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 Diogo de Carvalho Cabral O ‘BOSQUE DE MADEIRAS’ E OUTRAS HISTÓRIAS: A MATA ATLÂNTICA NO BRASIL COLONIAL (SÉCULOS XVIII E XIX) Orientadora: Gisela Aquino Pires do Rio Rio de Janeiro Janeiro de 2012

Tese Diogo Cabral

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  • Diogo de Carvalho Cabral

    O BOSQUE DE MADEIRAS E OUTRAS HISTRIAS: A MATA ATLNTICA NO BRASIL COLONIAL

    (SCULOS XVIII E XIX)

    Orientadora: Gisela Aquino Pires do Rio

    Rio de Janeiro Janeiro de 2012

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    O BOSQUE DE MADEIRAS E OUTRAS HISTRIAS: A MATA ATLNTICA NO BRASIL COLONIAL

    (SCULOS XVIII E XIX)

    por

    Diogo de Carvalho Cabral

    Tese apresentada como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Doutor em Cincias (Geografia)

    Examinada por ________________________________________

    Gisela Aquino Pires do Rio

    (Presidente da Banca Examinadora)

    _________________________________________

    Jos Augusto Pdua _________________________________________

    Rogrio Ribeiro de Oliveira _________________________________________

    Maria Clia Nunes Coelho

    _________________________________________ Ana Maria Daou

    Data _______________________________________________

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    A Paulo Maral de Carvalho

    (in memoriam)

    &

    Mauricio de Almeida Abreu

    (in memoriam)

    Pudssemos ns atar os fios soltos, e o mundo seria a mais forte e justificada de todas as coisas.

    Jos Saramago

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    SUMRIO

    Lista de tabelas e figuras v Agradecimentos vi Resumo/Abstract viii Abreviaturas ix INTRODUO 10 PARTE I PARA SE ESCREVER HISTRIA AMBIENTAL 23 Captulo 1. O que uma floresta? Natureza, materialismo e dialtica socionatural 26 PARTE II A FLORESTA, A ECONOMIA E A VIDA COLONIAL 61 Captulo 2. A Mata Atlntica e o sistema tcnico 63 Captulo 3. As madeiras de lei e a ecologia poltica da floresta 105 PARTE III PERSPECTIVAS COMPARATIVAS PAN-AMERICANAS 140 Captulo 4. O comrcio madeireiro nas Amricas portuguesa e britnica 144 Captulo 5. O fardo da distncia 158 Captulo 6. Staples e biogeografia 169 Captulo 7. Modo de povoamento e mercado interno 189 Captulo 8. Agricultura e explorao madeireira 202 METAMORFOSES FLORESTAIS (eplogo) 217 Fontes primrias manuscritas 223 Fontes primrias impressas 225 Fontes secundrias 227

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    LISTA DE TABELAS E FIGURAS

    Tabelas

    Fisionomias vegetais do Bioma Mata Atlntica 16 Preos tabelados e efetivamente pagos por madeiras navais Em Ilhus, 1791 130 Exportaes madeireiras para a metrpole colonial: Brasil, Amrica britnica pr-revolucionria e Amrica do Norte britnica 148 Comrcio costeiro de madeira, Amrica britnica (1768-1772) 154 Distncia-tempo entre diversos lugares e Londres, c.1820 (em dias) 159 Comparao da dureza de algumas madeiras das Amricas portuguesa e britnica 180 Figuras

    O territrio colonial e a grande Mata Atlntica 22

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    AGRADECIMENTOS

    Esta tese o resultado de quase uma dcada de pesquisas e reflexes sobre a Mata Atlntica colonial. Muitas pessoas me ajudaram ao longo dessa j longa trajetria. difcil de agradecer a todas elas, pois talvez fossem necessrias mais 300 pginas de texto. Alm disso, nos quatro ltimos anos em que propriamente desenrolou-se a pesquisa de doutoramento, tive que contar com muitos orientadores e consultores informais, o que aumenta ainda mais a lista de agradecimentos. Desculpo-me, portanto, j de antemo pelas omisses.

    sempre necessrio agradecer a Judith Fiszon, minha orientadora quando fiz meu

    estgio de iniciao cientfica no Departamento de Cincias Sociais da ENSP/FIOCRUZ. Seu encorajamento a um pensamento livre das prises disciplinares algo que reverbera at hoje, e provavelmente reverberar at o final de minha carreira acadmica. Alm disso, seu carinho e afeto quase maternais sempre foram afagos importantes a um esprito cansado.

    Simone Freitas eu conheci na mesma poca em que conheci Judith e desde ento somos parceiros em amizade fraterna e trocas intelectuais estimulantes. Minha eterna consultora em assuntos biolgicos e ecolgicos.

    O saudoso Mauricio Abreu me acolheu em seu ncleo de pesquisas, forneceu

    inestimveis materiais originais (frutos de suas pesquisas em arquivos lisboetas) e discutiu comigo meus trabalhos anteriores sobre o uso das madeiras da Mata Atlntica.

    Jos Augusto Pdua, meu orientador de mestrado, foi e ainda uma poderosa

    referncia para o meu pensamento. Sempre que posso no perco a oportunidade de papear com ele sobre os rumos de minhas pesquisas.

    Gisela Pires do Rio foi muito gentil em me receber como orientando faltando poucos

    meses para a concluso da tese. Antonio Carlos Juc disps-se a ouvir pacientemente minhas dvidas sobre histria

    econmica do perodo colonial. Patrcia Silveira fez um belssimo levantamento no Arquivo Geral da Cidade do Rio de

    Janeiro. Os dados que ela coletou acabaram no sendo mais pormenorizadamente analisados na tese, mas o sero para o livro que a partir dela espero editar. Patrcia tambm compilou parte da imensa bibliografia.

    Graeme Wynn ajudou-me demais em minha estada em Vancouver. Arrumou um lugar

    para que eu morasse (o magnfico Green College), emprestou-me e deu uma quantidade imensa de livros, discutiu comigo o trabalho (especialmente a parte referente Amrica do Norte) e, como se no bastasse, ainda me recebeu em sua casa para jantares e reunies agradabilssimas. sua esposa Barbara tambm meu muito obrigado.

    Tambm em Vancouver, Stephanie Shulhan, Pushkar Sohoni e David e Anita Prest

    foram leais e carinhosos amigos com quem sempre pude contar no Green College.

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    Os amigos do antigo NPGH (Ncleo de Pesquisas de Geografia Histrica) sempre foram

    carinhosos e me estimularam muito: Renato, Vtor, Leonardo, Deborah, Gustavo e Marcus Vincius.

    Leonardo Lignani muito gentil e amigavelmente meu acolheu em sua casa, nos ltimos meses de elaborao da tese. Sem este ambiente de paz e tranqilidade, teria sido muito mais difcil conclu-la.

    Carol Rabelo sabe adocicar a minha vida, alm de conhecer a diferena entre sacarose e

    frutose. E eu a amo. O povo brasileiro, evidentemente, foi quem, em ltima instncia, possibilitou que eu me

    dedicasse carreira acadmica no apenas nestes ltimos anos, em meu doutoramento, mas desde a graduao. Tive todo tipo de bolsa, desde a de iniciao cientfica, passando pela obscura iniciao tecnolgica-industrial, at a de doutorado. Aos milhes e milhes de trabalhadores que, com seu suor, permitiram que eu perseguisse meu sonho, meu muito obrigado.

    D.C.C.

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    O Bosque de Madeiras e Outras Histrias: A Mata Atlntica no Brasil Colonial (Sculos XVIII e XIX)

    Resumo

    O estudo trata das interaes entre humanos e florestas costeiras na Amrica colonizada pelos portugueses, sobretudo nos sculos XVIII e XIX. Seu argumento bsico de que impossvel entender a formao do territrio e da socioeconomia coloniais sem um exame profundo disto que hoje entendemos, amplamente, como a Mata Atlntica. O sistema tcnico pode ser visualizado como um conjunto de metamorfoses florestais coordenadas que conferia sentido a uma colnia destinada a fornecer produtos comercializveis na Europa. A poltica e a cincia coloniais ganham um novo significado quando percebidas no contexto da corrida armamentista em uma poca em que as guerras no mar eram travadas em navios de madeira. A extrao desse recurso era algo fundamental em qualquer economia de tipo preindustrial e uma avaliao econmica do desempenho brasileiro requer uma comparao. Neste caso, o contraponto mais interessante a Amrica colonizada pelos ingleses entre os sculos XVII e XIX. Os dados disponveis mostram que a Amrica portuguesa exportou menos madeira do que a Amrica inglesa e isto pode ser explicado por quatro fatores socionaturais: 1) a distncia diferencial em relao aos mercados europeus, 2) a composio florstica das florestas costeiras, 3) a constituio do habitat humano e dos mercados internos e 4) a relao entre agricultura e extrativismo madeireiro. Palavras-chave: Mata Atlntica brasileira; Relaes socionaturais; Brasil colonial; Amrica britnica; Histria ambiental.

    The Timber Woods and Other Stories: The Brazilian Atlantic Forest in the Colonial Era (Eighteenth and Nineteenth Centuries)

    Abstract

    In this dissertation, we study the interaction between humans and coastal forests of Portuguese America, especially in the eithteenth and nineteenth centuries. Its basic claim is the impossibility of one to understand the territorial and socioeconomic formation of colonial Brazil without a deep examination of what we have came known as the Brazilian Atlantic Forest. The technical system can be conceptualized as a set of articulated forest metamorphoses which gave meaning to a colony whose purpose was to provide merchantable goods in Europe. Colonial politics and science are seen under a new light when understood in the context of an arms race in a period in which war in the sea played out through vessels made of wood. The extraction of this resource was paramount in any economy of the preindustrial kind and an economic examination of the Brazilian performance demands a comparation. In this case, the most interesting counterpoint is the Americ colonized by the English between the seventeenth and nineteenth centuries. The available data show that Portuguese America exported less timber than English America and this can be explained by four socionatural factors: 1) The diferencial distance in relation to European markets, 2) The floristic composition of the coastal forests, 3) The constitution of the human habitat and internal markets, and 4) The relationships between agriculture and timber extractivism. Key-words: Brazlian Atlantic Forest; Socionatural relations; Colonial Brazil; British America; Environmental History.

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    ABREVIATURAS

    AGCRJ Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro AHU Arquivo Histrico Ultramarino (Lisboa) ANRJ Arquivo Nacional do Rio de Janeiro BNRJ Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro RIHGB Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro

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    INTRODUO

    POR UMA HISTRIA RELACIONAL DA MATA ATLNTICA

    PARA GEGRAFOS E historiadores ambientais, o territrio no (somente) um recorte abstrato, um simples mapa poltico-administrativo. Ele tambm no (somente) a materialidade criada intencionalmente pelos humanos e suas instituies culturais.1 H algo mais. H uma outra fora, uma fora que no inteiramente humana, interferindo na construo dos territrios humanos. Na verdade, no h nada de no-natural no territrio. Uma das maneiras de defini-lo exatamente a partir da relao com a dinmica ou mesmo poder natural do mundo.2 Os humanos no constroem seus territrios atravs de uma contemplao desencarnada, mas a partir do engajamento prtico com o entorno mundano, com as coisas que eles encontram pelo caminho coisas sobre as quais eles possuem um controle apenas parcial. Tanto na situao de uso efetivo quanto no prprio processo de apropriao, o territrio um espao biofsico cheio e diversificado, dotado de complexos contedos naturais.3

    Dentre esses contedos, um dos mais conspcuos, no caso do Brasil, a floresta. Entre os sculos XVI e XIX, a construo de uma sociedade politnica e estratificada ocorreu, majoritariamente, na floresta. Do territrio americano delegado Coroa portuguesa pelo Tratado de Tordesilhas, em 1494, no menos do que dois quintos estavam cobertos por matas tropicais e sub-tropicais e ecossistemas aparentados. Por quase dois sculos, o povoamento neoeuropeu concentrado restringiu-se s florestas da regio que o pintor e viajante alemo Johann Moritz Rugendas, na dcada de 1830, chamou de litoral leste: a regio costeira atlntica delimitada, no interior, pelo cordo montanhoso que comea na Serra Geral e termina na Chapada Diamantina. Administrativamente, a regio do litoral leste englobava o sudeste da capitania de Minas Gerais, as capitanias da Bahia, Esprito Santo, Rio de Janeiro, sul de So Paulo, Santa Catarina e Rio Grande de So Pedro.4 Juntamente com a capitania geral de Pernambuco que Rugendas preferiu incluir na regio adjacente do vale do So Francisco ,

    1 Os historiadores ambientais quase sempre falam em humanos e isto possui dois significados. Em primeiro lugar,

    evita-se o machismo de se referir, mais estreitamente, aos homens. Em segundo lugar, acentua-se a qualidade biolgica relativa ao pertencimento a uma determinada espcie do reino animal (Homo sapiens). Com isso, entretanto, eles no desejam realizar uma reduo sistemtica dos problemas do homem ao plano de sua biologia, conforme escreveu o historiador Fernand Braudel em crtica ao livro de Max Sorre, Les bases biologiques de la gographie humaine. Os historiadores ambientais no excluem nem menosprezam a qualidade cultural da espcie humana, bem como as estruturas econmicas e polticas que produzem no apenas diferenciao, mas, sobretudo, desigualdade entre suas populaes. A crtica de Braudel est em seu H uma geografia do indivduo biolgico? in F. Braudel, Escritos sobre a histria (So Paulo: Perspectiva, 1978), 143-160.

    2 Rogrio Haesbaert, O mito da desterritorializao, 3 ed. (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2007), 44, 53. 3 Jos Augusto Pdua, Natureza e sociedade no Brasil monrquico, in K. Grinberg e R. Salles (orgs.), O Brasil

    imperial, vol.3 (Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2009), 314. 4 Johann Moritz Rugendas, Viagem pitoresca atravs do Brasil, 8 ed. (Belo Horizonte: Itatiaia, 1979), 15-18.

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    essas terras florestadas constituram o lcus fundamental do encontro biofsico e cultural que remodelou a terra e a vida na Amrica portuguesa (Figura A). Sob o jugo ibrico, humanos de trs continentes diferentes foram obrigados a produzir suas vidas no mesmo espao. Embora cada grupo e subgrupo cultural e sciopoltico carregasse consigo formas particulares de conceber, sentir e agir, todos eles tinham de lidar com as florestas. o papel deste terreno incomum da experincia social e cultural que queremos explorar nesta tese.5 Seu argumento bsico de que impossvel entender a formao do territrio e da socioeconomia coloniais sem um exame profundo das florestas costeiras isto que hoje entendemos, amplamente, como a Mata Atlntica brasileira.

    O fato de esse argumento ser fruto da projeo de um conceito do presente sobre o

    passado inevitvel, mas nem por isso deve deixar de ser problematizado. O conceito de Mata Atlntica ganhou tanta popularidade, desde os anos 1990, que se naturalizou no imaginrio geogrfico e ecolgico nacional. Originalmente isto , antes da colonizao portuguesa , essas matas teriam se estendido por cerca de 1,3 milho de quilmetros quadrados ao longo da costa entre os atuais estados do Rio Grande do Norte e de Santa Catarina, com uma larga interiorizao comeando no sul da Bahia. Essa a linha de base que normalmente usada para se medir a devastao das florestas costeiras, como no clssico relato de Warren Dean.6 Assim, no comeo do sculo XXI, calcula-se que no nos restam mais do que dez por cento dessas matas.7 Todavia, enquanto a histria da devastao da Mata Atlntica ganha muita ateno por parte dos pesquisadores, dos ambientalistas e da opinio pblica em geral, a histria de como viemos a conhecer e organizar conceitualmente essa realidade permanece quase sempre na penumbra. Dean, por exemplo, propondo-se a escrever uma histria do Brasil do ponto de vista da (destruio da) Mata Atlntica, em momento algum aborda a idia de Mata Atlntica ela mesma, isto , o problema da construo histrica de uma representao simblica que reuniu sob uma categoria nica e unificadora, uma vasta poro de mundo natural.8

    A Mata Atlntica tanto uma realidade biofsica quanto uma construo cultural e

    poltica, ambas em movimento e interao. Este um terreno escorregadio e devemos proceder com cuidado. Certos autores falam na inveno desses objetos geoecolgicos, como, por exemplo, a floresta tropical chuvosa (tropical rainforest).9 Esta perspectiva construtivista muitas vezes vai longe demais e acaba perdendo contato com a materialidade. Preferimos afirmar que a idia de Mata Atlntica foi uma resposta conceitual, simblica e ideolgica a uma situao material que se mostrava alarmante segundo os valores e preocupaes polticas do final do sculo XX. A Mata Atlntica no foi completamente inventada pelos cientistas e legisladores, mas, por outro lado, tambm est longe de ser um objeto puramente natural.

    Considerando o carter fundante da narrativa de Dean, no nos resta alternativa a no

    5 Terreno incomum uma expresso de William Cronon, Introduction in W. Cronon (ed.), Uncommon ground

    (New York: W.W. Norton & Co., 1996), 56. 6 Warren Dean, A ferro e fogo (So Paulo: Cia. das Letras, 1996). 7 Fundao SOS Mata Atlntica, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Atlas dos remanescentes florestais da

    Mata Atlntica (So Paulo, 2011). 8 Leonardo C. Castro, Da biogeografia biodiversidade, Tese de Doutoramento (Rio de Janeiro: PPGAS/UFRJ,

    2003), 43. 9 Ver, por exemplo, Philip Stott, Tropical rain Forest (London: IEA Environment Unit, 1999).

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    ser afirmar que a histria da Mata Atlntica, em certo sentido restrito, comea no final do sculo XX, mais exatamente na virada da dcada de 1980 para a seguinte. Essa a poca da redemocratizao, no Brasil, e do crescimento de um clamor internacional pelo chamado desenvolvimento sustentvel (em 1992, temos a Eco-92, no Rio de Janeiro). As florestas costeiras do Brasil comeam a serem reconhecidas mundialmente como hotspots de biodiversidade ameaados pelo desmatamento descontrolado. Uma srie de livros e artigos publicada por especialistas estrangeiros e nacionais acerca de uma vanishing Brazilian Atlantic Forest.10 A Constituio brasileira de 1988 determinou que a Mata Atlntica, assim como outras formaes ambientais, era um patrimnio nacional a ser protegido. Entretanto, seus limites geogrficos no foram claramente definidos. Isto viria a ser feito por dois decretos presidenciais, de 1990 e 1993, assinados respectivamente por Fernando Collor e Itamar Franco. Eles definiram a tal Mata Atlntica conforme o mapeamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), publicado no mesmo ano da Constituio. Nessa primeira edio do mapa, o rtulo Mata Atlntica havia sido reservado apenas Floresta Ombrfila Densa, formao restrita s reas costeiras sem perodo seco e cujas temperaturas mdias mensais ficavam entre 22 e 25C; no foram includas as florestas decduas do interior, de clima sazonal e temperaturas mdias mensais entre 15 e 22C. Na segunda edio do mapa, todavia, publicada no mesmo ano do segundo decreto presidencial mencionado, o IBGE manteve as mesmas formaes vegetais, mas removeu qualquer meno Mata Atlntica abrindo caminho para que o rtulo fosse aplicado mais liberalmente. Assim, num perodo de poucos anos, alterou-se uma conveno poltica que, ao coadunar uma rea de floresta costeira chuvosa relativamente pequena a formaes florestais interioranas muito maiores, teve profundas conseqncias sobre a escrita da histria e sobre a formulao de polticas pblicas.11

    Tal como atualmente entendida e praticada, a Mata Atlntica um bioma. Bioma um

    conceito que os bilogos e gegrafos criaram, em meados do sculo passado, para descrever grandes conjuntos ambientais determinados, principalmente, pelo clima. Trata-se de uma rea com dimenses normalmente superiores a um milho de quilmetros quadrados em que o clima, a fisionomia da vegetao, o solo e a altitude so semelhantes ou aparentados.12 Note-se que no h nenhum critrio florstico. Florestas que tenham diferenas importantes nas espcies que as compem podem estar includas num mesmo bioma. A incluso de uma formao florestal (ou campestre ou outra qualquer) em um ou outro bioma condicionada similaridade entre suas caractersticas ambientais e aquelas encontradas em outras regies do bioma. Assim, a caatinga arbrea uma forma de floresta estacional semidecidual, mas no pertence Mata Atlntica porque ocorre em condies climticas e pedolgicas distintas daquelas da floresta estacional semidecidual tpicas desse bioma. Mas o que seria ento a tal florestal estacional semidecidual um sub-bioma? O bilogo Cezar Gonalves argumenta que a Mata Atlntica oficial , na verdade, um domnio ou bioma lato sensu, pois ela abrange diversos biomas. Haveria, por outro lado, um bioma stricto sensu da Mata Atlntica, definido rigorosamente pelo clima a floresta ombrfila densa.13 Confuso? Nem tanto, pelo menos no

    10 Referncia ao influente artigo do bilogo Gustavo A. B. Fonseca, The vanishing Brazilian Atlantic Forest,

    Biological Conservation 34, 1985, 17-34. 11 Christian Brannstrom, Rethinking the Atlantic Forest of Brazil, Journal of Historical Geography 28 (3), 2002,

    431. 12 Leopoldo M. Coutinho, O conceito de bioma, Acta Botanica Brasilica 20 (1), 2006, 14. 13 Cezar N. Gonalves, O conceito de bioma e a legislao especfica para a proteo da Mata Atlntica, Natureza &

    Conservao 7 (2), 2009, 21-28.

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    at aprendermos que, h alguns anos atrs, um grupo de pesquisadores do Museu Paraense Emlio Goeldi encontrou Mata Atlntica... na Amaznia! Trata-se das matas da Ilha de Ipomonga e outras ilhas dos arredores, no municpio de Curu, no nordeste do Par. Elas possuem maior nmero de espcies caduciflias e epfitas, o que as aproxima da Mata Atlntica tpica. Segundo o pesquisador Samuel Almeida, que chefiou a equipe do Goeldi, um bom nome para a floresta de Ipomonga seria Mata Amaznica Atlntica, j que, embora parecida com a Mata Atlntica, ela se encontra localizada no bioma amaznico.

    Boa parte dessa confuso taxonmica deriva do fato de que as classificaes e

    discusses so feitas, na maioria das vezes, a partir de uma idia de natureza completamente exterior aos humanos. A floresta est l fora, em sua plenitude e completa independncia existencial, e ns vamos l revel-la como ela absolutamente . Mas, como as coisas no so assim, surge todo tipo de opinio sempre muito subjetiva, sabe? Ora, quando encaramos com seriedade o fato de que a floresta , tambm, o que ns queremos que ela seja, tudo fica mais claro. Todo critrio de delimitao do espao, ao mesmo tempo em que emana das caractersticas e dinmicas do espao ele mesmo, tambm serve a algum propsito e deriva de alguma lgica cultural e poltica. Nossos biomas ou domnios so tanto mais acurados quanto mais teis forem aos nossos objetivos ao delimit-los. Lcido, portanto, foi o deputado Luciano Pizzatto, do ento PFL do Paran, quando admitiu adotar o que chamou de critrio geopoltico ao relatar o Projeto de Lei (PL) da Mata Atlntica, em outubro de 1999. Segundo o deputado, a Mata Atlntica estender-se-ia para alm das formaes florestais costeiras, incluindo remanescentes espalhados em uma vasta rea nos estados de So Paulo, Paran, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Santa Catarina, bem como a Argentina e o Paraguai. Pizzatto dividiu essa rea em onze classes distintas, deixando o caminho livre para negociaes entre os atores sociais envolvidos que, em uma primeira etapa, poderiam deixar algumas delas fora do projeto de lei.14 Depois disso, ainda houve muitas idas e vindas, muitas discusses e trocas de Comisses, na tramitao do PL. Quando finalmente aprovado em 2006 e regulamentado em 2008, o PL referendou a definio ampla de Mata Atlntica como um domnio composto por vrias fisionomias vegetais.15 Todo este processo mostra o quanto a floresta poltica e biofsica ao mesmo tempo; a natureza uma espcie de campo um campo ativo, porm para a imposio das escolhas culturais humanas.16

    Da mesma forma, a escolha e a adoo dessa grande Mata Atlntica, ou seja, do bioma

    ou domnio de 1,3 milho de quilmetros quadrados, tm conseqncias importantes sobre as histrias que contamos. Para a escrita da histria, o fato de ela ter sido referendada legalmente no , em si mesmo, mrito ou demrito; tudo depende dos nossos propsitos narrativos. Claramente, a grande Mata Atlntica serve melhor a histrias sinpticas e de longa-durao como a de Dean e pior a monografias locais e regionais. Em belssimo estudo utilizando fontes cartoriais, o gegrafo Christian Brannstrom mostrou que a vegetao de uma rea de pouco mais de 10.000km2, no oeste do atual estado de So Paulo, melhor caracterizada como 14 No temos nenhuma simpatia particular pelo deputado Pizzatto e sua ao parlamentar. Nossa referncia ao seu

    relatrio teve apenas o objetivo de ressaltar que ele teve o mrito de reconhecer explicitamente que as consideraes geopolticas esto sempre presentes em qualquer apreciao sobre a natureza.

    15 Para um resumo da tramitao do PL, entre 1992 e 2006, ver o artigo de Marlia Steinberger e Rafael Rodrigues, Conflitos territoriais na delimitao do Bioma Mata Atlntica, Anais do I Simpsio Nacional de Geografia Poltica, Territrio e Poder (Curitiba: UNICURITIBA, 2009).

    16 Campo para a imposio da escolha uma expresso de Donna Haraway, citada por Val Plumwood, The concept of a cultural landscape, Ethics and the Environment 11 (2), 2006, 144.

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    um mosaico de floresta e cerrado, no comeo do sculo XX. Cem anos antes, os naturalistas austracos J. B. von Spix e K. F. P. von Martius haviam estimado que, das 17.500 lguas quadradas da capitania de So Paulo, apenas 5.000 eram cobertas de matas, ou seja, menos da tera parte. Estudos semelhantes ao de Brannstrom provavelmente mostrariam que muitas outras reas do interior eram, no passado, cobertas com mosaicos de floresta, cerrado e campos, relativizando, por exemplo, narrativas da destruio da Mata Atlntica operada pela minerao de ouro e diamantes, no sculo XVIII.17 Este um problema de escala, no sem razo to caro aos gegrafos. As reflexes geogrficas nos ensinam que o mais prudente que definamos com clareza os nveis de resoluo geogrfica com que estamos trabalhando, posto que nossas inferncias so inextricavelmente dependentes deles. Questes e assertivas feitas para um determinado nvel no podem ser extrapoladas para outros nveis sem grande perda de poder perceptual e interpretativo.18 Evidentemente, possvel e at recomendvel que um historiador narre em vrias escalas. Seu desafio, ento, concatenar os fenmenos observveis em cada uma delas e enredar uma trama coerente.

    A expresso exata Mata Atlntica parece que foi usada, pela primeira vez, pelo

    gegrafo Aroldo de Azevedo, em 1950.19 Na ocasio, ele se referia s florestas costeiras que, situadas em encostas de barlavento a pouca distncia da linha de costa, beneficiavam-se dos ventos midos provenientes do Atlntico. Se o nome que viria a pegar nos anos 1990 foi o de Azevedo, o conceito no era dele. Ele foi primeiramente formulado de forma sistemtica por dois botnicos estrangeiros, no incio do sculo XIX: o alemo Karl von Martius e o francs Auguste de Saint-Hilaire. No volume XXI da Flora Brasiliensis, que foi editado por Martius (entre outros) e publicado em 1858, encontra-se um mapa fitogeogrfico em que se divide o Brasil em cinco provncias: Nayades (flora amaznica), Hamadryades (flora nordestina), Oreades (flora do centro-oeste), Dryades (flora da costa atlntica) e Napeias (flora subtropical do sul). As Dryades, ninfas dos bosques europeus, representavam as matas tropicais que se beneficiavam da umidade das encostas recebedoras dos ventos atlnticos.20 A mata virgem do botnico francs Auguste de Saint-Hilaire tambm estava estreitamente associada ao relevo montanhoso. So necessrias vegetao das matas virgens duas condies que nas montanhas coincidem; um abrigo contra o vento e muita umidade. o terreno montanhoso continua, a origem do vigor da vegetao, esta sendo uma regra geral a se estabelecer a respeito da vegetao do Brasil. As matas virgens ocorreriam sempre nas encostas dos vales, pois recebiam as guas escoadas das cadeias de montanhas que as encerravam. No fundo dos vales, por outro lado, cresceria apenas uma vegetao brejosa. Nas reas mais planas dos plats elevados, a evaporao seria mais rpida, diminuindo a

    17 Brannstrom, 432-433; J. B. von Spix e K. F. P. von Martius, Viagem pelo Brasil, vol.1 (Rio de Janeiro: Imprensa

    Nacional, 1938), 210. 18 Ver In E. Castro, O problema da escala in I.E. Castro, P.C.C. Gomes e R.L. Corra (orgs.), Geografia (Rio de

    Janeiro: Bertrand Brasil, 1995), 117-140. 19 Aroldo de Azevedo, Regies climato-botnicas do Brasil, Anurio Brasileiro de Economia Florestal 11, 1950,

    201232, citado por Ary T. Oliveira-Filho e Marco Aurlio L. Fontes, Patterns of floristic differentiation among Atlantic Forests in Southeastern Brazil and the influence of climate, Biotropica 32 (4), 2000, 794.

    20 Tudo leva a crer que foram as sombrias matas virgens da Serra do Mar (Spix e Martius, Viagem, vol.1, 191) que serviram de modelo a Martius em sua formulao do conceito de Dryades. No primeiro volume da Flora, ele confessa que as florestas da Serra dos rgos me agradaram muito mais do que as outras e ficaram para sempre gravadas no meu esprito, no s porque fossem primitivas e, com isto, um presente para os meus olhos espantados, mas na verdade porque excedem em beleza e suavidade. Karl von Martius, A viagem de von Martius (Flora Brasiliensis, vol.1) (Rio de Janeiro: Index, 1996 [1840]), 34.

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    disponibilidade de gua; a se encontrariam campos de gramneas entremeados por capes de mato. Em mais de uma ocasio, Saint-Hilaire falou em uma regio das florestas, grafada em itlico, que, segundo ele, compreendia as terras e matas situadas ao oriente da grande cordilheira martima.21

    Essa associao entre Mata Atlntica e encosta mida permaneceu, com poucas

    alteraes, at os anos 1970. Na verdade, como vimos, ela ainda aparecia no Mapa de Vegetao do IBGE de 1988 e, apesar do decreto presidencial e do novo mapa de 1993, esse sentido mais antigo da expresso continuou sendo reclamado por parte da comunidade cientfica, mesmo no final dessa dcada e, a rigor, at hoje. Ao ressaltar este fato, no queremos dar a entender que, por conta dessa continuidade histrica, a Mata Atlntica verdadeira a vegetao de encosta mida e que os outros tipos so incluses artificiais ou indevidas; nosso objetivo completamente diferente. Em primeiro lugar, queremos chamar a ateno para o fato de que a concepo corrente de Mata Atlntica no existiu desde sempre; pelo contrrio, ela bem recente. Em segundo lugar, queremos sugerir que no devemos negligenciar as complexidades internas grande Mata Atlntica. Ainda que, principalmente na escala do territrio colonial, seja vlido continuar com a representao do grande manto florestal de 1,3 milho de quilmetros quadrados, ela no deve excluir as diferenciaes internas em termos de fisionomia e comunidade vegetal.

    Nesse sentido, para entendermos a Mata Atlntica, til a imagem de um mosaico

    vegetal que se organiza ao redor da floresta mida de encosta, contendo vrias comunidades perifricas. Sujeitas a estresses ambientais mais pronunciados do que a comunidade core (extremos de temperatura, inundaes, secas, alta salinidade, etc.), essas comunidades marginais incluem restingas, manguezais os bosques anfbios de que falavam Spix e Martius , florestas decduas e campos de altitude, entre outros tipos. Apesar das diferenas de habitat, essas comunidades vegetais guardam muitas semelhanas com a floresta de encosta no que se refere composio florstica. Ao longo da histria evolucionria, muitas das espcies migraram encosta acima e, principalmente, encosta abaixo, adaptando-se fisiologicamente aos novos ambientes. Nas restingas do Rio de Janeiro, por exemplo, 60 por cento das espcies encontradas so comuns encosta mida.22 Baseados no exame de relquias de vegetao, bem como na considerao da vegetao potencial do territrio i.e., daquilo que o solo e o clima poderiam fazer crescer caso os humanos no interviessem , os gegrafos e bilogos estimam a rea pr-colombiana dessas fisionomias vegetais. A Tabela A mostra a extenso espacial aproximada de cada uma delas.

    21 Auguste de Saint-Hilaire, Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a So Paulo (1822) (Rio de

    Janeiro: Cia. Ed. Nacional, 1932), 79, 104, 136, 138, 143, 150-152, 160, 163, 168, 193-194, 200, 204; mesmo autor, Viagem provncia de Santa Catharina (1820) (So Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1936), 99, 166.

    22 Spix e Martius, Viagem, vol.1, 145; Fabio R. Scarano, Structure, function and floristic relationships of plant communities in stressful habitats marginal to the Brazilian Atlantic rainforest, Annals of Botany 90, 2002, 517-524.

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    Tabela A. Fisionomias vegetais do Bioma Mata Atlntica

    Fonte: www.rbma.org.br

    Assim, mais do que um simples sistema de classificao, a Mata Atlntica pode ser vista

    como um mosaico vegetal que veio sendo construdo historicamente, na cultura e na matria. Alm de conceitos cientficos e legislaes, essa construo histrica entrelaou uma srie de processos materiais de longussima durao, tanto naturais como culturais. Na escala de tempo geolgica, os grandes conjuntos vegetais interagem, principalmente, com o clima. Pesquisas sobre os climas do passado mostram que eles vieram mudando ininterruptamente. Embora os dados disponveis refiram-se mais diretamente bacia amaznica, eles indicam a tendncia dos Neotrpicos como um todo. Nessa regio biogeogrfica que compreende, basicamente, a Amrica do Sul , h indcios de que, entre 30 e 5 milhes de anos atrs, as temperaturas eram mais altas do que hoje em dia, como em outros lugares do globo. H 23 milhes de anos atrs, certamente j existiam florestas tropicais nas baixadas, o que indica que se vivia um clima quente e mido. Por oceanos de tempo, em intervalos mais ou menos constantes, glaciaes vieram e foram, derrubando e elevando novamente as temperaturas, bem como alterando os nveis de precipitao; nessa gangorra climtica, a temperatura oscilava em 8 ou 9C. No pico da ltima dessas glaciaes, ocorrida h 18 mil anos atrs, as atuais baixadas tropicais eram 4 a 5C mais frias do que no presente. O clima pode ter se tornado to seco a ponto de chover metade da gua que atualmente se precipita. As florestas, principalmente ao sul da zona equatorial, devem ter sofrido horrores; sua substituio por cerrados e outras vegetaes mais secas quase certa. Mas no h infelicidade que dure para sempre, ao contrrio do que disse um poeta. A ltima era glacial chegou ao fim mais ou menos h 10 mil anos atrs, marcando o comeo da poca que os paleo-cientistas chamam de Holoceno. H cinco mil anos atrs, a temperatura era de um a dois graus mais alta do que atualmente e as florestas atingiram seu estado mais luxuriante. Em direo ao final do Holoceno, o clima parece ter se esfriado um pouco, mas nada que alterasse substancialmente a configurao das florestas costeiras do

    Formaes florestais 1041998 79,8

    Ombrfila densa 218790 16,8

    Ombrfila aberta 18740 1,4

    Ombrfila mista 168916 12,9

    Estacional semidecdua 486500 37,2

    Estacional decdua 149052 11,4

    Zonas de transio ecolgica 157747 12,0

    Enclaves 65468 5,0

    Refgios ecolgicos 103 -

    Formaes pioneiras 41105 3,1

    Total Bioma Mata Atlntica 1306421 100

    Fitofisionomias rea (km2) %

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    leste.23 poca do descobrimento de Cabral, h pouco mais de 500 anos atrs, a Mata

    Atlntica tambm era o resultado de usos tcnicos passados do espao ecolgico. O fim do Pleistoceno testemunhou uma onda de extino da mega-fauna sul-americana, que coincidiu com a chegada dos primeiros humanos ao continente, h cerca de 12 mil anos atrs. Preguias-elefante, gliptodontes (tartarugas do tamanho de Fuscas), mastodontes, macacos-aranha com o dobro do tamanho dos macacos atuais, entre outros bichos to enormes quanto esquisitos e que, com efeito, nunca haviam visto gente , parecem ter sido impiedosamente caados pelos humanos adventcios, em sua expanso rumo ao sul.24 O desaparecimento de mais de 80 por cento dos herbvoros de grande porte liberou uma estupenda quantidade de produo primria (que se estima entre 0,072 e 0,48 bilho de tonelada anual). Livres da presso do forrageamento e estimuladas pelo clima cada vez mais quente, as rvores recolonizaram extensas reas de campo e a floresta avanou maciamente. Esse ambiente de alta disponibilidade de biomassa vegetal era muito favorvel a um regime agrcola de derrubada e queimada e por a que os amerndios vinham caminhando nos ltimos milhares de anos antes da chegada dos europeus. Combinado a baixas densidades demogrficas, o sistema de pousio longo era altamente sustentvel. Ao fim do primeiro milnio da era crist, a agricultura amerndia nem mesmo conseguira interromper o crescimento da produo primria ps-extines pleistocnicas; as florestas atlnticas continuavam a se expandir e adensar.25 Estas eram as dinmicas com as quais a sociedade colonial neoeuropia teria que dialogar. QUANDO OS HISTORIADORES falam no Antigo Regime nos trpicos, eles no levam muito a srio o qualificativo biofsico da consagrada expresso poltica. Mas qualquer regime, Antigo ou Moderno, um regime ecolgico e faz toda a diferena se o entorno material tropical ou mediterrnico, florestal ou savnico, plano ou acidentado. As histrias econmicas e sociais da Amrica portuguesa permanecem relatos incompletos sem as histrias da floresta tropical costeira. A fronteira aberta, por exemplo, sempre realada nos modelos explicativos da economia colonial, deve ser relativizada. Ainda que a apropriao de jure do territrio no fosse algo particularmente difcil pelo menos para os mais ricos e influentes , a apropriao de facto estava longe de ser algo trivial. Na prtica ecolgica concreta, havia inmeros obstculos ao acesso e uso livres da terra, como atestam os intricados ecossistemas florestais, animais invertebrados como as savas e, evidentemente, os indgenas.26 Se no verdade que a fronteira aberta tenha anulado o valor da terra e inviabilizado o mercado fundirio, porque a terra no era um plano abstrato. Os solos tinham propriedades e aptides agrcolas diferentes. Alm disso, havia a questo da localizao: quanto mais perto das vias de escoamento, melhor.27 Mais importante ainda era o fato de que terra, na maioria das vezes, era 23 Thomas van der Hammen, Palaeoecological background, Climatic Change 19, 1991, 37-47. 24 Dean, 39-40; Jared Diamond, Armas, germes e ao, 3a ed. (Rio de Janeiro: Record, 2002), 46-47, 175, 406. 25 Christopher E. Doughty e Christopher B. Field, Agricultural net primary production in relation to that liberated by

    the extinction of Pleistocene mega-herbivores, Environmental Research Letters 5, 2010, 1-6. Na Amaznia, contudo, por volta de 800 d.C., muita da biomassa vegetal liberada nas extines j havia sido apropriada pelas comunidades humanas (ver figura 2 do artigo citado).

    26 Arthur Soffiati, Destruio e proteo da Mata Atlntica no Rio de Janeiro, Histria, Cincias, Sade Manguinhos IV (2), 1997, 317.

    27 Bert J. Barickman, Um contraponto baiano (Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003), 176-179.

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    terra florestada e, enquanto tal, ela representava tanto obstculos quanto possibilidades. O arroteamento da floresta a condio primordial para qualquer lavoura era um trabalho caro para o meio tcnico da poca, mas quem o investisse podia tirar muitos proveitos; a biomassa florestal continha um imenso estoque de elementos qumicos que, uma vez liberados, traziam fertilidade para o solo. Terra nua tinha seu valor porque quem viesse possu-la no precisaria despender trabalho na derrubada, mas tambm significava que os benefcios da converso da mata em cinzas nutritivas provavelmente j teriam sido perdidos. em torno desse trade-off que giravam muitos conflitos socioeconmicos na Amrica portuguesa.

    Assim, mais do que um estudo temtico, a tese que ora apresentamos pretende ser uma nova abordagem de alguns tpicos tradicionalmente investigados na historiografia sobre a era colonial brasileira. A experincia da fronteira florestal, do encontro florestal com e na floresta mediou a mestiagem biolgica e cultural que esteve na origem da sociedade brasileira. O Brasil foi a primeira civilizao florestal moderna que o mundo viu. Novos fentipos, novos ambientes, novos arranjos e estratgias familiares, novas instituies civis, novos conceitos de propriedade e novas prticas econmicas. Adaptaes naturais e adaptaes culturais.

    Essas co-adaptaes constituram a trama bsica da colonizao portuguesa da

    Amrica. No avano dessa fronteira de transformaes socionaturais, podemos identificar um ciclo comum de eventos que, com algumas variaes, ocorreu em todas as partes do territrio.28 Cada um deles representa um determinado grau de devassamento e apropriao da Mata Atlntica. No primeiro estgio, os indgenas do serto florestal encontraram os colonos portugueses, assim como os primeiros mestios ou mamelucos. Os nativos foram escravizados para fornecer mo-de-obra ao incipiente projeto agrcola, assim como a floresta era derrubada para dar lugar cana de acar e outras lavouras comerciais. medida que os indgenas iam morrendo vtimas do cativeiro e/ou de doenas desconhecidas, as florestas costeiras se expandiam, aliviadas da presso agrcola que sobre ela pesara por alguns milnios. Ao mesmo tempo, uma nova cultura hbrida emergia. Nessa sociedade de fronteira, os adventcios absorviam muitos elementos do modo de vida autctone; aprendiam a lidar com as matas, os nomes das rvores, os animais, a tcnica da coivara. Embora j mostrasse sinais de estratificao, essa sociedade retinha uma fluidez que permitia considervel mobilidade social.

    No segundo estgio, a populao indgena, j muito debilitada, no constitua mais o

    baluarte laboral da sociedade. Algumas tribos em reas de fronteira retardatria ainda resistiam como ndios brabos. Dentre aqueles que haviam sobrevivido pilhagem dos bandeirantes e s doenas, apenas uma minoria conseguiu manter sua cultura tribal tradicional. A maior parte deles assimilou-se sociedade neoeuropia dominante, tornando-se membros do campesinato sem-terra ou vivendo em aldeias administradas por autoridades coloniais. Escravos africanos os substituram como trabalhadores, principalmente nas grandes propriedades voltadas produo para exportao. Aos senhores desses escravos a Coroa concedia imensas datas de terra para que praticassem uma agricultura territorialmente extensiva, mas muito intensiva no uso da biomassa da floresta, especialmente na forma de cinzas fertilizantes para o solo. Esses senhores de homens e florestas dominavam as instituies civis e militares e exerciam controle sobre uma sociedade crescentemente estratificada. Algum grau de mobilidade social existia para imigrantes portugueses que

    28 Modelo inspirado em Alida C. Metcalf, Family and frontier in colonial Brazil (Berkeley: The University of

    California Press, 1992), 201.

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    conseguissem adentrar alguma famlia rica como genros, para camponeses que conseguissem adquirir terra e escravos e para escravos que conseguissem sua manumisso. Estes podiam ainda escapar do cativeiro e se refugiar nas matas sem dono ou pelo menos no vigiadas, onde organizavam sua economia prpria, algumas vezes fornecendo produtos florestais aos povoamentos de onde haviam fugido.

    Finalmente, no ltimo estgio, a estratificao social consolida-se com base na

    propriedade de terras, florestas e escravos. Mas, nos centros mais antigos de povoamento, o desflorestamento acaba gerando tenses no sistema tcnico. As terras mais prximas s cidades e s vias de transporte j haviam sido muito subdivididas e isto restringia o tempo em que se podia deixar o solo descansando aps uma colheita. As matas mais facilmente acessveis j haviam sido derrubadas e queimadas pelo menos duas ou trs vezes e os solos reclamados j no rendiam lavouras to robustas. Nas proximidades das grandes cidades, a lenha e a madeira tornavam-se cada vez mais escassas e tinham que ser trazidas de lugares mais longnquos, encarecendo-as. Com o aumento da densidade demogrfica, os conflitos sobre os recursos florestais tornam-se cada vez mais visveis. Vizinhos disputam judicialmente matos confinantes, pobres livres desafiam os reclamos privatistas dos potentados sobre os mangues, a Coroa tenta afirmar sua soberania sobre as madeiras navais. Mas, enquanto os senhores de terras e homens lamentam o declnio de seus rendimentos agrcolas nas reas de povoamento antigo, seus descendentes migram e reclamam novas terras na fronteira.

    No sculo XVIII, perodo em que esta tese se concentra, a grande Mata Atlntica vivia,

    de forma regionalmente diferencial, os trs episdios dessa histria. A ocupao neoeuropia havia se concentrado em alguns poucos pontos do territrio, principalmente na faixa de floresta ombrfila do litoral, embora as concentraes demogrficas tivessem aumentado muito na zona de floresta semi-decdua do planalto interior, desde o comeo das atividades mineradoras. O grosso do desflorestamento concentrara-se nas cidades e suas hinterlndias imediatas, introduzindo tenses no sistema tcnico.29 No Recncavo baiano, uma das reas de povoamento mais antigas da colnia, a escassez de lenha aumentava os custos de capital e trabalho, exacerbava os conflitos no seio da elite do acar e entre esta e outros agentes e atividades rurais, multiplicava as peties Coroa e, eventualmente, impunha a adoo de tecnologia energeticamente mais eficiente. Senhores de engenho e lavradores, construtores navais e carpinteiros, fabricantes de tijolos e curtidores de couro, at mesmo os moradores da cidade viam-se forados a lutar por sua poro de madeira combustvel. J nos primeiros anos do sculo XVIII, a Cmara de Salvador peticionara o Rei requisitando que os estaleiros navais fossem transferidos para a costa sul da capitania baiana, pois as matas eram essenciais aos engenhos de acar e artesos locais.30 No Rio de Janeiro, grandes proprietrios tentavam se

    29 Ao longo desta tese, o termo desflorestamento ser utilizado para referncia a processos atravs dos quais a

    floresta tenha sido convertida mais ou menos permanentemente, seja em campos de agricultura, seja em pastos. Do contrrio, no faria sentido falar em desflorestamento, pois grande parte da Mata Atlntica provavelmente j fora manejada, desflorestada, pelo menos uma vez, pelos habitantes indgenas. Dean, A ferro e fogo, 46-47, estimou que, durante os mais de mil anos decorridos entre o advento da agricultura no planato e a chegada dos europeus, cerca de metade da floresta semi-decdua do interior teria sido derrubada e queimada pelo menos uma vez.

    30 Shawn W. Miller, Fuelwood in colonial Brazil, Forest & Conservation History 38, October 1994, 181-192; Robert C. Smith, The wood-beach at Recife, The Americas 6 (2), 1949, 225. Isto no significa que houvesse qualquer escassez generalizada ou absoluta de matas nessa regio. H muitos indcios de que, mesmo na terceira dcada do sculo XIX, o Recncavo ainda continha florestas substanciais. Ver Barickman, 167-173.

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    apoderar privativamente dos mangues um recurso declarado comum pela Coroa em mais de uma ocasio , gerando conflitos com cortadores de lenha e fabricantes de cal.31 Uma historiadora chegou a sugerir que a falta de lenha poderia explicar porque, em So Paulo, os fazendeiros substituram to rapidamente a cultura da cana pela do caf, no comeo do sculo XIX.32

    Mas, com exceo dos poucos centros urbanos e seus arredores, a densidade

    demogrfica ainda era irrisria. A capitania da Bahia, por exemplo, no final do sculo XVIII, ainda no possua um habitante por quilmetro quadrado. Em meados do sculo XIX, os luso-brasileiros haviam convertido no mais do que 30 por cento das florestas ombrfilas densas, ou quatro por cento da grande Mata Atlntica. No extremo sul e no extremo norte, a escravizao dos indgenas da floresta ainda ditava o ritmo da ocupao agrcola. Em Santa Catarina, em meados do setecentos, a populao humana ainda lutava para sobrepujar a populao de onas.33 Na regio compreendida entre o vale do rio Doce e o vale do rio Jequiri, entre os atuais estados do Esprito Santo e da Bahia, as matas ombrfilas e semi-decduas ainda se apresentavam espessas mesmo a poucos quilmetros da linha de costa. A plancie do baixo rio Doce, que se estende ao sul at quase Vitria, era muito esparsamente povoada e as nicas aglomeraes de maior vulto eram duas vilas predominantemente indgenas que tinham comeado como redues jesuticas Aldeia Velha e Vilanova de Almeida. Ao norte, na antiga capitania de Porto Seguro, viviam no mais do que 20.000 pessoas polarizadas por algumas vilas costeiras como So Mateus, Caravelas e Vila Viosa, deixando as florestas do interior para os ndios brabos. Mesmo no fim do sculo XVIII, a ocupao neo-europia de Porto Seguro e de Ilhus, mais ao norte, mal comeara a abrir brechas nas matas costeiras. 34 Na verdade, essas matas permaneceriam com pequena densidade humana e tcnica at meados do sculo passado.35 As matas do alto vale do rio Doce, j na Zona da Mata mineira, coadunavam-se s matas do mdio e alto vales do Paraba, formando um imenso cordo interiorano de florestas semi-decduas. Por dcadas, a regio a leste do Caminho Novo havia sido interditada ocupao com o objetivo de se evitar o extravio do ouro vindo de Minas. No entanto, antes que por respeito a estas ordens, os colonos se viam impedidos de abrir caminhos ou picadas para este territrio por causa da grande concentrao de ndios bravos que o habitavam. A colonizao oficial desses sertes do leste inicia-se apenas em 1767, quando se cria a freguesia Mrtir So Manuel dos Sertes da Pomba e Peixe, no atual municpio de Rio Pomba.36 Alm da pluralidade biolgica, portanto, a Mata Atlntica

    31 Larissa V. Brown, Internal commerce in a colonial economy, Tese de doutoramento (Charlottesville: University of

    Virginia, 1986), 180-181; Shawn W. Miller, Stilt-root subsistence, Hispanic American Historical Review 83 (2), 2003, 223-253.

    32 Maria Thereza S. Petrone, A lavoura canavieira em So Paulo (So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1968), 82-83.

    33 Saint-Hilaire, Santa Catharina, 32-33. 34 Barickman, 45, 167, 169; Brown, 332-333, 350-351. 35 Em pleno ano de 1945, toda a regio ao sul do rio Jequitinhonha ainda se encontrava majoritariamente coberta de

    florestas, com apenas a rea polarizada por Caravelas apresentando um significativo desmatamento. O arrasamento das matas, de fato, ocorreu em menos de 30 anos, com a expanso do cultivo do cacau e o crescimento urbano. Ver Jos Rezende Mendona e colaboradores, 45 anos de desmatamento no Sul da Bahia (Ilhus: Projeto Mata Atlntica do Nordeste, CEPEC, 1994). Para Carlos F. A. Castro, o grosso da devastao da Mata Atlntica viria a ocorrer somente no sculo XX, tese com a qual tendemos a concordar. Ver a tese de doutoramento de Castro, Gesto florestal no Brasil Colnia (Braslia-DF: UnB, 2002).

    36 Angelo A. Carrara, Sertes do Leste in IBGE Coordenao de Geografia, Atlas das representaes literrias de regies brasileiras (Rio de Janeiro: IBGE, 2006), 21-22.

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    constitua, ao final do sculo XVIII, um conjunto plural de florestas culturais, de interaes socionaturais histrica e geograficamente condicionadas.

    Dividimos a tese em trs partes, cada uma contendo sua prpria introduo. A primeira

    parte cuida de como fazer estuda teoricamente a escrita da histria ambiental. Ela constituda por um nico e longo captulo que focaliza a relao dialtica entre humanos e natureza, bem como o modo como podemos descrev-la e examin-la. A segunda parte abrange dois captulos que abordam, cada um sob um ngulo particular, a interao da sociedade, da economia e da poltica luso-brasileiras com a Mata Atlntica. A terceira parte, constituda por cinco pequenos captulos, recorta o problema da explorao madeireira e o examina em comparao com que ocorreu nas regies coloniais da Amrica do Norte, mais ou menos no mesmo perodo (sculos XVII a XIX). Ao cabo disso tudo, segue um eplogo em que se procura resumir o enredo bsico das histrias narradas e discutir brevemente os significados das transformaes socionaturais da Mata Atlntica.

    Um trabalho com esse escopo e, com efeito, constrangido pelo prazo de uma pesquisa

    de doutoramento no pode deixar de ser sinttico. Isto significa que tivemos que recorrer historiografia existente e que, atravs dela, procedemos freqentes generalizaes baseadas em aspectos conhecidos para um lugar particular ou poucos deles. O fato dessa historiografia apenas marginalmente tratar das florestas costeiras uma desvantagem, mas tambm tem seu lado positivo; isto nos obriga a relacionar o nosso tema ao mundo colonial mais amplo, sociedade, poltica, economia, cultura. Evidentemente, a pesquisa arquivstica primria no foi deixada de lado. Chegamos mesmo a descobrir um ou outro evento que, at onde sabemos, no haviam ainda sido registrados na historiografia pertinente. Como comum na histria ambiental, as fontes primrias que usamos so de tipos os mais diversos de tudo um pouco, desde os tradicionais viajantes e cronistas at recenseamentos com valor estatstico. Como tambm comum mais do que comum, estruturante na histria ambiental, abundam as fontes cientficas ou, mais especificamente, os estudos dos cientistas fsico-naturais.

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    Figura A. O territrio colonial e a grande Mata Atlntica

    Mapa elaborado por Rafael Nunes da Silva.

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    PARTE I

    PARA SE ESCREVER HISTRIA AMBIENTAL

    ___________ Assim como a geografia no final do sculo XIX, a histria ambiental embora numa atmosfera intelectual bastante diferente pretende hoje estudar o lugar dos humanos na ordem ecolgica planetria. Nesta primeira parte, abordaremos o modo como essa relao concebida e examinada. O que essa natureza de que os historiadores ambientais tanto falam? De que forma ela se distingue disto que chamamos de cultura? Afinal de contas, legtimo nos indagarmos acerca da relao entre esses dois domnios? Veremos que a histria ambiental uma forma de conhecimento que rechaa os dualismos tradicionais entre homem e meio, cultura e natureza. Ela procura uma forma de relato simtrico que exponha as determinaes recprocas entre os humanos e o mundo que vai alm de suas culturas. Os humanos fazem-se humanos somente na interao com o resto da biosfera, com um mundo que pode no advir do pensamento, mas que no deixa de agir e falar atravs do livre movimento de seu ser. Para os bichos e rios, diria o poeta Joo Cabral de Melo Neto, nascer j caminhar.37 De fato, no necessrio pensamento auto-reflexivo para atuar e agir no mundo e, portanto, transform-lo. Teoricamente, o historiador ambiental investe em filosofias da relao e evita perspectivas antropocntricas ou ecocntricas. Na prtica da pesquisa, essa postura manifesta-se como uma curiosidade pelos detalhes srdidos. O historiador ambiental nunca se satisfaz com afirmaes como a epidemia de 1850 matou quatro mil pessoas ou a agricultura devastou a floresta. Epidemia de qu? Qual era o patgeno? Ele era nativo ou extico ao lugar da epidemia? Que tipo de floresta havia antes da lavoura? Qual era o gnero cultivado? Como se comportava o solo em relao eroso? O historiador ambiental persegue essa sordidez porque ela lhe d acesso a todo um mundo submerso de atividade e transformao que estrutura o curso dos acontecimentos humanos tanto quanto os sistemas culturais, econmicos, polticos e ideolgicos.

    De certo modo, a histria ambiental tudo aquilo que os gegrafos da primeira metade

    37 Ver seu magistral poema O rio in Morte e vida severina e outros poemas para vozes , 4 ed. (Rio de Janeiro:

    Nova Fronteira, 2000), 11-41.

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    do sculo passado quiseram fazer, e tudo aquilo que os da segunda metade disseram que era impossvel. Atualmente, alguns gegrafos fsicos ainda teimam heroicamente no discurso das relaes entre humanos e ambiente ecolgico, mas esbarram no problema das divergncias radicais de mtodo que guardam com seus colegas do ramo antropossocial. A histria ambiental oferece uma nova oportunidade a esse dilogo. Um gegrafo fsico mal-informado e que pela primeira vez lesse uma histria ambiental no deixaria de se surpreender com a freqncia com que estudos de gemorfologia, climatologia e biogeografia so citados. Surpreso ele tambm ficaria com a maneira como os dados e as anlises destes trabalhos servem to bem narrao de uma histria que confere significado aos lugares e s pessoas. Historiadores ambientais transformam inventrios geoecolgicos ou sries de precipitao esquemticos em contos envolventes sobre a terra e seus habitantes. Por outro lado, os historiadores ambientais conseguiram sobrepujar uma grave falha dos gegrafos humanos qual seja, a de restringirem suas anlises dimenso locacional da espacialidade humana.38 Os historiadores ambientais, por seu turno, tambm investem muita energia no exame da dimenso vertical da espacialidade, isto , no exame das qualidades concernentes organizao ecolgica da terra.39 A propsito, no poderia ser a Geografia ou a Geografia Histrica, que seja proveitosamente entendida como um relato historiado sobre a ininterrupta metamorfose das coisas terrenas? J uma vez nos disse Milton Santos que, ao contarmos a histria de como as coisas so produzidas e mudam, a Geografia Fsica e a Geografia Humana encontram-se.40

    Mas a histria ambiental ainda est longe de constituir uma disciplina madura. Assim,

    mais do que beber em uma fonte terica pronta, queremos nos engajar ativamente na sua prpria construo. At onde sabemos, a pergunta como se escreve a histria ambiental? ainda no foi abordada com a sistematicidade que merece. Historiadores ambientais, assim como a corporao histrica mais ampla, so freqentemente acusados de no teorizarem o suficiente o que no deixa de ser verdade, em certa medida.41 No Brasil e na Amrica Latina, especialmente, textos terico-metodolgicos ainda so relativamente escassos.42 nesta lacuna que se insere a primeira parte desta tese, constituda por um nico e longo captulo. Nele, oferecemos uma discusso confessadamente materialista de algumas questes tericas centrais para a histria ambiental. Avisamos que teoria, aqui, entendida tanto como discurso epistemolgico e gramatical (i.e., da ordem das possibilidades do conhecimento e de sua escrita) quanto como descrio substantiva (i.e., da ordem do funcionamento concreto das coisas do mundo). Nossas fontes intelectuais so muitas e variadas, incluindo desde biologia e ecologia, passando por antropologia e filosofia da experincia, at, naturalmente, teoria da histria e da geografia. Desse ecletismo, esperamos extrair uma teoria consistente e

    38 Sobre essa dimenso horizontal, ver Roberto L. Corra, O enfoque locacional na Geografia, Terra Livre 1 (1),

    1986, 62-66. Segundo Maria Clia N. Coelho, Os gegrafos humanos se limitam a ver o ambiente como substrato fsico, que passivamente transformado pela sociedade. Coelho, Impactos ambientais em reas urbanas in A.J.T. Guerra e S.B. Cunha (orgs.), Impactos ambientais urbanos no Brasil, 3 ed. (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005), 19.

    39 Essa distino entre as dimenses horizontal e vertical do espao encontrada em John E. Chappell, Jr., The ecological dimension, Annals of the Association of American Geographers 65 (2), 1975, 144-162.

    40 Milton Santos, A natureza do espao (So Paulo: Hucitec, 1996), 59. 41 J. Donald Hughes, Three dimensions of environmental history, Environment and History 14, 2008, 320-321. 42 Embora pelo menos trs contribuies de peso nos tenham sido oferecidas em anos recentes: Stefania Gallini,

    Problemas de metodo en la historia ambiental de America Latina, Anuario IHES (Argentina) 19, 2004, 141-171; Regina H. Duarte, Por um pensamento ambiental histrico, Luso-Brazilian Review 41 (2), 2005, 144-161; Jos Augusto Pdua, As bases tericas da histria ambiental, Estudos Avanados 24 (68), 2010, 81-101.

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    operacional que nos capacite a contar algumas histrias sobre a Mata Atlntica e seus habitantes do passado.43

    43 A despeito do que esse fraseamento possa vir a sugerir, a teoria e a histria foram escritas ao mesmo tempo.

    Qualquer teoria no-positivista ou, pelo menos, qualquer teoria que no se travista de positivista construda assim mesmo. Voc faz, conscientiza-se de como faz e registra essa conscincia; da, a partir desse registro, voc volta a fazer e o ciclo recomea.

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    CAPTULO 1

    O QUE UMA FLORESTA? NATUREZA, MATERIALISMO E DIALTICA SOCIONATURAL

    Por aqui se encontra verdadeiramente aquela natureza que est presente em todas as coisas. Para onde quer que voltemos os olhos, encontraremos a fora da vida e o esprito desenvolvendo-se juntos.

    Karl von Martius44

    Materialismo ativo? Sim! Mas tambm: materialismo ativo!

    Karl Wittfogel 45

    ASSIM COMO ECOLOGIA antes dela, a expresso histria ambiental extravasou os limites da academia e qualquer tentativa de dom-la ftil. Mesmo na academia, no faz sentido tentar exercer qualquer autoridade para cercear a correta aplicao do rtulo. Quem dir que o que aquele gelogo ou gegrafo interessado na eroso quaternria faz no histria ambiental? Qualquer estudo que enfoque o mundo biofsico em mudana pode reclamar o rtulo e muitos deles, de fato, assim vm fazendo. No obstante, h um sentido mais estrito e historicamente comprometido do termo. Uma histria ambiental entendida como disciplina historiogrfica emergiu nos anos 1970, nos Estados Unidos da Amrica. A histria dessa emergncia j foi contada inmeras vezes e no iremos nos ocupar disso aqui.46 O que importa ressaltar que as definies do campo atualmente encontradas na literatura ainda giram em torno do que se 44 A viagem de von Martius, 36. 45 Geopolitics, geographical materialism, and Marxism, Antipode 17 (1), 1985 [1929], 59. 46 A melhor anlise sobre esses primeiros anos da histria ambiental continua sendo a de Richard White, American

    environmental history, Pacific Historical Review 54 (3), 1985, 297-335. A reviso mais recente do campo foi feita por John R. McNeill, The state of the field of environmental history, Annual Review of Environment and Resources 35, 2010, 345-374.

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    disse naquela primeira dcada da histria ambiental. A formulao seminal a do historiador Roderick Nash que, em 1972, falou no contato passado do homem com seu habitat total.47

    Herdeiro direto da tradio da histria intelectual e das mentalidades, Nash no parecia muito inclinado a aceitar as implicaes materialistas de sua formulao. Ele no pretendia encampar uma histria da terra maneira dos gelogos. Mesmo admitindo que o historiador ambiental deveria descrever as mudanas na terra, alertou que seu interesse primordial estava nas atitudes e aes humanas imbricadas nessa mudana nos valores, ideais, ambies e medos do homem. O ambiente no seria acessado diretamente como materialidade, mas, antes, como um documento histrico. Posto que o ambiente fosse sinttico, criado pelos humanos, sua leitura poderia desvelar tal como um romance, um jornal ou uma orao patritica a sociedade humana que o havia produzido.48

    No mesmo ano da publicao do artigo de Nash, entretanto, Alfred Crosby lanava seu magistral The Columbian Exchange.49 Embora Crosby no se considerasse um historiador ambiental poca, seu relato sobre a biologia do encontro colonial americano foi provavelmente uma poderosa influncia materialista sobre a disciplina que nascia. De fato, no final dos anos 1970 e durante toda a dcada seguinte, uma verso solidamente materialista da histria ambiental surgiu da pena de autores como Donald Worster, Richard White, Stephen Pyne, Warren Dean, William Cronon e o prprio Crosby. Todos eles, de uma forma ou de outra em formulaes tericas ou na prtica historiogrfica , procuravam trazer a natureza no-humana para dentro da histria.50 Para Worster, particularmente, a histria ambiental seria uma nova histria, uma abordagem todo-inclusiva que, de certa forma, completaria o processo de transio de uma histria poltica restrita s guerras e intrigas palacianas para uma histria que mergulha na experincia das pessoas comuns e, ento, na prpria terra. 51 Devolvendo terra e ao clima o tipo de criatividade imprevisvel convencionalmente reservada aos atores humanos, afirmou o historiador cultural Simon Schama, esses escritores criaram histrias nas quais o homem no o ser ltimo e a finalidade ltima da histria.52 Essa perspectiva rapidamente ganhou terreno e hoje no seria exagero dizer que ela hegemnica. A histria ambiental busca narrar os dramas humanos dentro do contexto mais amplo da materialidade biofsica. Embora outros temas e conceitos como o espao, o lugar, a regio, o ambiente e o poder sejam transversalmente importantes em nossas narrativas, o tema unificante de todas as histrias ambientais a materialidade natural ou aquilo que Ellen Stroud

    47 Roderick Nash, American environmental history, Pacific Historical Review 41 (3), 1972, 363. 48 Nash, 363. 49 Alfred Crosby, The Columbian exchange (Westport, CT: Greenwood, 1972). 50 Listamos aqui alguns dos mais importantes trabalhos desses historiadores. De Donald Worster: Dust Bowl (New

    York: Oxford Univesity Press, 1979); History as natural history, Pacific Historical Review 53 (1), 1984, 1-19; Appendix in D. Worster (ed.) The ends of the Earth (Cambridge: Cambridge University Press, 1988), 289-308; Transformations of the Earth, Journal of American History 76 (4), 1990, 1087-1106. De Richard White: Land use, environment, and social change (Seattle: University of Washington Press, 1980). De Stephen Pyne: Fire in America (Princeton: Princeton University Press, 1982). De William Cronon: Changes in the land (New York: Hill and Wang, 1986); Modes of prophecy and production, Journal of American History 76 (4), 1990, 1122-1131. De Warren Dean: Brazil and the struggle for rubber (Cambridge: Cambridge University Press, 1987). De Alfred Crosby: Ecological imperialism (New York: Cambridge University Press, 1986).

    51 Worster, Appendix, 289-290. 52 Simon Schama, Landscape and memory (Toronto: Vintage Canada, 1995), 13.

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    chamou, mais prosaicamente, de dirt.53 Antes dela, Richard White j havia escrito, em uma nota de rodap, que Sem natureza, no h histria ambiental.54

    A histria ambiental tem sempre que lidar com o primeiro nvel do esquema tripartite

    de Worster, ou seja, o mundo natural ele mesmo.55 Histrias de conceitos, mentalidades e conflitos sobre recursos, por exemplo, so histrias ambientais apenas na medida em que os recursos e a terra, eles mesmos, so afetados e mudam.56 Mesmo a nfase recente nos discursos e nas histrias como modeladoras da natureza uma tendncia que, para Richard White, constitui uma virada cultural no aliena a disciplina do mundo material no-humano. Esse mundo nunca ir se diluir totalmente em cultura humana, assim como o entendimento cultural acerca dele nunca ser uma reproduo perfeita, mas apenas uma construo parcial.57 Ainda assim, esses dois planos da realidade so inseparveis. As representaes e ideologias, como historicidades terrenas, s podem ser compreendidas na interao com outras historicidades terrenas: a evoluo de microorganismos, de mosquitos, de mamferos, da terra e das paisagens.58

    Ao abraar a totalidade das coisas terrenas em mudana, a histria ambiental procura

    unir histria natural e histria humana em uma grande e inteligvel narrativa. Ela coloca os humanos e seus artefatos dentro do fluxo global da matria, da energia e da vida. Humanos so seres naturais que, necessariamente, dialogam com outros seres naturais na construo de sua existncia. Por mais que os desejos e necessidades humanos tenham alguma autonomia e, em certo sentido, construam seus prprios objetos, eles precisam dialogar com a materialidade dinmica que lhes serve de substrato. Afinal de contas, atravs do engajamento corpreo com o entorno mundano, e no por uma contemplao desencarnada, que os humanos desenvolvem suas expectativas, seus planos, seus smbolos, suas economias, suas paisagens. Devidamente corporificados, os humanos encontram no idias do mundo, mas outros corpos do mundo; eles confrontam a materialidade intransigente e transformativa do mundo.59 Ou, nas palavras do socilogo John Foster, dando voz a Marx,

    a natureza s percebida atravs dos nossos sentidos na medida em que ela vai passando, ou seja, num processo temporal; da o livre movimento da matria ser parte da nossa cognio, tanto quanto ns somos parte da natureza e a percebemos sensorialmente, e em conformidade com os conceitos que ns abstramos desta

    53 Ellen Stroud, Does nature always matter?, History and Theory 42 (4), 2003, 75-81. 54 Richard White, The nationalization of nature, Journal of American History 86 (3), 1999, 978. 55 O esquema de Worster composto por trs nveis: os ambientes naturais do passado, os modos humanos de

    produo e as percepes, ideologias e valores. Worster, Appendix, 293-305. Variaes desse esquema foram formuladas por Arthur McEvoy, que falou em ecologia, produo e cognio, e por Carolyn Merchant, que falou em produo, reproduo e conscincia. McEvoy, Toward an interactive theory of nature and culture in Worster, The ends of the Earth, 229; Merchant, Ecological revolutions (Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1989), 1-26.

    56 McNeill, 347. 57 Richard White, From wilderness to hybrid landscapes, The Historian 66 (3), 2004, 564. 58 Diogo C. Cabral, guas passadas, RAE GA O Espao Geogrfico em Anlise, prximo. 59 Richard White, Are you an environmentalist or do you work for a living? in Cronon, Uncommon ground, 172,

    178; Linda Nash, The agency of nature or the nature of agency?, Environmental History 10 (1), 2005, 69; Carlos Walter Porto-Gonalves, A globalizao da natureza e a natureza da globalizao (Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2006), 118-119.

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    percepo sensorial.60

    O conhecimento humano de uma rvore frutfera, por exemplo, desenvolve-se a partir

    da experincia do seu crescimento e das relaes que ela assim vai estabelecendo com o resto do mundo, medida que tudo isto vai passando aos olhos, ao olfato, ao tato, audio e ao paladar dos conhecedores humanos. A natureza fala simplesmente atravs do movimento de seu ser. Sendo, portanto, este fluxo, esta produo, a natureza tambm sujeito, j que o sujeito cultural humano tambm no constitui uma posio fixada de antemo, mas vai se constituindo em sua prpria atividade, que biolgica e simblico-cognitiva ao mesmo tempo.61 Os recursos florestais no so apenas objetos da inteno e ao humana, mas tambm sujeitos em uma relao dinmica. Mesmo as rvores plantadas cientificamente acabam desenvolvendo relaes e aspectos inesperados. rvores e florestas sempre conseguem escapar parcialmente s tentativas de enquadramento nos esquemas humanos de conhecimento e controle o que , em si mesmo, uma forma de prtica. 62 Com a historiografia no diferente. Todas as nossas histrias so escritas em co-autoria com a natureza, pois, como nos alerta William Cronon, ela raramente silenciosa.63 preciso, afinal de contas, manter a dialtica. Se os humanos humanizam o tempo atravs da narrativa, essa humanizao sempre ocorre no interior da experincia concreta, na qual os humanos pem-se em relao com uma espcie de narratividade natural do mundo.

    A incorporao dessa natureza material relativamente independente dos humanos

    claramente perturba os modelos narrativos histricos que dominaram a maior parte do sculo XX. Mais imediata e obviamente, ela coloca o problema da agncia. Se a natureza uma materialidade presente e agente nas tramas histricas, como ela se diferencia da e se relaciona agncia propriamente humana? Os historiadores ambientais materialistas no hiper-separam esses dois tipos de agncia. Ao invs disso, eles assumem uma postura dialgica ao afirmar que cultura e natureza fazem parte de um mesmo processo interno de construo e que essa relao, sempre dinmica e instvel, est apta a produzir tanto contradies quanto continuidades.64 A escrita da histria ambiental precisa comear, portanto, com uma teoria da dialtica socionatural. Aps desenvolvermos o ncleo dessa teoria, voltamos nossa ateno s objees que a ela so normalmente dirigidas. A primeira objeo advm de uma postura que podemos chamar de cnica: a negao mais ou menos explcita das circunstncias mais-do-que-culturais em que vivem os humanos. A variante moderna desse cinismo representada pelo paradigma do excepcionalismo humano que, por muitas dcadas, permitiu e ainda permite aos historiadores e cientistas sociais descrever as sociedades humanas como se elas flutuassem sobre o mundo biofsico, sem qualquer frico com a natureza. A variante ps-moderna do cinismo, por outro lado, deriva do ceticismo radical dos ps-estruturalistas. De um modo geral, eles desafiam nossa capacidade de conhecer objetivamente a natureza e, conseqentemente, tambm o fundamento de qualquer disciplina que reclame estudar as interaes entre natureza e cultura. A segunda modalidade de objeo baseia-se numa espcie

    60 John B. Foster, A ecologia de Marx (Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005), 319. 61 Arturo L. Coelho, Arte e sistema in F.R. Puentes e L.A. Vieira (orgs.), As filosofias de Schelling (Belo Horizonte:

    UFMG, 2005), citado por Marcos Rogrio Cordeiro, A linguagem transfiguradora do mundo natural e seus desdobramentos, Area Domeniu 3 (Governador Valadares: Ed. Univale, 2008), 248.

    62 Chad Staddon, The complicity of trees, Slavic Review 68 (1), 2009, 77. 63 Cronon, Place, 1373. 64 Cronon, Changes, 13.

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    de historicismo antropocntrico: somente os humanos, singularmente dotados de cultura, que so capazes de fazer histria. A prpria idia to difundida de destruio ou degradao ambiental, em grande medida, erige-se sobre uma concepo que hiper-separa cultura e natureza. Quando, contudo, eles so percebidos dentro da relao fundamental em que se constituem e mudam, humanos e no-humanos podem ento ser descritos em termos mais adequados viso radicalmente aberta que a da histria. Para o historiador ambiental, o que h so associaes ou sociedades socionaturais que, atravs da negociao cotidiana sobre as possibilidades de existncia, destroem e constroem ininterruptamente, em variadas escalas. Ao final de toda essa discusso, procuramos explicitar o conceito de natureza que fundamenta a viso de sua relao dialtica com a cultura humana.

    DEVEMOS COMEAR COM a conhecida dicotomia ocidental que se estabelece entre Natureza e Cultura. Nessa dicotomia, as florestas, por exemplo, so tradicionalmente alocadas dentro da provncia da Natureza. Uma floresta, informa-nos o Dicionrio Brasileiro de Cincias Ambientais, uma Regio dominada por grande quantidade de rvores e sub-bosque.65 Isto basta ao historiador ambiental? A partir da definio fisionmica primria, e caso quisssemos enveredar por essa senda, perguntaramos pela altura e dimetro de tronco que as rvores precisam ter, a altura mnima do dossel, a extenso espacial mnima dessa regio, etc. Tudo isso, evidentemente, faz parte da floresta. Alm disso, esses aspectos formais no so estticos no tempo; eles tm uma histria. Acostumados a trabalhar na escala de milhares e milhes de anos, os paleoeclogos j viram quase tudo acontecer com as florestas: seu nascimento, sua disperso, sua diversificao, sua fragmentao, sua dormncia temporria. Como uma mancha visualizada em mapas seqenciais, a floresta dana ao compasso do clima e dos outros conjuntos de vegetao os campos, os cerrados, os desertos.66

    Mas a histria dos atributos fsicos da floresta, especialmente nos ltimos sculos, no pode ser contada sem a incluso de agentes humanos. A expanso moderna dos europeus sobre as Amricas, a Oceania, as ilhas do Pacfico, Madagascar e outras reas florestais esparsamente povoadas promoveu a primeira grande onda de desflorestamento global macio. Desde o final da Segunda Grande Guerra, as reas agrcolas e urbanas cresceram tanto a ponto de adquirirem dimenses territoriais comparveis aos biomas, de modo que tambm elas devem estar presentes em qualquer biografia da paisagem, na maior parte do mundo. Agora que os humanos reestruturaram a biosfera terrestre com suas lavouras, seus pastos, sua silvicultura, suas cidades e outros usos da terra, os padres globais de composio e abundncia de espcies, de produtividade primria, de hidrologia e de ciclagem dos elementos qumicos no so compreensveis sem o exame da ao humana. O que temos agora, argumentam os gegrafos Erle Ellis e Navin Ramankutty, so biomas humanos. Eles devem incluir as pessoas e suas atividades. Dentre os cinco biomas identificados por esses autores que usaram variveis como densidade populacional e cobertura da terra , figura aquele que eles chamam de terras florestadas. Caracterizado como florestas com populaes humanas e agricultura, esse bioma cobre quase 1/5 da superfcie terrestre livre do gelo. Com 45 por cento de sua rea cobertos com rvores, o bioma florestal possui densidade populacional que varia entre uma

    65 Pedro Paulo de Lima-e-Silva e colaboradores, Dicionrio Brasileiro de Cincias Ambientais (Rio de Janeiro: Thex

    Ed., 2002), 115. 66 Daniel B. Botkin, Discordant harmonies (Oxford: Oxford University Press, 1990), 63.

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    situao tpica de sociedades caadoras e coletoras (menos de um habitante por quilmetro quadrado) at uma situao de horticultura itinerante (entre um e dez habitantes por quilmetro quadrado).67 Esse tipo de descrio muito mais apropriado do que a velha histria dos biomas naturais ou, no Brasil, os famosos domnios morfo-climticos do gegrafo Aziz AbSaber que so perturbados pelos humanos.68

    A Ecologia Histrica tem nos fornecido excelentes anlises a respeito da influncia das atividades humanas sobre a estrutura e o funcionamento das florestas. Esses estudos so, certamente, histrias da floresta porque eles descrevem as mudanas pelas quais passaram as comunidades vegetais ao longo de certo perodo. Todavia, para os eclogos histricos, especialmente os de formao biolgica, no faz muita diferena se essas mudanas tm relao com a manipulao humana ou no. Nesse tipo de relato, florestas interagem com os humanos da mesma maneira que interagem com o clima, as pragas, o fogo, entre outros agentes e processos naturais. As ecologias histricas do uso da terra pouco se interessam pelo uso, mas quase exclusivamente pela terra. Em outras palavras, o modo de agir das pessoas considerado como uma coisa dada, e no uma construo a partir da experincia ecolgica e social uma construo dentro do ecossistema e suas metamorfoses. O que importa, na verdade, so as resultantes ecolgicas, os efeitos biofsicos finais da ao humana medidos geralmente como modificaes na composio, na estrutura e na dinmica da floresta.69 Tome-se, por exemplo, o conceito de paleoterritrio proposto por Rogrio de Oliveira. Apesar de falar na resultante dialtica da presena de seres humanos, Oliveira no inclui em sua formulao as influncias que a territorializao da floresta exerce sobre as culturas humanas envolvidas. O paleoterritrio seria somente

    uma parte do processo sucessional e definido como a espacializao das resultantes ecolgicas decorrentes do uso dos ecossistemas por populaes passadas (ou de uma atividade econmica) na busca de suas condies de existncia. O paleoterritrio constitui, portanto, a etapa antrpica dos processos biticos e abiticos que condicionam o processo da regenerao das florestas, onde a cultura das populaes tradicionais desempenha um papel determinante.70

    No h dvida que, em florestas habitadas, a cultura determinante do carter e do ritmo da regenerao da mata. Contudo, tambm verdade que essa regenerao, em contrapartida, determina os modos culturais de sua apropriao. Em outras palavras, estamos lidando com

    67 Erle C. Ellis e Navin Ramankutty, Putting people in the map, Frontiers in Ecology and the Environment 6 (8),

    2008, 439-447. 68 Sobre os domnios morfoclimticos, encontra-se um bom resumo em Aziz N. AbSaber, Domnios

    morfoclimticos e provncias fitogeogrficas do Brasil, Orientao 3, 1967, 45-48. 69 A literatura histrico-ecolgica sobre o uso da terra e suas conseqncias sobre as comunidades biolgicas j se

    agigantou a ponto de no caber em uma nica nota. Estudos tratando de florestas podem ser encontrados, por exemplo, em David R. Foster, Glenn Motzkin e Benjamin Slater, Land-use history as long-term broad-scale disturbance, Ecosystems 1 (1), 1998, 96-119 (Foster e seu grupo de pesquisa na Harvard Forest tm publicado inmeros trabalhos com essa orientao metodolgica) e Jill Thompson e colaboradores, Land use history, environment, and tree composition in a tropical forest, Ecological Applications 12 (5), 2002, 1344-1363. No Brasil, Rogrio de Oliveira tem trabalhado bastante nessa perspectiva. Ver, por exemplo, seu Mata Atlntica, paleoterritrios e histria ambiental, Ambiente e Sociedade X (2), 2007, 11-23. importante deixar claro que no h nada de errado com esses estudos muito pelo contrrio. Eles so extremamente valiosos e ns mesmos usamos seus achados constantemente. O que queremos apenas ressaltar a diferena entre seu mtodo e o mtodo que advogamos para a histria ambiental.

    70 Oliveira, 13.

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    uma determinao recproca. Os drivers de que os eclogos tanto gostam tambm so driven.71 A floresta transformada, mas as relaes humanas inevitavelmente so transformadas no processo. Vontade e ao humanas no devem ser consideradas externas s estruturas e processos ecolgicos, como se elas prprias no fossem tambm um produto das mudanas que incitaram.

    No parece adequado dizer que o que distingue a histria ambiental da ecologia histrica seja o fato de que a primeira lida com acontecimentos histricos e a segunda com fenmenos e componentes ecolgicos, como a funcionalidade de ecossistemas, a composio e a estrutura de comunidades, etc. 72 O dimetro do tronco das rvores ou o ndice de diversidade de espcies de uma floresta so to acontecimentais quanto a declarao de independncia feita por d. Pedro I, em 1822. A diferena est no modo como os acontecimentos so narrados. Os historiadores ambientais ainda carecem de uma teoria do evento socionatural, uma tarefa que est, alis, fora do nosso alcance neste texto. Ainda assim, a atitude geral pode ser delineada com a ajuda do ensaio dos antroplogos Bradley Walters e Andrew Vayda, que tentaram formular uma ecologia do evento.73 O ponto fundamental a salientar que eventos no so coisas embora, evidentemente, possuam referentes materiais , mas cortes fenomnicos delimitados de acordo com um determinado propsito narrativo/explicativo. Assim, os tais fenmenos e componentes ecolgicos so mensuraes de atributos biofsicos em mudana, instantneos do mundo material que vai passando e interagindo com o eclogo histrico interao esta no seio da qual ele demarca seus eventos. Em outras palavras, um evento ou acontecimento to-somente uma mudana percebida no estado das coisas do mundo uma mudana que leva a outras mudanas e que pode ser includa, portanto, em uma cadeia causal histrica.74 Mas, diferentemente do eclogo histrico, o historiador ambiental constri cadeias causais multidirecionais, pois ele parte do pressuposto de que os eventos possuem ecologias complexas. Um nico evento causa e conseqncia de muitos outros. Por isso, sugeriramos que o que diferencia, basicamente, a histria ambiental da ecologia histrica biolgica , principalmente, o tamanho das histrias que as duas disciplinas contam. Enquanto a primeira conta histrias curtas i.e., que incluem poucos eventos alm do evento focal (e.g., diversidade de espcies de uma determinada mata) , a segunda conta histrias longas, pois procura incluir um grande nmero de outros eventos que, de acordo com o propsito narrativo, definem e so definidos pelo evento focal. Tipicamente, os historiadores ambientais costuram suas histrias construindo o maior nmero possvel de relaes do evento focal com outros eventos, tanto culturais quanto naturais.

    Permitam-nos sermos mais claros. Se o historiador ambiental constata seja por suas

    mensuraes prprias, seja atravs da literatura cientfica apropriada que um determinado stio florestal possui, no presente, uma alta diversidade de espcies vegetais, ele tenta enquadrar essa observao como um evento socionatural; quer dizer, como uma mudana

    71 Na literatura sobre desflorestamento, comum encontrarmos a expresso deforestation drivers, algo como os

    condutores/causadores do desflorestamento. 72 Argumento defendido por Alexandro Solrzano, Rogrio R. Oliveira e Rejan R. Guedes-Bruni em seu artigo

    Geografia, histria e ecologia, Ambiente & Sociedade XII (1), 2009, 49-50. 73 Bradley B. Walters e Andrew P. Vayda, Event ecology, causal historical analysis, and human-environment

    research, Annals of the Association of American Geographers 99 (3), 2009, 534-553. 74 Walters e Vayda, 540. Esses autores fazem distino entre eventos, fatos e fatores, algo que, no presente

    momento, no consideramos necessria.

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    distinguvel na realidade que est inserida em relaes causais para trs e para frente, produto e produtora de alteraes nos ecossistemas humanos. Em se tratando de uma rea prxima cidade, por exemplo, a alta diversidade certamente tem a ver com usos (ou a falta de usos) humanos passados daquele pedao de t