sua concretização material. Não se trata, porém, de atividade arbitrária, estando submetido a um duplo controle jurisdicional, concomitante e posterior, que se exerce através do habeas corpus, mandado de segurança e outros remédios específicos, ou mesmo de ofício pelo juiz.

Em se tratando de crimes apurados mediante ação pública,95 o inquérito é obrigatório; quando noticiado o ilícito à autoridade policial, não pode esta, em nenhuma hipótese, uma vez instaurado o IP, mandar arquivar os autos96.

Conforme preceitua o CPP, nos crimes de iniciativa pública, o inquérito policial se iniciará de ofício, por ordem do delegado de polícia; mediante requisição do órgão do Ministério Público com atribuição para tal; ou ainda, mediante requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.

Há, por força do mesmo CPP, uma condição especial de procedibilidade que deve ser atendida, verdadeiro “pedido-autorização”, a ser formulado pelo ofendido ou seu representante, e quando for o caso, pelo Ministro da Justiça (situações especialíssimas), para instauração do inquérito nos casos das chamadas “ações penais de iniciativa pública condicionada”97.

Vll - determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias; Vlll - ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes; IX - averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter. - Código de Processo Penal 95 “O critério tradicional adota a denominada classificação subjetiva, pois tem como ponto primacial o elemento subjetivo, visto que se situa no sujeito que pune a pretensão punitiva. Quer isso dizer que a ação penal pública é promovida pelo órgão do Ministério Público; a ação penal privada é exercida pela vítima; e a ação popular fica a cargo de qualquer pessoa do povo” COSTA, Alvaro Mayrink da. Direito penal – doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro, Forense, 1988 p. 1.164 96 Art. 17 - A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito. - Código de Processo Penal 97 Art. 5o Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:

Page 59: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

48

Por força do sistema acusatório, adotado pela CRFB, o juiz não pode requisitar a instauração de inquérito, embora, outrora existisse essa possibilidade; entretanto, se recepcionada essa prerrogativa, que ainda encontra-se expressa em lei, tal condição feriria a imparcialidade do juízo, que ao mesmo tempo, seria o provocador da investigação e seu julgador, medida inapropriada ao sistema acusatório.

Para a instauração do IP, no caso dos crimes de iniciativa privada, é necessário que haja um requerimento da vítima ou de seu representante legal, ou seja, a autoridade policial somente poderá agir se houver manifestação da vítima pela sua instauração.

Assim, observadas as particularidades apontadas, chegando ao delegado informação de natureza penal, através de requerimento, registro de ocorrência ou requisição, este, verificando a mínima plausibilidade dos fatos (procedência das informações), deverá mandar instaurar o IP. Regra inflexível, no caso de morte violenta ou causa não natural, quando sempre se deverá instaurar o procedimento.

Também, ocorrerá instauração de ofício, caso a regular notitia criminis chegue através de uma condução flagrancial98. Registre-se, porém em exceção legal, os casos de práticas de delitos de “menor potencial ofensivo99”, nesses casos, a autoridade não instaurará o inquérito, quando procederá, tomando por “termo circunstanciado”100 todas as informações, remetendo-as após, diretamente ao Juizado Especial Criminal – JECrim, tudo conforme previstos na Lei nº 9.099 de 26 de setembro de 1995.

I - de ofício; II - mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo. ... § 4o O inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá sem ela ser iniciado. § 5o Nos crimes de ação privada, a autoridade policial somente poderá proceder a inquérito a requerimento de quem tenha qualidade para intentá-la. - Código de Processo Penal 98 Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem: I - está cometendo a infração penal; II - acaba de cometê-la; III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração. - Código de Processo Penal 99 Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa – Lei 9.099/95 – Juizados Especiais 100 Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. – Lei 9.099/95 – Juizados Especiais

Page 60: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

49

Na instauração de ofício, se procederá conforme a situação se apresentar: no caso de requerimento, registro de ocorrência (inclusive morte violenta), ou requisição, se instaurará o IP através de ato administrativo, ou seja, de uma Portaria exarada pelo delegado, que conterá as razões de sua instauração e as providências preliminares, entendidas necessárias à produção do conhecimento desejado.

Se for o caso de condução em situação de flagrante, o delegado de polícia após apreciar tudo que lhe é informado e apresentado, sendo o caso, determina a lavratura do auto de prisão em flagrante101, sendo este, assim como a Portaria nos demais casos, a peça inaugural do IP.

Instaurado o inquérito, dependendo da lei processual que esteja sendo aplicada, em razão da incidência típica; dependendo se o indiciado continua preso em razão de prisão cautelar, ou se na forma da lei, permanece solto; em qualquer situação, obedecidos os prazos para conclusão das investigações, tudo será relatado e encaminhado ao titular da ação, que por fim, verificará da viabilidade do oferecimento da ação penal.

101 Art. 304. Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto. - Código de Processo Penal

Page 61: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

50

7. QUESTÕES PULSANTES NO INQUÉRITO POLICIAL 7.1 JUSTA CAUSA Conforme Misse102, tal como um modelo mundial, a persecução penal se dá

através de duas fases distintas, sendo a primeira, relativa a uma investigação inicial, consistente na apuração preliminar de uma justa causa à propositura de futura ação penal; e a segunda, no momento da apuração da culpa através da ação penal materializada no processo judicial.

Abra-se parêntese para observar, conforme a doutrina jurídica clássica, em posição acadêmica e jurisprudencial já superada, a justa causa, como condição ao regular exercício do direito de ação, estaria inserida no “interesse de agir” ou na “possibilidade jurídica do pedido”; contudo, em formulação mais atual,103 inclusive, consagrada pelo legislador quando da reforma do CPP em junho de 2008, esta é inserida

102 “Em praticamente todos os países modernos, a persecução penal é precedida de uma fase preliminar ou preparatória, destinada a apurar se houve crime e identificar seu autor. A atribuição de conduzir essa fase preliminar pode ser exclusivamente da polícia (sistema inglês, na tradição do Common Law) ou do Ministério Público, que dispõe para isso da Polícia Judiciária (sistema continental, na tradição da Civil Law). No sistema continental, essa fase preliminar pode também ser complementada pelo instituto do Juizado de Instrução, que dispõe da Polícia Judiciária para aprofundar as investigações”. Idem. MISSE, Michel p. 9 103 “Para o regular exercício do direito de ação exige-se a legitimidade das partes, o interesse de agir e a possibilidade jurídica do pedido. São as chamadas condições da ação que, na realidade, não são condições para existência do direito de agir, mas condições para seu regular exercício. Por ser abstrato, o direito de ação existirá sempre. Sem o preenchimento destas condições mínima e genéricas, teremos o abuso do direito trazido ao plano processual. A estas três condições para o regular exercício do direito de ação, no processo penal, acrescenta-se uma quarta: a justa causa, ou seja, um suporte probatório mínimo em que se deve lastrear a acusação, tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status diginitatis do imputado. Tal lastro probatório nos é fornecido pelo inquérito policial ou pelas peças de informação que devem acompanhar a acusação penal,...” JARDIM, Afranio Silva. Direito processual penal; estudos e pareceres. Rio de Janeiro, Forense, 1999 p. 54

Page 62: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

51

como um dos requisitos autônomos da ação104. Em suma, para que possa ser exercido o direito de ação, se exige a demonstração de um conjunto probatório mínimo, justificador à propositura da mesma.

Considerando, a necessidade de indicação desse lastro probatório inicial, bem como, a formação da prova para decisão judicial, o Brasil adotou essa solução mista e ambivalente105 na persecução penal, contemplando as espécies de investigações, iniciado a primeira, após a verificação da procedência das informações,106 trazidas à polícia através da notitia criminis, que aferida, resultará na inauguração de um inquérito policial e suas conclusões. Na segunda fase, dita de formação da culpa, depois de completada a apuração policial, já inaugurado o processo, investiga-se novamente, desta feita com o escopo de condenar ou absolver o acusado.

Quanto a primeira fase, nesta também se contemplam dois momentos, que não se confunde, embora se integrem, isso porque, há um primeiro, revestido de mínimas e questionáveis informalidades, tanto no aspecto operacional da investigação, quanto no que se refere à fiscalização dos atos praticados, essas apurações configuram-se em preliminares atividades, que remontam a conferência das informações iniciais que chegam ao investigador e esse, verifica a plausibilidade de sua existência para prosseguir na investigação. No segundo momento, após apurados indícios mínimos da procedência das informações, instaura-se a investigação formal, através do inquérito policial.

7.2 VERIFICAÇÃO DA PROCEDÊNCIA DE INFORMAÇÕES No que diz respeito às pesquisas em sede policial, as verificações preliminares,

anteriores à instauração do inquérito, estão sujeitas a uma discricionariedade quase que absoluta da autoridade policial, embora, mesmo nesse primeiro momento também caiba

104 Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando: I - for manifestamente inepta; II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou III - faltar justa causa para o exercício da ação penal - Código de Processo Penal 105 MISSE, Michel, Idem p. 5 106 Art. 5o . § 3o Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito.(grifo nosso) - Código de Processo Penal

Page 63: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

52

ao Ministério Público a fiscalização externa da atividade policial, por força de preceito constitucional.

Por outro lado, uma vez instaurado o inquérito policial, a investigação pode ser monitorada com maior rigor presencial pelo Ministério Público107, oportunidade, que este deveria acompanhar par e passo tudo que é realizado e registrado no IP, principalmente, quando os autos lhe são encaminhados. Deve-se consignar, porém, que efetivamente essa atividade fiscalizatória externa da atividade policial, de regra, se resume ao acompanhamento de prazos ou questões que se façam muito evidentes, as observações mais amiúde, somente ocorrem em raríssimas ocasiões, e mesmo assim, por provocações externas singulares; o órgão do parquet não costuma acompanhar o cotidiano da polícia, ainda que o discurso oficial seja outro.

Sob a ótica interna, a fiscalização da atividade policial, é exercida através das corregedorias policiais, órgãos responsáveis pelas apurações e processamentos das condutas desviantes no âmbito administrativo, incluindo-se ai, as decorrentes de irregularidades nas investigações preliminares, bem como nos inquéritos, precipuamente através de correições periódicas.

Assim, a possibilidade da presença do MP após a instauração do inquérito, parece ser a fomentadora de soluções particulares, que visam afastar os mecanismos controles externo de toda ordem da atividade policial, destacando-se, os cumprimentos de prazos, possíveis favorecimentos de investigados, como também, a condução e encerramento de IPs de forma indevida108.

Já escreveu sobre isso THOMPSON, quando nominou de “cifra negra”109, a margem não consignada à apreciação judicial de ocorrências de natureza criminal, decorrente de subterfúgios policiais, que fazem escoar pelos ralos da não investigação, situações que deveriam ser objeto de apuração e denúncias, entretanto, não o são por força de um proceder em desconformidade com o regramento processual.

107 Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:... VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior; - Constituição Federal 1988 108 “No interior de todo Estado de direito histórico, quem detem o Poder Executivo ou suas agências tentam livrar-se, com demasiada freqüência, de todos os controles e limitações e, dependendo do vigor da contenção, é, em maior ou menor medida, bem sucedido.” Idem, ZAFFARONI, Eugenio Raúl. p. 169 109 THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos - o crime e o criminoso: Entes Políticos. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 1998

Page 64: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

53

Como exemplo dessas práticas desviantes, destaca-se as “Verificações de Procedência de Informações”, ou simplesmente, VPIs; instrumentos que embora sejam “regulamentados” pelas chefias de polícia, não gozam de legalidade; todavia, se faz justificado, através de uma corruptela na leitura do comando contido no Código de Processo Penal.

Por oportuno, como não há o reconhecimento por parte do Ministério Público quanto a legalidade das VPIs, essas não são encaminhadas à sua apreciação; entretanto, como prática corriqueira, sua existência, embora não seja negada por quem tem o múnus fiscalizador, parece ser convenientemente ignorada na sua concreta manifestação.110

Iniciada a investigação, a partir de uma informação que chegue por qualquer fonte ao delegado de polícia, ou no linguajar sistêmico, chegando à autoridade policial a regular notitia criminis111, deverá este proceder a verificação da procedência de tais informações, ou seja, buscará o mínimo de confirmação da notícia afirmada, para instaurar o inquérito policial. Recorde-se, a indisponibilidade consagrada na lei processual, não faculta a instauração do IP; dito de outra forma, sempre que existirem indícios de crimes que se procedam mediante ação penal pública, é dever da autoridade sua realização.

Não há dúvida, que um sumaríssimo conhecimento do que for noticiado deve anteceder à instauração do inquérito, sob pena de se proceder a toda e qualquer informação que chegue à autoridade, incluídos como exemplos, os fatos atípicos, os “trotes’ telefônicos, as vinganças pessoais e mesmo, toda sorte de patologias psiquiátricas que se manifeste desta forma.

Assim, prevendo a necessidade de uma “triagem” inicial, o legislador estabeleceu no art. 5º, § 3º do CPP, in verbis: “Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito” (grifo nosso).

110 Popularmente, “Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay” (cito de memória Miguel de Cervantes). 111 “Notitia criminis é o conhecimento espontâneo ou provocado, aparentemente criminoso pela autoridade policial” FEITOZA, Denilson. Direito Processual Penal – Teoria, Crítica e Práxis. Niterói, RJ, Impetus, 2010. p. 180

Page 65: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

54

Entretanto, essa verificação não deveria passa de uma breve confirmação112, não poderia jamais ser confundida com uma investigação formal, por vezes travestida de verdadeiro inquérito sem sê-lo; com as VPIs viola-se a vontade do legislador, em explícito exercício manipulador, interessado no afastamento de controles. Nas palavras de MISSE, “Quer dizer, faz-se um inquérito para se decidir se vale a pena abrir um inquérito”113.

Em explícita regulamentação da procedimentalização formal das VPIs, pode-se usar como exemplo, no âmbito da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, a Resolução SEPC nº 605 de 27 de julho de 1993114, que “Aprova o Manual de Procedimentos de Polícia Judiciária”, onde nos seus arts. 123 a 130, estão previstos: atos de registro, condução e decisão; muito embora, na Resolução seja recomendada sua utilização de maneira “excepcional’, e com “procedimento singelo”, fica evidente a consagração de uma estrutura formal investigativa, de um fazer amplamente utilizado115, porém, paralelo ao inquérito policial.

Realizadas a margem de controles públicos mais rigorosos, longe das vistas do Ministério Público e do Poder Judiciário, as VPIs podem ser arquivadas sem maiores explicações; ou seja, ainda que sem previsão legal para sua existência, mas regulamentadas através de ordenamento interna corporis, as VPIs afastam do órgão persecutor a possibilidade de conhecimento dos fatos criminosos e suas hipóteses de 112 Assim também pensa Nucci: "Caso a autoridade tenha dúvida a cerca da existência de alguma infração penal ou mesmo da autoria, poderá, no máximo, verificar direta, pessoalmente e informalmente se há viabilidade para instauração do Inquérito". NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 72 113 MISSE, Michel, Idem p. 13 Também, ainda que variante na nomenclatura, já registrou Thompson: “Depois, com força irresistível, surgiu uma prática que, como verdadeiro direito costumeiro, veio a suplantar e revogar a norma escrita. Por ela, tornou-se possível à polícia deixar de instaurar inquérito com referência a fatos delituosos, mesmo que tenha sido objeto de relato, registro e investigação. Abriu-se, pois, à revelia do Código, uma oportunidade a mais de perda entre globalidade dos crimes efetivamente perpetrados e aqueles a serem iluminados pelo facho das estatísticas oficiais. Conhece-se o uso da causa pelos nomes de acautelamento ou arquivamento de sindicância. Verifica-se ocorrer, aqui, mais uma hipótese de transferência para polícia do julgamento da causa, espécie de delegação manifestamente contrária a toda sistemática de nossa legislação. E, até, com a atribuição de um poder mais discricionário ao delegado do que aquele conferido a promotores e juízes, uma vez que dispensam maiores formalidades na citada solução, inclusive no relativo à motivação justificadora da medida. Reiteradas vezes, o despacho terminativo do feito restringe-se a um lacônico e imotivado “Acautele-se”, de sorte que o delegado se poupa o trabalho incomodo de armar uma convincente sustentação em amparo ao decidido, coisa a que estão obrigados os membros do Poder Judiciário quando exculpam alguém.’ Idem, THOMPSON, Augusto. p. 12/13 114 Anexo I ao final do trabalho, disponibilizado através da rede intranet da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, cópia ofertada por servidor daquela Secretaria. 115 Mencione-se também a Resolução SEPC nº 092 de 15 de setembro de 1986, utilizada de forma complementar a Resolução SEPC nº 605/93. Anexo II ao final do trabalho, disponibilizado através da rede intranet da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, cópia ofertada por servidor daquela Secretaria

Page 66: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

55

autoria, transferindo o juízo de valor do apurado ao próprio apurador, que por sua vez, este, sujeito a toda sorte de pressões políticas e morais, pode simplesmente eliminar as provas da existência de um ilícito, bem como excluir seus autores116, através de discricionário despacho117.

Conforme pesquisa de campo, realizada por Misse nas delegacias de policia civil do Rio de Janeiro, “Os Registros de Ocorrência realizados pelo GI podem virar automaticamente uma VPI, mas isso não significa que serão investigados. A grande maioria dos ROs e das VPIs é suspensa logo após sua abertura por uma autoridade policial, sob a freqüente argumentação de que não há indícios suficientes para seguir a linha de investigação. A maior parte das VPIs suspensas, portanto, nada mais são do que ROs suspensos. (...) De fato, conforme foi verificado, a maior parte dos registros não passa das primeiras 24 horas depois da sua abertura, pois são suspensos pelo delegado adjunto, e o seu status passas a ser de ‘RO suspenso’ ou ‘VPI suspensa’.”118

Registre-se, que no âmbito da Polícia Judiciária da União, Polícia Federal, a verificação da procedência de informações é regulamentada no item 6119 da Instrução de Serviços nº 11 de 27 de junho de 2001, da lavra do Diretor-Geral da Polícia Federal120, entretanto, silencia sobre atos formais que deverão ser procedidos, mas que na prática atual, de regra, se materializam através de Ordem de Missão Policial e seus respectivos Relatórios. (ver nota 107)

7.3 FORMALISMO

116 “A doutrina atual costuma passar por cima do dado da seletividade, o que é muito significativo, pois trata da característica estrutural mais vulnerável à crítica política e social do poder punitivo. Diferentemente desta ignorância, ou omissão, atual e pouco explicável, a doutrina pré-moderna fazia carga contra o posicionamento crítico ou o previa. A doutrina pré-moderna não só admitiu a seletividade do poder punitivo como tratou de legitimá-la, aceitando implicitamente que para os amigos rege a impunidade e para os inimigos o castigo.” Idem, ZAFFARONI, Eugenio Raúl. p. 88 117 “É importante ressaltar que, como mecanismo de filtragem ou seletividade dos casos potencialmente bem sucedidos, a VPI pode também ser o lugar de descanso de potenciais inquéritos e, a longo prazo, processos. Enquanto um mecanismo administrativo, a VPI constitui um modelo fundamental para a definição do que pode ou não resultar na instauração de um inquérito. Ou seja: delineia a própria natureza do que será um inquérito. Notou-se que no campo que a VPI é, em muitos casos, uma maneira de os policiais ganharem mais tempo para decidirem se ‘vale a pena ou não’ investigar aquele caso em um inquérito.” MISSE, Michel, Idem p. 46/47 118 MISSE, Michel, Idem p. 41 119 “Quando as informações noticiadas não possibilitarem a instauração imediata de inquérito policial, será averiguada a sua procedência com vista à confirmação da existência da infração penal, na forma prevista no § 3º, art. 5º do Código de Processo Penal”. 120 Anexo III ao final do trabalho, obtido na internet acessada no dia 18/04/2011 no endereço http://coex.prpr.mpf.gov.br/controle-externo/instrucao-normativa-11-2001-dg-dpf.pdf

Page 67: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

56

O inquérito policial brasileiro é revestido de formalidades jurídicas

extravagantes, muitas vezes sequer encontradas nos processos judiciais; o formalismo processual, como expressão de um modelo de realização da justiça, já há muito vem sendo abandonado, até porque, como parte visível de uma cultura jurídica, representa antigos laços com uma justiça cada dia mais distante, marcada pelo prestígio aos cânones e não aos seus fins. O afastamento de uma ritualística mais densa, e de seu formalismo exacerbado, tem sido perseguido e percebido através das mais recentes alterações nas legislações processuais; como exemplo mais contundente dessa guinada no rumo as ondas renovatórias121 do direito, cada vez mais presente na lei brasileira, pode se indicar os processos que tramitam sob a égide da Lei 9.099/95122.

O rigor formal do IP é tamanho, que só parece encontrar plausíveis justificativas em duas vertentes, de maneira individual ou associadas: por um lado, na realização de uma linguagem com labirintos próprios, criando barreiras à sua revelação, justificado, por interesses de controles políticos através do aparato repressor do Estado, viabilizando a escolhas, quanto aos que poderão e os que deverão ser alvo de futuras ações, ainda que negado por um falso discurso da imparcialidade e neutralidade123; por outro lado, na 121 “Em brilhantes conferências que proferiu sobre o tema, assinalou o Prof. Mauro Cappelletti ser muito fácil declarar os direitos sociais; o difícil é realizá-los. Daí que (...) o movimento para acesso à justiça é um movimento para a efetividade dos direitos sociais, e a sua investigação deve ser feita sob três aspectos principais, aos quais denominou ondas renovatórias: a primeira refere-se à garantia de adequada representação legal dos pobres. (…) A segunda onda renovatória visa à tutela dos interesses difusos ou coletivos, com o objetivo de proteger o consumidor ou o meio ambiente. (...) A terceira onda preocupa-se com fórmulas para simplificar os procedimentos, o Direito Processual e o Direito material, como, por exemplo, nas pequenas causas, a fim de que o seu custo não seja superior ao valor pretendido pelo autor.” ( grifo nosso) RIBEIRO, Antônio de Pádua. As novas tendências do Direito Processual Civil. Disponível em http://www.cjf.jus.br/revista/numero10/artigo10.htm. Acessado em 07/06/2011 122 “A prévia constatação desses problemas de ontem e de hoje e a visão política do legislador do juizado permitiram-lhe uma estrutura judicial e um procedimento dotados de técnicas capazes de vencer os obstáculos à prestação ideal de justiça. Nesse segmento, o móvel diploma enfrentou a questão do formalismo com a instituição de um procedimento informal, célere e simples, inserindo esses objetivos com desígnios maiores a informar toda e qualquer situação de natureza processual (art. 2ª da Lei nº 9.099, de 26.09.1995).” BATISTA, Weber Martins e FUX, Luiz. Juizados especiais cíveis e criminais e suspensão condicional do processo penal: a Lei 9.099/95 e sua doutrina mais recente. Rio de janeiro, forense, 2001. p. 9 123 “O ocidente vai ser dominado pelo grande mito que a verdade nunca pertence ao poder político, de que o poder político é cego, (...) Com Platão, se inicia um grande mito ocidental: o de que há antinomia entre saber e poder. Se há o saber, é preciso que ele renuncie ao poder. Onde se encontra saber e ciência em sua verdade pura, não pode mais haver poder político. Esse grande mito precisa ser liquidado. Foi esse mito que Nietzsche começou a demolir ao mostrar, em numerosos textos já citados, que por trás de todo saber, todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber.” FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas Tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais, supervisão final do texto Léa Porto Abreu Novaes... et al. J. Rio de janeiro, Nau, 2003. p. 51

Page 68: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

57

própria origem da função delegada de polícia, quando ainda no Império, a de chefia de polícia recaia sobre um magistrado124, responsável pela formação da culpa e pronuncia nos crimes125, que migrou os cacoetes formais absorvidos do processo, que já se iniciava na fase de investigação num sistema de modelo inquisitorial.

Não por acaso, subsiste no atual inquérito policial, todo formalismo de “intimações”, “juntadas”, “oitivas”, “autuações”, “prazo”, “lançamentos em livros tombos”, “distribuições internas”, “cartório chefiados por escrivães” etc., tão próprios da praxe judiciária, que, embora, praticados em sede de atividade executiva, se nega peremptoriamente a admitir que produz um verdadeiro processo, por conveniência estratégica na manutenção de determinado espaço de poder.

A propósito, como fonte desse formalismo intenso, é comum os chefes de polícia, no âmbito de suas instituições policiais, tornarem-se verdadeiros legisladores, que se por um lado, consolidam a linguagem do sistema policial, no mesmo movimento, forja a legitimação do instrumento inquérito, através de atos administrativos regulatórios, que em minúcias, superam em muito o próprio dizer da lei processual penal.

Veja-se, por exemplo, o caso da Polícia Federal, que através da já citada Instrução Normativa nº 11, regulamenta em 197 artigos (itens), com inúmeros incisos e alíneas, a pratica investigativa, sob a rubrica de: “Atualiza define e consolida as normas operacionais para execução da atividade de Polícia Judiciária no âmbito do Departamento de Polícia Federal e dá outras providências”.

124 Art. 9º Os Chefes de Policia poderão ser nomeados d'entre os Desembargadores e Juizes de Direito, que voluntariamente se prestarem, ou d'entre os doutores e bachareis formados em Direito, que tiverem pelo menos quatro annos de pratica do fôro ou de administração. Quando magistrados, no exercicio do cargo policial, não gozarão do predicamento de autoridade judiciária; vencerão, porém, a respectiva antiguidade, e terão os mesmos vencimentos pecuniarios, se forem superiores aos do cargo de Chefe de Policia. Nos impedimentos dos Chefes de Policia servirão pessoas que forem designadas pelo Governo na Corte e pelos Presidentes nas Provincias, guardada, sempre que fôr possivel, a condição relativa aos effectivos. - Decreto nº 4.824 de 22 de novembro de 1871 125 Art. 4º Aos Juizes de Direito das comarcas do art. 1º e bem assim aos Juizes Municipaes de todos os outros termos fica exclusivamente pertencendo a pronuncia dos culpados nos crimes communs; o julgamento nos crimes de que trata o art. 12 § 7º do Código do Processo Criminal e o da infracção dos termos de segurança e bem viver; podendo ser auxiliados pelos seus substitutos no preparo e organização dos respectivos processos até o julgamento e a pronuncia exclusivamente; e com a mesma limitação pelos Delegados e Subdelegados de Policia quanto ao processo dos crimes do citado art. 12 § 7º do Código do Processo Criminal. - Lei 2.033 de 20 de setembro de 1871

Page 69: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

58

Sem dúvida, é importante estabelecer forma única de proceder em todas as unidades policiais, sob a regência de um mesmo comando, entretanto, transbordando em forma, o ato administrativo cotejado, vai amiúde de detalhes; como por exemplo, o artigo (item) 27: “Na movimentação dos inquéritos policiais somente serão utilizados os termos CONCLUSÃO, DATA, REMESSA e RECEBIMENTO”.

Porém, estranhamente ou de maneira proposital, tão rigoroso esmero, não é detectado quando a questão é a presença e atuação do advogado do investigado no curso do inquérito; ao longo de todo o texto, nos seus 197 artigos (itens), pode-se verificar, que a palavra “advogado” é citada somente 04 (quatro) vezes, nos artigos (itens) 44 (uma vez), 114 (duas vezes), e no 124.1 (uma vez), porém, nunca alusivas a qualquer possibilidade de participação ativa deste, no auxílio à produção do conhecimento pretendido, ou defesa de seu cliente; por óbvia e conveniente fundamentação na falta de previsão legal.

Acrescente-se a isso, os extensos e incontáveis pareceres interpretativos da lei processual penal, elaborados através dos órgãos correcionais, das chefias de delegacias especializadas etc., verdadeiro arcabouço “jurisprudencial”, se assim a licença acadêmica permite definir.

Caminhando para o encerramento, como objetivo de construção de um saber necessário à outra etapa da persecução penal, o IP está longe de suas proposições de esclarecimento; o formalismo arraigado, em que se pauta o conhecimento policial, mais se preocupa com a prática que exercita que com seus objetivos anunciados; menos importa que a “verdade” seja alcançada que a técnica utilizada, afinal, o que está oculto, não revelado, é legitimação de suas práticas como instrumento de produção da verdade, a questão não é a exatidão dos conhecimentos produzidos, mas que seja realizado conforme suas regras e prescrições.

O que se revela, portanto, é o exercício macro e micro do poder, por um lado manifesto pela força do Estado, soberano e detentor do poder punitivo que dispõe do individuo como objeto de pesquisa; por outro, o poder da autoridade que o manipula conforme a técnica consagrada, que nas duas situações, são representações de um “Ritual de produção que toma corpo numa instrumentação e num método a todos acessíveis e uniformemente eficaz (...) uma relação ambígua, reversível, que luta belicosamente por controle, dominação e vitória: uma relação de poder. (...) A crise

Page 70: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

59

atual [do IP] não coloca em questão simplesmente seus limites e incertezas no campo do conhecimento. Coloca em questão o conhecimento, a forma de conhecimento, a norma ‘sujeito-objeto’”126.

Todo esse rigoroso formalismo e seus desdobramentos se fazem inconteste, até porque, ainda que algum condutor de investigações quisesse agir de maneira diferente, seria impossível; sua rebeldia representaria ato de descumprimento de ordens, caracterizando evidente insubordinação, passível de sancionamento disciplinar.

Para constar, contemporaneamente, mutatis mutandis, a subordinação dos delegados de polícia segue o mesmo modelo de 1841127, ou seja, permanecem sujeitos a uma dura centralização burocrático-administrativa, o que possibilita, entre outras medidas que podem ser adotadas por ato discricional, “a bem do interesse da administração”, as nomeações, as destituições de chefias, e principalmente, as transferências dos delegados de qualquer unidade policial, conforme critérios próprios do chefe de polícia128. Portanto, ações individuais e pontuais, não se mostram capazes de qualquer modificação dessa realidade, os mecanismos internos das corporações policiais construíram defesas à manutenção do modelo, estabelecidas principalmente através de rigorosa hierarquia funcional.

7.4 SISTEMA ÚNICO E INDICIAMENTO Tomando por base a origem primária do inquérito na Europa, pode-se citar como

exemplos de modelos diversos do brasileiro, outros países do mesmo continente. Na Itália, a partir de 1988, se atribuiu ao Ministério Público a coordenação da

produção das provas na primeira fase da persecução, as provas pretendidas são colhidas

126 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução Roberto Machado, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979. p. 116, 115 e 118 respectivamente. 127 “Os Chefes de polícia eram conservados no cargo enquanto bem servissem e o Govêrno julgasse conveniente. Os delegados, idem, com a circunstância de que além do Govêrno, na Côrte, também os presidentes de províncias podiam julgar ou não conveniente a sua conservação no cargo. O mesmo acontecia aos subdelegados” Idem, MARQUES, José Frederico. Vol. I p. 99. 128 “Em cada delegacia existe um delegado titular, que trabalha nos dias úteis, em horário comercial. Os titulares das delegacias de todo o Estado do Rio de Janeiro [assim como em outros estados e no âmbito da Polícia Federal] são nomeados pelo chefe de Polícia Civil [Superintendentes Regionais]” (...) “Em cada uma das delegacias, observam-se diversos casos de transferências e a instabilidade dos policiais em seus locais de trabalho” (...) “Delegados e policiais costumam dizer que a titularidade de uma delegacia é cargo político” Grifos nosso. MISSE, Michel, Idem p. 29

Page 71: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

60

pela polícia; a transferência da coordenação das investigações é bastante acentuada, inclusive, sendo o parquet, nos casos e crimes mais graves (ex.: máfia), o próprio investigador, que poderá dispensar a participação policial.

Do mesmo modo, na Alemanha, que após a reforma de 1974 deixou de ter o “Juiz Instrutor”, até então responsável pelo inquérito, agora se utiliza do Ministério Público como investigador.

Na Inglaterra, embora a polícia conduza o inquérito e faça a peça acusatória, tem sua atividade coordenada pelo “Serviço de Persecução Real”, desde os anos 90 do século passado. A propósito, o sistema inglês é tido como um dos mais respeitados na Europa.

Na França, tal como no Brasil, toda produção investigativa é feita pela polícia, entretanto, seu resultado é dirigido a um juiz instrutor, que prepara o inquérito e remete ao Ministério Público para o oferecimento da peça acusatória; o juiz instrutor não é o juiz que julgará o processo.

Também na França, o Ministério Público é o responsável pelas investigações nos casos de menor gravidade.

Esse modelo de instrução, realizada por um juiz, com posterior remessa ao Ministério Público para a acusação formal, também é o adotado e utilizado na Espanha.

E por fim, em Portugal; a partir de 1995 o inquérito – a palavra “policial”, inclusive, foi suprimida –, fica a cargo do Ministério Público, que age com o auxílio da polícia no que diz respeito a parte operacional da atividade investigatória.

Adotando um sistema de existência única para investigação, o Brasil afastou-se de tradicionais modelos, atribuindo a exclusividade investigatória à polícia, entretanto, não lhe foi outorgada a possibilidade de formulação da acusação formal, tão pouco, durante o proceder apuratório, foram estabelecidas medidas garantistas presentes no juizado de instrução.

Em síntese, a investigação não pertence ao titular da ação, que embora possa agir como fiscal do cumprimento da lei, bem como requisitar diligências, porém, está subsumido aos critérios de ação de outro órgão. Não há, portanto, que se estranhar as disparidades que surgem, entre objetivos pretendidos pelo acusador, e os alcançados por quem investiga.

Page 72: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

61

Veja-se o ato formal do indiciamento, contra quem recaiam os elementos de provável autoria, determinado conforme a convicção do delegado que conduz o inquérito, verdadeira formação de culpa129, que, entretanto, poderá simplesmente ser ignorado pelo titular da ação, desprezando o juízo de valor anteriormente feito. A propósito, o indiciamento, realizado sem a precedência do contraditório, embora possua mero valor subjetivo, não vinculativo, portanto, desnecessário, é causador de conseqüências danosas para o indiciado.

Dirão os defensores do modelo, que não há acusado no momento da realização do IP, pois não se trata de fase judicial; e que tudo poderá ser revisto e mesmo refeito sob a égide da ampla defesa quando da instrução penal; porém, ainda que não possuísse valor judicial, a investigação (e o indiciamento), permanecerá entranhada nos autos mesmo depois de encerrado o inquérito, como elemento psicológico da “provável” responsabilização pelo ilícito.130

Ainda sobre o indiciamento, portador de conseqüências que vão além de seu mero ato formal, se constitui em violação a dignidade da pessoa, considerando, ainda não existir responsabilização penal afirmada por decisão judicial, portanto, sujeitando o indiciado a constrangimento desnecessário e inadequado, formulado a partir de convicções pessoais do delegado de polícia; de igual forma, o ato de indiciar ocasiona desdobramentos que ultrapassam a esfera penal, também repercutem na vida civil do investigado, isso porque, o indiciado ao ser apontado como provável sujeito de uma relação processual, que poderá sequer vir a existir, passa a ter registro público do inquérito em seus dados pessoais junto aos institutos de identificação, que não

129 “Um bom exemplo da ambivalência de funções do delegado de polícia ocorre na Polícia Federal. Ali, as investigações policiais antecipam-se à instauração do inquérito, que só será aberto, durante as investigações, caso sejam necessárias medidas cautelares (por exigência legal). A lógica seguida na Polícia Federal é que o inquérito policial só deve ser instaurado quando a investigação, concluída, já dispuser de elementos que o justifiquem. Fica, assim, caracterizada a duplicidade de papéis que cabe a polícia: investigação policial (também separada do policiamento ostensivo, praticado pelas polícias militares) e pré-instrução criminal. Se bem feita essa última, o Ministério público simplesmente a chancelará na denúncia, poupando-se trabalho ao apensar o processo todo o inquérito policial. Com isso, na prática, a polícia passa a ‘carregar’ a parte mais pesada (e mais exigente) do processo de incriminação. E também a maior parte da ‘formação de culpa’.” Idem, MISSE, Michel, Idem p. 14/15 130“Tudo isso dá-se sob um enquadramento funcional administrativo, isso porque, aparentemente sem nenhum valor judicial, pois depende de ser encampado total ou parcialmente, no momento da denúncia, pelo Ministério Público. Por definir-se como etapa “administrativa”, mas executada por uma “Polícia Judiciária”, a ambivalência dispensa a defesa e o contraditório nesta etapa.” MISSE, Michel, Idem p. 10

Page 73: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

62

raramente, são pesquisados para atestados de idoneidade, além de serem considerados “antecedentes” na hipótese de outra ação penal que possa vir a ser julgada131.

Diante desse quadro de autêntica intimidação a que fica sujeito o investigado, não se pode duvidar da possibilidade de utilização do indiciamento como instrumento de favorecimento político e/ou negociações criminosas. Sendo de caráter subjetivo as conclusões do inquérito, repousam unicamente nos valores morais da autoridade policial a escolha para a prática do ato.

Destaque-se, de artigo do então Secretário de Justiça e Segurança Pública do Rio Grande do Sul, José Paulo Bisol: “Nenhum país da Europa pratica o inquérito policial. Em toda a América, de sul a norte, só o Brasil, e no mundo inteiro, outros dois países, ambos de colonização portuguesa, perseveram com ele a despeito de sua origem e de sua história que são antropológicamente repulsivas. Certamente acontecem inquéritos policiais bem feitos, mas a instituição do inquérito policial é, em si mesma, um mal, tanto que a razoabilidade e a confiabilidade de cada procedimento depende da qualidade moral da pessoa que o preside.”132

7.5 A ILEGALIDADE DA PROVA Durante a realização do inquérito policial, na busca pelos indícios de autoria e

materialidade, verdadeira prova133, não fosse a dogmática estabelecer que aqueles não mereçam tal definição, a autoridade policia precipuamente atua na colheita de elementos orais e juntada de documentos, restando outras diligências, tais como buscas domiciliares, interceptações telefônicas e similares medidas cautelares a prévia apreciação e autorização do Poder Judiciário.

Além das provas documentais e testemunhais, há também as produzidas a parti dos exames periciais, indispensáveis de serem realizados, sempre que a infração penal

131 Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) – Código Penal Brasileiro 132 BISOL, José Paulo. Sobre a Extinção do Inquérito Policial. Em: Diálogo Federal, Jornal do Sindicato dos Servidores do Departamento de Polícia Federal no Estado do Rio de Janeiro - SSDPF, nº 41, Rio de janeiro, janeiro de 2003. p.4 133 Classificam-se as provas quanto à forma em testemunhais, documentais e periciais FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007. p. 82/90

Page 74: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

63

deixar vestígios134. Como importante elemento elucidador dos fatos, serve a perícia para pesquisar o corpo de delito – conjunto de vestígios deixados pela infração – na tentativa de reconstrução dos fatos em apuração.

Os exames periciais não são executados pela autoridade policial ou seus agentes, mas por peritos oficiais ou nomeados, conforme áreas de conhecimentos específicos; inicialmente requisitados, ao final de suas realizações, são respondidas questões formuladas pelas APs, e devolvidas suas conclusões para serem juntadas no IPs; embora, inicialmente, durante a realização dos exames, também não haja participação do investigado, salvo para fornecimento de material a ser examinado – grafotécnico, biológico etc. –, as provas perícias obtidas poderão ser questionadas, em contraditório posterior, através da indicação de assistente técnico135, é o que se chama de contraditório diferido136.

Considerando as medidas cautelares – lato sensu – que só podem ser executadas após autorização judiciária, pode-se afirmar que há uma limitação prática na atuação policial quanto à colheita de provas; com essa restrição, foi consagrada a opção garantista-constitucional em 1988, ou seja, no modelo que hoje se utiliza para a investigação policial no Brasil, uma parte das diligências está subsumidas a discricionariedade da autoridade policial e a outra, dependente de executoriedade pela autorização do juiz.

Sem dúvida, a partir dessas limitações, operou-se um avanço no terreno do respeito aos direitos fundamentais, assim a privacidade, a inviolabilidade de domicílio,

134 Art. 158. Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado. Código de Processo Penal 135 Art. 159. O exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial, portador de diploma de curso superior. ... 3o Serão facultadas ao Ministério Público, ao assistente de acusação, ao ofendido, ao querelante e ao acusado a formulação de quesitos e indicação de assistente técnico. - Código de Processo Penal 136 “As perícias realizadas na fase policial são, em regra, feitas, sem prévia manifestação da defesa e, muitas vezes, representam a comprovação do corpo de delito. Excluídos os casos em que há urgência, seja porque há risco de desaparecerem os sinais do crime, seja porque é impossível ou difícil conservar a coisa a ser examinada, ou ainda as hipóteses em que inexiste suspeita contra pessoa determinada, a autoridade policial deveria dar oportunidade ao indiciado de apresentar quesitos para maior garantia de sua defesa. Todavia, tem-se entendido que as provas periciais obtidas na fase policial independem de manifestação do indiciado, porque o inquérito é marcadamente inquisitorial e também porque pode o réu, na ação penal, impugnar a perícia, requerer novo exame ou pedir esclarecimentos aos peritos. Realiza-se enfim um contraditório diferido.” GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance e GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2006 .p 172/173

Page 75: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

64

a dignidade da pessoa humana, o direito de ir e vir, entre outros, passaram a ser protegidos, num Estado que se apresenta como Democrático e de Direito.

Entretanto, ainda que pareça residual a parcela de atividades próprias à polícia, esta é de enorme importância, não só por inexistir hierarquia entre as provas137, como também pela forma de sua colheita.

Embora, sejam valoradas igualmente e sujeitas à livre apreciação no momento da sentença, bem como relativizadas em razão de sua origem, é injustificável que a produção da prova oral no IP ainda se dê fora do contexto contraditório, isso porque, a ausência do defensor na fase policial, retira seu valor de credibilidade, bem como, elimina a necessária publicidade dos atos públicos, pretendida pelo constituinte138.

Qualquer que sejam as justificativas, “o calor dos acontecimentos” no caso de lavratura do auto de prisão em flagrante; possíveis manipulações ou prévias instruções de testemunhas; interferências procrastinatórias dos defensores, ou outras que se apresentem, esses argumentos não podem violar as garantias fundamentais do cidadão, na busca de uma inatingível “verdade real”, esta sim, verdadeiramente inalcançável139.

Assim, a prova colhida em sede policial não goza de legalidade constitucional, portanto, não deve possuir validade e apreciação pelo julgador, porque contraria os postulados do devido processo legal; destaque-se, especialmente, a necessária e imperativa imparcialidade do produtor do conhecimento – da prova –, inexistente por 137 “O projeto adotou radicalmente o sistema chamado da certeza legal. Atribui ao juiz a faculdade de iniciativa de provas complementares ou supletivas, que no curso da instrução criminal, quer a final, antes de proferir a sentença. Não serão atendíveis as restrições à prova estabelecida pela lei civil, salvo quanto ao estado de pessoas; nem prefixada uma hierarquia de provas: na livre apreciação desta, o juiz formará, honesta e lealmente, a sua convicção.” Exposição de motivos do Código de Processo Penal – Decreto-Lei nº 3.689/41 138 “É da essência da democracia que os atos que visem aplicação da lei penal ao cidadão sejam coletados publicamente. Neste momento da história não se pode admitir que a perseguição efetivada, via denúncia, se dê sob o império do segredo: todos, absolutamente todos, tem o direito de fiscalizar a atuação punitiva – note-se, como já se viu, que o segredo, o escondido, o inquisitório, é previsto apenas para aquela fase onde acusação ainda não há, por incerta a materialidade e a autoria: a do inquérito.” CARVALHO, Amilton Bueno, O Inquérito Policial como instrumento do direito penal do terror, www.tjrs.jus.br/.../Inquerito_Policial_como_instrumento_terror.doc (acessado em 27/04/2011) 139 “Para Ferrajoli, a dita verdade real é “una ingenuidad epistemológica” e mais “si una justicia penal completamente ‘con verdad’ constituye una utopia, una justicia penal completamente ‘sin verdad’ equivale a un sistema de arbitrariedad”). A “verdade”, para ele, dá-se por aproximação e o é histórica e relativa.” Idem, CARVALHO, Amilton Bueno “A verdade, por inalcançável, é uma mentira, justificadora do inquisitório, a ponto de “legitimar”, para sua extração, inclusive a tortura – a Idade Média, porões de algumas Delegacias de Polícia, a guerra do Iraque, estão bem a demonstrar.” Idem, CARVALHO, Amilton Bueno

Page 76: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

65

parte da AP, que sempre pretende demonstrar uma afirmação aprioristicamente construída na sua razão.

Discorrendo, quanto a imparcialidade exigida por lei, esta só é possível de estar presente em sede judicial; significa uma eqüidistância das partes, ou seja, não deve pretender o juiz ab initio prestigiar uma ou outra tese, acusadora ou defensiva, mas resguardar-se, para somente depois de conhecer todos os fatos que lhe forem trazidos, apreciando livremente e se convencendo dos argumento, se manifestar pela condenação ou absolvição do réu, o que não ocorre em sede policial, onde se busca afirmar uma presunção de culpabilidade.

Tal como a imparcialidade do julgador, o contraditório e a ampla defesa também são postulados maior da garantia do devido processo legal, entretanto, por sua “natureza” e regramentos, o inquérito não se adéqua ao querer constitucional.

É tão grave a questão, que o Desembargador do Rio Grande do Sul, Amilton Bueno de Carvalho é taxativo ao afirmar: “O repúdio, então, à prova oral policial é total.”, prossegue, “E rejeitada deve ser venha de que lado vier. De outra maneira: seja para condenar, seja para absolver. Desvalorar para uma parte e não para outra, além de agredir o princípio da igualdade, gera incoerência lógica insustentável: beira o irracional.”

Ainda que em posição isolada, mas comprometida com o Estado Democrático de Direito, conclui o magistrado-processualista: “Todavia, como ainda o sistema não disciplina isso expressamente (o artigo 12 do Código apenas ordena que o inquérito acompanhe a denúncia ou queixa, cuja razão de ser é a verificação da presença da justa causa à propositura da ação penal) – o que não impede ao juiz que assim o faça – entendemos que o julgador deve simplesmente recusar a leitura das peças do inquérito no momento decisional para que tais não invadam seu imaginário e a prova “sadia” reste contaminada, ainda que inconscientemente, por aquela que repudia as garantias de um processo penal minimante democrático.”140 (grifo nosso).

Se, conforme afirmado, é ilegal o modo de produção da prova no inquérito, resta nos moldes constitucionais vigentes somente uma alternativa: a prova para que tenha condição de validade, deve ser produzida perante um órgão imparcial, ou seja, que não tenha nenhum interesse na afirmação de uma tese primeira; como não há outro órgão

140 Idem, CARVALHO, Amilton Bueno

Page 77: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

66

participante da relação persecutória que possa representar essa afirmação, conclui-se, que nesse momento, somente o juiz poderia produzir a prova, e este, consequentemente, ficaria impedido de atuar no julgamento da causa, tudo conforme o sistema acusatório adotado em 1988. Tal construção embora não seja neutra de propósitos, todavia, afirma-se por suas próprias conclusões.

Mais a diante, em nova abordagem, melhor se contextuará essa questão. 7.6 O MEDO, O MERCADO E A MIDIATIZAÇÃO DO INQUÉRITO

POLICIAL Devidamente sacramentado na lei processual e estabelecido por décadas como

modelo retilíneo, o inquérito policial é ofertado como instrumento consagrado, impassível de correções, porém, ao contrário dessa aparente e previsível marcha, o IP é sujeito a todo sorte de tumultos e incontáveis imprevistos, que vão desde a não resposta a um simples ofício, que pretenda uma consulta em alguma instituição pública ou privada; passando pela falta de recursos humanos e materiais para cumprimento das diligências (carência de policiais, gasolina, diárias, munição etc.); e chegando até a displicente e/ou burocracia do “vai e vem” do inquérito, entre delegacias e Ministério Público, com suas infinitas possibilidades de pedidos de renovações de prazos141. Enfim, o IP pode até possuir uma data certa para seu início, porém, precisar sua finalização, é tarefa impossível.

Entretanto, é fato que todas as dificuldades do IP são superadas, nos casos de maior repercussão midiática, quando então, recebe contornos de show, e seus protagonistas adquirem status de verdadeiras estrelas e astros de televisão ou cinema: alguns assumindo o papel de vilões e de abomináveis encarnações do mal; outros, o papel de pobres e indefesas vítimas; finalmente, existem ainda os “mocinhos” do enredo, qual seja os representantes estatais envolvidos no inquérito (investigadores, delegados, promotores), dispostos a desvendar a trama e a punir os culpados, que a essa

141 “A movimentação dos papeis entre as delegacias e a central de inquéritos, costuma levar entre cerca de vinte dias a um mês, tempo esse em que o curso das investigações dos inquéritos é interrompido... Em alguns inquéritos analisados, o tempo despendido entre DP e MP chegou a seis meses.” MISSE, Michel (organizador). O inquérito policial no Brasil: uma pesquisa empírica. Rio de janeiro, NECVU/IFCS/UFRJ; BOOKLINK, 2010. p. 56

Page 78: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

67

altura do dramático enredo142, de regra, já foram pré-julgados, condenados e punidos pela grande massa da opinião pública143.

Não se pode duvidar, com tantos requintes de produção, que o show da violência gere um substrato, essencial para sua permanência em cartaz e consequente justificação de novas e repetitivas exibições para o público, o medo, que representa no imaginário comum, a possibilidade dos espectadores se transformarem em vítimas-protagonistas de iguais histórias de terror.

Depois de assistir a narrativas emocionadas, dos pasteurizados animadores dos espetáculos, confirmadas pelos depoimentos das vítimas e de testemunhas diretas do horror, exibidos em modernas e tridimensionais reconstituições cinematográficas, não é difícil de imaginar, que o perigo more a lado, quando não, em seus próprios lares.144

Novamente, a utilização dos conhecimentos interdisciplinares da sociologia e do direito, se farão marcantes e contribuirão para a compreensão das questões que a seguir serão expostas.

Sobre o tema, a influência da mídia na formação da opinião pública, destaque-se os estudos iniciados ainda na década de 1923 pela Escola de Frankfurt – Instituto de Pesquisa Social do pensamento social, que através da revisão da obra de Karl Marx, passaram a observar que o autor não teria se atentado para a forte influência da cultura na sociedade capitalista moderna. 142 “Na televisão, os âncoras são narradores participantes dos assuntos criminais, verdadeiros atores – e atrizes – que se valem teatralmente da própria máscara para um jogo sutil de esgares e trejeitos indutores de aprovação ou reproche aos fatos e personagens noticiados. Este primeiro momento no qual uma acusação a alguém se torna pública não é absolutamente neutro nem puramente descritivo. A acusação vem servida com seus ingredientes já demarcados por um olhar moralizante e maniqueísta; o campo do mal destacado do campo do bem, anjos e demônios em sua primeira aparição inconfundíveis. Para ficar num caso sobre cuja inconsistência há unanimidade, vejam-se os noticiários contemporâneos do inquérito policial da Escola Base.” BATISTA, Nilo Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio http://www.4shared.com/get/znmHqJhY/_2__Batista_Nilo_-_Mdia_e_Sist.html p 14 (acessado em 28/04/2011) 143 “Diante da impossibilidade de dar-se conta do volume total dos inquéritos nos prazos regulamentados, os policiais e delegados selecionam os casos que deverão ser priorizados segundo critérios como a sua repercussão na mídia, a gravidade do ato, a posição social da vítima e as motivações pessoais dos agentes. Quando há interesse particular em determinados casos, todas as dificuldades enumeradas são prontamente superadas para se garantir maior rapidez no procedimento.” MISSE, Michel, Idem p. 53/54 144 “Os medos não têm raiz. Essa característica líquida do medo faz com que ele seja explorado política e comercialmente. Os políticos e os vendedores de bens de consumo acabam transformando esse aspecto em um mercado lucrativo. O comum é tentar reagir, fazer alguma coisa, desvendar as causa da ansiedade e lutar contra as ameaças invisíveis. Isso é conveniente do ponto de vista político ou comercial. Tal atitude não vai curar a ansiedade, mas alimentar essa indústria do medo. Adquirir bens para obter segurança só alivia uma parte da tensão e mesmo assim, por um breve tempo.” BAUMAN, Zygmunt. Capitalismo parasitário: e outros temas contemporâneos. Tradução Eliana Aguiar, Rio de janeiro, Zahar,2010 p.74

Page 79: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

68

Iniciados os trabalhos do Instituto de Pesquisa, na sua primeira geração, Theodor Adorno, em parceria com Max Horkheimer, publica a “Dialética do Iluminismo”, ocasião que emprega e explica o termo “indústria cultural” em substituição a expressão “cultura de massa”. Para Adorno, a ideologia capitalista, tem uma forte aliada, a indústria cultural, que de maneira bastante engendrada, visa “criar” necessidades de consumo, instrumentalizando o indivíduo à condição de consumidores daquela indústria, padronizando seu comportamento e enfraquecendo a capacidade de desenvolvimento de um pensamento crítico.

Apontado como herdeiro das idéias inicias de Adorno, portanto pertencente a segunda geração de Frankfurt, Jürgen Habermas, prossegue na discussão desse tema, a partir da análise da “esfera pública” desenvolvida, inicialmente, através de trocas de cartas comerciais (século XIV), que resultaram na criação de serviço de correios; mais adiante com a circulação de jornais, bem como pelos cafés londrinos no século XVII – o primeiro inaugurado por um cocheiro de um mercador oriental, mas que no primeiro decênio do século XVIII já seriam mais de 3.000, só naquela cidade.

Assim, Habermas em sua obra “Mudança Estrutural da Esfera Pública”, numa pormenorizada construção histórica, demarca a arena de debates e construção da “opinião pública”, ou em suas próprias palavras, “o que é submetido ao julgamento público ganha publicidade (...) A própria crítica se apresenta sob a forma de ‘opinião pública’”145.

Para Habermas, os debates públicos ganham de especial importância na formação da opinião pública, vital “na primeira fase da evolução da democracia, mesmo contando com a participação de um número apenas restrito da população, pois introduziram a idéia da resolução de problemas políticos através da discussão pública”146.

Todavia, conforme a crítica habemasiana, os ideais de evolução da esfera publicam, foram sufocados pelo avanço da indústria da cultura, que suprimiu o debate democrático, através da mídia de massa, que passou a instrumentalizar os indivíduos na direção do consumo e na formação de suas opiniões, “transforma[ndo] a esfera pública em uma fraude (...) A ‘opinião pública’ não é formada por meio de uma discussão 145 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução Flávio R. Kothe, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2003. p. 41 146 GIDDENS, Anthony. Sociologia. Tradução Sandra Regina Netz, 4ª ed., Porto Alegre, Artmed, 2005. p. 375

Page 80: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

69

racional, aberta, mas através da manipulação e do controle – como no caso da publicidade.”147.

Nesse balizar sintético de compreensão, da influência da mídia sobre a opinião pública, em particular destaque, na formação da opinião sobre as questões relativas a segurança pública, violência, criminalidade e temas a fins, que se assentam os argumentos ora apresentados no trabalho; a industria cultural – inclua-se seu ramo, a industria do entretenimento – utiliza dessas questões exposta, como mais um produto de consumo, portanto, valorado e preservado esse tema, verdadeira fonte produtora de riqueza.

Também, se devem destacar os contributos de FOUCAULT, na construção do inimigo público através do uso de instrumentos culturais. Argumenta o autor, que estrategicamente foi construída a imagem do criminoso, a partir do Século XVIII, isso porque, embora a prática ilícita não seja fenômeno de uma época ou período especial, transitando por toda história, seus agentes, até o período referido, não tinham sido selecionados, ou destacados entre os demais membros das populações, ou o que denomina de “classe autônoma delinqüente”; entretanto, com o as mudanças das relações nas sociedades industriais, quando as classes populares tiveram acesso a instrumentos, matérias-primas e máquinas disponibilizadas ao trabalho, surge a necessidade de se controlar qualquer perda que atingisse direta ou indiretamente os lucros investidos; o trabalhador passa a ser doutrinado no sentido da proteção da riqueza que lhe é oferecida como instrumento de trabalho, através de disciplinação moral e convencimentos oblíquos.

Se por um lado, através de “ofensivas de moralização”, com a participação ativa das igrejas, engajadas num processo de cristianização operária, se construía uma moral burguesa, ao mesmo tempo, se separava o “joio do trigo”; ou seja, formaram-se dois grupos distintos: de um lado, o trabalhador moralmente adequado e, do outro, o delinqüente desviado dos caminhos das leis dos homens e de Deus.

Alimentando essa segregação, por outra via, os delinqüentes, já contaminados pelo vírus da iniqüidade, ao serem levados à prisão, também se tornam ameaças reais aos trabalhadores, isso porque, especula o autor francês, ao serem apresentados como mãos-de-obra durante seus aprisionamentos, tornam-se concorrentes com trabalhadores

147 Iden, GIDDENS, Anthony. Sociologia. p. . p. 375

Page 81: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

70

“livres”, embora de maneira fática, além do discurso, os trabalhos realizados não fossem de nenhuma utilidade prática, trabalhava-se “sem objetivo, trabalhar por trabalhar’. a condenação à prisão física, associada a trabalhos forçados, portanto, tem muito mais a revelar que um discurso regenerador de caráter, ou oportunizador de aprendizado de uma atividade laborativa “digna” ao egresso das cadeias.

Destaca FOUCAULT nesse período, o “nascimento da literatura policial e da importância dos jornais, das páginas policiais, das horríveis narrativas de crimes”148; não por acaso, algo que agora soa com tom bastante familiar.

Outro aspecto que observa, se dá pela constatação da impropriedade utópica de uma sociedade sem delinqüência, imaginada também no século XVIII; o autor acreditava que por trás do combate a delinqüência, existia um propósito oculto de controle e poder; partindo deste pressuposto, formulou, que a polícia dependia da delinqüência para sua própria existência e, que não havendo o crime, desfazia-se a necessidade do aparato controlador policial, o que por mero raciocínio lógico fica evidente. Enumerados pela mídia, os riscos e perigos a que todos estão expostos, legitima-se o controle da sociedade através de seu aparato policial, bem como, após as transformações da cultura em instrumento do mercado, surgiram novas oportunidades econômicas, inimagináveis no surgimento da burguesia.

Muitas vezes, como no dito popular, “quanto pior melhor”, é a opção consagrada; a ineficiência é tão poderosa, ou mais, que a efetividade de qualquer política pública que decida acabar com ela. Pela manutenção do modelo investigativo, evidenciam-se poderosos lobbies, representantes de interesses públicos e privados.

Para o mercado privado, a violência é produto de consumo e fomentadora de negócios e investimentos149. Esse grande negócio que vive da insegurança e do medo comum, pode ser visto através de incontáveis formas de expressão e exemplos; em recorte, destaque-se, a contratação direta por empresas de segurança privada de 350 mil vigilantes, alocados em empresas, condomínios, escolas etc., uma verdadeira força

148 Idem, FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. p. 132-133 149 Demonstrando a força do mercado de segurança e periféricos, cite-se apenas como um exemplo, recente acontecimento na cidade de São Paulo, entre 24 e 26 de maio de 2011, no Centro de Exposições Imigrantes, quando foi instalada a XIV International Security Fair – EXPOSEC, realizada com a participação em números absolutos de seiscentas empresas expositoras, especialistas no ramo da segurança privada, responsáveis por um faturamento setorial em 2010 de cerca de US$ 1,68 bilhão, com um crescimento médio de 13%. e contou com outras quarenta entidades em apoio e mídia oficial http://www.exposec.tmp.br/ (acessado em 03/04/2011)

Page 82: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

71

pública, que supera com seu contingente as Forças Armadas; conforme dados da Confederação Nacional dos Trabalhadores Vigilantes e Prestadores de Serviço – CNTV-OS, apurados em 2004, existiam ainda, outros 900 mil vigilantes que operavam à margem dos controles fiscalizatórios dos órgãos oficiais. Não há porque duvidar que esses números tenham se multiplicados.150

Não por acaso a midiatização da violência é tão abordada, tendo se tornado fonte de permanente exploração comercial, é produto de consumo, como outro qualquer, e de grande aceitação popular, representando farta parcelas dos espaços televisivos e da mídia em geral, conseqüentemente, geradora de significativas receitas151.

A propósito, há muito que a pauta jornalística da chamada “grande mídia”152 está compromissada com temas criminais, qualquer que seja o veículo informativo (rádio, 150 Números produzidos através do Sindicato das Empresas de Segurança Privada do Estado do Rio de Janeiro – SINDESP-RJ e disponibilizados pelo site: http://tudosobreseguranca.com.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=562&Itemid=166 (acessado em 03/04/2011) Anexo IV ao final do trabalho. A guisa de referência mais atual, em somente um setor da economia, com atividade exercida exclusivamente na área, ainda que não existam fontes disponíveis à consulta: “José Jacobson Neto, diretor da GP, uma das maiores empresas de segurança privada do país, tem uma questão imobiliária para resolver. As quatro casas que a Guarda Patrimonial ocupa em um vasto quarteirão da Avenida Nove de Julho, em São Paulo, não comportarão por muito mais tempo o batalhão de vigilantes e pessoal de apoio da companhia – que tem crescido em progressão geométrica. Jacobson planeja uma mudança para um prédio de bom tamanho, antes que a falta de espaço vire um gargalo para a expansão da empresa. Há dois anos, havia 4,3 mil homens sob seu comando, gerando um faturamento da ordem de R$ 7,5 milhões. Hoje, com 8,5 mil profissionais contratados, a receita chega a R$ 17,5 milhões. Detalhe: o salto da GP é exceção e não regra. O setor de segurança patrimonial – que tem 1.300 empresas registradas e emprega 500 mil vigilantes no Brasil – não tem crescido neste ritmo. O faturamento somado da categoria girou em torno de R$ 8,2 bilhões no ano passado, superando apenas marginalmente o de 2003 (R$ 7,8 bilhões).” Disponível em: http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/6786_LUCRO+COM+SEGURANCA. Acessado em 1/06/2011 151 Em uma única semana, doze de treze séries televisivas estréiam nos canais de televisão brasileira, mostrando que o mercado é grande o suficiente para absorver a violência como produto de consumo, ainda sem indicativo de esgotamento: “Há quem diga que o ano só começa depois do carnaval. É fato que o clichê não se aplica sempre, mas o que pensar quando, na mesma semana, 13 séries - algumas inéditas, outras em novas temporadas - são lançadas de uma só vez? E quando, com exceção de "18 to life", todas seguem o gênero policial ou investigativo?” http://oglobo.globo.com/cultura/revistadatv/mat/2011/03/11/treze-series-em-sua-maioria-policiais-estreiam-na-tv-aberta-fechada-nesta-semana-923993767.asp (acessado em 14/03/2011) 152 “Por fim, a observação puramente quantitativa revela a importância estratégica da criminalização das relações sociais no noticiário. Tomemos a edição de O Globo de sábado, 5 de janeiro de 2002. Deixando de lado o caderno que se ocupa de economia, mundo e esportes, restam 16 páginas sobre o país e o Rio, além de colunas, editoriais e artigos. Leiamos essas 16 páginas. Na primeira, há três chamadas de matérias criminais (“Seqüestrador mantém reféns em Porto Alegre”; “Polícia do Rio prende dois chefes do tráfico”; “Fernando Pinto apanhou com canos de ferro”) e duas correlatas (“Governo suspende pílula do dia seguinte” e “Filho de Cássia Eller já é disputado”): acrescidas à foto, do episódio de Porto Alegre, somam 70% da centimetragem. A página 2, além de uma coluna econômica, só publica outras chamadas: das oito, cinco são criminais. A página 3, salvo uma coluna no rodapé, é toda dedicada à manchete: “Terror no microônibus”. Na página 4, além de uma coluna, temos a complementação da matéria sobre o microônibus e reportagem sob o título “Dutra Pinto apanhou com canos de ferro”. Na página 5, além de um anúncio, quatro matérias: “Garoto de 13 anos mata amigo de 12 com tiro” (manchete); “Diretor de

Page 83: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

72

televisão, jornais, internet etc.), ou seu destinatário, independentemente de classificação conforme classe social. Ou seja, rompendo antigos preconceitos, de que matérias jornalísticas policiais estariam ligadas e direcionadas às classes menos favorecidas, ou que esses assuntos, seriam objeto de propagação através da “imprensa sensacionalista”, a violência e a criminalidade são expostas e exploradas em horários e veículos “nobres”, não importando quem seja o consumidor desses “produtos”.

Mas não é só ao mercado que o modelo serve, no viés público, destacam-se os interesses: corporativos, organizados na direção de mais espaço público, prestigio, status e, evidentemente, remuneração mais condizente com desejosas posições magistrais; políticos, que utilizam do discurso da segurança para amealhar votos na conquista de suas representações; intrassistêmicos, que garante através do modelo as razões de suas existências; como também, os patológicos, ligados a interesses escusos, operados na forma de gastos públicos, comissionados por faturamento superior ao valor real do produto ou serviço, ou pelo desembolso desnecessário na aquisição desses bens. Enfim, os interesses não se esgotam em rol taxativo ou níveis de exercício do poder, estão presentes em todos os espaços e momentos, entrelaçados com cada ato público praticado.153 presídio já tinha sido condenado”, seguida de “Situação é tensa no (presídio) Urso Branco”, e “Feirante que teve o pênis cortado receberá prótese”. A página 6 publica os editoriais e cartas dos leitores: das 17 cartas,5 têm por objeto um processo civil, 2 a segurança no réveillon, 1 um crime ambiental, 3 a morte de Fernando Dutra Pinto. Na página 7, uma coluna e dois artigos. Na página 8, das sete matérias três estão em nosso terreno (a pílula do dia seguinte, tramitação da nova lei de drogas e um crime eleitoral). A página 9 se ocupa inteira do tema de sua manchete: “Começa a briga por Chicão”. As páginas 10 e 12, com tradicionais colunas, são exceções. Na página 11, de quatro matérias as duas maiores são “Mosteiro de São Bento tem segurança particular depois de sofrer 3 assaltos” (manchete) e “Juizado decidirá destino de menina”. Na página 13, “biólogo denuncia crime ambiental”. A página 14 é uma propaganda. Na página 15, além do obituário, cinco matérias criminais (“Prisão de Polegar em Fortaleza” – manchete –, “PF prende no Paraná ladrões de banco do Rio”, “Bandidos atacam posto da PM e ferem sargento”, “Bandidos ferem cinco pessoas na saída do piscinão” e “Traficante que resgatou cúmplice de hospital é preso”. Por fim na página 16, um imenso anúncio cercado de seis pequenas notícias, quatro das quais criminais (dois acidentes de trânsito, um bloco carnavalesco ensaiando em decibéis ilícitos, e “Homem agarra criança e pula de 7 metros de altura”. Eis aí: quase 80% do noticiário desta edição sobre o país e o Rio é criminal ou judicial. Será ingênua esta leitura do país e do Rio? Ou servirá para esconder algumas coisas e alavancar outras?” Idem, BATISTA, Nilo. p. 14/15 (grifo nosso) 153 “Em termos de centralidade política, chama atenção o aumento de mais de 100%, entre 2003 e 2009, no total de despesas efetuadas na função segurança pública: União, Estados, Distrito Federal e municípios gastaram aproximadamente R$ 22,5 bilhões com segurança pública em 2003, valor que alcançou mais de R$ 47,6 bilhões, em 2009. Em valores nominais, todos os estados aumentaram suas despesas com a área acima da inflação acumulada nesse mesmo período (40,4% pelo IPCA). Entretanto, em termos relativos, municípios e União estão, proporcionalmente, investindo mais do que as Unidades da Federação em segurança pública, mesmo que, numa visão mais restrita ao gerenciamento das Polícias Civil e Militar, essa seja uma atribuição dessas últimas. Se considerado o Produto Interno Bruto – PIB, medido pelo IBGE e cuja informação mais atual é referente ao período 2004-2008, verifica-se que estados e o Distrito Federal diminuíram o ritmo dos seus investimentos com segurança pública, enquanto a União

Page 84: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

73

O inquérito policial comunica-se com todos esses interesses, é instrumento de realização desses propósitos; ainda que, ingenuamente, se possa acreditar na possibilidade de abstração ao envolvimento com essa rede de influências; ainda que se possa crer possível, executar a tarefa investigativa, de modo não contaminado, ou servidor aos propósitos ocultos do modelo; ainda que se admita a instrumentalização da própria consciência, no momento de sua feitura ou análise, ao se fechar os olhos às criticas existentes; seus condutores ou destinatários, não ficam isentos das conseqüências políticas que são responsáveis, na parte que lhes cabe.

Também, naquilo que Zaffaroni chama de “instrumentalização da vítima”154, disfarçadas as reais intenções de formação de um senso comum, propício a medidas de vigilância social, utiliza-se de conflitos pontuais com apelo geral de insegurança; os meios de comunicação, na verdade seus mentores e mantidos, se valem de discursos oportunistas, induzindo a reações previamente elaboradas, como se a sociedade desamparada pela existência de leis complacentes com os criminosos, clamasse por seu resgate das mãos dos “inimigos”, através do aumento de controle da sociedade e de maior rigidez na legislação.

Em outro aspecto, chega a causar surpresa, ao ponto de virar manchetes nos órgãos de imprensa, inclusive, com visibilidade pela internet, quando alguém, pertencente às classes “superiores”, diferente daquelas, onde habitualmente são encontrados os inimigos tradicionais155, possa figurar como criminoso. Nessas raras situações, são tão “assustadoras” as hipóteses das causas, que mesmo infrações, que normalmente passariam ao largo da pauta jornalística, recebem contornos de âmbito internacional.156 manteve o ritmo do seu investimento nessa área, entre 2005 e 2008. Já os municípios aumentaram sua participação, não obstante, no cômputo geral, contribuírem com cerca de apenas 5% do volume de despesas na função segurança pública.” Anuário 2010 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. p. 6. Disponível em http://www2.forumseguranca.org.br/node/24104. Acesso em 01/06/2011 154 “Com frequência instrumentalizam-se vítimas ou seus parentes, aproveitando, na maioria dos casos, a necessidade de desviar culpas e elaborar o dolo, para que encabecem campanhas de lei e ordem, nas quais a vingança é o principal objetivo. As vítimas assim manipuladas passam a opinar como técnicos e como legisladores e convocam os personagens mais sinistros e obscuros do autoritarismo penal völkisch ao seu redor, diante dos quais os políticos amedrontados se rendem, num espetáculo vergonhoso para a democracia e dignidade da representação popular” Idem ZAFFARONI Eugenio Raúl. p. 75 155 A estória é atribuída a um advogado, que ao saber da prisão de seu bem aquinhoado cliente, teria esbravejado: “O que é isso? No Brasil só vão presos os três Ps: preto, puta e pobre!”. Folclore ou não, a frase não perde sua autenticidade. 156 “RIO - Dois jovens de classe média foram presos, nesta terça-feira, na Tijuca, acusados de tráfico de drogas e associação para o tráfico por comercializarem cerca de um quilo de maconha. Jhuliana Ribeiro de Aguiar Thibaut, de 19 anos, escondeu a droga no depósito da loja em que trabalhava no Off Shopping,

Page 85: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

74

O discurso midiático da violência não é invenção pátria157e muito menos um problema restrito ao Brasil, ao contrário, é fruto de uma ideologia exportada para todos os continentes, construído através de uma visão maniqueísta, que estabelece de forma pueril existirem homens bons e homens maus, restando aos segundos o combate e a eliminação. Essa verdadeira “cruzada” internacional contra o crime encontra terreno mais fértil, na medida do seu poder colonizador, no apelo emocional, e na ausência de massa crítica social158.

na Tijuca. Ela entregaria a maconha para Felipe Yanes, de 20 anos. A transação foi descoberta por acaso e ambos acabaram presos em flagrante.” O Globo online http://oglobo.globo.com/rio/mat/2011/05/11/dois-jovens-de-classe-media-sao-presos-por-trafico-na-tijuca-924431618.asp (acessado em 11/05/2011) A mesma notícia recebeu destaque em vários outros jornais. JB online: http://odia.terra.com.br/portal/rio/html/2011/5/casal_e_preso_com_1_1_kg_de_maconha_em_shopping_na_tijuca_163672.html (acessado em 11/05/2011) O Dia online: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2011/05/11/policia-prende-suspeita-de-vender-drogas-em-shopping-do-rio/ (acessado em 11/05/2011) 157 Quanto ao da mídia internacional, como exemplo, escreve Wacquant: “’Alta de 2,06% nos crimes e delitos. Grande aumento da delinqüência de menores’: é com esse título estarrecedor que a edição do Libération de 13-14 de fevereiro de 199 alerta seus leitores para a preocupante escalada da delinqüência juvenil. Uma ‘alta’ anual tão ridículamente fraca – pode-se imaginar por um instante uma manchete como ‘A inflação está em fortes 2,06% ao ano’? – pode ser um simples erro de avaliação ou efeito de uma ligeira variação no empenho da polícia em registrar infrações (como uma criminalidade inalterável, até em declínio), ou ainda a conseqüência de uma flutuação do efetivo de faixas etárias propenso ao crime. E ela provavelmente desapareceria caso se recalculasse o índice de infrações levando em conta, ao nível do denominador (dentro da população total desse determinado ano), o forte e inusitado afluxo de turistas e a multiplicação dos eventos ‘de rua’ e situações de massa (ambos bastante propícios à pequena delinqüência) ocasionados pela Copa do Mundo. Do mesmo modo, o aumento do número de menores incriminados (o qual somos informados adiante que é de 11,23% sem que saibamos se isso reflete também o número de fatos imputados) em parte se deve a que a polícia transmite mais sistematicamente aos fiscais os dossiês que incriminam adolescentes. Observemos de passagem a idolatria pelos números, que leva a que coloquem numa manchete da imprensa uma percentagem de duas casas depois da vírgula, quando nem ao menos se está seguro da significação de dois algarismos antes da vírgula. Mas todos os jornais espalhavam há vários dias o rumor desse ‘aumento’, rumor criado para justificar previamente as medidas repressivas que o governo no poder preparava-se para tomar, com o objetivo evidente de atrair os fatores de uma parcela do eleitorado de direita, e sobretudo dos simpatizantes de uma Frente Nacional em crise aberta. A coincidência espontânea entre a visão jornalística do ‘problema’ e aquela projetada pelos Ministérios seria tamanha que tornasse impensável colocar a manchete: ‘A delinqüência não se alterou em 1998: o inexplicável pânico do governo’? Esse ‘forte aumento’ de 2,06% é de fato totalmente imperceptível no cotidiano, uma vez que corresponde a um crescimento superior a apenas uma infração para cada 1.000 habitantes, o índice de criminalidade tendo passado de 59,72 para 60, 96 a cada 1.000. só que, justamente, fazendo alarde em torno de tais estatísticas – em lugar, por exemplo de explicar como são feitas e lembrar na ocasião seus limites de confiabilidade –, as mídias contribuem para alimentar a sensação de que a delinqüência, como uma maré, sobe inexoravelmente. Para em seguida ‘constatar’ essa sensação e nela ver a comprovação empírica do crescimento irresistível da criminalidade a partir do qual criam suas manchetes e o instrumento de suas vendas.” WACQUANT, Loïc. As prisões da Miséria. Tradução Andre Telles, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001. p. 70/71 158 “Como a comunicação em massa alcançou o maior grau de globalização, o discurso do atual autoritarismo norte-americano é o mais difundido no mundo. Seu simplismo popularesco (völkisch) é imitado em todo planeta por comunicadores ávidos de ratingi, embora tenha maior êxito na America

Page 86: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

75

Assim traduz a questão HAMEL: “Pode-se dizer que no entendimento habermasiano, a indústria cultural e os meios de comunicação de massa valem como instrumentos mais manifestos do controle social, ao passo que a ciência e a técnica são as principais fontes de uma racionalidade instrumental que penetra a sociedade em seu todo”159.

Prossegue, “Vislumbra-se, com base nisso, mais um grande diagnóstico do Estado social do que propriamente soluções para o problema da democracia. Fica evidentemente, claro que as sociedades contemporâneas possuem uma forma de dominação democraticamente legitimada, a qual influencia a si mesma e controla o seu desenvolvimento. Com isso, Habermas destaca, citando Offe, que existem três problemas da ciência política: ‘No primeiro dele é fácil reconhecer que as elites políticas aplicam suas decisões dentro do aparato do estado. Por debaixo disso há um segundo terreno em que uma multiplicidade de grupos anônimos e atores coletivos influem uns nos outros, forjam coalizões, controlam o acesso aos meios de comunicação e de produção e, ainda que não seja facilmente reconhecível, graças a seu poder social determina com caráter prioritário o marco de jogo para planejar e resolver questões políticas. Por último, por debaixo se encontra um terceiro terreno em que as correntes comunicativas difíceis de compreender determinada forma da cultura política e, com ajuda das definições da realidade, competem por aquilo a que Gramsci chamou hegemonia cultural; e aqui é onde se produzem as trocas de tendência do espírito da época (OFFE apud HABERMAS, 1997, p 131)”160.

É nesse caldeirão de seletividade, insegurança, medo e oportunismo político que se insere o inquérito policial, traduzindo-se como resposta pública e formal aos anseios da população, representando à sociedade que o Estado se faz presente e cumpre seu papel garantidor da ordem e segurança pública como saber perito161.

Encerrada a primeira parte da dissertação, cremos que foram alcançados os objetivos propostos, ou seja, o inquérito policial brasileiro foi apresentado, a partir de sua origem, trajetória histórica, passando por questões relevantes à sua compreensão, Latina, dada sua precariedade institucional. A difusão mundial desse discurso é favorecido pela brevidade e pelo impacto emocional do estilo vindicativo, que se encaixa perfeitamente na lógica discursiva da televisão, dado o alto custo de operação e a escassa disposição dos espectadores a todo e qualquer esforço pensante.” Idem ZAFFARONI Eugenio Raúl. p.72 159 Hamel, Márcio Renan. Idem p. 85 160 Hamel, Márcio Renan. Idem p. 95/96 161 Tema que receberá destaque no capítulo VIII.

Page 87: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

76

características e questões fundamentais; pretendemos agora, na sua segunda metade, aguçar outros temas, que entendemos ser de significativa importância para uma compreensão sócio-jurídica do objeto de estudo, através do destaque das relações de poder e conhecimento; legitimação e confiança no instrumento; sua facticidade e validade no cenário democrático; para que finalmente possamos partir às conclusões finais.

Page 88: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

77

II PARTE O DIREITO, O INQUÉRITO E A NECESSIDADE DE SUA

TRANSFORMAÇÃO

8. PODER, INIMIGOS E CONHECIMENTO 8.1 “SABER É PODER” Prosseguindo com a proposta do presente trabalho, no sentido interdisciplinar

dos conhecimentos sociológicos e jurídicos, deve-se ressaltar a importância de uma plataforma firmada a partir de um pensador moderno e em plena atividade, que por estar em permanente processo de produção, possui condições de avançar ainda mais com suas idéias e reflexões na direção da integração do conhecimento científico.

Iniciando a obra Direito e Democracia, Jürgen Habermas, anuncia a morte das grandes metafísicas e o nascimento da Modernidade, com seu espírito racional e emancipador162, sendo importante destacar, nesse especial momento, o surgimento de duas correntes de pensamento.

A primeira, desenvolvida por Renée Descartes, que ficou sendo conhecida como “racionalismo”. Grosso modo, a teoria consistia no pensamento que, a partir da dúvida e sua posterior análise, se chegaria ao conhecimento; tudo engendrado por decisões e valorações subjetivas, através de um raciocínio lógico, que devidamente desenvolvido poderia levaria ao um bom senso, e a conhecer o objeto pesquisado.163 162 “A modernidade inventou o conceito de razão prática como faculdade subjetiva. Transpondo conceitos aristotélicos para premissas da filosofia do sujeito, ela produziu um desenraizamento da razão prática, desligando-a de suas encarnações nas formas de vida culturais e nas ordens da vida política. Isso tornou possível referir razão prática à felicidade, entendida de modo individualista e à autonomia do indivíduo, moralmente agudizada – à liberdade do homem tido como um sujeito privado, que também pode assumir os papéis de um membro da sociedade civil, do Estado e do mundo.”, Idem, HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. p. 17 163 Assim Hansen resume o pensamento cartesiano: “1º) As opiniões e concepções acerca do mundo e da existência são extremamente inconsistentes e não me permitem chegar satisfatoriamente a conhecimentos claros e distintos; posso, de fato, duvidar de

Page 89: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

78

A certeza primeira de Descarte era, que os costumes, a tradição de um povo, os sentidos do indivíduo, ou seja, todo e qualquer fator externos, comprometiam uma análise mais acurada do objeto pesquisado; portanto, as experiências empíricas, não poderiam ser um método seguro na produção do conhecimento.

Note-se, que essa teoria não mais atribuía o conhecimento a fatores transcendentes, mas, o indicava como fruto da razão humana, rompendo assim com os paradigmas da antiguidade; iniciava-se a era da razão.

Em paralelo a esse pensamento, com notada oposição a Descartes, quanto aos métodos empregados e as fontes do conhecimento, surge outro pensador que também ancora suas idéias no fundamento racional, Francis Bacon.

Sinteticamente, partindo da análise de experiências realizadas, Bacon entendia que o conhecimento era fruto de um método científico, consistente na observação do fenômeno que, enumeradas as hipóteses para sua manifestação, travado um raciocínio indutivo, e a posse dos devidos instrumentos técnicos, se poderia chegar a um resultado, a partir das hipóteses de concordância e variação na manifestação pesquisada.164

praticamente todos eles. Quando estou duvidando, porém, somente o faço porque penso; o pensamento é condição sem a qual o ato de duvidar não seria possível. Se penso, todavia, é porque possuo uma existência, sem a qual a dúvida e o pensamento seriam inviáveis. Tendo, pois, estas primeiras certezas (duvido, penso, existo), posso iniciar o processo que me conduzirá à dedução das demais verdades e certezas; 2º) Entretanto, para que meus esforços logrem êxito, devo adotar um método que me permita chegar às certezas claras e distintas. O primeiro passo desse método consiste em não aceitar coisa alguma como verdadeira que não se mostre clara e distinta ao meu pensamento; o segundo passo consiste em tomar um problema que revele obscuridade e dividi-lo em quantas partes forem necessárias (análise) a fim de viabilizar o seu discernimento e esclarecimento; o terceiro passo implica na reunião dos elementos particulares em explicações mais gerais e articuladas, partindo-se dos termos mais simples para os mais complexos (síntese), ordenando as idéias numa seqüência que as tornem o mais claras e distintas possíveis; 3º) Ora, o processo acima descrito é lento e criterioso, enquanto que a vida é ágil e dinâmica; como agir, então, no decorrer do processo de esclarecimento? A saída para esse problema está colocada na adoção de uma moral provisória, que apresenta como máximas: a) Obedecer às leis e aos costumes do país, guiando-se pelos preceitos religiosos recebidos desde a infância; b) Ser o mais firme e resoluto possível nas ações, não se desviando dos propósitos iniciais da caminhada; c) Aceitar os próprios limites e não possuir expectativas que não fossem passíveis de serem atingidas; d) Manter-se na ocupação que até então vem desenvolvendo.” HANSEN, Gilvan Luiz. Modernidade, utopia e trabalho. Londrina, CEFIL, 1999 p. 47 164 Assim Hansen resume o pensamento de Bacon: “1º) O homem é o “ministro e intérprete da natureza” e é pela observação desta que ele vai aprender a dominá-la. Essa tarefa, porém, é coletiva e para tal o homem deve utilizar e construir instrumentos que possam auxiliá-lo a melhor conhecer a natureza; 2º) O trabalho de investigação e os métodos até agora utilizados pela humanidade pouco resultado apresentaram; ao contrário, motivaram o engano e o surgimento de compreensões que mantiveram o homem na superstição e na ignorância com relação à sua real condição na natureza. Faz-se necessário, pois, desenvolver uma crítica aos métodos adotados até o presente, localizando a causa dos equívocos cometidos;

Page 90: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

79

Essa segunda corrente inaugural do pensamento moderno, nos mesmos moldes da primeira, também pretendia abandonar a metafísica dos primeiros tempos e fixar suas bases na razão humana, sendo denominada de “empirismo”.

Nesse luminar momento da história do pensamento, se inicia o abandonar às idéias clássicas, quanto à existência de verdades pré-formuladas, portanto, imutáveis de alterações, prontas a serem descobertas no próprio investigador, que seriam tradutores sensíveis de suas essências.

Considere-se, porém, ainda que se afirme que ambos os pensadores, buscassem a concretização de uma racionalidade, substitutiva ao clássico pensamento, vigente em época, ambos, retornaram a componentes que denotavam comprometimento metafísico em suas obras, naquilo que HANSEN chama de “ontologia clandestina”165.

Devido ao seu poder gerador de compreensão e modificação da realidade, a razão, passa a ser instrumento capacitador de avanços e, consequentemente, desperta 3º) Os pensadores caíram em erros, no decorrer da história, ou por especularem e se submeterem aos ídolos (tribo, caverna, foro, teatro) ou por se precipitarem quanto às pesquisas, pois na ânsia de chegar a conclusões negligenciaram o processo de observação e análise dos fatos e dados observados; 4º) Não adianta tentar desenvolver a ciência moderna pelo acréscimo de informações ao conhecimento anterior, pois a base sob o qual tal conhecimento se assenta é equivocada. Por isso, deve-se iniciar uma reestruturação da ciência a partir de seus fundamentos; e isso implica em voltar as investigações aos fenômenos, partindo dos fatos concretos oriundos da experiência e chegando às formas gerais, que constituem suas leis e causas. É esse o teor do método indutivo. O método indutivo, enfim, tem procedimentos específicos que devem ser realizados para se obter um conhecimento digno de credibilidade; boa parte do Novum Organum é dedicada à explicitação de tais procedimentos.” Idem, HANSEN, Gilvan Luiz. p. 43 165 Quanto a F. Bacon:” Outro elemento que pode ser aventado como comprovador do acima exposto é a concepção de verdade apresentada por Bacon, a qual não parece diferir significativamente da noção herdada da tradição. Embora sendo inegável o poder atribuído por Bacon à razão no sentido de organizar e ampliar o conhecimento, levando-nos a verdades mais significativas, a verdade ainda é vista a partir dos moldes da tradição tomista, enquanto adequação do intelecto ao objeto: o homem realiza experiências e, pela observação dos fatos, constata a verdade neles presentes; caso existam conflitos interpretativos ou diferentes “verdades” é porque ainda não desenvolvemos instrumentos suficientemente precisos para atingir a verdade ou estamos submetidos aos enganos oriundos das superstições e dos ídolos (tribo, caverna, foro, teatro). Em suma, a verdade está ainda atrelada ao objeto e nele encontra sua confirmação.” Quanto a R. Descartes: “A versão cartesiana do argumento ontológico pode ser sintetizada da seguinte maneira: eu, que sou um ser imperfeito, constato que em mim e em tudo quanto existe a minha volta falta perfeição; mesmo assim, tenho em mim a idéia de perfeição. Ora, a idéia de perfeição não foi aprendida por mim dos objetos do mundo nem poderia ser gerada a partir de mim, pois sou imperfeito; então, deve existir um ser que possua tal atributo e ao qual devo reputar a origem desta idéia em mim, como de resto muitas outras idéias com características similares, pois que somente ele poderia tê-la colocado em mim. Ademais, como a existência é um atributo de um ser perfeito, ele necessariamente deve existir, e esse ser é Deus. E se esse ser é perfeito, também deve ter a bondade como atributo, razão pela qual não me enganaria. A construção argumentativa cartesiana não apenas resgata o argumento ontológico, como também assume a lógica que lhe dá suporte, qual seja, a noção de que um ser menor não pode gerar um ser maior; por isso, um ser menos perfeito não pode gerar um ser mais perfeito que ele próprio.” Idem, HANSEN, Gilvan Luiz. p. 50 e 53 respectivamente

Page 91: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

80

interesses naqueles que visualizam uma nova forma de controle sobre os fenômenos da natureza, e mesmo da sociedade.

Não por acaso, inicia-se uma gradual aproximação dos príncipes aos homens de ciência, que identificando aplicações práticas para os saberes que brotavam, passam a indicá-los como conselheiros e residentes de um mecenato, acentuando a transposição que começa a se operar entre as teorias e suas práticas aplicadas166.

Esse oportuno estreitamento de relações, entre a ciência e o poder, se perpetua até os dias correntes, ainda que com modificações na forma de sua expressão. Desde as suas primeiras horas, o saber científico-racional, passou a ser companhia de viagem do poder na historia da construção da sociedade moderna, ora servindo como ferramenta de manutenção e permanência de certo modelo; ora servindo como severa crítica às suas transformações, entretanto, não se pode negar a umbilical ligação do saber científico-racional com o poder, já anunciada por Francis Bacon em 1670, é dele a expressão “Saber é Poder”167.

8.2 OS INIMIGOS DO PODER Considerando, a estreita ligação entre o saber e o poder, conforme demonstrado;

considerando o interesse final, em se afirmar da seletividade no âmbito penal, entendida esta, como modo de escolha entre aqueles que poderão ser objeto de persecução penal pelo Estado; deve-se demonstrar que a chegada da modernidade, não só serviu para legitimar seus governantes, mas também, elegeu conceitualmente aqueles sobre os quais deveriam recair as sanções incriminadoras.

166 “Aliás, o reconhecimento social da função científica constitui um fato decisivo na história do saber no século XVII. Não podemos fazer essa história independente do universo humano. Porque o progresso do conhecimento é indispensável das vicissitudes da história política e social. Os sábios são homens históricos engajados num contexto social e sofrendo ou sendo determinados por seus impactos. O pressuposto do isolamento da atividade científica relativamente ao devir geral da sociedade, longe de facilitar a compreensão da história do saber, torna essa história bastante irracional: os diversos impulsos e inovações pareciam milagres, efeitos sem causa. Porque as peripécias do conhecimento podem intervir no contexto social como desafios e como respostas. Quando a autoridade hierárquica chama Galileu às falas, trata-se de uma resposta social ao desafio do homem de saber. A relação é inversa quando as monarquias barrocas da Europa dão à ciência e aos sábios um estatuto legal no quadro das instituições regulamentadas e subvencionadas.” JAPIASSU, Hilton idem p. 311 167 “a ciência não é um conhecimento especulativo, nem uma opinião a sustentar, mas um trabalho a fazer (...) Quanto a mim, trabalho para estabelecer, não o fundamento de uma seita ou de uma doutrina qualquer, mas o fundamento da utilidade e do poder.” BACON Apud JAPIASSU, Hilton idem p. 310/311

Page 92: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

81

Como já afirmou Zaffaroni, “...é possível verificar que sempre se reprimiu e controlou de modo diferente os iguais e os estranhos, os amigos e os inimigos. A discriminação no exercício do poder punitivo é uma constate derivada de sua seletividade estrutural”168

Com o rompimento dos paradigmas metafísicos pré-modernos, não só a ciência passa a ser pensada sob a ótica racional.

Enquanto, nos Estados Clássicos, a legitimação do soberano dava-se por via de um poder atemporal, ou seja, todo poder era fruto de um desígnio divino, consequentemente, suas leis possuíam o mesmo fundamento de validade; não só pela nova percepção racional do mundo, mas também pelo próprio enfraquecimento da igreja, até então única detentora da verdade divina, em xeque diante das novas leituras protestantes sobre as escrituras, feitas por Martinho Lutero e João Calvino, surgiu a necessidade da afirmação do Estado sob novos parâmetros, que sustentassem a legitimação do poder e suas leis.

Com a pulverização da mensagem divina, pelo agir de vários intérpretes e autoridades negociadoras com o reino celestial, portanto, não mais havendo um único detentor de uma verdade legitimadora do poder, surgem novas proposições e concepções de Estado, fundados a partir de bases contratualistas.

Entre os formuladores do novo modelo, onde a legitimação do governante se dá a partir do acordo coletivo, através da renúncia dos direitos naturais dos indivíduos em favor de um direito comum e legitimador do poder, devem ser listados: Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau.

Em especial recorte, veja-se o pensamento de Hobbes, que contempla na sua obra, além de observações quanto à natureza humana, a necessidade de governos e organização da sociedade e também, a identificação dos inimigos do Estado.

Para o filósofo inglês, o ser humano no seu estado natural é possuidor de interesses próprios, muitas vezes antagônicos com os interesses de outros membros da sociedade. Considerando, que outros membros da coletividade, também são dotados das mais diversas pretensões e, que essas possam ser mutuamente diferentes, o ser humano vive em permanente estado de tensão, quanto a uma possível ação que vise a destruição de seus direitos em razão de um ataque, para imposição de outra pretensão singular. 168 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, idem p. 81

Page 93: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

82

Esse permanente estado de tensão, de todos contra todos – Bellum omnia omnes –, verdadeiro “estado de guerra”, obriga que o individuo faça concessões nas suas pretensões, no intuito de evitar a guerra e assim garantir a sua segurança, negociando sua sobrevivência e a realização de pelo menos parte de seus objetivos.

No acordo imaginado por Hobbes, todos abririam mão de parte seus interesses em nome de um terceiro, legitimado a responder por todos, e responsável pela segurança e garantia do contrato firmado, o Leviatã.

Na sua obra, Hobbes formula entre os enunciados do Estado de Leviatã, afirmações quanto à identificação de seus inimigos, indicando-os como aqueles que, “Porque ao negar a sujeição ele negou as penas previstas pela lei, portanto deve sofrer como inimigo do estado, isto é, conforme a vontade do representante. Porque as penas são estabelecidas pela lei para os súditos, não para os inimigos, tendo-se tornado súditos por seus próprios atos, deliberadamente se revoltam e negam o poder soberano.”169

Assim, pode-se sustentar, que a identificação do inimigo do soberano, entre outras maneiras, relacionadas a inimigos externos, se dá através de suas práticas; ou seja, sempre que qualquer membro do Estado se insurja, através de seu comportamento, ou ameace com suas práticas desestabilizar o satus quo, agindo em desrespeito a lei, fruto da vontade do poder soberano, este será identificado como seu inimigo, portanto, passível de perseguição.

Quase quatro séculos depois, percebe-se que a definição hobbesiana de inimigos do Estado não sofreu alteração, em essência e conceito, isso porque, segundo JAKOBS, “Quem por princípio se conduz desviado não oferece garantia de um comportamento pessoal. Por isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido como inimigo. Esta guerra tem lugar com um legítimo direito dos cidadãos, em seu direito à segurança; mas diferentemente da pena, não é o Direito também a respeito daquele que é apenado; ao contrário, o inimigo é excluído”170

8.3 O SABER, O PODER DOMINANTE E O INQUÉRITO POLICIAL

169 HOBBES, Thomas. Leviatã, tradução João Paulo monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva ,São Paulo, Martins Fontes, 2003 p. 266 170 JAKOBS, Günther e MÉLIA, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo – Noções e Críticas, Organização e tradução André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli, Porto Alegre, Livraria do advogado, 2009 p. 47

Page 94: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

83

Conforme abordagem realizada em capítulo anterior, o Santo Ofício da Inquisição e os príncipes, elegiam seus perseguidos conforme interesses de ocasião; as escolhas iam além das crendices libertadoras, contra o poder do maligno, recaiam também, sobre insurretos que ameaçavam com suas revoltas o poder.

Se, por um lado, a luta por melhores condições de vida dos camponeses poderia ameaçar o modelo feudal, erigido sob uma estrutura verticalizada e concentradora de riquezas, por outro, a revolta se dava no campo anticlerical, não só porque, a priori colocava em xeque os dogmas relativos aos desígnios divinos, como também, representava a possibilidade de transformações da sociedade através de uma formulação humana, racional.

O saber da inquisição, e consequentemente seu poder, repousava sobre pressupostos ontológicos-metafísicos; atentar contra os saberes que garantiam a supremacia da igreja, certamente não era de interesse do clero, ou dos legitimados por ela.

Se a ignorância era utilizada, como instrumento de dominação e poder, dialeticamente, pode-se afirmar que o saber significaria a libertação, portanto, o saber era ameaçador. Manter os apartados sociais longe de qualquer possibilidade emancipatória, era objetivo comum do Estado e da igreja; a “caça às bruxas” atendia aos dois interesses171.

Assim, pode-se afirmar, que desviar as atenções das verdadeiras causas dos infortúnios do povo, revela-se prática antiga dos poderosos. Ao se difundir fatos que chamem atenção por seu impacto emocional, criados sob premissas desprovidas de comprovação racional, provoca-se a divisão dos membros do corpo social, bem como, a desmobilização às lutas que são realmente relevantes.

171 “O messianismo guerreiro congregava os pobres e os deserdados. Dava-lhes um sentimento de missão coletiva, reduzia a distância social entre eles, aproximava-os como ‘irmãos e irmãs’. Mobilizava o povo em regiões inteiras, concentrava suas energias num tempo e num lugar precisos e conduzia as lutas entre as massas sem terra e pauperizadas e aqueles que se encontravam no cume da pirâmide social. A histeria anti-bruxaria, em contrapartida, dispersava e fragmentava todas as forças de protesto latente. Ela desmobilizava os pobres e os deserdados, aumentava a distância entre eles, enchia-os de suspeitas uns contra os outros, aumentava o sentimento de insegurança, dava-lhes uma consciência muito clara da impotência individual e de sua dependência em relação às classes governantes e fazia convergir a cólera e a frustração de todos para um objetivo puramente local. Fazendo isto, ela desviava sempre mais o pobre da idéia de enfrentar o establishement eclesiástico e secular para atingir uma redistribuição de riqueza e o nivelamento das hierarquias. A histeria anti-bruxa era um messianismo guerreiro radical invertido. Ela foi bala mágica das classes privilegiadas e poderosas da sociedade. Sua arma secreta.” HARIS, Marvin apud JAPIASSU, Hilton, idem p. 35

Page 95: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

84

Diante dessas afirmações, as notícias de aproximação dos príncipes aos homens da ciência no início da modernidade ganham maior força, permitindo melhor compreensão da importância que os soberanos atribuíam a esse contato tão próximo, bem como, representavam um estratégico afastamento desses pensadores do meio comum da sociedade, restando a esta, crendices e superstições.

Na atualidade, o poder instituído não se afastou de similares práticas desviantes das atenções populares, sendo comum, a utilização dos meios de comunicação na criação de factóides, dos mais diversos, geradores de impacto emocional na população; é usual, nos momentos de crises sociais, que os noticiários fiquem repletos de matérias sobre esportes; comportamentos que de alguma forma pareçam bizarros; casamentos de príncipes; colunas sociais repletas de “fofocas”; guerras distantes das quais mal se sabem quem são os contendores, como suas razões; e tantas outras oportunamente fabricadas.

Não de maneira diferente, devido ao seu forte poder de apelo emocional, bem como, causador de insegurança e terror, porque ameaça a vida, a saúde pública e o patrimônio, ícones (eikon172) de felicidade da vida moderna; a violência, consequentemente a “segurança pública”, são erigidos a temas prediletos nos momentos de instabilidades dos regimes, desviando os olhares menos atentos dos reais interesses e propósitos que se quer ocultar.

O inquérito policial, como instrumento do sistema de segurança pública, também é utilizado como escamoteador da realidade agudizada; prestando-se como ferramenta à descoberta dos agressores da sociedade, produz resultados pontuais, todavia, que não autorizam abordagens críticas das causas geradoras dos problemas investigados.

A miséria, os preconceitos, as distinções de classes, a ausência de oportunidades, o desemprego, a saúde pública, o déficit habitacional, a falta de escolas ou a inferior qualidade de ensino oferecido, entre outros, são temas que perpassam a violência registrada e apurada, porém, ficam limitados nas suas compreensões, porque cabe ao inquérito a produção de um conhecimento, quando muito limitado e, na maioria das vezes, totalmente inacessível a população.

O saber inquisitorial é restrito na sua formulação, porque é produzido sob uma perspectiva unilateral, monológica, portanto, realizado sob premissas não racionais.

172 Sob a perspectiva do que se vê e não se vê porque pode estar contaminada a eleição

Page 96: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

85

Saber sem razão é ignorar todos os aspectos do fato, logo é um não saber; porém, esse modelo descolado de saberes íntegros é estratégico, com destinatário certo, qual seja, interessa aos que pretendem a ignorância como instrumento de dominação. Se “Saber é Poder” para alguns, desconhecer é submissão para outros.

8.4 OBVIEDADE, DOGMÁTICA E FORMALISMO Ao se observar o IP, como produtor de um conhecimento especializado e de

destino específico, conforme vem se desenvolvendo ao logo do trabalho, constata-se que este repousa assentado sobre dogmas, obviedades e formalismos; não isoladamente, essas características são marcas externamente visíveis do direito e, internamente presentes em todos os seus ramos, em recorte, de específico interesse ao processo penal. Assim, é importante que se aborde de um pouco mais próximo essas características, o que resultará numa melhor compreensão não só do direito como um todo, mas em sua manifestação expressa na forma do IP.

Na sua obra, HANSEN173, quando escreve sobre a apatia do ser humano contemporâneo, diante da aceitação do que lhe é posto como verdade inabalável; como algo desinteressante de novas explorações; como dogmatismos inquestionáveis, o autor oferece críticas aos riscos de se aceitar às “obviedades” dos conhecimentos174. Numa análise mais pormenorizada, o óbvio, independentemente de representar o próprio desencantamento com um homem, acomodado e satisfeito em aceitar seu destino e desígnios, também assegura a imutabilidade do “ser”, bem como, elimina novos questionamentos, que possam indicar um “dever ser” ainda não revelado.

As posturas indiferentes diante do óbvio, na medida do desinteresse pelo novo, ganham força de afirmação do “certo” e do “errado”; do “justo” e do “injusto”; do “alterável” ou não, como valores verdadeiros e finalizados, impassíveis de novas pesquisas, ações, ou novas formulações. O óbvio é neutralizador, é a negação do futuro.

É na obviedade que se afirma o dogma – interpretado como resultado fixo de soluções passadas – valorado na crença de sua imutabilidade, que revigora-se a cada dia 173 PROTA, Leonardo e HANSSEN, Gilvan Luiz, A Universidade em debate. Londrina, UEL, 1998. 174 “A vida e seus contornos são encarados como uma atitude de quase indiferença, onde tudo quanto se põe ao conhecimento parece não provocar reação. Em sua, a existência se tornou óbvia e, sendo óbvia, já não traz mais dúvidas, encantamentos ou fascínio.” Idem, PROTA, Leonardo e HANSSEN, Gilvan Luiz p. 77

Page 97: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

86

na sua aplicação, como solução a acontecimento que, entretanto, por alterações contextuais, não se repetem.

Como conteúdo nitidamente autoritário, vez que, não comporta o debate na sua apreciação, o dogma é obstáculo intransponível ao exame crítico do conhecimento, consequentemente, qualquer pretensão diversa de seu conteúdo é passível de desrespeito e rechaço por indivíduos ou comunidades que o sustente. Seus defensores, em pregações messiânicas, se julgam portadores de verdades iluminadas por um saber superior.175

Verdades consagradas exclusivamente por dogmas necessitam de instrumentos que aparentem suas existências. Tal como as religiões, que necessitam de manifestação cultual para demonstrar sua expressão, o dogma necessita do formalismo para afirmar sua facticidade, porém, a expressão formal de seus postulados, em ambos os casos, não os legitima senão por aceitação ideológica ou crença desprovida de razão.

O formalismo, desprovido de questionamento legitimador, esboroa-se, diante da ausência de uma fundamentação mais consistente na produção do conhecimento, e põe por terra, a possibilidade racional de sua aceitação, quando confrontado com diagnósticos da sua falibilidade fenomênica. Enfim, o “formalismo vazio” de conteúdo, expressão do dogma, não passa de articulações ou manejos dissimulados, justificadores de argumentos carecedores de substancia176.

Repousando, em evidente obviedade que se impõe, por uma dogmática consagrada no sistema do direito, o inquérito policial, é ofertado à sociedade em articulado e majestoso formalismo, que oculta seus vícios autoritários e ideológicos. Consagrando uma postura sectária e maniqueísta, onde os investigados, tratados como 175 “Uma das lições que a era hitlerista nos ensinou é a de como é estúpido ser inteligente. Quantos não foram os argumentos bem fundamentados com que os judeus negaram as chances de Hitler chegar ao poder, quando sua ascensão já estava clara como o dia! ... Depois, os inteligentes disseram que o fascismo era impossível no ocidente. Os inteligentes sempre facilitaram as coisa para os bárbaros, porque são tão estúpidos. São os juízos bem informados e perspicazes, os prognósticos baseados nas estatísticas e na experiência, as declarações começando com as palavras: ‘afinal de contas, disso eu entendo’, são os enunciados conclusivos e sólidos que são falsos. Hitler era contra o espírito e anti-humano. Mas há um espírito que é também anti-humano: sua marca é a superioridade bem informada (Dialética do Esclarecimento, p. 195)” Adorno e Horkheimer apud Hansen. Idem, PROTA, Leonardo e HANSSEN, Gilvan Luiz p. 85 176 “Um primeiro ‘sintoma’ da obviedade com que determinadas questões são tratadas na Academia é o formalismo vazio no qual muitas de suas instâncias têm mergulhado. Hegel já alertava sobre esse risco, ao falar da matemática e dos matemáticos de seu tempo (par. 42-47, p.43-46). Segundo ele, a matemática se ‘pavoneia’ de seus conteúdos e de suas demonstrações, mas estes não passam de elementos vazios de significado, caso não sejam inseridos dentro de uma fundamentação mais substancial do conhecimento da história” Idem, PROTA, Leonardo e HANSSEN, Gilvan Luiz p. 86

Page 98: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

87

peças de um jogo de poder, são rotulados, aprioristicamente, como bons ou maus, ou como se preferir, amigos ou inimigos do Estado, é autorizado aos primeiros, num jogo de regras viciadas, um resultado pré-determinado.

Apresentadas essas questões, seguirão no próximo capítulo considerações, quanto a indutores de convencimentos, que levam a confiar num modelo e instrumento de investigação policial, quase que totalmente desconhecidos pela sociedade. Para isso, mais uma vez, os estudos sociológicos, conjugados com os jurídicos, servirão de base para o diálogo com o leitor.

Page 99: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

88

9. INQUÉRITO POLICIAL E A LEGITIMAÇÃO DA CONFIANÇA A Segurança Pública, inserida naquilo que GIDDENS177 chama de Sistemas

Abstratos178, exerce sua maior expressão através da polícia, assentando sua legitimação em conhecimento especialista, sob o argumento de valores universais.

Como prática “científica” da atividade policial, a investigação possui método e saberes próprios, que através do inquérito policial, se operam sem compromissos com um contexto político relacionado com tempo e espaço, ou seja, o inquérito policial se oferece como instrumento, capaz de produzir o conhecimento pretendido, independentemente das relações sociais estabelecidas.

O sistema perito policial realizado via inquérito, como mecanismo de confiança em um Sistema Abstrato, se apresenta à sociedade leiga dos conhecimentos especialistas num contexto “...de cálculo de vantagem e risco em circunstância onde o conhecimento perito simplesmente não proporciona esse cálculo mas na verdade cria (ou reproduz) o universo de eventos, com resultado da contínua implementação reflexiva desse próprio conhecimento”179.

Convencida, que a atividade policial é prática estranha ao saber comum, a sociedade confia que, pelo princípio da especialização dos saberes peritos, aquela está habilita a melhor realização da produção investigativa; consequentemente, sua principal ferramenta, o inquérito policial, faz-se instrumento inconteste pelos saberes leigos.

A inexistência de mecanismos permanentes, que assegurem a discussão e reflexão sobre as questões policiais, de regra, se e quando acontecem, dão-se por conta de acontecimentos pontuais; a falta de participação da sociedade, inviabiliza críticas ao

177 GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. Tradução Raul Fiker, São Paulo, UNESP, 1991. 178 Compõem os sistemas abstratos os sistemas peritos e de fichas simbólicas Idem, GIDDENS, Anthony. P. 84 179 Idem, GIDDENS, Anthony. p 88

Page 100: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

89

sistema, como também, garante inalteradas as reproduções do modelo, portanto, este se mantém pela ignorância e falta de formulações teóricas como opção.

Notadamente, os órgãos de comunicação, ideologicamente aparelhados, corroboram a necessidade do sistema, na manutenção do senso comum, pela existência de especialistas únicos e qualificados para assuntos policiais. Ávidos por acontecimentos a serem comercializados à espetacularização do evento ilícito, com todos os seus componentes de medo, insegurança e “providências necessárias”, devidamente trabalhados junto a grande massa da população180, esses veículos fazem do inquérito policial a resposta de um agir esperado, rigoroso e imediato à solução do mal que aflige o meio social.

Quem nunca ouviu a célebre frase? “Será instaurado um rigoroso inquérito para se apurar o autor do crime e a justiça possa punir seus culpados”. Desta forma, a polícia devolve ao Estado sua confiança, abalada junto à sociedade, muito embora o faça, na maioria das vezes, somente por força de um discurso justificador à sua existência, mas que seguramente, de efetivo, repousará em armários e prateleiras de cartórios abarrotados de outros inquéritos, e se arrastará pelos corredores da burocracia e das insolucionáveis investigações fadadas ao arquivamento.

Outro caminho que pode surgir ocorre quando, por vezes, diante de dificuldades na elucidação de alguma investigação, ou como forma de encerramento de um ou mais inquéritos, que não se logrou êxito em sua solução, a AP utiliza-se de estratégia pouco recomendada, porém, que representam o fim de vários procedimentos que estão sob sua responsabilidade.

É o caso, não conseguindo determinar quem teria sido o autor de dada infração penal, o delegado, aproveitando-se da solução de um caso semelhante, e sob o jargão do mesmo modus operandi, encontrado naquele inquérito resolvido, imputa ao agente descoberto todos os demais crimes com mesmo padrão de execução, que se encontram na sua carga a espera de um “dono”; por óbvio, os demais ilícitos serão negados pelo 180 “tentaremos mostrar que, na realidade, o que existe não é a ‘opinião pública’ ou mesmo ‘a opinião avaliada pe4las sondagens de opinião’, mas, de fato, um novo espaço social dominado por um certo número de agentes – profissionais das sondagens, cientistas políticos, conselheiros em comunicação e marketing político, jornalistas, etc. – que utilizam tecnologias modernas como a pesquisa por sondagem, minitel, computadores, rádios, televisão, etc; é através destas que dão existência política autônoma a uma ‘opinião pública’ fabricada por eles próprios, limitando-se a analisá-las e manipulá-las e, por conseqüência, transformando profundamente a atividade política tal como é apresentada na televisão e pode ser vivida pelos próprios políticos.” CHAMPAGNE, Patrick Formar a opinião, o novo jogo político. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira, Petrópolis, Vozes, 1998 p. 32

Page 101: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

90

imputado, entretanto, isso pouco importa nesse momento, afinal, quem duvidará da solução, senão e quando, mais a frente, já na condição de réu, o acusado conseguir provar sua inocência.

Neste caso, como o inquérito já foi relatado e transmutou-se em ação penal, não mais retornará à delegacia policial e servirá, somente, para engordar as estatísticas de inquéritos relatados, de denúncias formuladas pelo Ministério Público, ou de absolvições pelo Poder Judiciário.181

A confiança depositada no implemento do modelo de investigação em curso, repousa muito mais na ignorância do saber comum, que avaliza o saber perito utilizado, do que numa discussão sólida e construída na sociedade; a propósito, “só existe confiança onde há ignorância – ou das reivindicações de conhecimentos de peritos técnicos ou dos pensamentos e intenções de pessoas íntimas com as quais se conta”.182

Essa confiança social no IP, entretanto, não resistiria a um controle “da passagem entre o palco e os bastidores”, considerando a falibilidade do instrumento ao fim que se destina, tanto por “erro de interpretação ou ignorância da perícia que se espera que eles possuam”.183

Exemplifica Giddens, quanto à distinção entre palco e bastidores, “os pacientes não tenderiam a confiar tão implicitamente na equipe médica se tivesse pleno conhecimento dos enganos que são feitos nas enfermarias e mesas de operação”184.

No caso do inquérito policial, quando alguma voz insurgente desaponta o sistema, instabilizando a confiança forjada, alertando quanto às precárias condições operacionais e de eficácia, surgem manifestas defesas do Estado e interna corporis, não raramente sancionadoras dos deslizes, direcionadas a calar os “traidores” da classe, em nítido desvio de uma ética185, que deveria ser voltada ao interesse público. Porém, em 181 “Uma tática empregada por policiais para solucionar vários inquéritos de uma só vez, aumentando a sua produtividade, é indiciar uma única pessoa por vários crimes. Com base na semelhança entre determinadas ocorrências, faz-se o possível para induzir testemunhas a colaborar com a incriminação de pessoas que já se encontram foragidas da Justiça, aumentando assim o número de inquéritos relatados com êxito. Pode-se, inclusive responsabilizar uma pessoa morta por diversos casos, tal como um policial comentou: ‘se o cara estiver morto, joga várias em cima dele e resolve tudo’.” MISSE, Michel, Idem p. 58 182 GIDDENS, Anthony. Idem p. 82 183 GIDDENS, Anthony. Idem p. 79 184 GIDDENS, Anthony. Idem p. 79 185 “A essência de uma profissão é ela ser um monopólio garantindo para um grupo ocupacional particular, por meio do mandato público, para seguir a prática de uma ocupação específica. A principal função do código de ética é assegurar ao público que apenas a qualidade mais alta da prática será tolerada pelo grupo (Pavalko 1971). O significado do código de ética como um símbolo de integridade no qual o público pode confiar baseia-se no fato de o grau de conhecimento, habilidades e especialização exigidos

Page 102: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

91

reservada consciência, o Estado e seus operadores bem sabem de seus limites, como também dos limites do próprio instrumento186.

A construção do discurso do sistema, voltado à manutenção do modelo investigatório em curso, obedece à lógica que, “a maioria das pessoas, a maior parte do tempo, confia em práticas e mecanismos sociais sobre os quais seu próprio conhecimento técnico é ligeiro ou não existe”. A legitimação dessa lógica repousa sobre os alicerces do respeito incutido, onde o conhecimento técnico-científico, concede a óbvia verdade àqueles que se especializaram no tema187.

Entretanto, a atitude de confiança no instrumento é abalada, quando os resultados esperados não se fazem presentes, quando os déficits de qualidade são mais visíveis e sentidos que todo o discurso justificador da sua existência, quando as pessoas se tornam céticas a respeito e, se adota “uma atitude ativamente negativa para com as reivindicações de perícia que o sistema incorpora”, porém, nesse momento, em contra-ataque, os peritos em segurança e seus legitimadores, investem no apelo ao medo de

do profissional torna impossível para o cliente avaliar a qualidade do serviço prestado de forma competente. O profissional possui o ‘monopólio em face dos clientes’, e o código de ética serve para reforçar a razão para o monopólio”GREENE, Jack R. (organizador) Administração do Trabalho Policial Tradução Ana Luísa Amêndola Pinheiro – Cap. 4, Profissionalização da Polícia: Em busca de Excelência ou de Poder Político? MENKE, Bem A., WHITE, Mervin F. e CAREY, William L., São Paulo, Editora Universidade de São Paulo, 2002. p.107 186 Projeto de Lei nº 65, de 1999, vulgarmente conhecido como a “Lei da Mordaça”: "Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: (...) j) revelar o magistrado, o membro do Ministério Público, o membro do Tribunal de Contas, a autoridade policial ou administrativa, ou permitir, indevidamente, que cheguem ao conhecimento de terceiro ou aos meios de comunicação fatos ou informações de que tenha ciência em razão do cargo e que violem o sigilo legal, a intimidade, a vida privada, a imagem e a honra das pessoas; (...) Art. 43. São transgressões disciplinares: II - divulgar, através da imprensa escrita, falada ou televisionada, fatos ocorridos na repartição, propiciar-lhes a divulgação, bem como referir-se desrespeitosa e depreciativamente às autoridades e atos da administração; - Lei nº 4.878/65 (Regime jurídico dos funcionários policiais civis da União e do Distrito Federal): Mais, “O Ministério Público Federal no Rio (MPF/RJ) propôs ação por improbidade administrativa contra o superintendente regional em exercício da Polícia Federal (PF-RJ), Nivaldo Farias de Almeida, e o corregedor da PF-RJ, Luiz Sérgio de Souza Góes. Eles responderão por desvio de finalidade ao instaurar processo disciplinar contra delegado que testemunhou em inquérito civil público do Grupo de Controle Externo da Atividade Policial do MPF/RJ. Na ocasião, ele relatou irregularidades no Setor de Inteligência da PF-RJ.” http://odia.terra.com.br/portal/rio/html/2011/5/mpf_processa_superintendente_em_exercicio_e_corregedor_da_pf_rj_162525.html (acessado em 05/05/2011) 187 GIDDENS, Anthony. Idem p. 81

Page 103: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

92

qualquer discussão a mudanças e na necessidade da manutenção da rotina, sob pena do descontrole e do mal se agravar188.

Formulando um discurso abrangente, cujo espaço se configura em todas as relações sociais, públicas e privadas, o direito se apresenta como integrante e garantidor do campo democrático; embora não se deva perder de vista essa perspectiva emancipadora, também, não se pode negar, que sua atuação se de através de mecanismos instrumentalizadores, com propósitos de dominação; nessa dimensão, ao selecionar sua clientela através de axiomas políticos-economicos-culturais, o IP, atua no campo dos interesses privados, servindo como instrumento mantenedor de uma ordem pública conveniente.

Existe, portanto, uma dupla contradição evidente: por um lado, a norma infraconstitucional se atrita com o mandamento constitucional, sua facticidade é contrária a vontade comum, característica do republicanismo positivado na CRFB; por outro, atendendo precipuamente a interesses eleitos, através da seletividade, o inquérito, também colide com o discurso da impessoalidade a que está sujeito, decorrente da sua fonte legitimadora.

Criatura e não criador, o inquérito é colocado na berlinda, por causa de sua contradição pragmática189, entre sua consagração legal e como se faz, entre o dever ser e o ser; daí decorre uma permanente tensão, que se traduz entre outras maneiras, na sensação de desconfiança nos resultados provenientes de suas conclusões.

Também, a tradição190 entra como componente justificador de qualquer “inconveniente” tentativa de modificação da realidade, ainda que por vezes os

188 “A previsibilidade das rotinas (aparentemente) sem importância da vida cotidiana está profundamente envolvida com um sentimento de segurança psicológica. Quando tais rotinas sofrem alteração – por quaisquer razões – a ansiedade transborda, e mesmo aspectos muito firmemente alicerçados da personalidade dos indivíduos podem ser afetados e alterados.” GIDDENS, Anthony. Idem p.85 189 “contradição performativa ou pragmática”: Expressão cunhada por Karl-Otto Apel e utilizada por Jürgen Habermas, no sentido de contrariedade entre afirmação e ação. 190 “A tradição é rotina. Mas ela é rotina intrinsecamente significativa, ao invés de um hábito por amor ao hábito, meramente vazio. O tempo e o espaço não são as dimensões sem conteúdo que tornaram com o desenvolvimento da modernidade, mas estão contextualmente implicados na natureza das atividades vividas. Os significados das atividades rotineiras residem no respeito, ou até reverência geral intrínseca à tradição e na conexão da tradição com o ritual. O ritual tem freqüentemente um aspecto compulsivo, mas ele é também profundamente reconfortante pois impregna um conjunto dado de práticas com uma qualidade sacramental. A tradição, em suma, contribui de maneira básica para a segurança ontológica na medida em que mantém a confiança na continuidade do passado, presente e futuro, e vincula esta confiança a práticas sociais rotinizadas.” GIDDENS, Anthony. Idem p. 95

Page 104: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

93

resultados demonstrem, que as práticas utilizadas se distanciam cada vez mais da sociedade que se constrói sob outro paradigma, qual seja, a democracia191.

A propósito, em discussão atual, a mera possibilidade de transferência da esfera de poder, na condução das investigações pelo Poder Judiciário, foi alvo de severas e axiológicas críticas; ainda esteja em fase de proposição, de ante-projeto de lei, junto ao Congresso Nacional192.

É evidente a crise193 por que passa o modelo, que se desintegra diante de irresolvíveis problemas de legitimação, que se impuseram decorrente do imperativo valor democrático. O IP perdeu sua identidade, não conseguindo mais se firmar por sua mera tradição constitutiva, posto estar desligado dos valores e anseios da sociedade.

191 “O tempo passado é incorporado às práticas presentes, de forma que o horizonte do futuro se curva para trás para cruzar com o que passou antes.” GIDDENS, Anthony. Idem p. 95 192 “...a maior dificuldade será quebrar a resistência e o comportamento das pessoas. ‘As alterações exigem do juiz uma imparcialidade com que não estamos acostumados’” ... “Não vejo grandes resoluções na reforma do Código. Tenho receio de que piore”. http://www.adepolrj.com.br/Portal/Noticias.asp?id=9088 Associação dos Delegados de Policia do Estado do Rio de Janeiro – ADPOL, em 03/03/2011 (acessado em 10/04/2011) 193 “...as crises surgem quando a estrutura de um sisema social permite menores possibilidades para resolver o problema do que são necessárias para a contínua existência do sistema. Neste sentido, as crises são vistas como distúrbios persistentes da integração do sistema.” HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação do capitalismo tardio. Tradução Vamireh Chacon, 2ª ed., Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2002. p. 13

Page 105: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

94

10. DIREITO E SOLUÇÃO DE CONFLITOS NO ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO O Estado, no sentido de cumprir as expectativas e anseios dos membros da

sociedade, criou instrumentos e instituições que o auxilia na tarefa de realizar a justiça e a paz social.

Inicialmente, em substituição a uma espécie de “vingança privada”194 que era praticada pelo indivíduo como autodefesa, numa visão extremada, parcial e unilateral do que se entendia por justiça em cada caso, o próprio Estado se investiu de prerrogativas e procedimentos que chamaram para si o direito de punir, exercendo-o, contudo, a partir de seus próprios critérios e decisões, sem ouvir os membros da sociedade; tais decisões careciam de imparcialidade, independência e revelavam a manipulação da aplicação da justiça de forma interessada para atender a determinados grupos ou forças político-sociais dominantes.

À medida, porém, que o Estado foi consolidando sua presença institucional e tendo reconhecido, pelos indivíduos em sociedade, a condição de exclusividade do uso da força no sentido de disciplinar e controlar as relações interpessoais, ele ganhou legitimidade para se estruturar no sentido da promoção da justiça social195.

É a partir deste viés que se pode compreender a estruturação do Estado, cujo poder soberano é único, mas assume uma tripartição no intuito de melhor cumprir suas funções e dar maior agilidade e eficiência no exercício do poder. Surgem então as funções legislativas, executivas e judiciárias ligadas ao poder estatal196.

194 GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 22 ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 27. 195 Grinover et alii descrevem, de modo muito claro e competente, este processo de transição de uma justiça privada para uma justiça pública e, com ela, o assentamento do papel do Estado e a reconfiguração deste papel ao longo do tempo. idem, p. 28/31. 196 O Poder político – Potestas e não potentia – é uma construção jurídica, tanto é que seu exercício obedece a princípios e regras que lhe impõem restrições e limites. Se a potência é força e, às vezes,

Page 106: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

95

No âmbito de sua função judiciária, o Estado se articula, por um lado, em torno de órgãos especializados em efetivar o direito, de sorte que o Estado consiga dizer a cada um em sociedade o que é o direito, quais as condutas lhe são exigidas e permitidas, bem como estabelecer as sanções que lhe serão impingidas nos casos de transgressão do previsto enquanto direito, na forma da lei. Por outro lado, mediante um arcabouço legal e procedimental, este mesmo Estado, em sua função jurisdicional, organizará os trâmites processuais das demandas e as esferas nas quais estas poderão ser apresentadas, para que possam pleitear legitimidade e serem apreciadas, quiçá atendidas197.

Neste horizonte, as vias de resolução de conflitos baseadas nas relações advindas do “mundo da vida”, passam a receber atenção do poder judiciário, que procura enquadrá-las em parâmetros jurídicos.

Conforme MAXimillian Carl Emil WEBER a sociedade moderna seria um mundo melhor para todos, através de racionalidade meio-fim. Para a consecução dessa proposta, seria necessário o planejamento e a instituição de um aparato burocrático, capaz de atender essa expectativa; através de “sistemas”, políticos, artísticos, religiosos, econômicos etc., se chegaria a construção de uma integralidade, o “mundo da vida”;

O “mundo da vida” é o lugar das relações da sociedade, das perplexidades, afetividades etc.. Desse modo, com formas de expressões diferentes, surgem os sistemas

violência, o Poder político implica a ordem de direito erigida por um conjunto de vínculos institucionais. [...] quando a vida política se manifesta pela votação de uma lei, pelo recurso ao imposto, por decisões de ordem monetária, por procedimentos internacionais em matéria de comércio ou de trabalho, por acordos militares entre vários Estados, etc., é sempre com base em regras jurídicas. Elas são a trama complexa, ainda que elaborada de forma lógica, a partir da qual se tecem os acontecimentos da vida política dos povos e através da qual eles adquirem sentido na substância do mundo [...]. GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 2. 197 “Somente com os ordenamentos políticos é que começamos a falar em legitimidade. O poder político cristalizou-se historicamente em torno da função de uma magistratura régia, do núcleo de uma regulamentação de conflitos sobre a base de normas jurídicas reconhecidas (e não mais apenas do poder de arbitragem). A esse nível, a jurisprudência se baseia numa posição que deve sua autoridade à capacidade de dispor do poder de sanção que é própria de um sistema jurídico, e não mais apenas a um status parental (e ao papel de mediação de um juiz-árbitro). O poder legítimo de um juiz pode se tornar o núcleo de um sistema de poder ao qual a sociedade delega a função de intervir quando a sua própria integridade é posta em perigo. É verdade que o Estado, por si só, não produz a identidade coletiva da sociedade, nem opera a integração social através de normas e valores, que não caem sob seu poder de disposição. Mas, dado que o Estado toma a si a tarefa de impedir a desintegração social por meio de decisões obrigatórias, liga-se ao exercício do poder estatal a intenção de conservar a sociedade em sua identidade normativamente determinada em cada oportunidade concreta. De resto, é esse o critério para mensurar a legitimidade do poder estatal, o qual – se pretende durar – deve ser reconhecido como legítimo”. HABERMAS, Jürgen. Problemas de legitimação no Estado moderno. Em: HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. 2.ed. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 220/1.

Page 107: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

96

mundo circundantes, que com seus desenvolvimentos, passaram a ganhar autonomia, em relação ao mundo e aos demais sistemas.

Através de manifestações e expressões em linguagens próprias, os sistemas, iniciam um duplo movimento: 1) cada qual quer ser o sistema de referência na sociedade; 2) e se desdobram no “mundo da vida” em suas lógicas, na tentativa de “colonização”.

A questão é que essa “colonização”, exercida através da competição por afirmação sobre os demais, direciona e faz as pessoas viverem em razão do sistema que seguem. Essa colonização do mundo da vida, portanto, se expressa como dominação.

Assim, o que restou da idéia inicial de avanço, foi a criação de um modelo de burocracia, morosa e de dominação, que aprisionou a sociedade.

Como mais um dos sistemas, o direito também luta pela hegemonia sobre os demais, e ancora sua legitimidade sobre premissas de funcionalidade, oferecendo-se como encarregado de resolver os problemas sociais, através de seu aparato legal, formulado conforme seus interesses colonizadores.

Afastando-se dos interesses gerais, em discurso de dominação, forja sua legitimidade através da legalidade.

Na concepção habermasiana, a sociedade são os “sistemas” mais o “mundo da vida” e este, seria o local do mundo cotidiano (família, amigos, infância etc.), verdadeira “sementeira” de valores e normas partilhadas entre seus membros.

Com outra compreensão, para J. Habermas, o direito está posto como categoria de negociação entre a facticidade e a validade, ou seja, embora o direito continue sendo um instrumento de dominação, ao mesmo tempo possui uma dimensão emancipatória, isso porque, as demandas do “mundo da vida” seriam levadas pelo direito aos sistemas e estes, agiriam considerando as necessidades das pessoas diante dos interesses corporativos; portanto, o direito seria possuidor de uma dupla face: dominação e possibilidade de emancipação; entretanto, o que ainda se pode constatar é a concorrência do direito, disputando no sistema, tentando impor sua finalidade, linguagem e lógica, tal como os outros sistemas.

Page 108: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

97

11. O INQUÉRITO POLICIAL NO CENÁRIO DO ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO Como até agora demonstrado, por a sua facticidade, características e utilização,

o inquérito policial se apresenta na dimensão de instrumento de manutenção da ordem social, onde a repetição das práticas investigatórias viciadas a determinados resultados contribuem para a permanência de um status quo, considerado pelos detentores do poder como desejável.

Outro questionamento do IP, nos moldes postos, se dá quanto a sua eficácia dentro do Estado Democrático de Direito, quando busca, através de sua formulação e práticas, apresentar respostas para a solução de um problema, qual seja, a necessidade da apuração da autoria e materialidade de determinado delito através de instrumento inquisitorial.

Há, sem dúvida, necessidade para o Estado, como detentor do monopólio do uso da força, da utilização de instrumentos que possibilitem a viabilização do direito; no caso, de maneira coercitiva, apurar para punir aqueles que tenham praticado um ilícito penal, exercendo assim o ius puniende e não negando seu compromisso com o contrato social firmado.

Entretanto, o que está na berlinda no modelo em uso é a tensão entre sua validade, entendida como legitimação dos métodos pré-modernos empregados no inquérito, e sua eficácia quando da averiguação do ilícito, ou seja, os questionamentos repousam sobre suas práticas inquisitórias dissonantes com o Estado Democrático de Direito; portanto, sua eficácia é comprometida já a partir da sua não adequação àqueles pressupostos.

A eficácia, de forma isolada, não basta para o direito moderno, posto que essa possa ser obtida através de agir coercitivo, que sem dúvida até poderá resultar em obediências ou comportamentos desejáveis, mas que não representarão os anseios dos cidadãos. Entretanto, quando o direito se apresenta formulado num contexto de Estado

Page 109: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

98

Democrático, sua legitimidade torna-se pedra angular para sua validação, porque assim representará o consenso social e justificará sua aceitação.

Ainda que tente, se justificar numa pretensão satisfativa da sociedade por meio de resultados práticos, a apuração do crime e seu autor, através da utilização do inquérito policial como está formulado, se antagoniza com princípios garantidores das liberdades individuais e coletivas; isso porque, violam princípios do Estado Democrático de Direito, tais como dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade perante a lei, ampla defesa, contraditório, cidadania, combate a todas as formas de discriminação etc. 198.

Somente a guisa de argumentação, a pseudoeficácia legitimadora do atual modelo inquisitorial, já há muito vem sendo severamente questionada, e tem-se demonstrado, quanto aos resultados obtidos, como instrumento de baixíssima qualidade no seu produto final199. Portanto, além de estar em descompasso com a ordem democrática vigente, não se sustenta como solucionador aos fins que se oferece.

Mesmo que por princípios se advogue, contrariamente a causa da positivação generalizada – entretanto, considere-se, que o direito positivo represente certa segurança 198 “O direito penal de garantias é inerente ao Estado de direito porque as garantias processuais penais e as garantias penais não são mais do que o resultado da experiência de contenção acumulada secularmente e constituem a essência da cápsula que encerra o Estado policial, ou seja, são o próprio Estado de direito. O direito penal de um Estado de direito, por conseguinte, não pode deixar de esforçar-se em manter e aperfeiçoar as garantias dos cidadãos como limites redutores das pulsões do Estado de polícia, sob pena de perder sua essência e conteúdo. Agindo de outro modo, passaria a liberar poder punitivo irresponsavelmente e contribuiria para aniquilar o Estado de direito, isto é, se erigiria em ramificação cancerosa do direito do Estado de direito.” Idem, ZAFFARONI, Eugenio Raúl. p. 173 199 No geral, “Mostra-se, em geral, muito baixa a capacidade de elucidação de crimes graves, como roubo e homicídio, como também o é a produção das provas periciais em homicídios, um tipo de crime com alto grau de elucidação nos países modernos”; No Rio de Janeiro, “Não contabilizados os flagrantes, que não passam pela 1ª Central de Inquérito, indo diretamente para o juiz. Como nosso objetivo é a investigação preliminar sob forma de inquérito policial, e como o número de flagrantes em homicídios dolosos é relativamente baixo, consideramos que sua falta não prejudica a análise. (...) Apenas 111 inquéritos de homicídios dolosos (tentados ou consumados) ocorrido na cidade do Rio de janeiro em 2005 chegaram a transformar-se em ação penal até quatro anos e meio depois dos fatos (3,8%).”; (...) Em Belo Horizonte, “Também foi aludido que, por mais que insistíssemos, não logramos obter dados quantitativos sobre registros de inquéritos policiais em Minas Gerais. Assim, no que se refere à capacidade de elucidação policial, valemo-nos de estudo recente (SAPORI, 2007). Os dados apresentados indicam que, entre 2000 e 2005, em média, apenas 15% das ocorrências de homicídios dolosos registrados foram remetidas à Justiça. A proporção é muito baixa, sobretudo, porque se refere tanto a inquéritos relatados para indiciamento quanto relatados para arquivamento”; (...) No Distrito Federal “Apesar deste bom desempenho no que diz respeito à investigação dos crimes de homicídios, a efetividade do Trabalho policial é baixa. Ou seja, mesmo tendo sido ‘solucionados’, o número de inquéritos que resultaram em sentenças condenatórias é pequeno. Dos 87 processos que analisamos, apenas 25% (22) resultaram na condenação do(s) indiciado(o). Os números servem apenas para aferir a qualidade do trabalho da polícia, uma vez que as atuações do Ministério público, da Justiça Criminal e do Tribunal do Júri também contribuíram para esse resultado” Idem, ” MISSE, Michel pp. 17; 79 e 80; 128; e 233

Page 110: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

99

jurídica, quanto a expectativas de comportamentos e conseqüentes previsões sancionadoras – não se pode deixar de aventar a possibilidade de urgente alteração legislativa, em face do modelo de investigação através do IP, posto ser este no mínimo ineficiente, como também inconstitucional (vide notas 54 e 56).

Entretanto, sendo o caminho da alteração da lei o escolhido, qualquer instrumento que venha a surgir, deverá ter consigo a marca da legitimidade, sob pena de novamente se incorrer nos mesmos erros autoritários.

Conforme GOYARD-FABRE, interpretando Habermas, “Depois da queda das grandes metafísicas, uma norma deve buscar sua validade (Geltung) no acordo, ou no ‘consenso’, que resulta, numa comunidade, de uma ‘discussão prática’ entre seus diversos membros”200. Nesse diapasão, há que se defender, em caso de alteração legislativa, que esse novo instrumento de investigação passe por profunda discussão e participação da sociedade.

A vertente norteadora de toda discussão, quanto à necessidade e/ou modelo de investigação, deve considerar a intersubjetividade entre propositores e atingidos; assim, as decisões poderão adquirir características de consenso entre os participantes, ou seja, nem os direitos subjetivos devem se sobrepor ao mundo jurídico-político ou vice-versa.201

Não se deve, porém, confundir o consenso desejado com mero acordo ou cooperação entre os envolvidos no processo, até porque, num simples acordo, essas vontades poderão não contemplar a diversidade das formas comunicativas necessárias para se chegar a um medium, como também, não será suficiente para a busca de um ponto de equilíbrio à construção de um instrumento racional. Porém, se produzido em consenso, contemplará todas essas questões e não se embrenhará nas veredas de soluções estratégicas, utilitárias e pseudodemocráticas202. (melhor se dirá sobre essa questão mais adiante, nas conclusões)

200 Idem, GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia?: a genealogia filosófica de uma grande aventura humana. p. 319 201 “A validade das normas jurídicas depende de seu acordo com o mundo cotidiano vivido, o que é o próprio télos do ‘agir comunicacional’: é preciso haver uma discussão prática real para que as normas do direito estejam habilitadas a governar, o que deve ser feito. Em outras palavras, o novo paradigma hoje necessário, depois da queda dos princípios do pensamento moderno, para refundação e a reconstrução do direito, é o recurso à razão processual de uma plítica democrática deliberativa animada pela atividade comunicacional.” GOYARD-FABRE, Simone. Idem p. 324 202 “O conceito de uma política deliberativa so ganha referência empírica quando fazemos jus à diversidades das formas comunicativas na qual se constitui uma vontade comum, não apenas por um

Page 111: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

100

Moldado através da história com perfil excludente e autoritário, o inquérito policial no Brasil sobrevive por força de dogmas, tradições, usos e costumes apresentados como essenciais, validados através de práticas corporativistas203, discursos politicamente comprometidos e midiatizados, autopreservativos, manipuladores da opinião pública204, o que torna inaceitável à sua existência.

Como se pode conceber um modelo investigativo penal esculpido no talho de uma ditadura? A falta de um parlamento com legitimidade nas urnas já seria suficiente para espancar essa aberração medieval que, entretanto, é mantida a custa de acomodados interesses privados e institucionais.

Ausente o devido processo legislativo no momento da sua concepção, prolonga-se por sete décadas, inalterado na sua essência e forma; sempre recepcionado de auto-entendimento mútuo de caráter ético, mas também pela busca de equilíbrio entre interesses divergentese do estabelecimento de acordos, da checagem da coerência jurídica, de uma escolha de instrumentos racional e voltada para um fim específico e por meio, enfim, de uma fundamentação moral.... O terceiro modelo de democracia que me permito sugerir baseia-se nas condições de comunicação sob as quais o processo político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais, justamente por cumprir-se, em todo seu alcance, de modo deliberativo.” HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução George Sperber e Paulo Astor Soethe, São Paulo, Loyola, 2002 p. 277 203 “ADPF e ADEPOL prestigiam posse de parlamentares no Congresso Nacional - 03/02/2011 - 11:46 Delegados de todo o Brasil participaram do evento que abriu a nova legislatura. Representantes da ADPF e da ADEPOL, junto com delegados de todo o Brasil, prestigiaram nesta terça-feira, 1º, a posse dos parlamentares no Congresso Nacional. Deputados federais e senadores eleitos em outubro de 2010 ocuparam os cargos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal para dar início à nova legislatura. Entre os parlamentares, seis delegados tomaram posse no Legislativo. ‘É um orgulho para a categoria a eleição de nossos colegas na Câmara dos Deputados. Viemos parabenizá-los e, também, oferecer o nosso apoio na luta por uma segurança pública mais competente e eficaz’, ressaltou o vice-presidente da ADPF, Bolivar Steinmetz. ‘Buscamos uma aproximação com o Congresso Nacional para que as categorias possam falar a mesma língua e trabalhar junto aos deputados e senadores pela aprovação das reivindicações relacionadas à Polícia Federal’, complementou o presidente da ADEPOL, Carlos Eduardo Benito Jorge. O deputado Fernando Francisquini (PSDB-PR) agradeceu o apoio dos colegas delegados e afirmou que buscará entendimento entre os futuros líderes partidários para a votação das propostas relacionadas à segurança pública. ‘Precisamos de todas as polícias unidas em uma só luta: o avanço da segurança pública e melhores condições de trabalho para as classes. Quando trabalhamos juntos diminuímos a resistência na aprovação de matérias na Casa, o que resulta em vitória para todos os lados’, afirmou o deputado tucano. Outro parlamentar eleito, o deputado delegado Protógenes Queiroz (PCdo B-SP), reafirmou a importância do apoio das entidades de classe. ‘Sou delegado de Polícia Federal e vou carregar a nossa bandeira dentro do Congresso Nacional. Existem várias demandas nessa área e é preciso reuniões periódicas para que possamos discutir sobre as prioridades da categoria’, alertou Protógenes. Para o deputado Lourival Mendes (PTdoB-MA), este é o ano da Segurança Pública. ‘O gabinete que eu recebi não é só meu, mas a representação dos delegados na Câmara dos Deputados. Eu tenho certeza que, o que for reivindicado pela nossa categoria, é positivo ao país. Com a união das classes e o apoio dos parlamentares da Casa vamos vencer’, concluiu o delegado Lourival Mendes.” http://www.adpf.org.br/Entidade/492/Noticia/?ttCD_CHAVE=135866 (acessado em 15/03/2011) 204 “’Opinião pública’ é algo que assume um outro significado caso ela seja apelada como uma instância crítica em relação à ‘publicidade’ no exercício do poder político e social normativamente exigida ou como instância receptora na relação com a publicidade difundida de modo demonstrativo manipulativo, sendo ela utilizada para pessoas e instituições, bens de consumo e programas.” Idem, HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. p. 274

Page 112: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

101

maneira tácita pelo ordenamento constitucional, bem como, combatido por inúmeros jurístas e cientistas sociais, o inquérito policial brasileiro é uma incógnita quanto a sua longevidade e sobrevivência205.

11.1 O INQUÉRITO POLICIAL E OS PRESSUPOSTOS DO ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO Justificado formalmente através da lei processual penal, entretanto, é cabível a

indagação: até que ponto o inquérito policial se confronta com os fundamentos do Estado Democrático de Direito? Assumindo, que o Estado de Direito esteja interligado a própria democracia206, para se ousar qualquer resposta, é importante estabelecer um mínimo denominador sobre o conceito de democracia.

Da antiguidade até a modernidade, entendia-se que a democracia estava ligada a um conceito ontológico-metafísico, ou seja, dentro da polis cada indivíduo tinha um papel a ser desempenhado conforme uma razão superior advinda do cosmos. Gregos e medievais comungavam que o eu deveria se orientar conforme um destino, prévio e traçado.

Para os gregos, dentro de vários destinos possíveis, o ser humano poderia configurar-se como mulher, escravo, não-grego; por outro lado, também poderia ter a condição de grego – filho de pais gregos –, ser livre, homem adulto e proprietário, o que nessa condição, lhe dava oportunidade de ter seu nome incluído entre outros iguais à um 205 “No entanto, são muito freqüentes as hipóteses em que as modificações só podem ser realizadas à custa de incursão bastante penosa contra certos direitos adquiridos e interesses constituídos. Com o correr do tempo, o interesse de milhares de indivíduos e de classes inteiras vinculam-se ao direito existente de forma tão profunda que o mesmo não pode ser alterado sem uma ofensa bastante sensível a esses interesses. Que questiona determinada norma ou instituição jurídica declara guerra a todos esses interesses; a tarefa equivale à de quem pretenda arrancar do fundo do mar um polvo agarrado com milhares de tentáculos. Toda tentativa dessa natureza provoca, através de uma atuação perfeitamente natural do instinto de autoconservação, a resistência encarniçada dos interesses ameaçados e, com isso, uma luta na qual, como em toda luta, a decisão não depende da validade dos motivos que impelem os contendores, mas da relação entre forças que se contrapõem. Muitas vezes o resultado é idêntico ao paralelograma das forças: verifica-se um desvio da linha primitiva, que passa a progredir na diagonal. Só assim se explica que, não raro, certas instituições há muito condenadas pela opinião pública ainda consigam sobreviver por bastante tempo. Não é a inércia histórica que proporciona essa sobrevivência, mas a resultante dos interesses empenhados na defesa da sua posição.” IHERING, Rudolf Von. A luta pelo Direito. 3ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003. p. 57 206 “O Estado constitucional não é nem deve ser apenas um Estado de direito. Se o princípio do Estado de direito se revelou como uma ‘linha Maginot’ entre ‘Estados que têm constituição’ e ‘Estados que não têm uma constituição’, isso não significa que o Estado Constitucional moderno possa limitar-se a ser apenas um Estado de direito. Ele tem que estrutura-se como Estado de direito democrático, isso é, como uma ordem de domínio legitimada pelo povo.” Idem, CANOTILHO, José Joaquim Gomes P. 97/98

Page 113: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

102

sorteio para o governo da polis207. Tudo dependia dos desígnios que regiam o cosmos, que dava o destino de cada um, do qual não se poderia fugir, do qual não se poderia desligar.

Da mesma maneira, para os medievais existia uma ordem divina que deveria ser seguida, que escolhia e legitimava senhores e soberanos, restando aos demais, da mesma forma, o cumprimento de seus destinos, ainda que isso representasse a miséria ou sacrifícios que passavam pela vida.

Com a chegada da modernidade, e o abandono dos antigos conceitos de pré-destinação, caminhou-se para a legitimação dos governantes através de sua representação pública; o processo de escolha é alterado, o sorteio é abandonado e substituído pelo voto; entretanto, mesmo assim permaneceram as exclusões dos que não possuíam o perfil definido como aptos ao poder, posto que ainda eram alijados do processo os não proprietários, os estrangeiros, as mulheres, etc..

Contemporaneamente, em razão do avanço das conquistas sociais, as principais causas de exclusão vêm sendo gradativamente afastadas, possibilitando, particularmente no Brasil, uma cidadania política ativa, rechaçando vedações clássicas.

Como exemplos dessa nova fase histórica se destacam o direito feminino ao voto e sua participação na vida pública, como também a abolição do voto censitário e o direito de escolha do analfabeto, instituídos através do sufrágio universal.

Partindo desses referenciais como parâmetro mínimo e base à argumentação pretendida, democracia é o regime de governo criado e legitimado através da representação popular, cujo objetivo de igualdade de condições entre os participantes da sociedade viabiliza seu contrato.

Em conceito estendido, a idéia de democracia não se limita a maneira de aquisição e exercício do poder, ou a igualdade formal dos membros do corpo social perante a lei, mas é componente da própria sociedade, onde na qualidade de cidadãos

207 “...a participação na vida pública depende, porém de sua autonomia privada como senhores da casa. A esfera privada está ligada à casa não só pelo nome (grego); possuir bens móveis e dispor de força de trabalho tampouco constituem substitutivos para o poder sobre a economia doméstica e a família, assim, como às avessas, pobreza e não possuir escravos já seriam por si impecilhos no sentido de poder participar na polis: exílio, desapropriação e destruição da casa são uma só coisa. A posição na polis baseia-se, portanto, na posição do déspota doméstico: sob o abrigo de sua dominação, faz-se a reprodução da vida, o trabalho dos escravos, o serviço das mulheres, transcorrem o nascimento e a morte;” Idem, HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. p. 15/16

Page 114: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

103

livres para escolher conforme sua vontade e autonomia, as pessoas podem participar ativamente da vida pública.

Assim, o pressuposto da democracia é a igualdade entre os envolvidos no pacto social estabelecido, onde os concernidos têm o poder-dever de participar na elaboração das normas a que estarão submetidos208, ou seja, é o exercício de cidadania ativa; conceituação diversa à cidadania representada somente pelo cumprimento dos compromissos legais, cidadania passiva, posto que nesse caso há submissão inconteste ao poder.

Quanto a igualdade entre os envolvidos numa relação democrática, seguem algumas outras considerações, desta feita quanto ao legitimo direito de defesa do ser humano, que por se tratar de direito fundamental – inclusive sob a ótica jurídico-constitucional – é indisponível e inalienável.

11.2 PARIDADE DAS ARMAS O ser humano, por condições naturais, é dotado de sensores que possibilitaram a

própria perpetuação da espécie; seus os cinco sentidos possibilitam a percepção do mundo e suas sensações, e deles são frutos as reações naturais, tais como: diante do frio, a busca pelo abrigo; diante da fome, a busca pelo alimento; diante do cansaço a busca pelo repouso; e diante do medo, a busca pela defesa.

Atingido pelo medo, concreto ou imaginado, o indivíduo tenta se proteger, basicamente de duas maneiras: ou empreendendo fuga, quando lhe é possível e esta se demonstra como melhor atitude; ou pela reação, de regra determinada pela ausência de opções209; mas é certo, que a reação humana a qualquer ameaça, ainda que em mera

208 “Todavia, se discursos (e, como veremos, negociações, cujos procedimentos são fundamentados discursivamente) constituem o lugar no qual se pode formar uma vontade racional, a legitimidade do direito apóia-se, em última instância, num arranjo comunicativo,: enquanto participantes de discursos racionais, os parceiros do direito devem poder examinar se uma norma controvertida encontra ou poderia encontrar o assentimento de todos os atingidos. Por conseguinte, o almejado nexo interno entre soberania popular e direitos humanos só se estabelecerá, se o sistema dos direitos apresentar condições exatas sob as quais as formas de comunicação – necessárias para uma legislação política autônoma – podem ser institucionalizadas juridicamente.” Idem HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade p. 138 209 O estresse é uma resposta do organismo frente a um perigo. Ele prepara o corpo para fugir ou lutar. Existem muitas coisas que disparam os mecanismos do estresse, que podem ser externas ou internas, agudas ou crônicas. As externas incluem condições físicas adversas (como dor, frio ou trabalho, calor excessivos) e situações psicologicamente estressantes (más condições de trabalho, problemas de

Page 115: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

104

especulação lhe é natural, portanto, privá-lo da inabdicável possibilidade reagente, mesmo quando se suponha improvável resultado, diverso do que se apresente, ofende a natureza humana e sua própria dignidade.

A angustia de não poder se defender, face ao mal aflitivo, atenta, principalmente, contra o aspecto emocional-psicológico da espécie, causando dor e sofrimento ao indivíduo; também, ainda que haja possibilidade defensiva, todavia, quando esta é empreendida de maneira restrita, da mesma forma, gera sensação de impotência, frente a um inimigo que se apresenta como um gigante, e o indivíduo como mero Davi à enfrentar seu Golias210.

O mito, alegoria ou dogma bíblico, conforme se compreenda ou aceite, bem retrata a disparidade das contendas desiguais; se não ungido por uma escolha ou intervenção divina, o ser, quando ameaçado, estando tolido de usar de todas as armas e argumento possíveis, terá seus direitos defensivos diminuídos, portanto, sua participação no embate, logo de início, assinará grande chance de resultar em derrota, em fracasso, numa “crônica de uma morte anunciada”.211

No Estado Democrático de Direito, certos postulados, que garantem o devido processo legal, são inflexíveis, não comportam acomodações casuísticas, ou interpretações restritivas, portanto, devem sempre ser aplicados, ainda mais, quando em um dos lados da relação, não importa se administrativa ou judicial, esteja o Estado, verdadeiro Golias na modernidade, com todo seu aparato, poder e força.

Sob a questionável premissa, que na fase policial, ainda não há “judicialidade” nos atos praticados, isso porque, é estabelecido por afirmação dogmática, que nessa

relacionamentos, insegurança e outras). Entre as internas, estão também as condições físicas (doenças em geral) e psicológicas. NICOLAU, Álvaro Antônio. Ensaio sobre o sofrimento psicológico de policiais, FGR em revista, Belo Horizonte, ano 3, n. 4, p. 45-57, ago. 2009. Disponível em http://www.fgr.org.br/admin/artigos/200927333111941738844709031Ensaio%20sobre%20o%20sofrimento%20psicologico%20de%20policiais.pdf. Acesso em 12/05/2011 210 “E tomou o seu cajado na mão, e escolheu para si cinco seixos do ribeiro, e pô-los no alforje de pastor, que trazia, a saber, no surrão, e lançou mão da sua funda; e foi aproximando-se do filisteu.” “Hoje mesmo o SENHOR te entregará na minha mão, e ferir-te-ei, e tirar-te-ei a cabeça, e os corpos do arraial dos filisteus darei hoje mesmo às aves do céu e às feras da terra; e toda a terra saberá que há Deus em Israel;” “E Davi pôs a mão no alforje, e tomou dali uma pedra e com a funda lha atirou, e feriu o filisteu na testa, e a pedra se lhe encravou na testa, e caiu sobre o seu rosto em terra.” “Assim Davi prevaleceu contra o filisteu, com uma funda e com uma pedra, e feriu o filisteu, e o matou; sem que Davi tivesse uma espada na mão.” Samuel 1:40, 46, 49 e 50 Bíblia, Disponível em http://www.bibliaonline.com.br/. Acesso em 12/05/2011 211 Título do livro de Gabriel Garcia Marquez, que narra a previsível morte do protagonista (Santiago Nasar), independentemente dos acontecimentos que se desenrolam na trama.

Page 116: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

105

ocasião ainda não há acusação formal, decorrente disso, que não se pode falar em autor e réu, portanto, não há processo212, logo, os indícios produzidos não ostentam o valor de provas; entretanto, através dessa construção convencional, contrária a todas as evidências factuais, viola-se o principal elemento garantidor de igualdade das partes nas relações, a paridade das armas.

As partes, envolvidas numa relação jurídica, não importa se já ou não jurisdicionalizada, devem ter oportunidades que se assemelhem, até porque, na relação cidadão�Estado, o segundo é notadamente a parte mais preparada e possuidora de condições à confirmação de suas proposições.

Na relação entre investigador e investigado, esta superioridade é evidente, considerando que a autoridade que preside o IP, possui a disposição incontáveis ferramentas, especialmente concebidas à persecução; e, por outro lado, o investigado é sujeito subordinado aos comandos estabelecidos em lei, não tendo como se furtar a ser pesquisado, desde ai, já se impõem a assimetria, a diferença de forças entre os dois.

Sabedor dessa disparidade de forças, visando maior equilíbrio na relação cidadão�Estado, o legislador constituinte, consagrou o princípio da igualdade processual, entretanto, conforme afirmado, o dogmatismo se coloca como entrave a consecução desse querer garantidor, no âmbito do inquérito policial.

Ao ser negada a ativa participação da defesa no curso das investigações, ou seja, a igualdade de condições entre os envolvidos na relação, não permitindo o contraditório e a ampla defesa, ainda em sede policial, se ignora no mínimo o princípio de resistência inerente a própria condição humana; a disparidade entre os participantes, contendores de fato, além de ofender ao princípio da igualdade e violar a dignidade da pessoa humana, por outro lado, também despreza o devido processo legal, desta forma, atenta contra o Estado Democrático de Direito.

212 “o inquérito policial, onde o procedimento da polícia judiciária – e, não, processo – sempre foi, oficialmente, administrativo, não judicial; o artifício de passar a considerá-lo juridicamente um procedimento e não um processo administrativo permite que continue a ser inquisitorial, não se regendo pelo princípio do contraditório, consagrado pela Constituição para todos os processos, tanto administrativos como judiciais;” Idem. LIMA, ROBERTO KANT. p. 278

Page 117: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

106

Mesmos nas mais tradicionais doutrinas, quem sabe em deslizes despercebidos, por vezes, essas afirmações são consagradas, ainda que isso possa representar a negação de suas próprias obviedades.213

11.3 GARANTIAS DA PROTEÇÃO JURÍDICA INDIVIDUAL Conforme enunciado, o inquérito policial como hoje se apresenta no Brasil tem

sua base legal no Decreto-lei 3.689 de 03 de outubro de 1941, sua previsão e regramento no CPP estão basicamente delimitados entre os artigos 4º e 23; além desses artigos, aplicam-se outras regras gerais previstas no próprio código, várias delas modificadas ao longo da história, todavia, que não desnaturaram a essência do IP tal como foi concebido.

Também, como já demonstrado, desde sua edição original em 1941 o CPP, no que pertine aos artigos específicos do IP, pouco foi modificado, tendo ocorrido ao longo desse tempo pequenas alterações no texto, através de cinco leis modificadoras, sendo mantido todo escopo originário.

Através de sucessivas recepções214 da norma originária, toda a estrutura do IP vem se mantendo praticamente inalterada por aproximados setenta anos, portanto, além de ter sobrevivido a duas ditaduras (Vargas e o Golpe Militar de 64), também se perpetua a quatro ulteriores Constituições (1946, 1967, 1969 e 1988)

Da primeira redação do CPP, através de construção jurisprudencial, desconsiderou-se apenas a incomunicabilidade dos presos215 por ferir flagrantemente o texto constitucional de 1988; por alteração legislativa a troca da expressão “jurisdição” por “circunscrição” no art. 4º, como área de atuação policial, corrigindo assim um erro semântico; os incisos I e II do art. 6º também foram alterados, entretanto, em essência, somente quanto a redação; também por alteração no texto legal, a vedação a menção de registros não transitados em julgados em certidões que porventura a autoridade policial 213 “...Assim, a garantia do contraditório abrange a instrução lato sensu, incluindo todas as atividades das partes que se destinam a preparar o espírito do juiz, na prova e fora da prova. Compreende, portanto, as alegações e os arrazoados das partes” (grifo nosso) Idem MIRABETE, Julio Fabbrini p. 46 214 Vigência de norma editada ao tempo de constituição passada, que não colide materialmente com o novo ordenamento constitucional. 215 Art. 21. A incomunicabilidade do indiciado dependerá sempre de despacho nos autos e somente será permitida quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação o exigir. – Código de Processo Penal

Page 118: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

107

venha a expedir, no mais tudo está mantido conforme editado em sua matriz de essência fascista216.

Também, através da Lei nº 10.792/03 foi introduzido no ordenamento jurídico, no que se refere ao interrogatório, o contraditório, substancialmente a alteração mais radical em matéria de conceito e filosofia na investigação policial, que embora redigido para previsão de aplicação em sede judicial, deve ser seguido em sede de inquérito policial, por força do disposto do art. 6º, inciso V do CPP217; essa modificação legal estabeleceu a obrigatoriedade da presença de advogado no momento de sua realização, oportunidade que poderá formular perguntas pela defesa do indiciado, nos moldes do art. 188218 do mesmo diploma processual.

Entretanto, a participação da defesa não pode estar limitada a mero ato de perguntas e respostas de seu protegido, deve ir mais além, até porque várias são as provas possíveis de serem produzidas no curso da investigação, ainda que sejam nominadas simplesmente de indícios; portanto, amplo é o espectro e oportunidades defensivas durante a investigação, que são suprimidas da ação protetiva do contraditório durante a realização do IP.

Com o advento da CRFB de 1988, que adotou o sistema acusatório219 no trato penal, quando se abandonou totalmente qualquer viés inquisitório, esperava-se uma reação mais contundente não só do legislador infraconstitucional como também do Poder Judiciário, posto que, conforme as características anteriormente descritas, tornou-

216 Pensamento totalitário hegemônico entre as elites da Alemanha e Itália, no período compreendido entre os anos 20e 40 do século passado. O Código de Processo Penal de 1941 tem com inspiração Código Penal italiano, Código Rocco, concebido durante o governo do Benito Mussolini, em 1930 217 Art. 6o Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: V - ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura; – Código de Processo Penal 218 Art. 188. Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante. 219 Conforme já destacado em capítulo específico: “O sistema acusatório funda-se na existência de vários sujeitos processuais, tendo eles funções distintas de acusação, defesa e julgamento, sendo certo que a função investigativa só não pode ser atribuída ao julgador. É dizer: a função de apuração preliminar fica a cargo de um órgão distinto do julgador”, diferentemente do “sistema inquisitivo, que caracteriza-se por haver concentração numa mesma pessoa as funções de acusação e julgamento.” CUNHA, Rogério Sanches, TAQUES, Paulo, GOMES, Luiz Flávio (coordenação). Limites constitucionais da investigação. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009 p. 55

Page 119: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

108

se inaceitável na ordem jurídica, a permanência de princípios discricionários e inquisitoriais, colidentes com os princípios adotados pelo legislador constituinte220.

No Estado Democrático de Direito consagrado na CRFB de 1988, o princípio do contraditório e da ampla defesa foram prestigiados; versa o art. 5º, LV que: aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Considerando, que os Direitos Fundamentais devem ser interpretados de modo a garantir a proteção jurídica individual, estes são passíveis de exigência e cumprimento imediato, além do que, a Constituição a todo instante, também consagra o princípio da igualdade de condição entre os membros da sociedade; por conseguinte, não há razão para negar a aplicação da norma constitucional ao processo de investigação.

Os postulados democráticos, erigidos a cláusulas constitucionais em 1988 não comportam ser interpretados restritivamente; as garantias democráticas não são dirigidas somente a forma de obtenção do poder ou sua manutenção; a democracia é componente da própria sociedade, instrumento realizador de justiça em igualdade de condições.221

Inaceitável, portanto, qualquer descredenciamento de natureza infraconstitucional, jurisprudencial ou doutrinário que inviabilize a incidência da norma constitucional exposta. Ao mencionar “processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral”, é evidente a vontade de ampliar seu campo de incidência, devendo ser rechaçado qualquer sofisma que ainda insista na validade de uma investigação inquisitiva.

220 “Evidentemente, a experiência brasileira marca-se por formas de instrumentalização política, econômica e relacional de mecanismos jurídicos, apontando no sentido inverso à indisponibilidade do direito. Há uma forte tendência a desrespeitar o modelo procedimental previsto no texto da Constituição, de acordo com conformações concretas de poder, conjunturas econômicas específicas e códigos relacionados. Isso está associado à persistência de privilégios e ‘exclusões’ que obstaculizam a construção de uma esfera pública universalista como espaço de comunicação de cidadãos iguais.” (...) “Sendo a Constituição a estrutura normativa mais abrangente nas dimensões temporal, social e material do direito, isso vale para todo o sistema jurídico: aqueles que pertencem às camadas sociais ‘marginalizadas’ são integrados ao sistema jurídico, em regra, como devedores, indiciados, denunciados, réus, condenados etc., não como detentores de direitos, credores ou autores.” NEVES, Marcelo, Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil, São Paulo, Martins fontes, 2006 p. 246 e 249 221 “Entretanto, o estabelecimento do código jurídico enquanto tal já implica direitos de liberdade, que criam o status de pessoas de direito, garantindo sua integridade. No entanto, esses direitos são condições necessárias que apenas possibilitam o exercício da autonomia política; como condições possibilitadoras, eles não podem circunscrever a soberania do legislador, mesmo que estejam à sua disposição. Condições possibilitadoras não impõem limitações àquilo que constituem.” (grifo nosso) Idem HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. p. 165

Page 120: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

109

Assim, o princípio contido na Carta da República, interpretado numa perspectiva de igualdade de chances consagra a democracia processual; isso porque garante a participação e a dialeticidade nos processos, de qualquer natureza. De maneira simétrica, portanto, nesta perspectiva, está presente a condição de igualdade entre os litigantes, verdadeira relação eu�tu.

É nesta relação eu�tu, estabelecida na condição ideal de linearidade entre os interlocutores, que se estabelece de forma plena a democracia e faz surgir de maneira real a possibilidade de emancipação do ser humano. Em consequência, mais que um princípio processual ou garantista222, o enunciado se transforma em verdadeiro imperativo categórico223 que impede a utilização do outro como meio.

Considerando, quando da realização do inquérito policial, nos termos constitucionais, que se possa retrucar a imputação feita na mesma qualidade e intensidade, não só durante o interrogatório, mas em todas as atividades investigatórias, se poderá afirmar a prevalência de um princípio presente em termo de legitimidade, qual seja, o da democracia processual.

Ao contrário do previsto na Lei Maior, caso as partes se envolvam em uma relação jurídica estabelecida de forma hierarquizada, não há como se falar em democracia, porque haverá uma relação entre eu�isso; logo, haverá uma relação entre submissor e submisso, uma relação instrumentalizada.

Concluindo, não há como se conceber democracia fora de uma relação simétrica; ainda que não seja evidente para muitos, foi isso que o legislador constituinte deixou de legado em 1988, ao estabelecer que toda vez que um direito esteja sendo atacado, deverá haver a oportunidade de se contra-argumentar na mesma intensidade e valer-se das mesmas possibilidades do oponente, o que não ocorre durante o inquérito policial. 222 A partir das idéias de Luigi Ferrajoli, aqui nos referimos a um "modelo normativo de direito" alicerçado no princípio da legalidade, base do Estado de Direito. “El modelo garantista del Estado constitucional de derecho como sistema jerarquizado de normas que condiciona la validez de las normas inferiores por la coherencia com normas superiores, y com principios axiológicos estabelecidos em ellas, tiene valor para cualquier case de ordienamento” (Ferrajoli, Luigi. Derechos y Garantias. La ley Del mais débil. 4. Ed. Madrid: Trotta, 2004. p. 152) Idem Limites constitucionais da investigação. p. 50 223 “Procede apenas segundo aquela máxima, em virtude da qual podes querer ao mesmo tempo que ela se tome em lei universal.” “Procede de maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros, sempre ao mesmo tempo como fim, e nunca como puro meio.” ”Procede segundo a máxima que possa ao mesmo tempo erigir-se em lei universal.” KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho, Companhia Editora Nacional. p. 23, 28 e 35

Page 121: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

110

Por tudo, pode-se afirmar que a relação no inquérito é objetivante, ou seja, a relação presente durante a investigação se dá entre eu�isso, onde o investigado perde a plenitude do status de cidadão e figura na condição de mero objeto na investigação224.

11.4 A DISCRICIONARIEDADE E O CONHECIMENTO

Considerando, que “...o Império da Lei é garantido, em última instância, pela

possibilidade de uso da força pelo Estado no exercício de sua soberania interna (em relação aos seus próprios cidadãos e dentro dos seus próprios limites territoriais), e que o caráter democrático de um Estado de Direito (ou da própria sociedade) pode ser aferido pela forma e pela intensidade que esta força é efetivamente organizada, mobilizada, utilizada e, principalmente, pela configuração dos controles e limites a que esta atividade está submetida, não só sob o prisma teórico formal, mas, também, e fundamentalmente, sob o ponto de vista pratico material da sua efetiva operacionalização cotidiana”225, devem ser abordadas duas questões, que se entrelaçam na produção de natureza investigativo-policial: 1. A discricionariedade dos atos praticados pelos agentes do poder público; 2. E o conhecimento, como produto almejado durante a investigação policial.

11.4.1 DISCRICIONARIEDADE Não há porque se opor óbices a qualquer investigação policial, até porque a

atividade policial realizada dentro de parâmetros democráticos é garantidora da tranqüilidade dos cidadãos, bem como instrumento de afirmação da justiça. Entretanto, conforme o querer democrático-constituinte, da maneira como é realizada, tal atividade se torna impossível de aceitação, posto que se dê numa relação autoritária e

224 “Portanto, nada pode deter a marcha do acesso à verdade – para não dizer glutoneria e voracidade de poder – do sujeito cognoscente seguirá em frente, sem deter-se diante da violência sobre o objeto de conhecimento. O sujeito cognoscente, por essência, estará sempre num plano superior ao do objeto de conhecimento, pois assim o requer a própria estrutura desta forma de conhecimento” Idem ZAFFARONI, Eugenio Raúl. p. 40 225 NUNES, Orlando Moreira. A Polícia no Estado Democrático de Direito: Ciência policial, discricionariedade e aplicação seletiva da lei. Rio de Janeiro, artigo no prelo, versão autorizada pelo autor, 2010. p. 8

Page 122: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

111

hierarquizada, onde a participação do investigado não é como pessoa de direitos, mas como coisa a ser descoberta e devassada.

A propósito da forma passiva como a pessoa participa no curso das investigações, retorne-se a afirmação que está assentada no art. 14 do CPP que: O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade.

Definido nos manuais como o “princípio da discricionariedade”226, o artigo citado é a expressão desse poder, que garante à autoridade policial a possibilidade de conduzir a investigação ao seu melhor entendimento, conforme valoração que dê ao fato ou tese que pretenda demonstrar; ou seja, o delegado presidente do inquérito não sofre fiscalização no pensar e, entre o pensar e o agir da autoridade, o único limite está no seu “bom senso” durante a investigação, pura subjetividade, ainda mais considerando os diversos fatores que podem motivar suas pesquisas, condução e conclusões227.

Assim se poderia resumir a questão: de um lado, o investigado limitado em garantias; do outro, o Estado que age sem limites certos e precisos, vez que o poder discricionário é subjetivo.

A essência do Santo Ofício da Inquisição repousava na discricionariedade e disponibilidade que o inquisidor possuía sobre o objeto investigado. O inquirido, despossuído de direitos, era examinado sobre todas as formas, virado e revirado, conforme julgasse necessário seu inquisidor, até que suas afirmações previamente concebidas fossem comprovadas. Por sua vez, a essência do inquérito policial, também assenta-se sobre os mesmos postulados, na disponibilidade e discricionariedade da autoridade sobre seu objeto de investigação; o investigado, ainda hoje, despossuído de 226 “Estruturar o poder discricionário da polícia significa definir as áreas e atividades que precisam de certa liberdade de ação (...) Há inúmeras áreas em que os policiais exercem freqüentemente sua capacidade discricionária, a saber: a) na aplicação seletiva das leis; b) nas escolhas dos objetos e prioridades; c)na escolha de métodos de intervenção; e d) na escolha do estatuto legal a ser empregado” MISSE, Michel (organizador). O Inquérito Policial no Brasil – uma pesquisa empírica. Rio de Janeiro, FENAPEF, NECVU e BOOKLINK, 2010, p.195 227 “Um dos maiores desafios enfrentados pelas diversas Polícias do mundo nas últimas décadas foi melhorar o controle sobre o poder discricionário dos seus agentes, principalmente os de mais baixa hierarquia (...) Entretanto, desde a década de 60, os estudos tem revelado que a polícia não apenas aplica a lei, mas também a interpreta (GOLDESTEIN, 1963; SKOLNICK, 1962). Sabemos também que os policiais decidem quando e como a lei deverá ser empregada (MINGARDI, 1992; KANT DE LIMA, 1995; NASCIMENTO, 2003). As pesquisas têm demonstrado que outros fatores além da legislação criminal também influenciam profundamente as escolhas feitas pelos policiais, tais como idade, raça, classe social, etnia e religião (RAMOS e MUSUMECI, 2005). Esses estudos têm desafiado o mito do policial neutrorealizando uma tarefa técnica”. Idem, MISSE, Michel. O Inquérito Policial no Brasil – uma pesquisa empírica. p.191

Page 123: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

112

plenos direitos de defesa, não pode afirmar outras representações que não atendam aquelas previamente formuladas pelo investigador, ainda que isso, efetivamente, contribua na formação de sua culpa. Mais que essência, a coincidência de métodos, apesar dos séculos passados, aflora o “DNA” inquisitorial que norteia a investigação policial no Brasil.

Dessa constatação de exercício autoritário é possível afirmar, que o inquérito policial não contribui para o avanço nas transformações sociais com vetores democráticos. Muito pelo contrário, ao manter suas raízes encravadas no início do primeiro milênio da atual era histórica, se reproduzem práticas de afirmações de verdades interessantes aos seus condutores, confirmadoras de enunciados pessoais não raramente desprovidos de lastro de sustentação, isso porque, o investigado é impossibilitado que de contra-argumentar qualquer imputação.

11.4.2 CONHECIMENTO Admitida a hipótese (visível), aceita e vigente, que a finalidade precípua do

inquérito policial é a busca de indicativos mínimos de autoria e materialidade, justificadores à propositura da ação penal; a busca dessa suposta verdade, está vinculada ao processo de realização do seu conhecimento, portanto, o que inicialmente deve-se indagar é se o inquérito policial produz ou descobre o conhecimento?

Sob a ótica subjetivista cognitiva, a verdade está no sujeito que investiga. Assim, este projeta a verdade sobre o objeto; o sujeito afirma o que de antemão já sabe, bem como o resultado que pretende chegar, desvinculado de qualquer afirmação racional (sentidos, sensações, impressões, representações, conceitos, juízos ou proposições, argumentos); o investigador produz seu conhecimento como se contemplasse uma verdade já concebida, quase que divina ou esotérica.

Os reflexos dessa postura de conhecimento durante a investigação policial, quase que na totalidade das vezes, se traduz numa investigação grosseira e infundada, que expressa nítido caráter preconceituoso, de perseguições pelas mais diversas razões; essa postura, ainda que adotada por convicções morais, entretanto, quando não seja, possibilita entre outros vícios, a mercancia da atividade policial a interesses particulares,

Page 124: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

113

em outras palavras, pode inclusive transformar a investigação em instrumento de aluguel.

Se, por outro lado, no processamento do conhecimento através do IP, for adotada uma postura objetiva cognitiva, inversa à posição anterior, e a verdade não estiver no sujeito que investiga, mas sim no objeto investigado, deverá se admitir que o investigador conduza seu trabalho no sentido de descobrir essa verdade não revelada, portanto, se tornará apenas captador do conhecimento existente nos fatos.

Admitida essa segunda postura investigativa, considerada mais científica228, por trabalhar no campo empírico, conseqüentemente, quando não se chega à verdade é porque não se usou dos meios e modos necessários à exploração do objeto, ou seja, faltou técnica ou tecnologia à descoberta pretendida, ou mesmo, não se colheu com eficiência de meios uma satisfativa prova ou confissão.

Porém, por qualquer dos dois caminhos indicados, se adotará uma postura ontológico-metafísica, própria da antiguidade e medievalidade, quando se supunha a verdade ser fruto de conhecimento inerente ao investigador, ou que estaria inserida no objeto pesquisado.

Para romper esse paradigma pré-moderno, o investigador teria que buscar o conhecimento (não a verdade por total impossibilidade), através de um proceder intersubjetivo, ou seja, através da admissão que o conhecimento não estaria nem na coisa ou nele, mas nas inúmeras possibilidades que podem surgir quando se dá uma relação entre sujeitos e outras variantes contextuais.

Devido à sua formatação, o IP impossibilita essa relação intersubjetiva, isso porque, na qualidade de objeto de verificação, o sujeito investigado não tem condições de se relacionar plenamente com seu investigador, uma vez que no conhecimento discricionário o que impera é o monologismos.

Nas relações práticas do poder, esse se manifesta por diversas vezes através de “condições de exercício em micro-relações”, onde as produções de poder se manifestam

228 “Sem dúvida, por mais que a física moderna, unificando com eficiência o rigor da forma matemática com a abundância de dados empiricamente domesticados, tenha sido o ideal de um saber claro e distinto, a ciência moderna não coincidiu com o conhecimento enquanto tal.” (...) “’Cientificismo’ significa a fé da ciência nela mesma, a saber, a convicção de que não mais podemos entender ciência como uma forma possível de conhecimento, mas que este deva identificar-se com aquela.” HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse, Rio de Janeiro, Guanabara, P 25 e 27

Page 125: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

114

sobre outros domínios, assim, nas relações cotidianas, essas afirmações se concretizam através dos interesses diferentes que se apresentam e tentam se impor sobre os demais.

Organizando-se de maneira hierárquica, “mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado”, o poder se expressa através de mecanismos que possibilitam sua estrutura e reprodução, através de práticas discriminatórias, ideológicas e mesmo normativas ou legais, cujo objetivo grosso modo, seria a dominação de um indivíduo sobre o outro, através de um discurso de normalidade, que passa a ser aceito pelo dominado, adestrado a não resistência, por conformação de uma situação regulada por uma verdade “natural”.

A contribuição de FOUCAULT229 é importante, para se entender essa subordinação que se impões sobre o investigado, que impassível diante de seu inquisidor, se submete como se conformado por uma naturalidade absoluta e inconteste, independentemente de uma submissão de ordem legal, afinal, estar em sede policial na condição de investigado, já coloca o individuo numa condição de inferioridade, posto ser a AP, em razão de um discurso dominador construído, detentora de um poder a que se deva submeter.

Também DA MATTA230, caminha pela questão da subordinação hierárquica, como algo que flui de óbvia naturalidade estabelecida; ao ser posicionado na condição de objeto de investigação, a pessoa bem “sabe o seu lugar”; seu interlocutor goza de credibilidade tradicional e institucional; confrontar argumentativamente um joão-ninguém é uma coisa, outra muito diferente, é falar com o homem da lei.

Não há dúvidas em afirmar, que a qualquer ato de insurgência, diante da ameaça de sua autoridade, quando confrontada, a AP certamente indagará: “Sabe com quem está falando?” deixando de maneira bastante clara sua intenção de “impor de forma cabal e definitiva seu poder”.

Entrelaçam-se os dois autores nessa formação de “consciência de posição social”, tão importante quanto a própria condição funcional que ocupa o investigante para atender seus objetivos, que em ultima ratio, não obtendo o desejado respeito, poderá usar da lei penal para incriminá-lo por desobediência ou desacato.

229 Idem, FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. p. 248 230 DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis, para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª ed., Rio de Janeiro, Rocco, 1997. p.187-188

Page 126: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

115

Assim, por absoluta impropriedade do meio, o modo de investigar no IP, não autoriza buscar uma relação que envolva as pessoas do investigante e do investigado, mantendo-se ancorado em práticas inquisitivas costumeiras; é comum nesses casos, a quebra de valores éticos ou princípios morais, quando o investigador busca realizar a descoberta pretendida, valendo-se de conceitos ultrapassados pela modernidade. Portanto, em sede de inquérito policial, não só a discricionariedade, mas também o emprego da violência física ou mental, e outras violações a Direito Fundamental, são usados para justificar a forma de apreensão do conhecimento. O problema dessas posturas é que além de afrontarem o Estado Democrático de Direito, não comportam falhas, isso porque, não descoberta a verdade no objeto, ou a verdade deixa de existir ou o próprio objeto poderá ser inutilizado231.

Levando-se em conta, todos os argumentos até agora apresentados quanto a facticidade, por vezes, demonstrada de maneira exaustiva, deve-se seguir adiante com o trabalho, desta feita, enfrentando o maior de seus obstáculos, qual seja, a desnaturação jurídica do IP. É o que segue.

11.5 MAIS QUE UM MERO PROCEDIMENTO Conforme apontado, uma alternativa à busca do conhecimento poderia se dar

numa perspectiva intersubjetiva, onde o conhecimento não é uma propriedade dos sujeitos ou das coisas, é contextual. Mudado o contexto, o conhecimento também é modificado; em consequência, qualquer limitação subjetiva ou objetiva não leva em conta a possibilidade de alteração do fenômeno232.

Assim, construir o conhecimento no inquérito policial seria mais eficiente e atenderia aos valores democráticos, se adotada uma postura decorrente de uma relação 231 “RIO - Cinco policiais da 10ª DP (Botafogo) são investigados pela Corregedoria Interna da Polícia Civil (Coinpol) por um suposto crime de tortura. O crime teria acontecido dentro da delegacia, na semana passada. Segundo a Polícia Civil, os agentes teriam usado um alicate para ferir os órgãos sexuais do funcionário de um ferro-velho na Região dos Lagos. A vítima ainda teria sido obrigada a ficar sem roupa. Eles tentavam pressionar o funcionário a identificar dois homens como fornecedores de peças de carros roubados. Segundo o corregedor Gilson Emiliano, a vítima foi levada a exame de corpo de delito, que confirmou os ferimentos. Já no exame feito no alicate encontrado na delegacia,foram detectados vestígios de tecido humano no instrumento...” http://oglobo.globo.com/rio/mat/2011/03/31/corregedoria-investiga-cinco-policiais-acusados-de-tortura-dentro-de-delegacia-924132604.asp (acessado em 31/03/2011) 232 Entendido este como phai (manifestação) + noumenon (coisa) = fenômeno

Page 127: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

116

entre pessoas, investigante e investigado; se conheceria estabelecendo uma relação com o outro, ou na melhor forma jurídica, pelo diálogo formal balizado através do contraditório233.

Em suma, quando o conhecimento é produzido através da relação dialógica eu�tu, se torna muito mais eficiente que o alcançado por uma descoberta, subjetiva ou objetiva.

O contraditório e a ampla defesa, empregados ainda em sede policial, dentro do inquérito policial, tornariam a investigação no mínimo mais profícua quanto as suas pretensões, se adotados os princípios democráticos enunciados no texto constitucional, isso sem contar no significativo avanço da sociedade no rumo da liberdade e democracia.

Em contra-argumentação defensiva do atual modelo, recorde-se, como anteriormente já dito, que tudo que foi produzido durante a investigação estará sujeito a confirmação durante a instrução penal, isso porque, qualquer que seja o rito previsto, haverá necessariamente uma fase instrutória perante o julgador (art. 399, § 2º do CPP234). Em face disso, o desejado diálogo democrático e linear, se faria presente em momento mais apropriado, visando evitar tumultos na fase investigativa.

Entretanto, essas afirmações se contradizem com a realidade, isso porque, o próprio legislador infraconstitucional se encarregou de piorar o que já era ruim, ao criar, com a alteração do art. 155 do CPP, em junho de 2008235, a possibilidade expressa de aceite dos elementos colhidos em sede policial como verdadeiras provas para a decisão judicial, contrariando os próprios postulados justificadores do IP, que se afirmavam nas convicções que em sede policial não se produzem provas, apenas “indícios”. 233 “No método inquisitório a pesquisa dos fatos é conduzida unilateralmente, com o propósito de confirmar, a todo preço e custo, uma hipótese de verdade previamente estabelecida pelo inquisidor, o que traz em si grave vício epistemológico. Ao contrário, o sistema formado pelo contraditório, permite a cada uma das partes apresentar provas contrárias para trazer elementos de confronto em relação às provas do adversário, enriquece o material probatório à disposição do juiz, aumentando a base cognitiva para o estabelecimento da verdade sobre os fatos” MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis (Coordenação). As reformas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos de reforma, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008 p. 251 234 Art. 399. Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008). ... § 2o O juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008). 235 Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008) – Código de Processo Penal

Page 128: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

117

Conforme a alteração enunciada na nova redação, o juiz não decidirá exclusivamente com base na investigação; a contrário sensu, o juiz pode formar sua convicção com base inclusive nos elementos colhidos na investigação. Portanto, o inquérito policial que já influencia no momento da propositura da ação, quando dá justa causa ao seu titular, passa a ter significativa importância no momento da decisão judicial.

Pondere-se ainda mais, se cotejado o art. 155 do CPP com outro dogma jurídico, o “princípio da correlação ou congruência”236, que estabelece que a sentença deverá estar vinculada a acusação, entendida a última como imputação (fato atribuído ao réu) + pedido formulado.

Ora, onde foi encontrada a imputação? Certamente, em quase totalidade das vezes no inquérito, realizado fora dos parâmetros balizados pela Constituição, tudo porque, insiste-se que sua natureza jurídica está firmada como “procedimento administrativo”237. A propósito, na antiga previsão238 do citado art. 155 do CPP, a fundamentação do juiz se dava pela apreciação da prova, que só existe conforme a doutrina e a jurisprudência, se produzida diante do contraditório, salvo as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas (contraditório diferido)239.

236 “O princípio da correlação entre acusação e sentença, também chamado de da congruência com a imputação, ou ainda, da correspondência entre o objeto da ação e o objeto da sentença, liga-se ao princípio da inércia da jurisdição e, no processo penal, constitui efetiva garantia do réu, dando-lhe certeza de que não poderá ser condenado sem que tenha tido oportunidade de se defender da acusação.” GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance e GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2006 p. 248 237 “O inquérito policial traz elementos que não apenas informam, mas de fato instruem, convencem, tais como as declarações de vítimas, os depoimentos das testemunhas, as declarações dos acusados, a acareação, o reconhecimento, o conteúdo de determinados documentos juntados aos autos, as perícias em geral (exames, vistorias e avaliações), a identificação dactiloscópica, o estudo da vida pregressa, a reconstituição do crime. Assim, não é senão em conseqüência do inquérito que se conserva alguém preso em flagrante: que a prisão preventiva será decretada, em qualquer fase dele, mediante representação da autoridade policial, quando houver prova da existência de crime e indícios suficientes da autoria, e como garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal; que à autoridade cumpre averiguar a vida pregressa do indiciado, resultando dessa providência, como é sabido, sensíveis repercussões na graduação da pena". SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo, ERT, 2004. p. 161 238 Art. 157. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova. - Código de Processo Penal 239 “De fato, só podem ser considerados provas, no sentido jurídico-processual, os dados de conhecimento introduzidos no processo na presença do juiz e com a participação das partes, em contraditório” Idem, MOURA, Maria Thereza Rocha de Assi. p. 250

Page 129: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

118

Reconhecida a tese que o inquérito é muito mais que um mero procedimento240, deve-se admitir da necessidade não só do contraditório nessa fase da investigação, mas também de todos os Direitos e Garantias Fundamentais, isso plenamente justificável por força da idéia de democracia como componente da própria sociedade.

Outro exemplo de garantia fundamental que se poderia apresentar é o que se refere ao princípio da inadmissibilidade da prova ilícita/ilegítima, contida na Carta Magna no mesmo artigo 5º, desta feita no inciso LVI241, e também positivado no art. 157 do CPP242. Diante desse postulado, todos os indícios (provas) colhidos em sede policial estariam eivados de inadmissibilidade, considerando que, no momento da sua colheita, foram contrariadas normas constitucionais processuais.

Observe-se finalmente, que por falta de previsão legal, quanto ao momento, em sede de IP, também não se aplica o § 3º do art. 159 do CPP243, isso porque o artigo contempla exclusivamente à fase judicial.

11.6 ESTRATÉGIA DE LEGITIMAÇÃO Todas as questões até agora suscitadas, levam a uma reflexão quanto à

legitimidade do inquérito policial, enquanto instrumento de viabilização dos direitos humanos, da justiça social e da cidadania, no horizonte do Estado Democrático de Direito.

Rezam os princípios do Estado Democrático de Direito, constantes no ordenamento jurídico pátrio, especialmente em âmbito constitucional, que elementos como dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade perante a lei, ampla defesa, contraditório, cidadania, combate a todas as formas de discriminação, pluralismo político, justiça social, erradicação da pobreza, solidariedade, dentre outros, devem ser 240 “A ficção legal implica dizer que os procedimentos iniciais de um procedimento judicial dele não se constituem, necessariamente, parte definitiva e substancial, porque não há processo”. Idem KANT, Roberto e MISSE, Michel. p. 43 Justifica-se na dogmática jurídica tratar-se de procedimento administrativo, porque no momento da investigação, formalmente, não há acusação. 241 “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. - Constituição Federal 1988 242 Art. 157 - São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.- Código de Processo Penal 243 § 3o Serão facultadas ao Ministério Público, ao assistente de acusação, ao ofendido, ao querelante e ao acusado a formulação de quesitos e indicação de assistente técnico. - Código de Processo Penal

Page 130: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

119

buscados e realizados pelo Estado brasileiro, que se apresenta como uma República Federativa e Democrática.

Respondendo a indagação inicial, sobre até que ponto o inquérito policial se confronta com os fundamentos do Estado Democrático de Direito, conclui-se pela impossibilidade de convivência do instrumento na sociedade brasileira com sua configuração atual; acrescente-se, fora de uma perspectiva processual democrática não há como se vislumbrar um instrumento investigatório legítimo, ainda que respaldado numa pseudolegalidade.

Portanto, a priori, há que se romper com ultrapassados dogmas e se admitir que o inquérito policial seja parte integrante da ação penal. Logo, nessa fase da persecução devem ser asseguradas todas as garantias cidadãs, para que a investigação seja mais um instrumento de realização da democracia e da justiça social.

Entretanto, a questão mais difícil de ser enfrentada não repousa nas simples modificações normativas-processuais-procedimentais, mas no que importa em repensar o inquérito policial de maneira que não sirva de instrumento de manutenção de um status quo, interessante para o benefício privado de alguns membros da sociedade.

De nítido interesse na sua manutenção pelas elites dominantes do país, o inquérito policial é ofertado com outro discurso, como instrumento hábil de “combate ao crime”, ainda que vários estudos mais sérios apontem que os resultados obtidos com esse instrumento estejam bem aquém de qualquer valor no mínimo aceitável ao que se propõe.

Disserta HAMEL244, “Buscar o bem-estar dos cidadãos e a perspectiva de um futuro melhor implica qualificar o regime democrático e aumentar a participação popular na gestão pública pelo envolvimento da sociedade civil nas deliberações das políticas públicas necessárias ao bem viver”.

Entretanto, o Estado não tem conseguido oferecer alternativas sem que fira o controle e dominação social que o inquérito representa; o poder se posiciona sob uma ótica de produção de uma verdade de forma objetiva, qual seja, quem o detém sabe onde, como e quando encontrar quem pretende perseguir.

Não surtem efeitos meras indignações ou comportamentos isolados; ainda quando o investigador, representante desse poder político, duvida de suas teses, este não 244 Hamel, Márcio Renan. Idem p. 58

Page 131: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

120

vai além de adotar uma posição crítica limitada, quando admite que a verdade não esteja consigo, mas no objeto apreciado, e esse é explorado conforme práticas que sempre deram resultado na história para os fins que se propõem245, verdadeiro axioma.

Nas “sociedades complexas”246 cada sistema se manifesta através de linguagem própria no “mundo da vida”247 (Lebenswelt); assim, a linguagem técnica de cada sistema e seus saberes, dependendo do grau de influência que tem, exerce maior ou menor grau de expressão e dominação.

Ainda que o direito tenha deixado de ser considerado, de maneira absoluta, como algo que se posicione acima da própria sociedade, mesmo assim, não foi desnaturado como sistema, portanto, permanece produtor e realizador de seu próprio saber, desatrelado da realidade comum a todos. Despossuído de elementos legitimadores, que justifiquem ocupar uma posição central entre os demais sistemas, o direito não é mais que um entre outros, o que torna seu discurso jurídico quase que 245 “Como se verifica ao longo dos momentos políticos da história brasileira, sempre se vivenciou uma forma monopolista do poder, de maneira que as elites passam a comandar de cima para baixo, não restando muitas oportunidades de abertura política às classes sociais subalternas” Idem. HAMEL, Márcio Renan p. 61 246 Para Weber, a sociedade moderna seria um mundo melhor para todos, através de uma racionalidade meio-fim, entretanto, para essa proposta seria necessário a organização da sociedade, através do planejamento e da instituição de uma burocracia, assim, através de sistemas se chegaria a construção de uma integralidade. Entretanto, esses sistemas se expandem e ganham autonomia e especificidade, de tal maneira que se afastam cada um do objetivo da solidariedade, quando o autor acaba por dizer que o homem tornou-se prisioneiro desse modelo, ao que chama de “jaula de ferro”, em oposição a idéia de emancipação. Para Weber, nessa sociedade complexa, o Direito como sistema que tem autonomia, exerce um papel meramente de legalidade, ou seja, sua legitimidade estaria na sua funcionalidade, independente da realização do ideal de justiça. O conceito de “mundo da vida”, cunhado por Edmund Husserl, é utilizado por Weber sob a análise que dele brotaram diferentes sistemas, que aos poucos foram se sofisticando e adquirindo de maneira própria linguagem, lógica, finalidade etc. Assim, esses sistemas estariam em constante luta na busca da hegemonia do “mundo da vida”, como também, além das lutas entre si, os sistemas buscariam “colonizar” o “mundo da vida” com suas linguagens, lógicas, finalidades etc. (Aula ministrada pelo Prof. Dr. Gilvan Luiz Hansen no Programa de Pós-graduação em Direito e Sociolodia, da universidade Federal Fluminense – PPGSD-UF, em setembro de 2010) 247 “Os componentes do mundo da vida – a cultura, a sociedade e as estruturas de personalidade – formam conjuntos de sentido complexos e comunicantes, embora estejam incorporados em substratos diferentes. O saber cultural está encarnado em formas simbólicas – em objetos de uso e tecnologias, em palavras e teorias, em livros e documentos, bem como em ações. A sociedade encarna-se nas ordens institucionais, nas normas do direito ou nas entraçaduras de práticas e costumes regulados normativamente. As estruturas da personalidade, finalmente, estão encarnadas literalmente no substrato dos organismos humanos. Os elementos encarnados dessa maneira passam a ser conteúdos semânticos, que também podem ser dissolvidos e postos em circulação como moeda corrente da linguagem moral. No mercado da prática comunicativa cotidiana, todo o sentido conflui para o mesmo ponto. Não obstante os diferentes componentes do mundo da vida formam grandezas distintas; isso se depreende ontologicamente dos aspectos espaciais e temporais de suas encarnações.” HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos, Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 1990, p. 98

Page 132: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

121

exclusivo, próprio de seus operadores e estudiosos, porém, mesmo quando esmera nas construções de sua lógica internas, permanece distante da compreensão dos demais atores sociais248.

Valendo-se de linguagem, complexa e rebuscada, grafada em regras particulares, por vezes duvidosas, onde os paroxítonos se transformam em oxítonos, da mesma forma que, o iludir, ora é considerado um comportamento nefasto, porém, poderá ser transmutado e compreendido como valorosa habilidade no trato dos negócios empresariais, o direito dita seus postulados, conforme a conveniência do próprio sistema, entretanto, esses labirintos jurídicos o tornam carecedor não só de compreensão249, mas também de aceitação pacífica, consequentemente, alijado de legitimidade.

Afastado de compreensão, por nunca ter sido discutido pela sociedade, a partir de bases efetivamente democráticas, bem como, considerando, ser fruto de uma linguagem privada, o inquérito policial tem sua legitimidade cunhada sob as bases da legalidade, portanto, sua justificativa se esgota na sua positivação legal; ou seja, impõe-se como um instrumento regulador da sociedade, sem que, contudo, essa mesma sociedade, saiba sequer suas razões e fundamentos, porém, que deve ser aceito como totem de um saber especialista, mas que na verdade, não passa de mais um dogma do

248 “As pesquisas realizadas no campo da sociologia do direito também tiram proveito do novo paradigma. O sistema jurídico – ou as estruturas que subjazem nele – reconquistaram uma parte de sua autonomia que, por assim dizer, fora perdida na crítica ideológica. O direito deixa de ser considerado um epifenômeno, reconquistando um sentido próprio. Entretanto, numa sociedade descentrada em sua totalidade, ele consegue apenas uma posição periférica, formando um sistema ou um discurso em meio a uma variedade subordinada de sistemas e de discursos. Os respectivos fenômenos, ou seja, as comunicações estruturadas ou orientadas juridicamente, são descritos numa linguagem que passa ao largo da autocompreensão dos atores, sem preocupar nem encontrar um engate no saber intuitivo dos participantes. Sob os olhares artificialmente alienados do observador do sistema, que se interpreta a si mesmo como um mundo circundante, ou do etnólogo, que observa práticas e jogos de linguagem autóctones assumindo a atitude de um estranho não-iniciado, qualquer contexto vital social se cristaliza na forma de uma segunda natureza, inacessível hermeneuticamente, sobre a qual se coleciona o saber ‘contra-in-tuitivo’(sic) das ciências naturais” Idem HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade p. 71/72 249 “Então o sistema jurídico, enquanto círculo recursivamente fechado de comunicação, delimita-se autoreferencialmente em relação a seus mundos circundantes, de tal modo que passa a desenvolver as suas relações com o exterior apenas através de observações. Em compensação, ele descreve seus próprios componentes em categorias jurídicas e aplica essa autotematização para construir e reproduzir com meios próprios os atos jurídicos.” Idem HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade p. 73

Page 133: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

122

direito, tal como um dia já foi todo o conhecimento sobre astronomia do Padre Grassi250.

Portanto, o inquérito policial, integrante e fruto do sistema jurídico, justifica-se na sua própria existência, da mesma forma que retroalimenta seus mecanismos justificadores; assim, apresentado na forma de sua observação, não de sua compreensão, é respaldado por ser componente de um discurso, produzido internamente pelos integrantes do “mundo jurídico”, que por sua vez, seus idealizadores, se legitimam através de seu produto final; tudo isso, mais parece a eterna dúvida que atormenta o animal: não se sabe, se o rabo persegue o cachorro, ou se é o cachorro que persegue o rabo, nessa corrida circurreferencial.

O Estado brasileiro, historicamente governado pelas elites, utiliza-se do discurso sistêmico do direito como forma de dominação. Desde a investigação, passando pelo processamento da ação e encerrando-se com a decisão judicial, o ius puniende encontra-se sacramentado nas leis penais e processuais, através de seus códigos e legislações especiais, elaborados conforme um querer privado.

É fato que o direito penal de um Estado é instrumento de controle e dominação de determinada classe sobre outras, e sempre foi251. Como uma de suas ferramentas, o inquérito policial, escamoteando os reais objetivos de sua concepção, quais sejam, de controle e manutenção do status quo, é justificado em parte pelo discurso sistêmico de melhor viabilização técnica diante da realidade nacional.

O modelo investigativo questionado mantém-se, portanto, estável na forma e cumprimento de seu papel, ignorando haver outros modos ou possibilidades de apuração quando da ocorrência de um ilícito penal.

Partindo da falsa premissa que a lei vigente foi elaborada conforme a melhor técnica e qualificação, bem como, que representa a vontade geral da sociedade, o discurso legitimador se traveste de verdadeiro e forja o inquérito como única e possível

250 O Padre Grassi ofereceu denúncia contra Galileu junto ao Santo Ofício, após a publicação de Saggiatore, em 1623, por “heresia contra a eucaristia”. Mais tarde restou demonstrado que Galileu estava errado nessa obra, nos seus fundamentos sobre cometas, mas também, nunca se consegui determinar o que é heresia fora do campo da credulidade. 251 “Na época dos barões que assaltavam nas estradas, havia na Europa tantos militares como há em nossa época. Atribuir à polícia a extinção dos assaltantes de estradas é inverter a ordem lógica das coisas. A existência e a organização da polícia devem-se exclusivamente ao fato de que a desordem e a agressão eram incompatíveis com a existência e o êxito dos negócios” ANGELL, Norman. A Grande ilusão. Tradução Sérgio Bath. Publicação original em 1910. São Paulo, Editora universidade de Brasília, 2002. p. 58

Page 134: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

123

via de apuração das infrações penais. Deste modo, se e quando os resultados não são os desejáveis, ou mesmo o instrumento apuratório ameaça a própria sociedade, a fala oficial é que o problema não está na lei que o criou e o mantém vivo, mas na falta de pessoal para conduzi-lo, na corrupção, na falta de investimento material, nos exagerados direitos humanos, etc.

Ora, se a lei representa o que há de melhor e possível de ser realizado, legitimada pelo seu valor técnico-propositivo do sistema direito, corroborado por factóides emocionais e justificações extralegais, o que se alcança da opinião pública é a adesão quase que inconteste à tese de que não há alternativas ao modelo existente. Todavia, se a qualidade do produto final, a “paz social”, não satisfaz as grandes massas, o discurso governante, auxiliado pela mídia, se encarregam de apresentar os vilões252 que desvirtuam o ideal de investigação.

Outrossim, não havendo canais que capilarizem o encaminhamento de alternativas ao modelo estabelecido, até porque uma das nuances do discurso oficial é a falta de qualificação das massas em engendrar discurso capaz de entender e transitar pelos os labirintos e saberes próprios do direito, o inquérito policial se torna a única opção possível, forjando uma legitimação pretendida253.

Assim, estrategicamente, fecha-se o ciclo legitimador do inquérito policial, não se discute, portanto, sua facticidade (manifestação) e validade (legitimação).

252 “O verdadeiro inimigo do direito penal é o Estado de polícia, que, por sua essência, não pode deixar de buscar o absolutismo. Neste embate de pulsões e contrapulsões não é possível ceder terreno algum, e menos ainda imaginar com ingenuidade que o inimigo se conformará com um hipotético espaço compartimentado, porque este não existe, dado que os limites são porosos, alternam-se de forma permanente e não são controláveis. Além do mais, toda debilidade é uma concessão no curso de uma pugna circular. Idem, ZAFFARONI, Eugenio Raúl p. 175 253 “A única coisa que nos permite aceitar uma teoria errônea é a falta de uma teoria melhor; de forma análoga, uma injustiça é tolerável somente quando é necessária para evitar uma injustiça ainda maior. Sendo virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a justiça são indisponíveis.” RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Tradução Almiro Piseta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo, Martins Fontes, 1997. p. 4

Page 135: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

124

CONCLUSÃO: O INQUÉRITO POLICIAL NA PERSPECTIVA DISCURSIVA Em contínua repetição de um fazer consagrado, o inquérito policial é a própria

reafirmação de seus conceitos, entretanto, superados diante de uma nova ordem democrática; suas manifestações, legitimadas exclusivamente através das leis que o consagram, representam uma concepção prática e utilitarista do direito254, que se assenta numa captação singular dos fenômenos sociais, que se propõe a traduzir, organizar e finalmente estabelecer o lugar de cada coisa no mundo da vida, conforme sua natureza, valor e utilidade, desprezando, porém, não só os valores democráticos presentes na atual sociedade brasileira, mas também, o viés de qualidade de seu produto final em detrimento de sua quantificação255, posto estar desatrelado dos anseios gerais.

A construção do direto, apesar de valer-se de um discurso cientificista, onde tudo pode ser explicado conforme saberes consagrados, está longe de qualquer neutralidade, muito pelo contrário, tem um propósito, visa garantir a permanência do modelo social que lhe convém, porém, é desse direito subjetivo, particular, concebido conforme valores parciais, que surge a tensão entre os acontecimentos e sua legitimação na sociedade, déficit impossível de ser superado através do inquérito, que não se apresenta como causa, mas consequência. Assim, mesmo quando aqueles que o presidem agem de boa-fé, acreditando cumprir relevante papel de interesse para todo o corpo social, através de um instrumento, que em tese, seria viabilizador de paz, segurança e justiça, estão, contudo, com a visão comprometida por engendradas

254 “Não me disporei a dizer que todas essas coisas ditas por Jhering sobre o método da ciência jurídica são exatas e convincentes. Mas certamente são indicativas de uma certa mentalidade, da mentalidade do jurista teórico, que constrói um belo sistema, preocupando-se mais com a lógica e com a estética do que com as conseqüências práticas de suas construções. É a mentalidade que geralmente tem sido atribuída ao jurista partidário do positivismo. BOBBIO, Norberto. O positivismo Jurídico, lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Morra, tradução e notas Márcio Plugiesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo, Ícone, 1995. p. 126 255 Em comento a primeira fase do pensamento de Ihering “A operação mais importante à qual se deve dedicar o jurista, além daquela da aplicação do direito, é, segundo Jhering(sic), a simplificação dos materiais jurídicos. Ele distingue uma simplificação quantitativa e uma qualitativa. Eis como define a primeira: ‘A simplificação quantitativa tende a diminuir a massa dos materiais, sem por isso trazer prejuízo aos resultados que se deseja atingir. Fazer o máximo possível com o menor número de elementos possível, esta é sua lei: quanto mais restrito for o material, mais fácil será manuseá-lo’. Como se vê, uma das tarefas principais da ciência jurídica coinscidia perfeitamente com uma das tarefas principais da codificação.” Assim, em três momentos, Bobbio resumiu a operação de Ihering “simplificação quantitativa”: “A análise jurídica (...), A concentração lógica (...) O ordenamento sistemático.” Idem,BOBBIO, Norberto. p. 124/125

Page 136: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

125

articulações do poder, que os impede de enxergar serem peças de uma engrenagem muito maior, concebida para manutenção do establishment256.

Os comandos normativos, advindos das leis, tal como, e mesmo a própria expressão constitucional dos direitos fundamentais, não podem estar subsumidos a uma lógica formal positivista, construída a partir de asséptico contato do produtor da norma com a realidade social, realizado através de observações singulares dos acontecimentos descritos, que desprezem seus principais destinatários, para posterior prescrição mandamental.

Observar os fenômenos sociais e formular sobre eles, distanciando-se da realidade que impregna o ambiente, descredenciam a norma; se por um lado, tal proceder, não torna o observador isento de valores no primeiro momento, também não lhe confere caráter de neutralidade, quando da sua formulação; ambas as situações, estão dissociadas do aval dos seus supostos afetados, isso porque, trata-se de visão privada, produzida a partir de pressupostos não discursivos racionais257.

Não mais se encaixa no Estado Democrático de Direito, a adoção de fórmulas concebidas sem a participação efetiva de seus concernidos258, desde seus momentos iniciais; afirme-se, somente estes possuem o condão de dar o caráter de validade a factualidade das normas, portanto, como destinatários dos comandos proibitivos e permissivos, estes devem participar nas suas elaborações.

Fora da contextualização dialógico-simétrica, as relações acontecem de maneira hierarquizada, se dão através de uma concepção de verdade exclusiva pertencente a um dos envolvidos, logo, o detentor da verdade, e em nome dela, passa a dispor do outro,

256 “As palavras establishment e etablished são utilizadas, em inglês, para designarem grupos e indivíduos que ocupam posições de prestígio e poder. Um establishment é um grupo que se autopercebe e que é reconhecido como uma ‘boa sociedade’ mais poderosa e melhor, uma identidade social construída a partir de uma combinação singular de tradição, autoridade e influência: os etablished fundam o seu poder no fato de serem um modelo moral para os outros.” NEIBURG, Frederico. Apresentação à edição brasileira - A sociologia dar relações de poder de Norbert Elias. Em ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L.. Os Estabelecidos e os Outsiders - Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000. p. 7 257 “E ‘discurso racional’ é toda a tentativa de entendimento sobre pretensões de validade problemáticas, na medida em que ele se realiza sob condições da comunicação que permitem o movimento livre de temas e contribuições, informações e argumentos no interior de um espaço público constituído através de obrigações ilocucionárias. Indiretamente a expressão refere-se também a negociações, na medida em que estas são reguladas através de procedimentos fundamentados discursivamente.” Idem HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. p. 142 258 “Para mim, ‘atingido’ é todo aquele cujos interesses serão afetados pelas prováveis conseqüências provocadas pela regulamentação de uma prática geral através de normas” Idem, HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. p. 142

Page 137: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

126

de maneira que sobre este, incidam as regras que venha a formular. Ao outro, resta, por sua vez, carente de capacidade formuladora, devido a sua condição de inferioridade, já que a verdade se assenta num nível que lhe é superior, submeter-se às normas que lhe sejam impostas, tal como contemplasse o produto de uma fonte divina.259

Portanto, no trato da produção da norma comum a todos, o paradigma a ser rompido é a maneira verticalizada como se apresenta a relação produtor/receptor da lei, ou seja, “somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de normatização discursiva”.260 Ao se romper com essa relação, firmada em patamares hierárquicos, que objetivizam as pessoas, realiza-se o ideal de simetria dos interesses, ou seja, o eu e ele são substituídos pelo nós, oportunidade que passam a ser contemplados, mutuamente, os interesses objetivos e subjetivos, e como no caso do inquérito policial, os desejos públicos e privados.

Os objetos são coisas, e como tal, desprovidos de direito ou de razão, não se expressam, apenas se manifestam, são fenômenos (phai + noumenon), sobre os quais recaem direitos, utilidades e disponibilidades; portanto, as relações humanas, só se concretizam entre pessoas, ainda que por vezes se queira atribuir aos objetos tal capacidade participativa. Assim, não há relação jurídica entre o indivíduo e o objeto, mas sim, relações de propriedades entre indivíduos, em face dos objetos.261 Admitir o

259 “O cativo que sobe à região superior e a contempla é a alma que se eleva ao mundo inteligível. Ou, antes, já que o queres saber, é este, pelo menos, o meu modo de pensar, que só Deus sabe se é verdadeiro. Quanto à mim, a coisa é como passo a dizer-te. Nos extremos limites do mundo inteligível está a idéia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos.” PLATÃO. A República. 6° ed. Ed. Atena, 1956, p. 287-291, disponível em http://filosofiaexpress.files.wordpress.com/2009/05/platao-o-mito-da-caverna1.pdf. Acesso em 19/05/2011 260 Idem HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. p. 145 261 “Sob a influência da antiga jurisprudência romana costuma distinguir-se entre o direito sobre uma coisa (jus in rem) e o direito em face de uma pessoa (jus in personam). Esta distinção induz em erro. Também o direito sobre uma coisa é um direito em face de pessoa. Quando, para manter a distinção entre direito real e direito pessoal, se define aquele como o direito de um indivíduo dispor por qualquer forma de uma coisa determinada, perde-se de vista que aquele direito apenas consiste em que os outros indivíduos são juridicamente obrigados a suportar esta disposição, quer dizer: a não a impedir ou por qualquer forma dificultar; que, portanto, o jus in REM é também um jus in personam. De primária importância essa relação entre indivíduos, a qual também no caso dos chamados direitos reais consiste no dever de uma determinada conduta em face de um indivíduo determinado. A relação com a coisa é de secundária importância, pois apenas serve para determinar com mais rigor a relação primária. Trata-se da conduta de um indivíduo em relação a uma determinada coisa, conduta que todos os outros indivíduos são obrigados, em face do primeiro a suportar.” (grifo nosso) Idem KELSEN, Hans Teoria Pura do Direito. p. 146/146. De igual modo, “Hoje em dia, não se concebe mais uma relação

Page 138: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

127

contrário é considerar, a possibilidade de se usar, fruir, gozar e dispor do outro262, conforme a necessidade particular263, ou seja, é aceitar na modernidade, uma ontologia que já foi justificadora da superioridade de uns sobre os outros, presente nos discursos legitimadores da escravidão, da supremacia racial, da Santa Inquisição etc.264.

Logo, o diálogo democrático deve ser travado entre a primeira a segunda pessoa do singular, não entre a primeira e a terceira pessoa, isso porque, no eu�tu há relação simétrica dos envolvidos, há um reconhecimento do outro, como pessoa de igual condição humana.

Entretanto, a relação pretendida entre um eu�ele (coisa), impossível de ser realizada fora do enfoque em face de, se realiza na subjugação do ele, que se torna mero objeto, portanto, desprovido de direitos, e sujeito a toda forma de dominação.

Ancorado em formulações disponibilizantes do objeto às pesquisas, o inquérito policial, realiza pretensões de um observador, erigido à condição institucional, que, decorrente, do modo de produção de seu conhecimento, desconsidera a pessoa como ser, mas a utiliza como coisa que deva ser conhecida, conceituada e controlada.

Surge, portanto, a necessidade de se discutir um novo modelo de investigação/inquérito que contemple uma relação eu�tu; que represente o fim da

jurídica entre uma pessoa e uma coisa. Toda relação jurídica existe necessariamente entre pessoas, mas é preciso reconhecer que no direito real existe um vínculo mais direto entre o sujeito ativo e o objeto sobre o qual recai o direito, enquanto no direito pessoal só se pode exigir uma prestação do sujeito passivo. WALD, Arnoldo. Direito das coisas. 11ª ed. rev., aum. e atual. com a colaboração de Álvaro Villaça Azevedo e Véra Fradera. São Paulo, Saraiva, 2002. p. 16. 262 “A classificação dos direitos reais deve ser elaborada segundo critérios da extensão de seus poderes. De forma que a propriedade seria o núcleo do sistema dos direitos reais devido estar caracterizada pelo direito de posse, uso, gozo e disposição. A posse aparece como exteriorização do domínio. Os demais direitos reais formam categorias distintas conforme atinjam o jus disponiendi, utendi ou fruendi. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, Direito das Coisas, V. 4º, 19ª ed. São Paulo, Saraiva, 2004. p. 20 263 “Mais tarde, a interpretação utilitarista de Ihering, segundo a qual o proveito e não a vontade constitui a substância do direito, é introduzida nesta definição: ‘O direito subjetivo é conceitualmente um poder jurídico, conferido ao indivíduo através da ordem jurídica, cujo fim consiste em ser um meio para satisfação de interesses humanos’. A referência ao gozo e ao interesse permitiu a extensão dos direitos privados subjetivos aos direitos em geral.” Idem HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. p. 117/118 264 “A perda da pureza de sangue por si só destrói a felicidade íntima, rebaixa o homem por toda a vida, e as conseqüências físicas e intelectuais permanecem para sempre. (...) em um mundo de mestiços e de negros, estariam para sempre perdidos todos os conceitos humanos do belo e do sublime, todas as idéias de um futuro ideal da humanidade. (...) Por isso, acredito agora que ajo de acordo com as prescrições do Criador Onipotente. Lutando contra o judaísmo, estou realizando a obra de Deus.” 20, 96 e 108 HITLER, Adolf. Minha Luta (Mein Kampf). Disponível em: http://www.4shared.com/get/Wn7TLsUN/_Ebook-Portugues_Adolf_Hitler_.html. Acesso em 26/05/2011

Page 139: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

128

negação dos direitos fundamentais do cidadão; que signifique um avanço no construir democrático e na realização da justiça; que se constitua num instrumento com qualidades, que por um lado atenda a expectativas de funcionalidade e eficiência a seus operadores, e por outro, seja fruto de um consenso entre os elaboradores da norma e seus destinatários.

Ressalte-se, não se tratar aqui da pretensão desmedida, de destruição de todo um modelo jurídico tradicional, com um só golpe; não se pode perder de vista as condições histórico-objetivas desse processo, inclusive, e inicialmente, deve-se admitir que culturalmente o modelo já tenha sido absorvido ao longo da história, embora, tal enraizamento não lhe confira caráter de legitimidade ou perpetuação, até porque, por milhões de anos, o ser humano apostou sua existência numa concepção geocêntrica, destruída, entre outras coisas, por um simples jogo de lentes e um tubo de couro.

Porém, como expressão das liberdades democráticas, a construção dessas transformações deverá se iniciar a partir de um debate público, fazendo com que o devir encontre suas próprias contradições e as supere; no diálogo proposto, se fará despertar uma consciência transformadora, que marcará o próprio início das modificações que se pretende operar, de modo que em si, já representará significativo avanço na construção de um direito, formulado a partir de múltiplas proposições e com amplo espectro de soluções.

A guisa de um diálogo com o leitor, retornamos ao inicio de nossas argumentações, formulando as seguintes questões: como se dará essa discussão? Haverá forma, modelo, valores ou idéias que se devam preservar? As avaliações feitas no presente trabalho estão corretas? Ou teria o direito processual penal, representado no inquérito policial, alcançado seu grau de desenvolvimento final, portanto, atingido o ponto de equilíbrio social desejado, impassível de mudanças, seria o “fim da história”? São perguntas, que pela própria fundamentação discursiva, somente poderão ser respondidas através do debate intersubjetivo, travado por todos os envolvidos nessas questões; porém, ousando um pouco mais, pretendemos não deixar em aberto essa indagações, formulando proposições concretas, entretanto, sem que, contudo, nos afastemos de suas bases principiológicas, através de uma teoria que entendemos como radicalizadora da democracia – no sentido de avanço, progresso e expansão – que se vale de um agir comunicativo entre integrantes de um diálogo cidadão.

Page 140: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

129

Por consequente resultado de nossas pesquisas, integrantes dos saberes sociológicos e jurídicos, entendemos que há déficits significativos de legitimidade na fundamentação do inquérito policial no Brasil, e os contributos das idéias propostas por Jürgen Habermas, formuladas a partir da teoria discursiva da ética, da moral e do direito, podem servir como plataforma à discussão através de uma perspectiva diferente, em termos de fundamentação do direito, consequentemente, num inovado modelo de investigação policial e instrumento que o represente.

Na consecução desse novo modelo investigativo, os discursos devem ser pautados de forma argumentativa racional265, submetendo-se os envolvidos somente a força da razão comunicativa266, o que possibilitará a construção de um novo, fruto do querer consensual267.

Vários são os fatores que influenciam nas interpretações do mundo: questões culturais, sociais, interesses, e outra gama enorme de variações, levam o ser à percepção dos fenômenos através de lentes cognitivas pessoais. Essas leituras individuais ora são coincidentes, ora são divergentes, porém, o que é certo é a improvável certeza de uma só percepção por todos, menos improvável ainda, a todo tempo.

Essa pluralidade de percepções é a causa de resistências às soluções dos problemas, ou mesmo seus reconhecimentos como tais: uns não querem ser submetidos a idéias dos outros, porque não se identificam com análises que consideram estranhas as

265 “Na ação comunicativa os indivíduos chegam aos juízos conversando com os outros participantes, que, por sua vez, serão afetados por aqueles juízos. Essa dinâmica entre participantes torna a ação comunicativa fundamentalmente emancipadora, porque, afirma a necessidade de resolver desacordos por meio de argumentos. Além disso, a ação comunicativa é emancipadora porque expressa o interesse sistemático da razão em buscar as condições materiais que facilitem o seu desenvolvimento mais pleno. A ação comunicativa, escreve Habermas de modo eloqüente, ‘é renovada em cada ato de entendimento irrestrito, em cada momento de convivência em solidariedade, de individuação bem-sucedida e emancipação salvadora. ... A razão comunicativa opera na história como força vingadora’.” BORRADORI, Giovanna. Filosofia em tempo de terror – Diálogos com Habermas e Derrida, Tradução Roberto Muggiati, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003 p. 72 266 A razão comunicativa distingue-se da razão por não estar adstrita a nenhum ator singular nem a macro sujeito sócio-político. O que torna a razão comunicativa possível e o médium lingüístico, através do qual as interações se interligam e as formas de vida se estruturam. (...) A razão comunicativa, ao contrário da figura clássica da razão prática, não é uma fonte de normas do agir. (...) A razão comunicativa possibilita, pois, uma orientação na base de pretensões de validade; no entanto, ela mesma não fornece nenhum tipo de indicação concreta para o desempenho de tarefas práticas, pois não é informativa, nem imediatamente prática. Idem HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade p. 20/21 267 “Uma vez que os sujeitos que agem comunicativamente se dispõem a ligar a coordenação de seus planos de ação a um consentimento apoiado nas tomadas de posição recíprocas em relação a pretensões de validade e no reconhecimento dessas pretensões, somente contam com os argumentos que podem ser aceitos em comum pelos partidos participantes.” Idem HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade p. 156

Page 141: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

130

suas compreensões, ocasionando, em maior ou menor grau de visibilidade, uma luta pela hegemonia de idéias.

Assim, as normas jurídicas devem representar a expressão de todos, não contra todos, mas por todos; da mesma forma, a compreensão de valores morais268 individuais, embora não sirvam como fonte às normas gerais, também não podem se desprezados em nome de outros valores também subjetivos; no campo da democracia argumentativa, não há espaço para preponderância de interesses de uns sobre outros; logo, os valores pessoais, devem ser respeitados mutuamente durante a produção das normas cogente;

Na origem do pensamento discursivo está presente o singular, ou melhor, vários singulares, é através dessa multiplicidade que se dá o reconhecimento comum; num primeiro instante, manifestos pelo indivíduo particularmente, as ações e pensamentos se apresentam, para no momento seguinte se aglutinarem em expectativas, discutidas e ponderadas de maneira racional, o que irá possibilitar a compreensão mútua e o aceite das normas, como resultado de produção consensual, isso porque, na democracia argumentativa, que almeja o ideal de fala, o que está em jogo é a primazia do respeito ao falante, com todas as suas possibilidades de problematizar, introduzir, manifestar suas atitudes, desejos e necessidades na construção do discurso.269

Se pelo lado subjetivo, não há que se conceberem renúncias, como forma de aceitação passiva, de prevalência de uns sobre outros, também na esfera pública, não poderá ocorrer concessões desprovidas de participação geral quando da positivação das normas; portanto, nelas deverão estar contemplados não só os interesses dos governantes, mas também da própria coletividade, a todo tempo, considerando, serem esses últimos, de regra, os principais afetados pelas leis. Assim, o que legitimará o mandamento geral positivado, será a compreensão de que as considerações individuais sobre determinado fato, foram percebidas e consideradas, da mesma maneira que os 268 “Frases ou manifestações morais têm, quando podem ser fundamentadas, um teor cognitivo. Portanto, para termos clareza quanto ao possível teor cognitivo da moral, temos de verificar o que significa ‘fundamentar moralmente’ alguma coisa. Ao mesmo tempo, devemos diferenciar entre, por um lado, o sentido dessa questão quanto à teoria da moral, ou seja, se manifestações morais expressam algum saber e como elas pode ser eventualmente fundamentadas, e, por outro lado, a questão fenomenológica a respeito de qual teor cognitivo os próprios participantes desse conflito vêem em suas manifestações morais. De início, falo em ‘fundamentação moral’ de maneira descritiva, tendo em vista a prática rudimentar de fundamentações que tem lugar nas interações cotidianas do mundo da vivido.” Idem HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – estudos de teoria política. p. 13 269Conforme HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido A. de Almeida. 2ª ed., Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 112

Page 142: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

131

interesses dos governantes. Haverá interação e consenso dos participantes, a partir do comum reconhecimento.

Dentro do campo democrático discursivo, não produzem frutos o pensamento hobbesiano, articulador e garantidor do bem comum, através da expressão de uma única interpretação dos acontecimentos; embora o Leviatã não tenha morrido, esteja apenas adormecido, com o avanço das liberdades democráticas e autonomia do ser humano, suas afirmações totalitárias são levadas pelo vento como fumaça, que não se juntam novamente num só lugar. O direito, expressão do consenso, portanto, mais que um entre os demais sistemas, faz-se legitimo mediador no trânsito de interesses, públicos e privados, funcionando como fiel de suas autonomias.270

Transpondo espaços privados, em perspectiva macrossocial, pode-se dizer, que as lutas sistêmicas pela hegemonia dos discursos nas sociedades complexas, reproduzem o fenômeno individual de tentativa de imposição do discurso privado como leis universais.

As múltiplas compreensões inviabilizam a universalização da interpretação dos fenômenos. Logo, nenhum “ator singular” ou “um macrossujeito sociopolítico” tem condições, a partir de reflexões monológicas, de estabelecer leis universais, elaboradas exclusivamente sob seu ponto de vista, sob pena de não serem reconhecidas pelo outro, carecedoras que são de representatividade coletiva, lhes faltam legitimidade.

Entretanto, deve-se reiterar, voltados os interesses na direção do reconhecimento do outro, como destinatário da norma comum, haverá o reconhecimento das recíprocas percepções dos problemas apresentados, podendo a partir desse momento se dar a transposição dos pontos de vista individuais para resultados comuns, quando serão legitimamente formulados postulados de uma lei universal.

Quando participa do debate, o individuo persegue a compreensão, pretende influir e ser influenciado pelas ideais, deseja entender e ser entendido no processo comunicativo, para que possam alinhavar e consolidar suas pretensões. Todavia, por vezes a linguagem adotada entre os participantes não é compreendida ou aceita porque está contaminada de valores, que se sobrepõem aos fins propostos ou difere da adotada 270 “Os dois aspectos sob os quais analisamos o princípio da moral e da democracia implicam respectivamente duas tarefas, que o procurado sistema de direitos deve solucionar, este não deve apenas institucionalizar uma forma de vontade racional, mas também proporcionar o próprio médium, no qual essa vontade pode se expressar como vontade comum de membros do direito livremente associados.” Idem HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. p. 147

Page 143: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

132

pelos outros integrantes (por exemplo, ideologias, paixões, dogmáticas, interesses privados etc.). Portanto, para que haja fluxo nos dois sentidos do diálogo é necessário que se adotem pressupostos que viabilizem a comunicação.

Os participantes do ato comunicacional devem, a priori, despir-se dessas reservas que contaminam a compreensão e se entregar na busca de seus fins. Nesse sentido, deverão adotar uma postura que se disponha a aceitar argumentos diferentes dos seus e, pela compreensão mútua, consigam estabelecer valores comuns e consensuais em razão dos objetivos pretendidos.

Deve-se, por conseguinte, esperar que os fundamentos de validade do resultado pretendido estejam consagrados nos próprios argumentos utilizados para sua construção, o que determinará não a celebração de um mero acordo, onde seus participantes cedem a argumentos por razões instrumentais ou interesses lógicos-estratégicos, mas será fruto de uma compreensão comum sobre os fins almejados, elaborados de maneira racional-argumentativa; haverá o consenso271.

Também é pressuposto na deliberação do novo modelo, a sinceridade na proposição das idéias, que através da argumentação racional272 deverá substituir os interesses privados, possibilitando aos envolvidos a escolha do melhor modelo a ser adotado. Contudo, para que esse diálogo seja travado é necessária a igualdade das partes na mesa de negociação.

O diálogo simétrico é condição essencial, para que os responsáveis pela elaboração da norma e os possíveis atingidos por ela possam confiar no seu resultado, validando o produto dessa discussão, que em última instância, se expressará na adesão

271 “Qualquer um que se utilize de uma linguagem natural, a fim de entender-se com o destinatário sobre algo no mundo, vê-se forçado a adotar o enfoque performativo e aceitar determinados pressupostos. Entre outras coisas, ele tem que tomar como ponto de partida que os participantes perseguem sem reservas seus fins ilocucionários, ligam seu consenso ao reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis, revelando a disposição de aceitar obrigatoriedades relevantes para as conseqüências da interação e que resultam de um consenso. E o que está embutido na base de validade da fala também se comunica às formas da vida reproduzidas pela via do agir comunicativo. A racionalidade comunicativa manifesta-se num contexto descentrado de condições que impregnam e formam estruturas, transcendentalmente possibilitadoras; porém, ela própria não pode ser vista como uma capacidade subjetiva, capaz de dizer aos atores o que devem fazer.” Idem HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade p. 20 272 “Os participantes, no momento mesmo em que encetam uma tal prática argumentativa, têm de estar dispostos a atender à exigência de cooperar uns com os outros na busca de razões aceitáveis para os outros; e, mais ainda, têm de estar dispostos a deixar-se afetar e motivar, em suas decisões afirmativas e negativas, por essas razões e somente por elas” HABERMAS, Jüngen. A ética da discussão e a questão da verdade. São Paulo, Martins Fontes, 2004 p. 15

Page 144: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

133

voluntária e não coercitiva, senão aos argumentos que os próprios envolvidos propuserem no processo de discussão.

Dessa forma, para que se atinja a confiança no novo modelo de investigação policial, deverão estar presentes os seguintes elementos de validade, sob o ponto de “plano lógico semântico”273: 1) que os argumentos utilizados não se contradigam, sejam coerentes com eles próprios; 2) que os argumentos que fundamentem ou sejam aplicados para uma certa situação, sejam os mesmos para outros casos de aspecto semelhante, ou seja, que tenham a mesma validade em situações de relevante similitude; 3) que o diálogo se de através de uma linguagem clara, que não sirvam como dúvidas para interpretações diversas das pretendidas em outro momento.

Da mesma maneira, sob o ponto de vista de “plano dialético”274, também deverão ser consagrados no diálogo: 1) a compreensão da necessidade de alteração do modelo existente, que se encontra desencaixado do momento democrático ora vivido; 2) discussão racional e sincera dos argumentos que apontam o inquérito policial como um instrumento de dominação e seletividade, ora distante da realidade contemporânea; 3) demonstração verdadeira dos problemas encontrados e suas possíveis soluções na reconfiguração da investigação; 4) participação em igualdade de condições de todos os interessados, com consequente aceitação recíproca, adesão e cobrança dos seus resultados275.

O que vier a surgir desse ideal investigativo deverá abandonar as posturas inquisitivas e suas estratégias instrumentais, que hoje afetam o investigado; o inquérito ou o que o substitua, não poderá contemplar o indivíduo como coisa ou objeto de investigação, mas como cidadão, senhor de deveres, mas possuidor de direitos.

Sem dúvida, ao modelo ora proposto se levantarão vozes, céticas quanto a sua viabilidade, consecução e aplicação; algumas outras, favoráveis e dispostas a se abrir ao 273 Idem, HABERMAS. Consciência moral e agir comunicativo p. 110 274 Idem, HABERMAS. Consciência moral e agir comunicativo p. 111 275 Habermas especifica a situação de fala ideal como conjunto de propriedades formais que as argumentações discursivas deveriam possuir quando o consenso que elas produzem tem de ser claramente distinto de uma mera acomodação ou acordo de conveniência. A situação de fala ideal tem quatro condições obrigatórias: ‘Primeiro, cada participante deve ter uma oportunidade igual de iniciar e continuar a comunicação; segundo, cada um deve ter uma oportunidade igual de fazer afirmações, recomendações, explicações e de desafiar as justificações. Terceiro, todos devem ter oportunidades iguais, como atores, de expressar seus desejos, sentimentos e intenções; quarto, o interlocutor deve agir como se, em contextos de ação, existisse uma distribuição igual de oportunidades ‘para ordenar e resistir as ordens, prometer e recusar, ser responsável por sua conduta e exigir a responsabilidade dos outros’’ Jürgen Habermas, ‘Wahrheitstheorien’, in Helmut Fahrenbach, Wirkilichkeit und Reflexion: Water Schulz zum 60. Geburtstag. Pfullinger, Neske, 1º73, p. 256 - BORRADORI, Giovanna. Idem p. 190

Page 145: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

134

diálogo reformador; como também surgirão, aquelas mais preocupadas com as posições de conforto que hoje ocupam e/ou com a manutenção do status quo. Porém, é certo que se torna insustentável a manutenção do atual modo de investigação e seu instrumento na vigência de um Estado Democrático de Direito.

As reações mais contundentes, que já se manifestam contra qualquer forma de avanço no sistema, bem podem ser compreendidas: ou porque culturalmente já se adaptaram a um modelo autoritário; ou temem pela mudança, pelo simples fato de serem mudanças; ou ainda, porque implica na formulação de um novo pacto, com conseqüentes quebras de privilégios.

Os interesses privados e a incapacidade de visualização de novos caminhos são os principais entraves à propositura de uma participação deliberativa; porém, de uma forma ou de outra as modificações surgirão pelo próprio avanço da história.

Sem alternativas às mudanças inevitáveis, que se anunciam pelas insatisfações que a cada dia se tornam mais freqüentes, em boa parte demonstradas com a presente dissertação, a escolha de um novo caminho de investigação policial se dará, ou pela aceitação de um construir através do querer comum e democrático, ou novamente ocorrerá pela imposição de cima para baixo, através de um substituto formulado em gabinetes, representando interesses privados e quem sabe, deliberado como moeda de troca no momento de sua positivação.

Entendemos, que através do relacionamento e encontro entre os saberes sociológicos e jurídicos, conjugados com perspectivas teóricas e práticas, bem como, através de um amplo debate, pautado numa discussão racional, que alcance soluções consensuais, aos desafios complexos aqui apresentados, é que se poderá vencer paixões, submeter vontades e fazer novos progressos na sociedade.

Finalmente, recordem-se as palavras de CARR sobre o papel da utopia nos momentos das transformações: “Da mesma forma que ninguém jamais conseguiu fabricar ouro num laboratório, ninguém jamais conseguiu viver numa república de Platão, ou num mundo de mercado universal livre, ou numa comunidade cooperativa de Fourier. Mas é, contudo, perfeitamente correto venerar Confúcio e Platão como fundadores da ciência política, Adam Smith como fundador da economia política, e Fourier e Owen como fundadores do socialismo. O estágio inicial de aspiração, tendo

Page 146: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

135

em vista um fim, é um fundamento essencial do pensamento humano. O desejo é o pai do pensamento.”276

Resquício e remanescente de concepções estatais pré-modernas, mantido em concepções estatais modernas de cunho totalitário, o inquérito policial conserva um caráter inquisitorial que, por suas características, põe em risco a proteção dos direitos humanos e da cidadania no Estado Democrático de Direito.

Resgatar o Estado Democrático de Direito da berlinda implica a ousadia de novas atitudes e formulações, que passem por condutas democráticas, cidadania ativa, política deliberativa e uma ética discursiva.

276 CARR, Edward H. Vinte anos de crise: 1919 – 1939. Brasília/São Paulo, UNB/Imprensa Oficial do Estado, 2001. p. 11

Page 147: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

136

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Bibliografia citada: ANGELL, Norman. A Grande ilusão. Tradução de Sérgio Bath. Publicação original em 1910. São Paulo, Editora universidade de Brasília, 2002. ANTUNES, Antonio José Abreu; CORRÊA, José Ricardo Ventura; e SOARES Márcio Palmiere. A tradição inquisitorial brasileira. Trabalho de conclusão do Curso de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Justiça Criminal, UFF. Rio de Janeiro, 2010. BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas – Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 5ª ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro, Renovar, 2001. BATISTA, Weber Martins e FUX, Luiz. Juizados especiais cíveis e criminais e suspensão condicional do processo penal: a Lei 9.099/95 e sua doutrina mais recente. Rio de Janeiro, Forense, 2001. BAUMAN, Zygmunt. Capitalismo parasitário: e outros temas contemporâneos. Tradução Eliana Aguiar, Rio de Janeiro, Zahar, 2010. BISOL, José Paulo. Sobre a Extinção do Inquérito Policial. Em: Diálogo Federal, Jornal do Sindicato dos Servidores do Departamento de Polícia Federal no Estado do Rio de Janeiro - SSDPF, nº 41, Rio de janeiro, janeiro de 2003. BOBBIO, Norberto. O positivismo Jurídico, lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Morra, tradução e notas Márcio Plugiesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo, Ícone, 1995. BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de processo penal, São Paulo, Saraiva, 2009. BORRADORI, Giovanna. Filosofia em tempo de terror – Diálogos com Habermas e Derrida, Tradução de Roberto Muggiati, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003. Brasil: Nunca Mais. Prefaciador Cardeal D. Paulo Evaristo, pesquisa da Arquidiocese de São Paulo 2ª ed.,Petrópolis, Vozes, 1985. BURKE, Peter. História e Teoria Social, Tradução de Klauss Brandini Gerhardt e Roneide Venâncio Majer, São Paulo, UNESP, 1992.

Page 148: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

137

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros, Crime, segregação e cidadania em São Paulo. 34 ed, São Paulo, Edusp, 2000. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Portugal, Almedina, 4ª ed, 2000. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 2010. CARNELLUTTI, Francesco. Cómo se hace um processo. Tradução de Santiago Sienís Melendo e Marino Ayerra Redín, Santa Fé, Bogotá, Colombia, Temis, 1977. CHAMPAGNE, Patrick Formar a opinião, o novo jogo político. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira, Petrópolis, Vozes, 1998. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, Legislação Penal e processual Penal, Constituição Federal. Organização notas e índice: Luiz Flávio Gomes. 12ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010 CÓDIGO PENAL, Legislação Penal e processual Penal, Constituição Federal. Organização notas e índice: Luiz Flávio Gomes. 12ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, Legislação Penal e processual Penal, Constituição Federal. Organização notas e índice: Luiz Flávio Gomes. 12ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010 COSTA, Alvaro Mayrink da. Direito penal – doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro, Forense, 1988. CUNHA, Rogério Sanches, TAQUES, Paulo, GOMES, Luiz Flávio (coordenação). Limites constitucionais da investigação. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, Direito das Coisas, V. 4º, 19ª ed. São Paulo, Saraiva, 2004. ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L.. Os Estabelecidos e os Outsiders - Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade, Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000. FEITOZA, Denilson. Direito Processual Penal – Teoria, Crítica e Práxis. Niterói, RJ, Impetus, 2010. FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007.

Page 149: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

138

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais, Supervisão final do texto Léa Porto Abreu Novaes... et al. J. Rio de janeiro, Nau, 2003. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução Roberto Machado, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979. GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. Tradução de Raul Fiker, São Paulo, UNESP, 1991. GIDDENS, Anthony. Sociologia. Tradução de Sandra Regina Netz, Rio Grande do Sul, Artmed, 2005. GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges, Rio de Janeiro, Record, 2007. GIORDANI. Mário Curtis. Direito Penal Romano. Rio de Janeiro, Forense, 1982 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Provas, Lei 11690, de 09.06.2008 Em MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis (Coordenação). As reformas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos de reforma, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008. GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia?: a genealogia filosófica de uma grande aventura humana. Tradução de Claudia Berliner, São Paulo, Martins Fontes, 2003. GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. As nulidades no processo penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2006. GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2006. HABERMAS, Jüngen. A ética da discussão e a questão da verdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo, Martins Fontes, 2004. HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação do capitalismo tardio. Tradução Vamireh Chacon, 2ª ed., Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2002 HABERMAS, Jüngen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. V. 1 Tradução de Flávo Breno Siebeneichler. 2ª ed., Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2003. HABERMAS, Jüngen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. V. 2 Tradução de Flávo Breno Siebeneichler. 2ª ed., Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2003.

Page 150: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

139

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe, São Paulo, Loyola, 2002. HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse, Tradução de José N. Heck, Rio de Janeiro, Guanabara, 1987. HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido A. de Almeida. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução de Flávio R. Kothe, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2003. HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990. HABERMAS, Jürgen. Problemas de legitimação no Estado moderno. Em HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. 2ª ed. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1990. HAMEL, Márcio Renan. A política deliberativa em Habermas: uma perpectiva para o desenvolvimento da democracia brasileira. Passo fundo, Méritos, 2009. HANSEN, Gilvan Luiz. Modernidade, utopia e trabalho. Londrina, CEFIL, 1999. HANSSEN, Gilvan Luiz. Sobre o óbvio na academia e seus riscos, Cap VI Em: PROTA, Leonardo e HANSSEN, Gilvan Luiz, A Universidade em debate. Londrina, UEL, 1998 HOBBES, Thomas. Leviatã, tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva ,São Paulo, Martins Fontes, 2003. IHERING, Rudolf Von. A luta pelo Direito. 3ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003. JAKOBS, Günther e MÉLIA, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo – Noções e Críticas. Organização e tradução de André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli, Porto Alegre, Livraria do advogado, 2009. JAPIASSU, Hilton. As paixões da ciência. São Paulo, Letras e letras, 1991. JARDIM, Afranio Silva. Direito processual penal; estudos e pareceres. Rio de Janeiro, Forense, 1999. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho, Lisboa, Companhia Editora Nacional, 1964.

Page 151: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

140

KANT, Roberto e MISSE, Michel. Ensaios de Antropologia e de Direito. Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2009. KELSEN, Hans Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado, São Paulo, Martins Fontes, 1999. LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal, V. I, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003. LIMA, Roberto Kant de. Ensaios de Antropologia e de Direito: Acesso à justiça e processo institucional de administração de conflitos e produção da verdade em uma perspectiva comparada. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, São Paulo, Forense, 1962. MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártines e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, São Paulo, Saraiva, 2008. MENKE, Bem A., WHITE, Mervin F. e CAREY, William L. Cap. 4 Profissionalização da Polícia: Em busca de Excelência ou de Poder Político?. Em: GREENE, Jack R. Administração do Trabalho Policial. Tradução de Ana Luísa Amêndola Pinheiro –, São Paulo, Editora Universidade de São Paulo, 2002. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal, revista e atualizada por Renato N. Fabbrini, São Paulo, Atlas, 2005. MISSE, Michel (organizador). O inquérito policial no Brasil: uma pesquisa empírica. Rio de janeiro, NECVU/IFCS/UFRJ; BOOKLINK, 2010. NEVES, Marcelo, Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil, São Paulo, Martins Fontes, 2006. NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual Penal, São Paulo, Saraiva, 1978. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. NUNES, Orlando Moreira. A Polícia no Estado Democrático de Direito: Ciência policial, discricionariedade e aplicação seletiva da lei. Rio de Janeiro, artigo no prelo, versão autorizada pelo autor, 2010. RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Tradução Almiro Piseta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo, Martins Fontes, 1997.

Page 152: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

141

SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo, ERT, 2004. SANTOS, Boaventura de Souza (organizador). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 2003. SLAIBI FILHO, Nagib. Direito Constitucional. Rio de Janeiro, Forense, 2004. THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos - o crime e o criminoso: Entes Políticos. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 1998. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 2009. TOURNO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, Vol. 1, São Paulo, 27ª Ed. Ver. e atualizada,Ed. Saraiva, 2005. WACQUANT, Loïc. As prisões da Miséria. Tradução de Andre Telles, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001. WALD, Arnoldo. Direito das coisas. 11ª ed. rev., aum. e atual.. com a colaboração de Álvaro Villaça Azevedo e Véra Fradera. São Paulo, Saraiva, 2002. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro, Revan, 2007. 2. Bibliografia não citada: ADORNO, Sérgio. Monopólio Estatal da Violência na Sociedade Brasileira Contemporânea. Em MICELI, Sérgio (Organizador), O Que Ler na Ciência Social Brasileira, 1970-2002. Vol. 4. São Paulo, Anpocs, 2002 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2.ed. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986. BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. BATISTA, Nilo. Introdução crítica do direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2005. BOURDIEU, Pierre (Coord.). A miséria do mundo. Petrópolis, Vozes, 2008.

Page 153: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

142

BOURDIEU, Pierre. A distinção – crítica social do julgamento. São Paulo, Edusp, 2008. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. ECO, Humberto. Como se faz uma tese. 2ª ed. Rio de Janeiro: Perspectiva. 1985. FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir – Nascimento da prisão. Tradução Lígia M. Pondé Vassallo. Petrópolis: Editora Vozes, 1983. OLIVEIRA, Eugenio Pacelli. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. PALAZZO, Francisco C. Valores Constitucionais e Direito Penal – um estudo comparado. Tradução Gerson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989. QUEIROZ, Paulo. Funções do Direito Penal – Legitimação versus Deslegitimação do Sistema Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2009. WEBER, Max. Economia e Sociedade (Sociologia da Dominação). Brasília; Ed. UnB, 1999. 3. Livros e artigos retirados da internet: BATISTA, Nilo. Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio, disponível em http://www.4shared.com/get/znmHqJhY/_2__Batista_Nilo_-_Mdia_e_Sist.html. Acesso em 28/04/2011. BETTIOL, Giuseppe. Noções Sôbre(sic) Processo Penal Italiano, Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, n. 2, jul./dez. 1966 p. 17. Disponível em http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/20471/nocoes_processo_penal_italiano.pdf?sequence=3 Acesso em 14/05/2011 CARVALHO, Amilton Bueno, O Inquérito Policial como instrumento do direito penal do terror, disponível em www.tjrs.jus.br/.../Inquerito_Policial_como_instrumento_terror.doc. Acesso em 27/04/2011.

Page 154: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

143

CHAVES, Andreya Alcântara Ferreira. Reforma do Código de Processo Penal, disponível em http://www.ejef.tjmg.jus.br/home/files/publicacoes/artigos/reforma_cod_proc_penal.pdfAcesso em 11/04/2011. HANSEN, Gilvan Luiz. Espaço e Tempo na Modernidade, disponível em http://www.unipli.com.br/direito/PASTAS_DOS_PROFESSORES/Arquivos_/Espaco_e_tempo_na_modernidade.pdf. Acesso em 29/04/2011. HITLER, Adolf. Minha Luta (Mein Kampf). Disponível em: http://www.4shared.com/get/Wn7TLsUN/_Ebook-Portugues_Adolf_Hitler_.html. Acesso em 26/05/2011. MARTINS, Lucas Moraes. Uma genealogia das devassas na história do Brasil, disponível em http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3245.pdf. Acesso em 08/03/2001. MENDES, Soélis Teixeira do Prado e OLIVEIRA, Sofia Araújo de. Termo de depoimentos – passado e presente: um gênero sob análise, disponível em http://relin.letras.ufmg.br/revista/english/upload/10-Soelis-Mendes.pdf Acesso em 12/03/2011 PENNINGTON, Ken. The Development of Criminal Procedure in the Ius commune, Tradução instantânea do Google Translate, disponível em http://faculty.cua.edu/pennington/law508/CriminalProcedure.htm. Acesso em 06/04/11. PLATÃO. A República. 6° ed. Ed. Atena, 1956, p. 287-291, disponível em http://filosofiaexpress.files.wordpress.com/2009/05/platao-o-mito-da-caverna1.pdf. Acesso em 19/05/2011 RIBEIRO, Antônio de Pádua. As novas tendências do Direito Processual Civil. Disponível em http://www.cjf.jus.br/revista/numero10/artigo10.htm. Acesso em 07/06/2011 4. Demais pesquisas na internet: Édipo Rei (resumo), disponível em http://www.netsaber.com.br/resumos/ver_resumo_c_1386.html. Acesso em 13/03/2011.

Page 155: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

144

O panorama: jornal litterario e instructivo de Sociedade Propagadora dos conhecimentos úteis (sic), disponível em http://books.google.com.br/books?id=xHE-AAAAYAAJ&pg=RA1-PA117&lpg=RA1-PA117&dq=combates+judici%C3%A1rios&source=bl&ots=8Cwio4ScrB&sig=sP0zAQNYXPASV4pa52oDYKMSxBM&hl=pt-BR&ei=Rz52TfeXIMH88AaUhYCUCQ&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=1&ved=0CBoQ6AEwAA#=onepage&q=combates%20judici%C3%A1rios&f=false . Acesso em 08/03/2011. Bíblia, Disponível em http://www.bibliaonline.com.br/. Acesso em 12/05/2011 TÍTULO XXXIIII: QUE TIREM INQUIRIÇÕES DEVASSAS SOBRE AS MORTES, FURTOS, E ROUBOS, TANTO QUE FOREM FEITOS (sic), disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/l5pg131.htm. Acesso em 08/03/2011. A Prisão de Monteiro Lobato. Disponível em http://www.oabsp.org.br/institucional/grandes-causas/a-prisao-de-monteiro-lobato. Acesso em 13/05/2011 Reforma do código de processo penal pode se arrastar no legislativo, portal da Associação dos Delegados de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro – ADEPOLRJ, Disponível em http://www.adepolrj.com.br/Portal/Noticias.asp?id=9088. Acesso em 10/04/2011. ADPF e ADEPOL prestigiam posse de parlamentares no Congresso Nacional, portal da Associação Nacional dos Delegados de Polícia – ADPF, disponível em http://www.adpf.org.br/Entidade/492/Noticia/?ttCD_CHAVE=135866. Acesso em 15/03/2011. Treze séries, em sua maioria policiais, estréiam na TV aberta e fechada nesta semana, disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/revistadatv/mat/2011/03/11/treze-series-em-sua-maioria-policiais-estreiam-na-tv-aberta-fechada-nesta-semana-923993767.asp. Acesso em 14/03/2011. Corregedoria investiga cinco policiais acusados de tortura dentro de delegacia, portal Globo Online, disponível em

Page 156: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

145

http://oglobo.globo.com/rio/mat/2011/03/31/corregedoria-investiga-cinco-policiais-acusados-de-tortura-dentro-de-delegacia-924132604.asp. Acesso em 31/03/2011. MPF processa superintendente em exercício e corregedor da PF/RJ, portal O Dia Online disponível em http://odia.terra.com.br/portal/rio/html/2011/5/mpf_processa_superintendente_em_exercicio_e_corregedor_da_pf_rj_162525.html. Acesso em 05/05/2011. Dois jovens de classe média são presos por tráfico na Tijuca, portal O Globo, disponível em http://oglobo.globo.com/rio/mat/2011/05/11/dois-jovens-de-classe-media-sao-presos-por-trafico-na-tijuca-924431618.asp. Acesso em 11/05/2011. Casal é preso com 1,1 kg de maconha em shopping na Tijuca, portal O Dia Online, disponível em http://odia.terra.com.br/portal/rio/html/2011/5/casal_e_preso_com_1_1_kg_de_maconha_em_shopping_na_tijuca_163672.html. Acesso em 11/05/2011. Polícia prende suspeita de vender drogas, portal JB Online, disponível em http://www.jb.com.br/rio/noticias/2011/05/11/policia-prende-suspeita-de-vender-drogas-em-shopping-do-rio/. Acesso em 11/05/2011. XIV International Security Fair – EXPOSEC, disponível em http://www.exposec.tmp.br/. Acesso em 03/04/2011. Segurança Privada – Um mercado que cresce à margem da lei, portal Tudo Sobre Segurança, disponível em: http://tudosobreseguranca.com.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=562&Itemid=166. Acesso em 03/04/2011. Lucro com segurança Disponível em: http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/6786_LUCRO+COM+SEGURANCA. Acessado em 1/06/2011 Anuário 2010 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em http://www2.forumseguranca.org.br/node/24104. Acesso em 01/06/2011 Lei nº 4.878/65 (Regime jurídico dos funcionários policiais civis da União e do Distrito Federal) disponível em http://www.planalto.gov.br. Acesso em 08/04/2011. Lei 9.099/95 (Juizados Especiais Cíveis e Criminais) disponível em http://www.planalto.gov.br. Acesso em 08/04/2011.

Page 157: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

146

Projeto de Lei nº 65, de 1999, disponível em http://www.amperj.org.br/store/proposicoes/PL/PLC_65_abuso_de_autoridade.pdf. Acesso em 08/04/2011. Lei 2.033 de 20 de setembro de 1871 e Decreto nº 4.824 de 22 de novembro de 1871, disponível em http://www.planalto.gov.br. Acesso em 05/03/2011 Instrução Normativa nº 11 – DG/DPF/MJ, de 27 de junho de 2001, disponível em http://coex.prpr.mpf.gov.br/controle-externo/instrucao-normativa-11-2001-dg-dpf.pdf. Acesso em 18/04/2011.

Page 158: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

147

ANEXO I RESOLUÇÃO SEPC N° 605, DE 27 DE JULHO DE 1993 Aprova o Manual de Procedimentos de Polícia Judiciária. O SECRETÁRIO DE ESTADO DA POLÍCIA CIVIL, no uso de suas atribuições, Considerando ser geral o comando que institui a instauração de inquéritos policiais e sindicâncias Sumárias (CPP e REPC); Considerando que a uniformização seqüencial de peças e despacho nos procedimentos em muito facilitará o entendimento dos fatos em apuração, R E S O L V E: Art. 1º - Fica aprovado o Manual de Procedimentais de Polícia Judiciária constantes do anexo único a esta Resolução. Art. 2º - Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. Rio de Janeiro, 27 de julho de 1993. NILO BATISTA Secretário de Estado

Page 159: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

148

TÍTULO I DO INQUÉRITO POLICIAL CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES PRELIMINARES Art. 1º - Os documentos com notícia de infrações penais, os requerimentos e as representações pela instauração de inquérito recebidos nas Unidades de Polícia Judiciária, serão imediatamente encaminhadas ao Delegado Titular que, dentro do prazo de dez (10) dias, decidirá objetivamente. Art. 2º - Sendo a decisão pela não instauração de inquérito, a parte deverá ser dela cientificada dentro do prazo da dez (10) dias contados da decisão para, querendo, valer-se do recurso previsto no §2º do Art. 5º do Código Processo Penal. Art. 3º - As requisições oriundas do Poder Judiciário e do Ministério Público serão prontamente atendidas. §1º - No caso de requisição manifestamente ilegal, a autoridade requisitada negar-lhe-á atendimento, o que será comunicado ao requisitante mediante ofício, justificando este procedimento. §2º - Em face de fundada dúvida quanto à ilegalidade da requisição, a autoridade requisitada solicitará ao requisitante os esclarecimentos necessários. Se mesmo após estes esclarecimentos persistir a dúvida, a referida autoridade deverá encaminhar o assunto à apreciação dos níveis hierárquicos superiores desta Secretaria. §3º - Na hipótese de a requisição não conter os dados mínimos indispensáveis ao seu entendimento, a autoridade requisitada deverá oficiar ao requisitante, expondo-lhe a impossibilidade do atendimento e, ao mesmo tempo, solicitando-lhe maiores informações. §4º - Tratando-se de requisição oriunda do Ministério Público, caso não estejam indicados os respectivos fundamentos jurídicos, a autoridade requisitada deverá oficiar ao requisitante, solicitando-lhe que indique os referidos fundamentos, em conformidade com o disposto no Art. 129, VIII, segunda parte, da C.F., o qual deverá ser expressamente mencionado. Art. 4º - Exceto nos casos de prisão em flagrante delito, a instauração de inquérito por crime eleitoral dependerá da prévia requisição do Juiz ou do Ministério Público Eleitoral. CAPÍTULO II DA INSTAURAÇÃO Art. 5º - O inquérito policial será iniciado: §1º - Por auto de prisão em flagrante, quando estiverem presentes os pressupostos do Art. 302 do Código de Processo Penal. §2º - Por portaria, nos demais casos. Art. 6º - A portaria instauradora deverá conter relato sucinto do fato delituoso e, quando possível, a

Page 160: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

149

tipificação e a autoria. CAPÍTULO III DA CAPA Art. 7º - A capa do inquérito, confeccionada em cartolina dura, de cor cinza, contará, obrigatoriamente: §1º - O Emblema do Estado do Rio de Janeiro e cabeçalho com a designação: SECRETARIA DE ESTADO DA POLÍCIA CIVIL, seguida da identificação da UPAJ. §2º - O número do inquérito, do livro tombo e da folha de lançamento do registro. §3º - O nome do indiciado e o respectivo enquadramento penal. §4º - A autuação contendo a assinatura e carimbo pessoal do Escrivão Chefe do Setor Cartorário. Art. 8º - O nome do indiciado somente deverá ser lançado na capa após a indiciação. Art. 9º - No termo de autuação serão discriminados, sempre que possível, todos os documentos autuados. Art. 10 - O número do inquérito será aposto com destaque, de preferência com o uso de carimbo. Art. 11 - Estando preso o indiciado será aposto, no canto superior esquerdo da capa do inquérito, a expressão “INDICIADO PRESO”, de preferência com o uso de carimbo. Art. 12 - No verso da capa haverá espaço com pautas para anotação da localização, no inquérito, das principais peças. Art. 13 - O inquérito policial será desmembrado em volumes sempre que cada um deles atingir um total de até duzentos e cinqüenta (250) folhas, cabendo ao Escrivão do feito a lavratura dos termos de abertura e encerramento, observado, rigorosamente, o seguinte: §1º - A capa de cada novo volume conterá apenas os dados previstos nos §§ 1º e 2º do Art. 7º. §2º - Cada novo volume conterá numeração seqüencial a do anterior. §3º - Os inquéritos com apenso terão suas capas carimbadas com a expressão “INQUÉRITO COM APENSO”. CAPÍTULO IV DA MOVIMENTAÇÃO Art. 14 - Os inquéritos serão distribuídos pelo Escrivão Chefe aos Escrivães Auxiliares que os manterão sob sua guarda, responsabilizando-se a Autoridade Policial nos períodos em que com eles permanecer. Art. 15 - Recebendo os autos do inquérito o escrivão deverá, dentro do prazo de cinco (5) dias, cumprir os despachos e fazer os autos conclusos à Autoridade Policial que o estiver presidindo.

Page 161: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

150

Art. 16 - Igual prazo terá a Autoridade Policial para permanecer com os autos após conclusos pelo Escrivão, ressalvados os casos em que estiver aguardando o cumprimento de providências determinadas em despacho anterior e não houver outras diligências a serem adotadas. Art. 17 - Atendendo eventual situação de acúmulo de serviço, os Diretores Gerais do DGPC, DGPI, DGPC e DGPE, poderão baixar ordem de serviço ampliando os prazos de que trata o artigo anterior, remetendo cópia do ato para a Corregedoria Geral da Polícia. Art. 18 - É expressamente vedada a paralisação dos inquéritos em cartório, mediante despachos acautelatórios, nos impedimentos ou na ausência de Autoridade ou Escrivão. CAPÍTULO V DA INSTRUÇÃO SEÇÃO I DISPOSIÇÕES GERAIS Art. 19 - As diligências e providências necessárias à instrução do inquérito serão ordenadas pela Autoridade Policial através de despachos. Art. 20 - Todo e qualquer ato de inquérito deverá ser elaborado à máquina de datilografia ou por computador, excetuadas situações de comprovada impossibilidade, quando poderá ser escrito a mão, de forma legível e em qualquer caso, em duas vias, devendo as cópias permanecer arquivadas em pastas próprias no Setor Cartorário. Art. 21 - As folhas do inquérito serão numeradas pelo Escrivão, no canto superior direito, e rubricadas pela Autoridade Policial abaixo da numeração. Art. 22 - Os documentos juntados por cópia aos autos, deverão ser autenticados pelo Escrivão do feito. Art. 23 - O desentranhamento de qualquer peça do inquérito deverá ser antecedido de despacho da Autoridade e por certidão lavrada pelo Escrivão do feito. Art. 24 - Os processados de natureza administrativa, necessários a instrução do inquérito, serão apensados aos autos mediante termo próprio. Art. 25 - Não deverão ser juntados ao inquérito, objetos que possam danificar, deformar ou que venham a dificultar o manuseio dos autos. Art. 26 - O resultado das diligências determinadas no curso do inquérito deverá ser trazido aos autos mediante informação escrita prestada por policial designado, evitando-se a juntada de ordens

Page 162: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

151

e relatório de missão que contiverem dados operacionais de interesse exclusivo da administração. Art. 27 - Toda documentação que constituir materialidade de delito deverá ser apreendida, ainda que recebida de outros órgãos, e não apenas juntada aos autos. Art. 28 - Os autos do inquérito somente poderão ser assinados pela Autoridade que o preside. Art. 29 - É vedado ao Escrivão da Polícia a prática de qualquer ato privativo da Autoridade Policial. Art. 30 - Ressalvados motivos de força maior, quando do eventual ou definitivo afastamento da Autoridade presidente do inquérito, deverá esta elencar as diligências já realizadas e aquelas ainda por realizar, facilitando, assim, o trabalho daquela que a substituir na presidência do feito. Art. 31 - A Autoridade Policial deverá envidar esforços para concluir os inquéritos no prazo inicial de trinta (30) dias, valendo-se dos pedidos de prorrogação apenas em caso de comprovada dificuldade para elucidação, os quais deverão ser sempre fundamentados. Art. 32 - As cotas do Ministério Público deverão ser cumpridas no prazo estipulado, salvo impossibilidade intransponível, devidamente justificada nos autos. Art. 33 - O advogado poderá assistir a todos os atos do inquérito, neles não podendo intervir, sendo sua presença consignada ao final do termo ou do auto, ainda que não os deseje assinar. SEÇÃO II DAS INTIMAÇÕES Art. 34 - O chamamento de pessoas à Unidade Policial para a prática de atos do inquérito será formalizado através de intimação. Parágrafo único - Não haverá intimação das pessoas mencionadas no art. 221 do CPP e de membros do Ministério Público, devendo ser expedido ofício à autoridade a ser ouvida, solicitando que marque dia, hora e local para a inquirição. Art. 35 - Os funcionários públicos civis e militares serão intimados mediante ofício endereçados às respectivas chefias. Art. 36 - Se regularmente intimada por duas vezes a testemunha não comparecer nem apresentar justificativa, a autoridade mandará conduzi-la a sua presença, mediante mandado de condução coercitiva. SEÇÃO III DAS INQUIRIÇÕES Art. 37 - As inquirições serão formalizadas através de: a) termo de depoimento, para testemunhas compromissadas; b) termo de declarações para ofendidos e para as pessoas mencionadas nos artigos 206 e 208 do

Page 163: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

152

CPP.; c) auto de qualificação e interrogatório para Indiciados. §1º - Quando houver necessidade de ouvir novamente qualquer pessoa, a Autoridade formalizará o ato mediante termo de reinquirição. §2º - Se a nova inquirição recair em pessoa a ser indiciada, deverá ser formalizado auto de qualificação e interrogatório. Art. 38 - Quando a pessoa a ser ouvida não souber se expressar na língua portuguesa, ser-lhe-á nomeado intérprete, que prestará compromisso de bem e fielmente desempenhar o encargo, observando-se, no que tange aos impedimentos, o disposto nos artigos 274 e 279 do CPP. Parágrafo único - Em caso de estrangeiro não residente no Brasil e não originário de país e de língua portuguesa, deverá a autoridade atentar para a conveniência da nomeação de intérprete, mesmo que o alienígena alegue conhecer o idioma nacional. SEÇÃO IV DAS TESTEMUNHAS Art. 39 - Ao iniciar a inquirição de testemunhas a autoridade deverá obedecer a seguinte rotina: a) verificação da identidade objetivando constatar se a testemunha que vai depor é, realmente, a arrolada; b) verificação de possível vinculação ao indiciado a fim de compromissá-la, ou não; c) advertência acerca do compromisso de dizer a verdade das conseqüências da não observância; d) inquirição sobre os fatos apurados no inquérito e suas circunstâncias. Art. 40 - Quando da inquirição de testemunhas, a autoridade deverá atentar para os princípios da objetividade, oralidade e clareza, devendo reproduzir tanto quanto possível, as expressões empregadas pelas testemunhas. Art. 41 - Sempre que possível, deverão ser desprezados os depoimentos de pessoas que nada saibam do fato em apuração. Art. 42 - O depoimento será prestado na UPAJ, podendo, em casos especiais, devidamente justificados, nos autos, ser colhido no local onde a testemunha se encontre. Art. 43 - As apreciações subjetivas eventualmente feitas pela testemunha, não deverão ser transcritas, salvo as inseparáveis da narrativa do fato. Art. 44 - A Autoridade Policial deverá dispensar à testemunha a atenção e a cordialidade necessária àqueles que se dispõem a colaborar com a justiça, procurando retê-la na UPAJ apenas durante o tempo estritamente indispensável.

Page 164: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

153

SEÇÃO V DO RECONHECIMENTO Art. 45 - No reconhecimento de pessoas e coisas serão rigorosamente observadas as disposições contidas nos artigos 226 e 227 do CPP. Art. 46 - Na impossibilidade de efetivação de reconhecimento pessoal, poderá ser feito o fotográfico, observadas as cautelas aplicáveis àquele. Art. 47 - Se o reconhecimento de pessoa ou coisa for feito por várias pessoas, cada uma deverá fazê-lo em separado. Art. 48 - Só se realizará a acareação quando fundamental para o esclarecimento do ponto de divergência sobre fatos ou circunstâncias relevantes acerca do delito que se apura. Art. 49 - No termo de acareação a autoridade determinará a reprodução dos pontos divergentes dos depoimentos anteriores; de forma reduzida, se possível. Art. 50 - Não bastam, nos termos de acareação, a simples ratificação das declarações anteriores, devendo a autoridade procurar esclarecer, pela perquirição insistente e pelas reações emotivas dos acareados, qual deles faltou com a verdade. SEÇÃO VI DA BUSCA DOMICILIAR Art. 51 - A busca domiciliar deverá sempre que possível ser realizada com a presença da Autoridade Policial. Art. 52 - A Autoridade Policial somente procederá a busca domiciliar sem mandado judicial quando houver consentimento espontâneo do morador ou quando tiver certeza da situação de flagrância. §1º - No primeiro caso, o consentimento do morador deverá ser por escrito e assinado também por duas testemunhas não policiais que acompanharão a diligência e assinarão o respectivo auto. §2º - Na segunda hipótese, é imprescindível ter-se certeza de que o delito está sendo praticado naquele momento, não se justificando o ingresso no domicílio para realização de diligências complementares à prisão em flagrante ocorrida em outro lugar, nem para averiguação de notitia criminis. Art. 53 - Ao representar perante a Autoridade Judiciária pela expedição de Mandado de Busca, a Autoridade Policial deverá fazê-lo de forma fundamentada indicando o local onde será cumprido, o nome do morador ou a sua alcunha, os motivos e os fins da diligência. Art. 54 - No curso da busca domiciliar, os executores deverão, ad cautelam, adotar providências para resguardar bens, valores e numerários existentes no local e evitar desnecessários

Page 165: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

154

constrangimentos aos moradores. Art. 55 - É obrigatória a leitura do Mandado antes do início da busca. Parágrafo único - Em caso de resistência que impossibilite a leitura do mandado, esta será feita tão logo a situação esteja sob controle. Art. 56 - Ocorrendo entrada forçada em virtude de ausência dos moradores, a autoridade adotará medidas para que o imóvel seja fechado e lacrado após a realização da busca que, neste caso, será necessariamente assistida por duas testemunhas não policiais. Art. 57 - Após a realização da busca, será lavrado auto circunstanciado, mesmo quando a diligência resultar negativa. Art. 58 - A busca em repartições públicas, quando necessária, será antecedida de contato com o dirigente do órgão onde será realizada aplicando-se no que couber, o previsto nesta Seção. SEÇÃO VII DO EXAME PERICIAL Art. 59 - A Autoridade Policial deverá requisitar exame pericial sempre que a infração penal deixar vestígios, em face do disposto no artigo 158 do Código de Processo Penal. Art. 60 - Para fins de requisição de exame de local, a Autoridade Policial deverá observar o disposto no art. 40 e parágrafo único da Resolução Conjunta SEPC/SEPM/SEDEC 0052 de 02.09.91. Art. 61 - Os documentos, instrumentos e objetos relacionados com o crime, após apreendidos deverão ser encaminhados imediatamente a exame pericial. Art. 62 - Na impossibilidade da realização de exame direto, deverá ser requisitado exame indireto. Art. 63 - A Autoridade Policial poderá, quando entender necessário, solicitar orientação e/ou auxílio do ICE para a coleta do material a ser examinado. Art. 64 - Nos casos mais complexos, entendendo necessário, poderá a Autoridade Policial solicitar orientação ao ICE para a formulação de quesitos. Art. 65 - Ao requisitar exame pericial, a Autoridade Policial deverá determinar o desentranhamento das peças a serem examinadas, somente remetendo o inquérito à Criminalística quando esta providência for indispensável à realização do exame. Art. 66 - A nomeação de Peritos ad hoc somente deverá ocorrer em face da inexistência de Peritos oficiais ou não haver, dentre eles, pelo menos um com habilitação profissional para a realização do exame. Art. 67 - Os Peritos não oficiais serão nomeados pela Autoridade Policial dentre as pessoas com habilitação técnica, que prestarão o compromisso de bem e fielmente desempenhar o encargo, observando-se as prescrições acerca dos impedimentos previstos nos art. 275 a 280 do Código de

Page 166: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

155

Processo Penal. Art. 68 - Nos casos do perícias requisitadas por carta precatória, a autoridade deprecante formulará os quesitos a deprecada que providenciará a realização do exame. SEÇÃO VIII DA CARTA PRECATÓRIA Art. 69 - A expedição, registro, controle e distribuição de cartas precatórias são regulados, no âmbito estadual pela Resolução SEPC 0384, de 18 de abril de 1990. Art. 70 - A autoridade deprecante deverá formular as perguntas a serem feitas, de modo claro e objetivo. Art. 71 - A indiciação por meio de carta precatória somente ocorrerá quando for expressamente solicitado pela autoridade deprecante. Art. 72 - A carta precatória não será autuada, sendo apenas registrada em livro próprio, devendo a autoridade deprecada observar o prazo para o cumprimento (Resolução SEPC 0384/90, Art. 3º). SEÇÃO IX DO INTERROGATÓRIO Art. 73 - A elaboração do auto de qualificação e interrogatório ou qualificação indireta será precedido de despacho em que a autoridade, após formar seu convencimento, decida pela indicação e classifique penalmente o delito. Art. 74 - O despacho fundamento de que trata o parágrafo único do artigo 37 da Lei n.º 6.368/76, será exarado logo após a lavratura do auto de prisão em flagrante. Art. 75 - No interrogatório do indiciado a autoridade deverá procurar esclarecer, numa seqüência lógica, o fato e suas circunstâncias, sem perder de vista o disposto no art. 188 e incisos do Código de Processo Penal. Art. 76 - A autoridade limitar-se-á a consignar no ato do interrogatório as respostas dadas pelo interrogado, precedidas da conjunção "QUE”, preferencialmente em maiúsculas. Art. 77 - Se o indiciado se negar a responder as perguntas, a autoridade fará consigná-las, juntamente com as razões invocadas para a recusa. Art. 78 - Havendo necessidade de reinquirição do indiciado esta deverá ser antecedida de despacho fundamentado da autoridade. Art. 79 - Somente a autoridade presidente do inquérito poderá interrogar o indiciado. Art. 80 - A confissão, sendo apenas um dos meio de prova, deve ser colhida de forma espontânea, merecendo tanto mais credibilidade quanto for com o restante da prova colhida. Art. 81 - Se antes da conclusão do inquérito a autoridade verificar

Page 167: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

156

que o indiciado é autor de outros delitos não conhecidos quando da indiciação que guardam relação de conexão e/ou continência com o primeiro, deverá ouvi-lo sobre os outros fatos, em termo de reinquirição. Art. 82 - Feita a indiciação a autoridade solicitará a folha de antecedentes criminais do indiciado ao IFP e ao INI, comunicando, neste ato, àqueles órgãos, a nova incidência penal, número do feito e, se possível, distribuição. Art. 83 - O boletim de vida pregressa será preenchido pelo sindicante que, após, o entregará ao Escrivão do feito para juntá-lo aos autos. Art. 84 - Procedida a indiciação, a autoridade deverá examinar a conveniência de representar pela prisão preventiva (artigos 311 a 312 do CPP), ou pela prisão provisória (Leis 7.960 e 8.073/90). SEÇÃO X DO RELATÓRIO Art. 85 - Concluído o inquérito, a Autoridade Policial fará relatório de tudo o que foi apurado, atentando para os princípios da objetividade, clareza e concisão, vedado o chamado "relatório índice". Parágrafo único. A elaboração do relatório é obrigatória, mesmo nos inquéritos iniciados por auto de prisão em flagrante. Art. 86 - No relatório deverá a autoridade fazer um histórico do fato, discorrer acerca das diligências realizadas e concluir sobre a materialidade e autoria do delito. Art. 87 - O cabeçalho do relatório conterá: a) número do inquérito; b) as datas de início e término; c) nome do indiciado e a indicação da folha onde consta sua qualificação; d) a incidência penal. Art. 88 - Deverão ser evitadas no relatório, transcrições extensas de termos de inquirição, cumprindo à autoridade, quando necessário, repetir apenas os trechos essenciais ao esclarecimento de sua exposição. CAPÍTULO VI DA PRISÃO EM FLAGRANTE Art. 89 - Ocorrendo prisão em flagrante, o preso será apresentado à Autoridade Policial, que determinará a imediata lavratura do

Page 168: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

157

respectivo auto. Art. 90 - Antes de iniciar a lavratura do auto de prisão em flagrante, a autoridade dará ciência ao preso de suas garantias constitucionais e comunicará sua prisão à pessoa por ele indicada, fazendo consignar tais circunstâncias no auto de prisão em flagrante. Art. 91 - O conduzido deverá ser qualificado logo após o depoimento do condutor e interrogado somente depois da oitiva da última testemunha ou vítima, se houver. Art. 92 - Enquanto permanecer no Setor Cartorário, o preso será acompanhado por, pelo menos, um agente da autoridade, com a missão exclusiva de custodiá-lo. Parágrafo único - O número de agentes será aumentado sempre que a periculosidade ou e a quantidade de presos o exigir. Art. 93 - Em todos os casos de prisão, a Autoridade Policial deverá adotar medidas necessárias à prevenção da integridade física e moral do preso, o qual, sempre que as circunstâncias exigirem, será submetido a exame de lesões corporais. Art. 94 - Quando se tratar de prisão de Advogado por crime no exercício da profissão, a Autoridade Policial comunicará o fato, imediatamente, à Seção local da Ordem dos Advogados do Brasil para, se assim o desejar, fazer-se representar na lavratura do auto. Art. 95 - A prisão em flagrante de parlamentares federais ou estaduais, apenas ocorrerá em caso de crime inafiançável, devendo a Autoridade, no prazo de vinte e quatro horas, remeter o inquérito à respectiva Casa Legislativa. Art. 96 - Os Vereadores não poderão ser presos em flagrante delito quando se tratar de crime de opinião cometido no exercício do mandato e na circunscrição do seu Município. Art. 97 - Os Juízes e membros do Ministério Público não poderão ser presos senão por ordem judicial escrita ou em flagrante de crime inafiançável. §1º - No caso de prisão por crime inafiançável, a Autoridade Policial limitar-se-á a proceder a imediata apresentação do Magistrado ou membro do Ministério Público ao Presidente do Tribunal ou Procurador Geral respectivo, mediante ofício circunstanciado. §2º - A Autoridade Policial somente procederá a lavratura do auto de prisão em flagrante se houver expressa determinação da autoridade judiciária competente. §3º - Em se tratando de crime afiançável não caberá prisão nem autuação, devendo apenas ser feita a comunicação do fato ao Tribunal ou Procuradoria Geral. Art. 98 - Quando da prisão em flagrante de militares, a autoridade deverá solicitar a presença da escolta da respectiva corporação que, não havendo inconveniente, poderá acompanhar à lavratura do auto. §1º - O não atendimento ou a impossibilidade de espera deverão ser consignados.

Page 169: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

158

§2º - Após a lavratura do auto, a autoridade entregará o preso à escolta da respectiva corporação, através de ofício circunstanciado que encaminhará também, a nota de culpa. Art. 99 - Em se tratando de apreensão de criança ou adolescente, deve a autoridade ter em conta, principalmente, as medidas estabelecidas nos artigos 103 a 109, 147 §1º e 30 e 171 a 178 da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Art. 100 - Havendo dúvidas se o conduzido tem idade inferior a 18 anos, a autoridade determinará, de imediato, diligências visando verificar esta situação e, na impossibilidade da solução do impasse em tempo hábil, procederá como se menor ele fosse. Art. 101 - Os agentes e funcionários diplomáticos. bem como seus respectivos familiares, não poderão ser presos ou detidos, por estarem imunes a toda jurisdição criminal ou civil. Parágrafo único - O disposto neste artigo aplica-se ainda aos Cônsules e funcionários consulares de carreira e aos seus familiares. Art. 102 - Os Cônsules e funcionários consulares honorários somente gozarão de imunidade com relação aos atos praticados no exercício das funções consulares. Art. 103 - Uma cópia do auto de prisão em flagrante permanecerá arquivada no Setor Cartorário, para futuras consultas. Art. 104 - Quando do exame de afiançabilidade da infração penal, a autoridade deverá também atentar para o disposto nos itens XLII, XLIII e XLIV do art. 5º, da Constituição Federal. Parágrafo único - Nos casos de crimes afiançáveis na esfera policial, a autoridade arbitrará fiança independente de requerimento, desde que inexistentes as restrições previstas nos artigos 323 e 324 do Código de Processo Penal. Art. 105 - A decisão que denegar a fiança será devidamente fundamentada nos autos. Art. 106 - O depósito de valores referentes à fiança será feito até o primeiro dia útil após o recebimento, ressalvados os casos de absoluta impossibi1idade. CAPÍTULO VIII DAS COISAS APREENDIDAS Art. 107 - Realizado o exame pericial, a Autoridade Policial providenciará, com a brevidade possível, a remessa das coisas apreendidas ao órgão competente, juntando ao inquérito o comprovante da remessa. Art. 108 - As substâncias entorpecentes serão logo encaminhadas à perícia, acondicionadas em sacos plásticos padronizados, devidamente lacrados, contendo o número do memorando de encaminhamento e do Registro de Ocorrência. Parágrafo único - Após o exame pericial os peritos lacrarão novamente o invólucro, anotando nele

Page 170: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

159

o peso da substância. Art. 109 - Realizado o exame pericial a autoridade determinará o encaminhamento da substância e da cópia do laudo à Divisão de Repressão a Entorpecentes (Resolução 0125/76). Art. 110 - Quando cabível, a restituição de coisas apreendidas será feito mediante termo próprio, observando-se o disposto no art. 120 e parágrafos, do Código de Processo Penal. Art. 111 - No relatório conclusivo do inquérito, a autoridade mencionará o destino das coisas apreendidas. Art. 112 - É vedado aos servidores, sob pena de responsabilidade, o uso de coisas apreendidas, ainda que na condição de fiel depositário. CAPÍTULO IX DAS MEDIDAS CAUTELARES Art. 113 - Havendo indícios seguros de que o indiciado adquiriu bens imóveis com proventos da infração a Autoridade Policial representará, obrigatoriamente, ao Juiz competente, pelo seqüestro desses bens, ainda que eles tenham sido transferidos a terceiros. Art. 114 - A mesma providência será adotada com relação a bens móveis, na forma do art. 132 do Código de Processo Penal. Art. 115 - Efetuado o seqüestro, a Autoridade Policial envidará esforços para concluir o inquérito com brevidade, a fim de evitar que a medida seja prejudicada conforme previsto no inciso I do art. 131 do Código de Processo Penal. Art. 116 - A representação pelo seqüestro será sempre instruída com peças comprobatórias da conveniência de medida. Art. 117 - Tratando-se de apuração de crime que importem em atos de improbidade administrativa, a Autoridade Policial representará ao Juízo, pela decretação da indisponibilidade dos bens do indiciado, em face do que dispõe o §4º do art. 37 da Constituição da República. Art. 118 - Quando no curso da investigação houver indícios da prática de crime por parte de magistrado ou membro do Ministério Público, a Autoridade Policial, através dos competentes canais hierárquicos, remeterá os autos imediatamente ao tribunal competente, ou ao Procurador Geral de Justiça, para as providências adequadas. Art. 119 - Em caso de extravio ou destruição dos autos originais do inquérito, será procedida a restauração, aplicando-se, no que couber, o disposto no art. 541 e seguintes do Código de Processo Penal. Parágrafo único - Para a restauração de que trata este artigo, serão usadas cópias das peças arquivadas em cartório (Portaria, auto de prisão em flagrante, depoimentos, etc.) e de laudos, que

Page 171: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

160

deverão ser solicitados ao respectivo órgão do DGPTC. Art. 120 - Verificando a Corregedoria Geral da Polícia, através de suas correições ou daquelas procedidas pelas DRPC’ s ou por qualquer outra forma, à ocorrência de irregularidades de natureza grave na condução do inquérito, proporá ao Titular da Pasta a avocação e redistribuição do feito. Art. 121 - Em qualquer caso, o pedido de avocação será sempre fundamentado através de despacho nos autos. Art. 122 - No caso da avocação por irregularidade, a Corregedoria Geral da Polícia, quando do pedido de avocação, instaurará sindicância sumária para apuração e, se for o caso, aplicação das medidas disciplinares pertinentes. TÍTULO II DA VERIFICAÇÃO DA PROCEDÊNCIA DAS INFORMAÇÕES CAPÍTULO ÚNICO DISPOSIÇÕES GERAIS Art. 123 - A Verificação da Procedência das Informações - VPI, é um instrumento excepcional, destinado a comprovar a procedência das notícias de infração penal, levadas ao conhecimento da Autoridade Policial mas que, pela escassez de indícios não justifiquem, de imediato, a instauração de inquérito. Art. 124 - A investigação de que trata este Título deverá ser um procedimento singelo, sem formalidades desnecessárias, evitando-se expressões dogmáticas, termos e atos consagrados ao inquérito policial. Art. 125 - Em caso de necessidade da oitiva de alguém nos autos da VPI, o chamamento será feito mediante convite. Art. 126 - Ao receber a notícia do fato, nas condições previstas no artigo 118, a autoridade determinará a instauração de VPI mediante simples despacho. Art. 127 - O Chefe do Setor com atribuições para apurar o fato, designará um servidor para conduzir a VPI que, de imediato, procurará esclarecer, principalmente, o seguinte: a) se o ato noticiado realmente ocorreu; b) se constitui infração penal; c) se compete à UPAJ a sua apuração; d) se há autor ou autores conhecidos; e) se há testemunhas; e f) se existe prova material. Art. 128 - Todas as peças da VPI farão parte de um só processado, elaborado em uma via, sendo

Page 172: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

161

desnecessária a feitura de portaria, autuação e despachos ordinatórios. Art. 129 - A VPI será numerada e registrada em livro próprio da respectiva Seção ou Setor (art. 13, Resolução SEPC 0328/89). Art. 130 - A autoridade observará, no que for cabível: o disposto nas Resoluções SEPC 0092/86, 0328/89 e Portaria DGPC 088/86. TÍTULO III DA SINDICÂNCIA SUMÁRIA CAPÍTULO I DA COMPETÊNCIA Art. 131 - A competência para apuração de conduta tipificada no R.E.P.C. - aprovado pelo Decreto 3.044/80 - como transgressão disciplinar, é do chefe imediato do servidor ou servidores envolvidos. Art. 132 - Se envolvidos servidores de duas ou mais UPAJ’s a competência, no interior, é das DRPC’ s (Resolução 210/88) na área dos Departamentos Gerais de Polícia Especializada, da Capital e da Baixada, dos respectivos Departamentos Gerais, ressalvada a competência do DGPTC, DGA e DGTEL, referente aos seus servidores. Art. 133 - Se os envolvidos estiverem subordinados a duas ou mais DRPC’ s, a competência será do DGPI. Art. 134 - Em se tratando de servidores de mais de um departamento, a competência será da Corregedoria Geral da Polícia. Art. 135 - A competência originária das UPAJ’ s, DRPC’s e Departamento Gerais não afasta a da Corregedoria Geral da Polícia. Art. 136 - Eventuais conflitos de atribuições serão resolvidos, sempre, pelo Titular da Pasta. Art.137 - Tomando conhecimento da prática de ato tipificado em legislação própria como transgressão disciplinar, a Autoridade Policial imediatamente instaurará sindicância sumária. §1º - Se, de imediato, ou no curso da sindicância, ficar evidenciada a prática de ilícito penal a autoridade instaurará inquérito policial, devendo a sindicância sumária ser instruída com cópias das peças produzidas no inquérito. Art. 138 - Não sendo competente, encaminhará a notícia dos fatos a seu superior imediato. Art. 139 - A sindicância sumária será iniciada por portaria, a qual deverá conter breve relato do fato e, se possível, indicação da autoria. §1º - É vedada a instauração por despacho. Art. 140 - A sindicância será registrada em livro próprio, observada a Resolução SEPC 0468, de 06 de maio de 1991.

Page 173: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

162

CAPÍTULO III DA CAPA Art. 141 - A capa da sindicância é a mesma utilizada para os procedimentos administrativos iniciados no âmbito da SEPC, recebendo o protocolo E - número da respectiva UPAJ. Art. 142 - Abaixo do campo destinado à data do início, constará a expressão “SINDICÂNCIA SUMÁRIA N.º” acompanhada de numeração seqüencial iniciada a cada ano. Art. 143 - Os campos destinados a "Nome" e "Assunto" conterão, respectivamente, a expressão “SINDICÂNCIA SUMÁRIA” e breve relato do fato, desprezado o campo destinado a “Anexos”. Art. 144 - Na apuração das transgressões disciplinaras a Autoridade Policial observará, no que for aplicável, as disposições do Código de Processo Penal referente ao Inquérito Policial (artigos 40 a 23), à prova (artigos 155 a 250) e do Título I deste Anexo. Art. 145 - A indiciação formal do servidor será feita após a coleta de todas as provas e através de despacho onde a Autoridade deverá: a) expor as razões de seu convencimento sobra a autoria; b) tipificar e mencionar a natureza da infração; c) cientificar o sindicado da decisão, concedendo-lhe prazo para apresentação de defesa; d) solicitar ao DP/DGA e juntar aos autos o Histórico Funcional do sindicado. Parágrafo único - Com relação à defesa, a autoridade deverá atentar para o disposto na Resolução SEPC 002/91, de 17 de julho de 1989. Art. 146 - A sindicância deverá ser concluída no prazo de trinta dias. Parágrafo único - A não observância deste prazo não acarretará a nulidade do procedimento, podendo importar, entretanto, em responsabilidade administrativa do causador do atraso. Art. 147 - Quando a infração deixar vestígio será indispensável o exame pericial, não podendo supri-lo a confissão do acusado. Parágrafo único - A autoridade não ficará adstrita ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte. Art. 148 - A acareação será admitida entre acusados, entre acusados e testemunhas e entre testemunhas, só determinando a autoridade a sua realização quando fundamental para o esclarecimento do ponto de divergência, observado o disposto nos números 49 e 50. Art. 149 - Concluída a sindicância, a Autoridade fará relatório do apurado, na forma determinada pelo art. 30 e parágrafo único do R.E.P.C. Art. 150 - Concluindo pela aplicação de penalidade a Autoridade Policial observará o disposto nos artigos 18 a 32 do R.E.P.C. §1º - Quando a infração for aplicado, em tese, pena mais grave que cinqüenta dias de suspensão, serão encaminhados, através dos escalões hierárquicos, ao Secretário de Estado da Polícia Civil, devendo a

Page 174: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

163

autoridade que presidir a sindicância elaborar minucioso relatório, demonstrando tal circunstância. §2º - Havendo conveniência para o serviço policial, a pena de suspensão pode ser convertida em multa, na forma do disposto no art. 20, parágrafo único do Decreto Lei 218/75. Art. 151 - Qualquer que seja a decisão, será ela submetida ao superior imediato da Autoridade presidente da sindicância que, após o exame das peças concordará com a decisão ou a modificará, segundo seu entendimento. Parágrafo único - Havendo determinação de superior hierárquico para a instauração de sindicância, ao autor da determinação será submetida a decisão. TÍTULO IV DO EXTRAVIO DE BEM PATRIMONIAL CAPÍTULO ÚNICO DISPOSIÇÕES GERAIS Art. 152 - A apuração do extravio de bem patrimonial é disciplinada pela Resolução SEPC 0376, de 09 de abril de 1990. Art. 153 - A sindicância de que trata a Resolução acima mencionada visa apenas decidir se o servidor deve ou não ressarcir ao erário pelo valor do bem extraviado, não havendo concessão de prazo para apresentação de defesa. Art. 154 - Se a apuração evidenciar ter ocorrido negligência por parte do servidor na guarda do bem patrimonial extraviado, a Autoridade observará o disposto no parágrafo único do art. 2º da Resolução 0376/90, para fins disciplinares, cabendo ao chefe imediato do servidor a instauração de sindicância prevista no Título III. Art. 155 - Ao servidor compete provar, através dos meios permitidos, suas declarações sobre o extravio do bem, não o eximindo do ressarcimento, meras alegações desprovidas de qualquer possibilidade de confirmação.

Page 175: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

164

ANEXO II RESOLUÇÃO SEPC N° 092, DE 15 DE SETEMBRO DE 1986 Dispõe sobre as providências por parte da autoridade policial ao tomar conhecimento da pratica de infração penal. O SECRETÁRIO DE ESTADO DA POLÍCIA CIVIL, no uso de suas atribuições, R E S O L V E: Art. 1º - A Autoridade Policial, ao tomar conhecimento da prática de infração penal de Ação Pública Incondicionada, inclusive a requerimento de qualquer interessado, determinará, imediatamente, o registro da ocorrência. Art. 2º - A Autoridade Policial instaurará Inquérito Policial, de imediato, nos casos regulamentados pela Secretaria de Estado da Polícia Civil e nas infrações penais de Ação Pública Incondicionada, desde que a autoria e a materialidade estejam comprovadas. Parágrafo único - Nos casos de rito especial, inclusive nas hipóteses previstas na Lei n.º 4.611/65, comprovadas a autoria e a materialidade da infração penal dentro de quinze dias, a contar da data do fato baixará a Autoridade Policial, desde logo, a portaria de instauração do procedimento. Art. 3º - A Autoridade Policial, face a inexistência de indícios e autoria e/ou de comprovação da materialidade da infração penal, nos casos de Ação Pública Incondicionada, determinará a verificação de procedência das informações. §1º - A Instauração de Inquérito Policial será determinada assim que apuradas a autoria e a materialidade da infração penal objeto da verificação a que alude o artigo. §2º - Constatada a existência da infração penal, no prazo de 90 (noventa) dias da data do registro de ocorrência, e permanecendo desconhecida a autoria, a Autoridade Policial fará consignar nos mapas demonstrativos de Verificação das Ocorrências Policiais registradas, o resultado das apurações procedidas. Art. 4º - A Corregedoria da Polícia Civil enviará à Procuradoria Geral da Justiça, mensalmente, cópias das Atas das Correições procedidas nas Unidades de Polícia Judiciária e Administrativa, na parte referente aos mapas demonstrativos da verificação das ocorrências policiais registradas,

Page 176: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

165

indicando o respectivo resultado. Art. 5º - A Corregedoria de Polícia franqueará ao órgão do Ministério Público competente, o acesso, em suas dependências, às peças de verificação da procedência das informações sobre infrações penais mencionadas nas atas a que se refere o artigo anterior, previamente indicadas. §1º - O órgão do Ministério Público, em decorrência do exame referido neste artigo, poderá requisitar a imediata instauração de inquéritos policiais. §2º - O Delegado de Polícia Titular da Unidade de Polícia Judiciária e Administrativa a que couber a instauração de inquéritos comunicará, mensalmente, a Corregedoria da Polícia e a Procuradoria Geral da Justiça, os respectivos números e data de autuação. Art. 6º - A Autoridade Policial, independentemente do disposto nesta Resolução, providenciará, na Unidade de Polícia Judiciária e Administrativa, o acesso do órgão do Ministério Público competente aos autos de verificação da procedência das informações, relativamente a qualquer ocorrência específica de seu conhecimento. Art. 7º - Ao Diretor Geral do DGPC incumbirá expedir os atos regulamentares necessários ao exato cumprimento desta Resolução. Art. 8º - Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação, revogada a Resolução n.º 065, de 31.03.86, do Secretário de Estado da Polícia Civil e as demais disposições em contrário. Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1986. NILO BATISTA Secretário de Estado

Page 177: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

166

ANEXO III INSTRUÇÃO NORMATIVA No. 11, DE 27 DE JUNHO DE 2001 Atualiza, define e consolida as normas operacionais para execução da atividade de Polícia Judiciária no âmbito do Departamento de Polícia Federal e dá outras providências. O DIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO DE POLÍCIA FEDERAL, no uso da atribuição que lhe confere o artigo 33, item VII, do Regimento Interno do DPF, aprovado pela Portaria Ministerial 213/MJ, de 17.05.1999, publicada no DOU n.º 93-E, de 18 de maio de 1999, e CONSIDERANDO a necessidade de simplificar e dar maior celeridade aos feitos pré-processuais, afetos à competência do Departamento de Polícia Federal; CONSIDERANDO a exigência de maior transparência, qualidade, eficiência e eficácia das investigações criminais realizadas no âmbito federal; CONSIDERANDO a necessidade de se instituir mecanismos de fiscalização, controle e avaliação das atividades de Polícia Judiciária; CONSIDERANDO, por fim, os princípios da Administração Pública Federal relativos a coordenação, descentralização, delegação e controle e que é dever dos gestores públicos imprimir o máximo de rendimento e reduzir os custos operacionais da administração, conforme preconizam os artigos 6º, incisos II-V, 10, § 1º, letra “a”, 11 e 30, § 3º, do Decreto-lei 200, de 25.02.1967, resolve: Editar a presente Instrução Normativa. TÍTULO I DO INQUÉRITO POLICIAL CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES PRELIMINARES

Page 178: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

167

1. As notícias de infração penal endereçadas aos órgãos centrais, por meio de requerimentos, representações ou requisições, resguardadas as atribuições do Diretor-Geral e do Coordenador-Geral Central de Polícia, depois de protocolizadas, serão encaminhadas à Corregedoria-Geral da Polícia Federal para registro, manifestação objetiva e despacho à unidade competente. 2. Os expedientes referidos, quando diretamente endereçados às Superintendências Regionais, serão remetidos à Corregedoria Regional para registro, pronunciamento e, se for o caso, envio à Delegacia Regional de Polícia para pronto atendimento. 2.1. Nas Delegacias de Polícia Federal, Classe “A”, as notícias de infração serão encaminhadas à Delegacia Executiva para registro e providências. 2.2 Nas Delegacias de Polícia Federal, Classe “B”, o registro e atendimento serão providenciados por seu respectivo titular. 3. Havendo manifestação contrária à instauração de inquérito policial por parte do distribuidor ou da autoridade policial a quem foi distribuído, o expediente será submetido à respectiva Corregedoria para decisão. 3.1 Mantido o indeferimento o interessado será cientificado. 3.2 Se a decisão constatar a falta de atribuição do Departamento de Polícia Federal, o expediente será encaminhado ao órgão competente. 3.3Das decisões proferidas pela Corregedoria caberá recurso à autoridade superior. 4. Se a decisão for favorável à instauração de inquérito policial, o expediente será distribuído, imediatamente, na forma do Capítulo II, deste Título. 4.1 Logo que receber o expediente, a autoridade designada para presidir o inquérito procederá a instauração. 4.2 Na comprovada impossibilidade da imediata instauração, a autoridade policial comunicará, por escrito, esta circunstância ao distribuidor. 5. As Corregedorias promoverão o permanente acompanhamento das notícias de infração penal. 6. Quando as informações noticiadas não possibilitarem a instauração imediata de inquérito policial, será averiguada a sua procedência com vista à confirmação da existência da infração penal, na forma prevista no § 3º, art. 5º do Código de Processo Penal. 7. Nas hipóteses de crime eleitoral, a instauração dependerá de requisição, à exceção da ocorrência de flagrante delito. 8. As notícias resultantes de investigação da área operacional somente serão submetidas à apreciação de que tratam os itens 1 e 2, quando houver dúvidas quanto à atribuição do DPF ou implicações no campo disciplinar. 9. A fase dos procedimentos policiais instaurados em decorrência de resoluções de Comissões Parlamentares de Inquérito será informada semestralmente à respectiva Casa Legislativa até sua conclusão, na forma do disposto na Lei 10.001, de 04.09.2000.

Page 179: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

168

CAPÍTULO II DA DISTRIBUIÇÃO 10. Nas unidades descentralizadas todos os Delegados de Polícia Federal concorrerão à distribuição de expedientes, podendo o dirigente, ouvido o Delegado Regional de Polícia, estabelecer justificadamente, as exclusões, dadas a natureza, complexidade e atribuições da função desempenhada pela autoridade. 11. Em cada unidade, a distribuição obedecerá a rigorosa ordem cronológica de chegada dos expedientes, podendo ser utilizado meio informatizado, observado o critério equânime entre as autoridades policiais e que não haja distinção no tocante ao grau de dificuldade do fato a ser investigado. 11.1. Por ordem superior, a autoridade policial, especialmente indicada para presidir determinado inquérito, poderá ser excluída da distribuição. 12. A autoridade que passar a concorrer à distribuição receberá os novos expedientes e os inquéritos que lhe forem redistribuídos, a partir daquela data, levando-se em consideração o critério de que trata o item anterior. 13. Para efeito de distribuição, o inquérito policial instaurado mediante auto de prisão em flagrante ou decorrente de iniciativa operacional será computado na cota da autoridade policial que o instaurou, desde que ela prossiga na presidência do feito. 14. A distribuição incumbirá ao: I. Chefe da Divisão respectiva, na sede do Órgão Central; II. Delegado Regional de Polícia, nas Superintendências Regionais onde houver apenas um cartório; III. Chefe de Delegacia Especializada, nas Superintendências onde houver mais de um cartório; IV. Delegado Executivo nas Delegacias de Polícia Federal Classe”A”; e V. Chefe, nas Delegacias de Polícia Federal, Classe “B”. 14.1 Nas Superintendências Regionais a distribuição de expedientes envolvendo servidores do Departamento de Polícia Federal por infração penal será feita pela chefia da Corregedoria Regional de Polícia, conforme I.N. 009/DG/DPF, de 29 de maio de 2001. 15. Nos afastamentos por mais de 20 (vinte) dias ou em razão de férias da autoridade presidente do feito, essa elencará as diligências por realizar e os autos serão conclusos a quem couber a redistribuição. 15.1 Na hipótese prevista neste item, os inquéritos retornarão à autoridade de origem tão logo ocorra o seu regresso.

Page 180: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

169

CAPÍTULO III DA INSTAURAÇÃO 16. O inquérito policial será iniciado por: I. Auto de Prisão em Flagrante, quando estiverem presentes os pressupostos do artigo 302 do CPP, observando-se as formalidades previstas nos artigos 304 e seguintes do mesmo diploma legal, assim como os direitos e garantias constitucionais; II. Portaria, nos casos de ação pública incondicionada, condicionada a representação, requisição e requerimento do ofendido. 16.1. As infrações de menor potencial ofensivo serão objeto de Termo Circunstanciado, na forma da Lei 9.099, de 26.09.1995 e Título II desta IN. 17. A portaria instauradora deverá conter o número do protocolo e do documento base da notícia do crime, o relato sucinto do fato delituoso, a tipificação ainda que provisória e, quando possível, a autoria, bem como as diligências de cumprimento imediato. CAPÍTULO IV DA CAPA 18. A capa do inquérito policial conterá, obrigatoriamente: I. as Armas da República e o cabeçalho com a designação “Ministério da Justiça - Departamento de Polícia Federal", seguida do nome da Superintendência Regional e, se for o caso, da unidade descentralizada respectiva; II. o número do inquérito em destaque, do livro tombo, da folha de lançamento do registro e área especializada, quando for o caso. (Eleitoral, Entorpecentes e as demais); III. o nome do indiciado, se conhecido, e o respectivo enquadramento penal; e IV. a autuação contendo o nome e a assinatura do escrivão, podendo ser lavrada por meio computadorizado. 19. No termo de autuação, sempre que possível, serão discriminados, todos os documentos autuados. 20. Os inquéritos sob segredo de justiça serão identificados como tais. 21. Quando o indiciado estiver preso, será colocada na capa do inquérito uma etiqueta adesiva com a expressão "INDICIADO PRESO", que será removida tão logo seja ele libertado. 22. No verso da capa haverá espaço com pautas, destinado às anotações relativas aos apensos e no anverso da contracapa a movimentação dos autos. 23. A capa de cada novo volume do apenso conterão apenas os dados previstos nos incisos I e II do item 18 e o número do volume. 24. Os inquéritos com apensos terão suas capas com a expressão "INQUÉRITO COM APENSO".

Page 181: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

170

25. Os apensos serão constituídos por assunto com numeração independente dos autos principais. 25.1. Se for necessário mais de um volume para determinado assunto apensado, a sua numeração será seqüencial. 26. As infrações de menor potencial ofensivo definidas em lei terão capa de cor branca com a denominação Termo Circunstanciado, numerado seqüencialmente, lançando-se o(s) nome(s) do(s) infrator(es), vítima(s) e enquadramento penal. CAPÍTULO V DA MOVIMENTAÇÃO 27. Na movimentação dos inquéritos policiais somente serão utilizados os termos de CONCLUSÃO, DATA, REMESSA e RECEBIMENTO. 27.1 Os inquéritos ficarão sob a guarda do escrivão, salvo quando conclusos à autoridade policial. 28. A autoridade policial despachará em até 05 (cinco) dias úteis. 28.1 Ao receber os autos, o escrivão cumprirá de imediato os despachos, fazendo-os conclusos, após. 28.2 Os autos, quando no aguardo de diligências não atendidas em prazo previamente estabelecido, serão conclusos para providências. 28.3 Atendendo a situação de acúmulo de serviço de cada área, as Corregedorias Regionais poderão elaborar ordem de serviço ampliando o prazo de que trata este item, ouvida a Corregedoria-Geral de Polícia. 29. Na hipótese de vencimento do prazo dos autos de inquérito policial, cujo presidente esteja afastado da sede por qualquer motivo, os autos serão conclusos à Chefia imediata para remessa à Justiça pela Corregedoria. CAPÍTULO VI DA INSTRUÇÃO SEÇÃO I DISPOSIÇÕES GERAIS 30. As atribuições da autoridade policial são indelegáveis. 30.1 As diligências e providências necessárias à instrução do inquérito serão ordenadas pela autoridade policial, mediante despachos, visando a formação do conjunto probatório. 30.2 As informações, os indícios, as circunstâncias e os elementos de prova serão colhidos pela autoridade e seus agentes e estes, vinculados às investigações, serão expressamente indicados nos autos.

Page 182: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

171

31. Os inquéritos serão elaborados em uma única via, confeccionando-se dossiê das principais peças produzidas, como auto de prisão em flagrante, portaria, auto de apreensão, documentos com destinação das coisas apreendidas e o relatório, podendo, em casos excepcionais, ser providenciada a reprodução integral do original. 32. Os atos cartorários serão elaborados de forma clara, precisa e objetiva, mecanograficamente ou por meio computadorizado e, excepcionalmente, manuscritos. 33. As folhas do inquérito serão numeradas pelo escrivão e rubricadas pela autoridade policial no canto superior direito, podendo ser utilizado carimbo de numeração seqüencial ou chancela mecânica. 34. As cópias reprográficas de documentos inseridos aos autos deverão ser autenticadas. 35. O desentranhamento e reentranhamento de qualquer peça do inquérito serão antecedidos de despacho da autoridade e atestados por certidão. 36. O inquérito será composto por volumes quando atingir a média de 250 (duzentas e cinqüenta) folhas, mediante a lavratura dos respectivos termos de encerramento e abertura. 36.1. Cada novo volume terá numeração de folhas seqüencial a do anterior, excluindo-se a contracapa e a capa do novo volume. 37. Os processados de natureza administrativa necessários à instrução do inquérito serão apensados aos autos principais, lavrando-se termo próprio. 38. É vedada a juntada de objetos que possam danificar, deformar ou que venham a dificultar o manuseio dos autos. 39. O resultado de investigações realizadas por agentes no curso do inquérito será trazido para os autos mediante relatório circunstanciado, sem a juntada de ordens de missão ou informações que contenham dados operacionais e administrativos de exclusivo interesse da administração. 40. Toda documentação que constituir materialidade de delito será apreendida, por força do inciso II do art. 6º do CPP. 41. Quando do afastamento definitivo, o presidente do inquérito elencará as diligências já realizadas e aquelas por realizar, facilitando o trabalho daquele que o substituir. 42. A autoridade policial envidará todos os esforços para concluir os inquéritos no prazo de 30 (trinta) dias. 42.1.Na impossibilidade da conclusão no prazo, o presidente do feito, em despacho fundamentado indicará as diligências reputadas imprescindíveis para o término da investigação e requererá, ao juiz competente, a prorrogação do prazo. 42.2 O prazo legal para conclusão de inquérito policial com indiciado preso deverá ser observado rigorosamente na forma abaixo:

Page 183: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

172

I. de 15 (quinze) dias podendo ser prorrogado por mais 15 (quinze) mediante pedido devidamente fundamentado, hipótese em que a autoridade policial deverá apresentar o preso ao magistrado (art. 66 da Lei 5.010 de 30.05.1966); II. de 10 (dez) dias na hipótese dos crimes previstos nos artigos 12, 13 e 14 da Lei 6.368, de 21.10.1976 (art. 21 caput c/c art. 35 parágrafo único, este com redação dada pela Lei n.º 8.072, de 25.07.1990); e III. 05 (cinco) dias nas demais hipóteses dos crimes previstos na Lei nº 6.368/76 (art. 21 “caput”). 42.3 Enquanto o inquérito estiver na justiça a autoridade policial evitará a prática de formalidade para sua instrução. 43. As diligências requisitadas na forma do art. 16 do CPP deverão ser cumpridas de imediato ou no prazo estabelecido. 44. O advogado poderá assistir a todos os atos do inquérito, devendo sua presença ser consignada após a qualificação da pessoa a ser ouvida, firmando no final o respectivo ato. 45. As cópias de peças, quando requeridas pelas partes legítimas, serão fornecidas às expensas do interessado, observando-se as restrições legais e lavrando-se certidão. 46. A monitoração telefônica decorre de autorização judicial, conforme a Lei 9.296, de 24.07.1996. 47. Os pedidos para autorização judicial visando a obtenção de provas sob sigilo bancário, fiscal, eleitoral e de dados informatizados serão formulados quando indispensáveis à investigação; SEÇÃO II DAS INTIMAÇÕES 48. O chamamento de pessoas à repartição policial para a prática de atos do inquérito será formalizado com Mandado de Intimação, podendo ser feito por via postal ou qualquer outro meio hábil. 48.1. Não haverá intimação no caso das pessoas relacionadas no art. 221 do CPP e de membros do Ministério Público, devendo ser expedido ofício à autoridade a ser ouvida, solicitando-se a designação de dia, hora e local para a inquirição. 49. Os funcionários públicos civis serão intimados por meio de ofício endereçado ao dirigente do órgão da sua lotação. 49.1 Quando deixarem de comparecer sem justificativa serão intimados pessoalmente, dando-se ciência ao Chefe da repartição. 49.2 Os militares serão requisitados por intermédio de ofício conforme estabelece o § 2º, art. 221, do CPP.

Page 184: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

173

50. Se, pessoalmente intimada, a testemunha não comparecer, sem motivo justificado, a autoridade poderá expedir mandado de condução coercitiva a sua presença. SEÇÃO III DAS INQUIRIÇÕES 51. As inquirições serão formalizadas por meio de: I. termo de depoimento, onde as testemunhas serão compromissadas, observando-se os arts. 206, 207 e 208 do CPP; II. auto de qualificação e interrogatório, para indiciados; III.termo de declarações, quando lei especial mencionar. 51.1 Quando houver necessidade, devidamente justificada, de ouvir novamente qualquer pessoa, a autoridade formalizará o ato mediante termo de reinquirição . 51.2. Se a nova inquirição recair em pessoa a ser indiciada, deverá ser formalizada em auto de qualificação e interrogatório. 52. Quando a pessoa a ser ouvida não souber se expressar na língua portuguesa, ser-lhe-á nomeado intérprete no próprio ato, mediante compromisso de bem e fielmente desempenhar o encargo, observando-se, no que tange aos impedimentos, as prescrições dos artigos 279 a 281 do CPP. 52.1 No caso de estrangeiro não residente no Brasil e não originário de país de língua portuguesa, a autoridade atentará para a conveniência da nomeação de intérprete, mesmo que o alienígena alegue conhecer o idioma nacional. 52.2 É vedada a nomeação de preso para funcionar como intérprete. 53. Quando a pessoa ouvida não souber ler e nem escrever, o termo ou auto será assinado por testemunha, a rogo, e por duas testemunhas de leitura. SEÇÃO IV DAS TESTEMUNHAS 54. No depoimento das testemunhas, a autoridade deverá atentar para os princípios da objetividade, oralidade e clareza, observando a seguinte rotina: I. certificar-se da identidade da testemunha; II. verificar a possível vinculação com o indiciado e com o fato, para fins de compromisso legal ou não; e III. advertir acerca do compromisso de dizer a verdade, estabelecido no art. 203 do CPP, e do falso testemunho previsto no art. 342 do CP.

Page 185: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

174

55. A autoridade ouvirá as testemunhas que efetivamente tiverem conhecimento do fato, devendo limitá-las ao número estabelecido no art. 398 do CPP, mencionando as demais no relatório do inquérito. 56. Nos depoimentos serão reproduzidas, sempre que possível, as expressões empregadas pelas testemunhas. 57. O depoimento será prestado na repartição policial, podendo em situações justificadas ser colhido no lugar em que a testemunha se encontre. 58. As apreciações subjetivas feitas pela testemunha não serão transcritas, salvo quando inseparáveis da narrativa do fato. 59. A autoridade policial manterá a testemunha na repartição apenas durante o tempo estritamente indispensável à realização do ato, evitando adiar a audiência. 59.1 As pessoas intimadas serão ouvidas pela autoridade que as intimou no dia e horário fixados. 59.2 Para efeito do subitem anterior e celeridade da investigação, no impedimento da autoridade intimadora, excepcionalmente será permitida a oitiva por autoridade policial diversa, justificando-se nos autos. SEÇÃO V DO RECONHECIMENTO E DA ACAREAÇÃO 60. No reconhecimento de pessoas ou coisas serão observados os requisitos contemplados nos artigos 226 a 228 do CPP. 61. Na impossibilidade de efetivação do reconhecimento pessoal, poderá ser feito o fotográfico. 62. A acareação somente será realizada quando fundamental para o esclarecimento de divergências sobre fatos ou circunstâncias relevantes acerca do delito que se apura. 63. No termo de acareação deverá a autoridade reproduzir os pontos divergentes dos depoimentos anteriores. 64. A autoridade não deverá se dar por satisfeita com a simples ratificação dos depoimentos, mas procurar esclarecer, pela perquirição insistente e pelas reações emotivas dos acareados, qual deles falta com a verdade. SEÇÃO VI DA BUSCA DOMICILIAR 65. A busca domiciliar será feita mediante mandado judicial, precedida de investigação sobre o morador do local onde será realizada, visando colher elementos sobre sua pessoa (atividades, periculosidade e contatos), sempre que possível com a presença da autoridade policial e de testemunhas não policiais, observando-se as regras estabelecidas nos arts. 240 a 250 do CPP.

Page 186: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

175

66. O ingresso em casa, sem consentimento do morador, somente poderá ocorrer nas hipóteses de flagrante, desastre ou para prestar socorro, conforme previsão do inciso XI do art. 5º da Constituição Federal. 66.1 No caso de consentimento do morador a busca será presenciada por duas testemunhas não policiais, que assinarão o respectivo auto, além do termo de consentimento de busca. 67. Ao representar perante a autoridade judiciária pela expedição de mandado de busca, a autoridade policial deverá fazê-lo de forma fundamentada, indicando o local onde será cumprido e, sempre que possível, o nome do morador ou sua alcunha e os fins da diligência. 68. No curso da busca domiciliar, os executores adotarão providências para resguardar os bens, valores e numerários existentes no local, preservar a dignidade e evitar constrangimentos desnecessários aos moradores. 68.1 Os executores da busca providenciarão para que o morador e as testemunhas acompanhem a diligência em todas as dependências do domicílio. 69. Ocorrendo entrada forçada em virtude da ausência dos moradores, os executores adotarão medidas para que o imóvel seja fechado e lacrado após a realização da busca, que será assistida por duas testemunhas não policiais. 70. Após a realização da busca, mesmo quando resultar negativa, será lavrado auto circunstanciado, assinado por duas testemunhas presenciais. 70.1 O resultado da diligência será imediatamente comunicado à autoridade judiciária. 70.2 Cópia do auto de apreensão será fornecida ao detentor do material apreendido. 71. A busca em repartições públicas, quando necessária, será antecedida de contato com o dirigente do órgão onde será realizada. SEÇÃO VII DO EXAME PERICIAL 72. É indispensável o exame pericial sempre que a infração penal deixar vestígios. 73. Os documentos, instrumentos e objetos relacionados com o crime, após apreendidos, serão imediatamente encaminhados a exame pericial. 74. Quando se tratar de exame de local, a autoridade policial providenciará de imediato o isolamento da área onde houver sido praticada a infração penal, objetivando a preservação do estado das coisas até a chegada dos peritos, em face do disposto no art. 169 do CPP. 74.1. Em situações flagranciais ou de comprovada urgência,a requisição de perícia poderá ser feita oralmente e formalizada posteriormente. 75. As requisições de exames periciais serão feitas ao Diretor do Instituto Nacional de Criminalística ou aos Chefes da Seção de Criminalística nas Superintendências Regionais.

Page 187: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

176

75.1 Os exames periciais serão realizados com a máxima celeridade, atentando-se para o prazo de conclusão do inquérito policial. 75.2 No caso de indiciado preso a perícia será realizada com prioridade. 75.3 Para a elaboração do laudo pericial será observado o disposto no art. 160, parágrafo único do CPP. 75.4 As transcrições fonográficas, quando não houver questionamentos sobre a autenticidade, identificação do locutor, ou não caracterizar a materialização do delito, sempre que possível, serão realizadas por funcionários policiais, designados pelo presidente do feito mediante a elaboração de respectivo termo, sem prejuízo de eventual exame pericial. 76. Quando se tratar de perícia papiloscópica, as requisições serão dirigidas ao Diretor do Instituto Nacional de Identificação ou aos responsáveis pelos Núcleos de Identificação da respectiva Superintendência Regional. 77. Na impossibilidade de realização de perícia direta, deverá ser requisitada a indireta, na forma do art. 158 do CPP. 78. Sempre que necessário, a autoridade solicitará dos Peritos Criminais a orientação ou auxílio na colheita do material a ser examinado, assim como para a correta formulação de quesitos. 79. É proibido o serviço de entrega por malote para o transporte de substância tóxica e/ou entorpecente, material explosivo ou perigoso, arma, munições e acessórios, bem como de coisas perecíveis, deterioráveis, inflamáveis, nauseantes e valores, visando a elaboração de exame pericial. 79.1 Ressalva-se a hipótese objeto de contrato para serviço de entrega especial que venha a ser firmado pela administração com anuência do INC. 80. Ao requisitar o exame pericial, a autoridade, determinará o desentranhamento das peças a serem examinadas, prosseguindo-se nos demais atos, somente remetendo o inquérito à Criminalística quando esta providência for indispensável à realização do exame. 81. A nomeação de perito não oficial, prevista no § 1º do art. 159 do CPP, somente deverá ocorrer nas seguintes hipóteses: I. ausência de peritos oficiais; ou II. quando entre os peritos oficiais não houver pelo menos um com habilitação profissional específica, para a realização do exame a ser feito. 82. Quando da nomeação de perito não oficial para exame específico, sempre que possível, deverá também funcionar no exame e na elaboração do laudo um perito oficial do DPF. 83. Os peritos não oficiais serão nomeados pela autoridade policial entre as pessoas com habilitação técnica, que prestarão o compromisso de bem e fielmente desempenharem o encargo, observando-se as prescrições acerca dos impedimentos, previstas no artigo 279 do CPP.

Page 188: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

177

84. Nos casos de perícias requisitadas por carta precatória, a autoridade deprecante formulará os quesitos e a deprecada providenciará junto à Criminalística a realização do exame. SEÇÃO VIII DA CARTA PRECATÓRIA 85. A carta precatória será expedida em forma de ofício, podendo ser transmitida por qualquer meio de comunicação hábil. 86. Para fins de registro no SINPRO e distribuição, a carta precatória será endereçada à Corregedoria Regional ou aos Chefes das Delegacia A e B, conforme o caso, ressalvada a hipótese prevista no inciso III do art. 3º da I.N. 09-DG/DPF, de 29.05.2001. 87. A numeração das folhas da carta precatória será feita no canto inferior direito, sem uso de carimbo. SEÇÃO IX DA COOPERAÇÃO POLICIAL INTERNACIONAL 88. Quando para a instrução de feitos policiais houver necessidade de investigação imprescindível para elucidação do fato delituoso, a ser realizada no exterior, a autoridade fará a solicitação à Divisão de Polícia Criminal Internacional/DPF (INTERPOL). 88.1 A carta rogatória prevista nos arts. 783 a 786 do CPP não é diligência a instruir inquérito policial. SEÇÃO X DO INTERROGATÓRIO E DA INDICIAÇÃO 89. O auto de qualificação e interrogatório ou qualificação indireta será precedido de despacho fundamentado com a indicação dos pressupostos de fato e de direito e tipificação do delito. 89.1. O despacho fundamentado de que trata o parágrafo único do art. 37 da Lei 6368/76 será exarado logo após a lavratura do auto de prisão em flagrante. 90. Quando houver comprovação da materialidade do delito e prova suficiente da autoria, a indiciação será formalizada pelos seguintes atos: I. despacho fundamentado, na forma do item 89.1; II. auto de qualificação e interrogatório; III. elaboração do boletim de vida pregressa; IV. preenchimento do prontuário de identificação criminal para encaminhamento ao Núcleo de Identificação ou setor competente; e 90.1 A identificação criminal será feita na hipótese e forma definidas na Lei 10.054, de 07.12.2000;

Page 189: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

178

90.2Quando se tratar de ação praticada por organizações criminosas, as pessoas indiciadas serão criminalmente identificadas pelo sistema datiloscópico, nos termos do art. 5º da Lei 9.034, de 03.05.1995, independentemente da identificação civil. 91. No interrogatório do indiciado, a autoridade deverá procurar esclarecer, numa seqüência lógica, o fato e suas circunstâncias. 92. A autoridade consignará no auto de interrogatório as respostas dadas pelo interrogando, precedidas no início da conjunção "QUE". 93. Sempre deverão ser consignadas as perguntas que o interrogado se negar a responder e as razões invocadas para tal recusa. 94. O indiciado tem o direito de permanecer calado e de não se incriminar, sendo a confissão mais um dos meios de prova, devendo ser colhida de forma espontânea. 95. No interrogatório e demais depoimentos poderão ser utilizados meios eletrônicos para registrar o ato, de acordo com a conveniência e importância dos fatos investigados. 96. No caso de qualificação na forma indireta, deverá ser encaminhado ao Núcleo de Identificação, ou setor competente, apenas o prontuário de Identificação Criminal, preenchido com os dados disponíveis. 97. Se antes da conclusão do inquérito, a autoridade verificar que o indiciado é autor de outros delitos não conhecidos quando da indiciação, e que tenham conexão ou continência com o primeiro, deverá ouví-lo sobre os novos fatos, em termo de reinquirição. 97.1 Na hipótese deste item, a autoridade oficiará ao Instituto Nacional de Identificação informando da nova incidência penal, devendo o ofício conter a qualificação completa do indiciado e o número do inquérito. 98. O Boletim de Vida Pregressa, elaborado pelo agente investigante, será juntado aos autos. 99. Feita a indiciação, a autoridade providenciará a juntada aos autos dos antecedentes do indiciado. 100. A nomeação de curador ao indiciado poderá recair em pessoa leiga, desde que idônea. 101. Quando imprescindível para as investigações, a autoridade policial deverá representar pela prisão temporária do indiciado, nos termos da Lei 7.960, de 21.12.1989. 102. No curso da investigação a autoridade deverá examinar a conveniência de representar pela prisão preventiva, regulada nos artigos 311 a 316 do CPP. SEÇÃO XI DO RELATÓRIO 103. Concluído o inquérito, a autoridade policial fará relatório de tudo que foi apurado, atentando para os princípios da objetividade, clareza e concisão.

Page 190: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

179

104. No relatório a autoridade fará um histórico do fato, discorrendo acerca das diligências realizadas, mencionando o destino das coisas apreendidas e concluindo sobre a materialidade e a autoria do delito. 105. A elaboração de relatório é obrigatória mesmo nos inquéritos iniciados por auto de prisão em flagrante. 105.1 O cabeçalho do relatório conterá: I. o número do inquérito; II. as datas de início e término; III. o nome do indiciado e a indicação da folha onde consta sua qualificação; e IV. a incidência penal. 106. Deverão ser evitadas no relatório, transcrições extensas de termos de inquirições, cumprindo à autoridade, quando necessário, repetir apenas os trechos essenciais ao esclarecimento de sua exposição. CAPÍTULO VII DA PRISÃO EM FLAGRANTE 107. Ocorrendo prisão em flagrante, o preso será imediatamente apresentado à autoridade policial, que providenciará a lavratura do respectivo auto. 107.1 Na autuação a autoridade atentará para as formalidades essenciais da prisão em flagrante, em especial ao disposto nos incisos LVIII, LXI, LXII, LXIV, LXV e LXVI do art. 5º da CF. 108. Antes de iniciar a lavratura do auto de prisão em flagrante, a autoridade cientificará o preso de seus direitos e garantias constitucionais, inclusive o de permanecer calado. 109. Na lavratura do auto de prisão em flagrante, o conduzido somente será qualificado no momento de seu interrogatório, após a oitiva da última testemunha. 110. Quando o conduzido não estiver em condições físicas ou psíquicas de ser prontamente interrogado, a autoridade adotará uma das seguintes medidas: I. lavrar o auto, ouvindo o condutor e as testemunhas, aguardando a recuperação do conduzido para interrogá-lo no prazo de até 24 horas, atentando-se para o estabelecido no art. 306 e parágrafo do CPP. II. concluir o auto sem ouvir o preso, que, neste caso, será apenas qualificado, devendo a impossibilidade de seu interrogatório ser consignada nos autos. 110.1 Na hipótese do inciso II, a autoridade ouvirá o conduzido posteriormente, em auto de interrogatório, na presença de testemunhas. 111. Enquanto permanecer em cartório, o preso será acompanhado por pelo menos um agente de polícia federal, com a missão exclusiva de custodiá-lo. 111.1. O número de agentes será aumentado sempre que a periculosidade ou a quantidade de presos o exigir.

Page 191: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

180

112. O preso que estiver aguardando decisão do Judiciário acerca do arbitramento de fiança permanecerá sob custódia na repartição policial. 113. Em todos os casos de prisão, a autoridade policial deverá adotar medidas necessárias à preservação da integridade física e moral do preso, em estrita observância aos direitos e garantias fundamentais, e às prescrições da Lei 9.455, de 07.04.1997. 113.1. O preso será submetido a exame de lesões corporais sempre que as circunstâncias o exigirem. 114. Em caso de prisão de advogado por crime inafiançável, por motivo de exercício da profissão, observar-se-á o previsto no art. 7º da Lei 8.906, de 04.07.1994, (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil-OAB). 115. A prisão em flagrante de parlamentares federais ou estaduais apenas ocorrerá em caso de crime inafiançável, devendo a autoridade, no prazo de vinte e quatro horas, remeter os autos do inquérito à respectiva Casa Legislativa (§ 3º do art. 53 da CF). 116. Os vereadores não poderão ser presos em flagrante delito quando se tratar de crimes de opinião cometidos no exercício do mandato e na circunscrição de seu município (inciso VIII do art. 29 da CF). 117. Os juízes e membros do Ministério Público não poderão ser presos, senão por ordem judicial escrita ou em flagrante de crime inafiançável. 117.1 No caso de prisão por crime inafiançável, a autoridade policial limitar-se-á a proceder a imediata apresentação do magistrado ou membro do Ministério Público ao Presidente do Tribunal ou Procurador-Geral, respectivamente, devendo ser observado o disposto nas Leis Complementares nºs 35, de 14.03.1979, e 75, de 20.05.1993, bem como na Lei Ordinária nº 8.625, de 12.02.1993. 117.2 Em se tratando de crime afiançável, apenas será feita a comunicação do fato ao Tribunal ou ao Procurador-Geral. 118. Quando da prisão em flagrante de integrantes das Forças Armadas, Policiais Militares ou Corpo de Bombeiros Militares, a autoridade solicitará a presença de um membro da respectiva corporação para acompanhar a lavratura do auto, findo o que o preso será entregue a sua unidade militar para fins de custódia 118.1Concluída a autuação, cópia do auto de prisão em flagrante será encaminhada à corporação a que pertencer o autuado. 119. Aos policiais federais aplicam-se as disposições da Lei nº 3.313, de 14 de novembro de 1957, quanto à prisão especial. 120. Presos em flagrante, preventivamente ou em virtude de pronúncia, os policiais civis permanecerão recolhidos em cela especial, sob a responsabilidade do seu dirigente, consoante previsão do art. 40 e §§ da Lei 4.878, de 03.12.1965, e art. 1º da Lei 5.350, de 06.11.1967.

Page 192: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

181

121. O defensor público não poderá ser preso, senão por ordem judicial escrita, salvo em flagrante, caso em que a autoridade policial fará imediata comunicação ao Defensor Público-Geral, conforme o inciso II do art. 44 da Lei Complementar 80, de 12.01.1994. 122. Os agentes e funcionários diplomáticos, bem como seus respectivos familiares, não poderão ser presos ou detidos, por estarem imunes a jurisdição criminal. 122.1O disposto neste item aplica-se ainda aos cônsules e funcionários consulares de carreira, assim como aos seus familiares. 123. Os cônsules e funcionários consulares honorários somente gozarão de imunidades com relação aos atos praticados no exercício das funções consulares. 124. No caso de prisão de índio, será solicitada a presença de um representante da FUNAI para prestar assistência, inclusive jurídica, comunicando-se ao Ministério Público Federal. 124.1Na impossibilidade do comparecimento de representante da Fundação Nacional do Índio ou do Ministério Público Federal, a autoridade providenciará defensor público e, na falta deste, defensor junto à seccional da Ordem dos Advogados do Brasil. 125. A prisão em flagrante de estrangeiro deverá ser comunicada à Divisão ou Delegacia de Polícia Marítima, Aeroportuária e de Fronteiras, com o encaminhamento das peças flagranciais, para as providências cabíveis. CAPÍTULO VIII DAS PROVIDÊNCIAS RELACIONADAS A ATOS INFRACIONAIS PRATICADOS POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES 126. Para a aplicação do disposto neste Capítulo, a autoridade policial atentará para o art. 2o da Lei 8.069, de 13.07.1990, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que considera criança a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos. 127. As crianças encontradas em ato infracional serão imediatamente entregues aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade. 127.1. Na falta de pais ou responsável, a criança será entregue ao Juiz da Infância e da Juventude ou ao Juiz que exerça essa função. 128. Em caso de flagrante de adolescente por ato infracional, a autoridade policial adotará uma das seguintes providências: I. encaminhamento, incontinenti, à delegacia especializada da localidade, juntamente com os objetos apreendidos e as pessoas maiores de dezoito anos que, porventura, tenham sido presas com o adolescente; II. onde não houver delegacia especializada, lavrará o auto de apreensão ou boletim de ocorrência circunstanciada, na forma do art. 173 da Lei 8.069/90, observando sempre o disposto nos artigos 174 e 175 da mesma lei.

Page 193: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

182

129. Havendo dúvida quanto à menoridade do conduzido, a autoridade determinará, de imediato, diligências visando verificar essa situação e, na impossibilidade de solução do impasse em tempo hábil, procederá como se ele menor fosse. CAPÍTULO IX DA CONCESSÃO E DO RECOLHIMENTO DA FIANÇA 130. Quando do exame de afiançabilidade da infração penal, a autoridade deverá também atentar para o disposto nos itens XLII, XLIII e XLIV do art. 5o da Constituição Federal e na Lei 8.072/90. 131. Nos casos de crimes afiançáveis na esfera policial, a autoridade arbitrará a fiança independentemente de requerimento, desde que não haja qualquer das restrições previstas nos artigos 323 e 324 do CPP. 132. A decisão que denegar a fiança será devidamente fundamentada nos autos e certificado no verso da Nota de Culpa. 133. O recolhimento da fiança prestada nos crimes cujo processo e julgamento sejam da competência da Justiça Federal será feito à Caixa Econômica Federal. 134. Em se tratando de valores em dinheiro, o recolhimento se dará com a guia de depósito de fiança. 135. No caso de fiança em títulos da dívida pública federal, estadual ou municipal, a autoridade policial os encaminhará por ofício, e quando se tratar de recibo de caução, com a guia modelo no 34.001-CEF. 136. A fiança prestada em jóias, pedras ou metais preciosos será recolhida também por ofício, acompanhado do laudo de avaliação elaborado por peritos. 137. Nos crimes cujo processo e julgamento sejam da competência da Justiça Estadual, o recolhimento da fiança seguirá as orientações dos respectivos órgãos judiciários. 138. Quando a lavratura do auto de prisão ocorrer em local distante da repartição policial, e havendo arbitramento de fiança, o escrivão deverá certificar nos autos o recebimento, lavrando, posteriormente, o termo no livro próprio. 139. O depósito de valores referentes à fiança será feito até o primeiro dia útil seguinte ao recebimento, ressalvados os casos de comprovada impossibilidade. 140. A certidão do termo de fiança e o comprovante do recolhimento serão juntados aos autos do inquérito. CAPÍTULO X DAS COISAS APREENDIDAS

Page 194: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

183

141. Em cada cartório e nas delegacias descentralizadas haverá depósito e cofre destinados à guarda das coisas apreendidas. 142. As coisas apreendidas sob guarda cartorária, até a remessa ao órgão competente, ficarão sob a responsabilidade de funcionário policial expressamente designado por ato do dirigente da unidade descentralizada. 142.1 Ao chefe do Cartório incumbe exercer a supervisão e a fiscalização. 143. As coisas arrecadadas somente serão recolhidas ao depósito após a lavratura do respectivo auto de apreensão. 143.1. Por ocasião do recolhimento, o responsável pelo depósito conferirá o material recebido com o respectivo auto e o guardará em lotes devidamente numerados, arquivando cópia do auto de apreensão, identificado pelo número do lote e, quando for o caso, pelo número do procedimento. 144. Quando a coisa apreendida, por sua natureza ou volume, não puder ser acondicionada no depósito, será guardada em local apropriado, juntando-se aos autos a documentação comprobatória de seu destino. 145. As substâncias entorpecentes, tão logo sejam apreendidas, serão acondicionadas em sacos plásticos padronizados, devidamente lacrados, contendo a indicação de sua natureza e o número do respectivo inquérito. 145.1. Após o exame pericial, os invólucros serão novamente lacrados pelos peritos, que neles anotarão o peso da substância. 145.2 Apreendidas em grande quantidade, após o laudo pericial definitivo, a autoridade solicitará ao juiz competente autorização para incineração, mantendo amostra para a eventualidade de nova perícia, 145.2.1 A solicitação a que se refere esse item é dispensável quando se tratar de plantações, em face do disposto no § 2o do art. 40 da Lei 6.368/76. 145.3 Os Delegados Regionais de Polícia e os Chefes de Delegacias descentralizadas providenciarão, anualmente, a incineração das substâncias entorpecentes apreendidas, após sentença transitada em julgado ou mediante autorização judicial. 145.4. À incineração tratada no subitem anterior será lavrado auto circunstanciado, assinado pela autoridade policial, por duas testemunhas e pelo representante do órgão de saúde competente, podendo outras autoridades presentes serem convidadas para sua assinatura. 146. Realizada a perícia, a autoridade policial providenciará, com a brevidade possível, a remessa das coisas apreendidas ao órgão competente, juntando ao inquérito o comprovante da remessa.

Page 195: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

184

146.1. As mercadorias, veículos e bens, produtos de contrabando ou descaminho serão encaminhados à Receita Federal, para o devido procedimento fiscal, na forma dos artigos 25, 26 e 27 do Decreto-lei 1455, de 07.04.1976 e art. 104 do Decreto-lei 37, de 18.11.1966, sem prejuízo do ordenamento processual penal. 146.2. A apreensão de armas de fogo, nos procedimentos policiais, para efeito de registro e controle, obedecerá ao disposto no art. 38 do Decreto 2.222, de 08.05.1997. 146.3. Quando não vinculadas a inquérito policial, as armas de fogo, após periciadas, serão recolhidas ao setor próprio da unidade militar local do Ministério do Exército. 146.4. Dinheiro em espécie em moeda nacional deverá ser encaminhado à Caixa Econômica Federal com guia de depósito, à disposição do juízo competente, segundo dispõem os arts. 1º, inciso I, 2º, do Decreto-lei 1737, de 20.12.1979 e art. 16 do Decreto-lei 759 de 12.08.1969; se em moeda estrangeira, ao Banco do Brasil, fazendo-se a devida comunicação ao juízo competente, conforme estabelece o art. 1º, parágrafo único do Decreto-lei 3.077, de 26.02.1941. 146.5. Quando se tratar de moeda falsa, após perícia, a autoridade policial solicitará ao juiz competente autorização para remessa e depósito no Banco Central. 146.6. No caso de bens, cheques ou valores relacionados com o tráfico ilícito e uso indevido de substância entorpecentes a autoridade que presidir o feito adotará as providências estabelecidas no art. 34 da Lei 6.368/76, com as modificações introduzidas pela Lei 9.804, de 30.06.1999. 147. A movimentação de coisas apreendidas será certificada na cópia do auto de apreensão existente em Cartório. 148. Quando cabível, a restituição de coisas apreendidas será feita mediante termo próprio, observando-se o disposto no art. 120 e parágrafos do CPP. 149. O uso de bens apreendidos dependerá de autorização expressa do juiz competente. 150. Quando o bem necessitar de funcionamento para sua conservação, o responsável pelo depósito adotará providências nesse sentido, dando-se ciência ao seu chefe imediato. CAPÍTULO XI DAS MEDIDAS ASSECURATÓRIAS 151. Sempre que houver indícios suficientes de que o indiciado com respeito a bens, direitos ou valores, praticou atos previstos como crime na Lei 9.613, de 03.03.1998, a autoridade policial representará ao juiz competente pela respectiva apreensão ou seqüestro, conforme previsto no art. 4º da referida lei. 152. Efetuada a apreensão ou o seqüestro, a autoridade policial concluirá o inquérito com a indispensável brevidade, a fim de evitar que a medida seja prejudicada, conforme previsto no § 1º do art. 4º da Lei 9.613/98

Page 196: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

185

153. Tratando-se de apuração de crime que importe em atos de improbidade administrativa, que tenham ocasionado lesão ao patrimônio público ou proporcionado enriquecimento ilícito, a autoridade policial representará ao Ministério Público pela indisponibilidade dos bens do indiciado, em face do que dispõe o art. 7º da Lei nº 8.429, de 02.06.1992. CAPÍTULO XII DOS INCIDENTES 154. Quando, no curso da investigação, houver indícios da prática de crime por parte de magistrado ou membro do Ministério Público, a autoridade policial remeterá imediatamente os autos ao Tribunal competente ou ao Procurador-Geral respectivo, para as providências adequadas. 155. Em caso de extravio ou destruição dos autos originais, será feita a restauração, aplicando-se, no que couber, o disposto nos arts. 541 e seguintes do CPP. 156. Quando a Corregedoria Regional de Polícia verificar a ocorrência de irregularidades na condução do inquérito, proporá ao Superintendente Regional a avocação dos autos para redistribuição. 157. Na hipótese das irregularidades serem constatadas pela Divisão de Correições, a avocação será proposta ao Diretor do DPF. 158. No caso de avocação ex-offício, o inquérito será submetido a uma correição extraordinária, antes de ser redistribuído. 159. Em qualquer caso, a avocação será sempre fundamentada por meio de despacho nos autos. 160. Tratando-se de avocação motivada por irregularidades, o órgão correicional encaminhará ao Corregedor competente cópia do relatório de correições, para as medidas disciplinares. 161. A transferência de inquérito de uma unidade para outra do DPF, dentro da mesma área jurisdicional, quando necessária, será sempre feita pela respectiva Corregedoria, mediante despacho fundamentado da autoridade processante. 161.1. O inquérito será submetido ao Poder Judiciário quando a transferência implicar em mudança de jurisdição. 162. O inquérito transferido e o oriundo de outras instituições policiais serão obrigatoriamente registrados no livro tombo e SINPRO, recebendo novo número, capa e autuação, dispensando-se nova portaria e renumeração das folhas. 162.1Para efeito de controle, a capa anterior será mantida nos procedimentos. 163. Quando do retombamento de procedimentos policiais será observado o disposto no item 18. 164. Os desmembramentos e junções de inquéritos policiais já aforados dependerão de anuência do juiz competente.

Page 197: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

186

165. Os "habeas corpus" e mandados de segurança serão informados pela autoridade coatora, presidente do inquérito. 165.1. Na ausência da autoridade coatora e não tendo havido redistribuição do inquérito, caberá ao chefe da Divisão, Serviço e Delegacia, conforme o caso, ou à autoridade policial por eles indicada, providenciar a prestação das informações. TÍTULO II DAS INFRAÇÕES PENAIS DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO 166. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência de infrações penais de menor potencial ofensivo que configure flagrância providenciará a imediata lavratura de Termo Circunstanciado, na forma do art. 69 da Lei nº 9.099 de 26.09.1995. 166.1 Por infrações penais de menor potencial ofensivo, nos termos desse diploma, consideram-se as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial. 166.2 Nas ocorrências de lesões corporais leves, lesões corporais culposas, demais previsões do Código Penal e legislação especial condicionadas a representação do ofendido, o termo circunstanciado não será, sem ela, lavrado. (art. 88 da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais) 167. Na hipótese do encaminhamento do autor do fato ou seu compromisso de comparecer ao Juizado, não se imporá prisão em flagrante, nem será exigida a fiança. 168. O termo circunstanciado, instruído com as eventuais diligências realizadas, deverá ser encaminhado ao juiz competente imediatamente após sua formalização. 168.1 Os demais atos e exames periciais que se fizerem necessários serão providenciados e atendidos prioritariamente. 169. O termo circunstanciado será numerado de forma seqüencial e registrado em livro próprio e no Sistema Nacional de Procedimentos-SINPRO. TÍTULO III CAPÍTULO I DOS LIVROS CARTORÁRIOS 170. São livros cartorários de uso obrigatório: I. Livro Tombo, destinado ao registro de inquéritos policiais, os inquéritos transferidos entre unidades do DPF e os oriundos de outras instituições policiais, nesse caso, observado o item 162; II. Livro de Fiança, destinado ao registro de termos de fiança, na forma estabelecida no art. 329 do CPP;

Page 198: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

187

III. Livro de Registros Especiais, destinado a escrituração de cartas precatórias; procedimentos criminais oriundos de Tribunais Superiores; processos criminais (stricto sensu) com requisições de diligências; autorizações judiciais de diligências constritivas de direitos e medidas cautelares; e IV. Livro de Registro de Termos Circunstanciados. 171. Os livros cartorários obrigatórios conterão termos de abertura e encerramento, assinados pelo Chefe da Divisão, Delegado Regional de Polícia ou Chefe da Delegacia, que também rubricarão todas as folhas. 172. O termo de encerramento será lavrado na mesma data do termo de abertura. 173. Os livros ficarão sob a guarda e responsabilidade do chefe ou encarregado do cartório, a quem competirá os registros e as atualizações. 174. Os registros lavrados nos livros cartorários não poderão ser cancelados. 174.1. No caso de erro de lançamento, será feito novo registro com a retificação necessária, fazendo-se menção ao lançamento anterior. CAPÍTULO II DO SISTEMA NACIONAL DE PROCEDIMENTO – SINPRO 175. O Sistema Nacional de Procedimento – SINPRO, é o instrumento destinado a uniformizar os registros e controlar as atividades de polícia judiciária desta instituição, possibilitando utilização de dados e informação “on-line” aos seus usuários. 175.1 As notícias de infração penal, os inquéritos policiais, os termos circunstanciados, as cartas precatórias e os demais registros especiais, seus trâmites, e os atos correicionais serão registrados no SINPRO. 175.2 Incumbe ao Chefe da Divisão, Corregedor Regional de Polícia ou Chefe da Delegacia de Polícia Federal adotar medidas no sentido de manter atualizados os registros no SINPRO. 176. Os lançamentos dos dados no Sistema serão procedidos, diariamente, pelo escrivão do feito após a realização do ato a ser registrado. 176.1 A critério do Corregedor e observadas as peculiaridades de cada unidade policial poderão ser designados outros funcionários para operar o sistema. 176.2 As inclusões e alterações serão procedidas pelo escrivão do feito. As exclusões, pelo escrivão-chefe com autorização expressa das pessoas referidas no subitem 175.2 . 177. O credenciamento para acesso ao SINPRO será realizado pelas respectivas Corregedorias junto a Corregedoria-Geral de Polícia Federal. 178. O SINPRO será gerenciado nacionalmente pela Corregedoria-Geral de Polícia Federal e regionalmente pelas Corregedorias Regionais, com apoio técnico da Coordenação de Informática e Núcleos de Informática ou setor competente.

Page 199: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

188

TÍTULO IV DAS CORREIÇÕES NAS ATIVIDADES DE POLÍCIA JUDICIÁRIA CAPÍTULO I DA DEFINIÇÃO 179. As correições se constituem em ação fiscalizadora das atividades de polícia judiciária, objetivando apontar e corrigir eventuais falhas e cumprimento das normas legais e regulamentares, impondo-se controle e avaliação permanente, primando pela qualidade, eficiência e eficácia dos serviços. CAPÍTULO II DA CLASSIFICAÇÃO 180. As correições são classificadas em ordinárias, parciais e extraordinárias. 180.1. A correição ordinária será realizada anualmente pelas Corregedorias Regionais, no segundo semestre, tendo como objetivo examinar os procedimentos em tramitação, no tocante à parte formal e de qualidade, os livros cartorários, os expedientes pendentes, o depósito, o destino das coisas apreendidas, o cartório e a custódia. 180.2. A correição parcial é aquela realizada pelo setor correicional em todos os inquéritos, para verificar cumprimento de formalidades, antes da remessa à Justiça. 180.3 A correição extraordinária, com os mesmos objetivos preconizados nos subitens precedentes será determinada pelo Corregedor-Geral e, excepcionalmente, pelo Superintendente Regional para ação fiscalizadora em apenas um ou mais procedimentos policiais, ou setores da unidade. CAPÍTULO III DA CORREIÇÃO ORDINÁRIA 181. A correição ordinária obedecerá as seguintes rotinas: 181.1. Tarefas preliminares: I. elaborar o Plano Correicional; e II. fixar a data inicial dos trabalhos, comunicando-a, com antecedência, aos titulares das unidades a serem correicionadas. 181.2. Exames em geral. I. identificar: a) previamente no SINPRO os expedientes registrados que se encontrem pendentes de instauração;

Page 200: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

189

b) no Livro Tombo, quais os inquéritos policiais em tramitação, relacionando-os em ordem cronológica; c) no Livro de Registro de Termo Circunstanciado os procedimentos lavrados. II. examinar: a) com base no relatório do SINPRO, a situação de cada expediente pendente; b) o registro das ocorrências policiais e cumprimento dos despachos motivadores da instauração de procedimento; c) a exatidão dos registros nos Livros Tombo, Fiança, Registros Especiais e de Termo Circunstanciado; d) a existência nos livros de rasuras, emendas ou entrelinhas; e) as condições de segurança da custódia e jurídica do preso. III. conferir: a) a numeração das folhas dos livros e as rubricas da autoridade policial respectiva, bem como se foram lavrados os termos de abertura e encerramento; b) as coisas apreendidas, verificando sua destinação. 181.3 Exames nos inquéritos policiais iniciados por portaria. I. conferir: a) data de autuação com data da portaria de instauração; b) o teor da autuação com os documentos autuados; c) o preenchimento da capa de acordo com o item 18; d) as folhas, numeração e rubrica; e) o cumprimento dos prazos legais; e f) as assinaturas apostas em ofícios, memorandos e despachos em cotejo com a identificação do signatário; II. examinar: a) os termos de depoimentos e os autos de qualificação e interrogatório quanto às assinaturas da autoridade, indiciado, testemunhas, escrivão e outras; b) o Boletim Individual do Indiciado quanto ao correto preenchimento; c) ação, omissão ou retardamento por parte da autoridade, na adoção de medidas indispensáveis à instrução dos autos; d) no interrogatório do indiciado, a observância das regras dos arts. 186 e 188 do CPP, bem como do art. 5º, LVIII da CF; e) o prévio despacho justificativo da indiciação; e f) se a linha investigatória buscou os meios de prova, tais como apreensões, perícias, testemunhas, acareações, reconhecimentos, reconstituições e documentos utilizados na prática delituosa.

Page 201: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

190

III constatar: a) o cumprimento dos despachos judiciais e das promoções do Ministério Público; b) incorreções existentes ou ausência de testemunhas nos autos de apreensão, de entrega ou de restituição, e outros; c) se o Boletim de Vida Pregressa está corretamente preenchido e subscrito; e d) a existência de laudo pericial nos casos daquelas infrações que deixam vestígios. 181.4. Exame nos inquéritos policiais iniciados por auto de prisão em flagrante: I. observar no que couber, o previsto no subitem anterior; II. verificar: a) se o preso foi cientificado dos seus direitos e garantias constitucionais; b) se consta dos autos a Nota de Culpa, bem como se foi recebida pelo autuado dentro do prazo legal; c) se a prisão foi comunicada de imediato à autoridade judicial; d) se cópia do auto de prisão em flagrante foi remetida, dentro do prazo de 24 (vinte (e quatro) horas, à autoridade judicial e ao Ministério Público competentes; e) a existência do laudo de constatação da natureza da substância nos casos de prisão por crime de entorpecentes; f) a existência do despacho fundamentado previsto no parágrafo único do art. 37 da Lei 6.368/76; e g) no caso de fiança, a lavratura do termo no livro próprio, bem como a juntada aos autos da certidão respectiva e do comprovante de recolhimento 181.5 Exames nos termos circunstanciados de ocorrência: I. verificar se o termo circunstanciado existente em cartório, ainda que por cópia, foi lavrado com observância aos itens 165 a 168. 181.6 Elaboração de um processado, contendo as seguintes peças: I. original do Plano Correicional; II. cópias dos formulários de análise correicional referentes às falhas e irregularidades constatadas em cada inquérito examinado III. relatório correicional, com os seguintes ítens: a) EXPEDIENTES PENDENTES PARA APURAÇÃO; b) LIVROS CARTORÁRIOS; c) RELAÇÃO DOS INQUÉRITOS EXAMINADOS; d) COISAS APREENDIDAS; e) SITUAÇÃO DO CARTÓRIO E DO DEPÓSITO; f) CUSTÓDIA E PRESOS; g) IMPROPRIEDADES CONSTATADAS;

Page 202: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

191

h) AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO em que deverá ficar consignado se a execução das atividades de Polícia Judiciária buscou a qualidade, eficiência e eficácia, bem como se o desempenho profissional foi satisfatório na obtenção dos objetivos e metas da Instituição Policial Federal; e i) OBSERVAÇÕES FINAIS E SUGESTÕES PARA APERFEIÇOAMENTO DAS ATIVIDADES. IV avaliação e providências do Corregedor. V) medidas adotadas pelo Dirigente para sanar as eventuais falhas, incorreções e irregularidades. CAPÍTULO IV DA CORREIÇÃO PARCIAL 182. Na correição parcial serão observadas as rotinas previstas no item 181 e seus subitens. 183. Os autos serão entregues para correição, quando da remessa à Justiça, no prazo fixado pelas respectivas Corregedorias. 181.1. Os inquéritos policiais de natureza especial terão prioridade. 184. Os correicionados serão carimbados com a expressão "VISTO EM CORREIÇÃO", no verso da última folha. CAPÍTULO V DA CORREIÇÃO EXTRAORDINÁRIA 185. A correição extraordinária obedecerá a rotina da correição ordinária quanto aos procedimentos de polícia judiciária, podendo ainda, em cumprimento a fundamentado despacho de quem a determinou, ser estendida a qualquer setor da unidade a ser correicionada. CAPÍTULO VI DA REALIZAÇÃO DAS CORREIÇÕES 186. As Superintendências Regionais promoverão pelas Corregedorias Regionais de Polícia, correições em todos os órgãos de sua circunscrição. 187. Nas Delegacias de Polícia Federal das localidades onde houver vara da Justiça Federal, o Superintendente Regional, mediante proposta da Corregedoria local, poderá instituir um núcleo de correições, ou designar uma autoridade policial para executar a correição parcial dos inquéritos a serem remetidos à Justiça. 188. A Corregedoria-Geral de Polícia Federal promoverá, por intermédio da Divisão de Correições, correição extraordinária nas Superintendências Regionais e Delegacias de Polícia Federal.

Page 203: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

192

189. A Superintendência Regional que não executar a correição anual prevista no subitem 180.1, não apresentando justificativas, será submetida a correição extraordinária por parte da Corregedoria-Geral de Polícia Federal. TÍTULO VI DISPOSIÇÕES FINAIS 190. A Corregedoria Geral de Polícia Federal, pela Divisão de Correições, instituirá um mapa mensal de atividades de Polícia Judiciária, objetivando avaliar o desempenho das autoridades policiais federais que atuam na presidência de feitos policiais com dados relativos aos inquéritos policiais instaurados; relatados; termos circunstanciados; inquirições; indiciamentos procedidos; prisões efetuadas (flagrante, preventiva, temporária); diligências desenvolvidas (apreensões, acareações, reconhecimentos e outras ); pedido de sequestro de bens; de quebra de sigilo (comunicações telefônicas, fiscal, bancário, eleitoral); reinquirições; perícias requisitadas; precatórias (expedidas e atendidas) e promoções cumpridas 191. À autoridade e aos policiais encarregados das investigações é vedada a divulgação de diligências ou documentos relacionados com as apurações sob suas responsabilidades. 192. Os dossiês de inquéritos que tenham mais de dez anos concluídos poderão ser incinerados, a critério das Corregedorias Regionais de Polícia. 193. A Divisão de Correições/COGER promoverá uma revisão dos formulários destinados a execução das atividades de Polícia Judiciária, visando dar maior operacionalidade à presente Instrução Normativa. 194. A Coordenação de Informática adotará providências para implantar e conectar ao SINPRO os novos formulários cartorários aprovados pela Corregedoria-Geral de Polícia Federal. 195. Os livros cartorários enumerados no item 170 poderão ser informatizados, de conformidade com norma específica a ser editada pela Corregedoria-Geral, levando em consideração estudos que se processam na Coordenação de Informática, objetivando eficiente registro e maior controle. 196. Os casos omissos serão resolvidos pela Corregedoria-Geral de Polícia. 197. A presente Instrução Normativa entrará em vigor em 1º de agosto de 2001. Revoga-se a Instrução Normativa nº 01/92-DPF, de 30.10.1992. AGILIO MONTEIRO FILHO (Transcrição do DOU no. 126, de 02.07.2001 – Seção 1)

Page 204: Tese de Ozeas Correa Lopes Filho.PDF

193

Anexo IV