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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL

UMA ESTRATGIA CHAMADA PLANEJAMENTO ESTRATGICO: deslocamentos espaciais e atribuies de sentido na teoria do planejamento urbano

Pedro de Novais Lima Junior Orientador: Carlos Bernardo Vainer 2003

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL,

UMA ESTRATGIA CHAMADA PLANEJAMENTO ESTRATGICO: DESLOCAMENTOS ESPACIAIS E ATRIBUIES DE SENTIDO NA TEORIA DO PLANEJAMENTO URBANO

Pedro de Novais Lima Junior Tese submetida ao corpo docente do Programa de Ps-graduao do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obteno do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional

Aprovado por

Prof. Carlos Bernardo Vainer (Orientador)Doutor em Desenvolvimento Econmico e Social / Universidade de Paris I, Panthon-Sorbonne

Profa. Ana Clara Torres RibeiroDoutora em Cincias Humanas / Universidade de So Paulo

Prof. Carlos Antnio BrandoDoutor em Economia / Universidade Estadual de Campinas

Prof. Henri AcselradDoutor em Economia / Universidade de Paris I, Panthon-Sorbonne

Profa. Otilia Beatriz Fiori ArantesDoutora em Filosofia / Universidade de Paris I, Panthon-Sorbonne

Rio de Janeiro, Brasil 2003ii

L732e

Lima Junior, Pedro de Novais. Uma estratgia chamada planejamento estratgico : deslocamentos espaciais e atribuies de sentido na teoria do planejamento urbano / Pedro de Novais Lima Junior. Rio de Janeiro : UFRJ, 2003. iii, 3 p. ; 30 cm. Orientador: Carlos Bernardo Vainer. Tese (doutorado) UFRJ/IPPUR, 2003. Bibliografia: p. 3-3. 1. Planejamento urbano. 2. Planejamento estratgico. I. Vainer, Carlos Bernardo. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. III. Ttulo. CDD: 711.4

iii

Para Dbora e Priscila, Caio e Kim

iv

Melhor o que domina seu esprito do que o que toma uma cidade. Provrbios, 16:32v

AGRADECIMENTOSAgradeo a todos os que me ajudaram nesta caminhada, assumidamente, resultado de uma empreitada coletiva: Carlos Vainer, meu orientador, referncia intelectual e fonte de inspirao para seguir combatendo o bom combate; Fabrcio Oliveira e Fernanda Snchez, amigos e parceiros intelectuais; Afrnio Garcia, com quem muito aprendi, do pouco que sei sobre a pesquisa cientfica; Henri Acselrad; Ana Clara Torres Ribeiro, e demais professores do IPPUR, com os quais quero sempre contar. Ana Lcia e o pessoal da biblioteca do IPPUR, bem como as bibliotecrias da Geografia na UFRJ e do Muse des Sciences de lHomme, pela pacincia e boa vontade com que sempre me atenderam. Giuseppe Cocco, Gerardo Silva e colegas do LabTEC, com os quais tive ricos momentos intelectuais. Meus colegas e amigos do IPPUR, Glauco Bienenstein, Cristvo Duarte, Mrcia de Alencar Santana, Renato Godinho Navarro, Jos Luiz Vianna da Cruz, Humberto Martins, Elizete Paixo, Claudia Nbrega, Vitria Poracampo, Neio Campos, Rose Compans, entre muitos outros. Participantes do GEL Grupo de Estudos Lefebvrianos e do GeDeDe Grupo de Estudos dos Doutorandos. Eliomar Coelho, Cristina Nascif e Ftima Tardin, que me ensinaram um pouco dos caminhos do planejamento no Rio. Daniela Maria Ferreira, Letcia, Laura Graziela Gomes, Elane Peixoto; Cristina Cabral; Neiva Vieira, Emlia Lins, Carlos e participantes dos seminrios do CRBC em Paris, onde debatemos, para depois desfrutarmos de momentos muito agradveis. Alfredo Wagner e Louis Pinto, que me deram valiosas sugestes. Maria, Daison, e Bill, que me acolheram num momento difcil. Daniela, Stella, Roni e Igor, em Viosa; Claudia, Dbora e Priscila, no Rio, que me apoiaram na pesquisa. Margarida, Walter Baeta, Carla Romagnoli, Roberto Goulart e demais colegas da UFV instituio onde trabalho e que me permitiu dedicao exclusiva ao doutorado por quase todo o tempo do curso. A CAPES, que me concedeu bolsa de estudos no IPPUR e no CRBC, bem como seus funcionrios, sempre muito atenciosos. Guillermo Rodriguez, Annik Osmont, Jeroen Klink, Tim Marshall, Priscilla Connolly, William Goldsmith, Franois Lamarche, Alain Touraine, Manuel Castells, Roberto Segre, Ceclia Castro, Carlos Lessa, Rodrigo Lopes, Luiz Paulo Conde, Olga Campista, Hlia Nascif, Csar Maia, que mui gentilmente dispuseram de seu tempo, concedendo-me entrevistas, respondendo a minhas indagaes. Por fim, minha famlia, que me apoiou incondicionalmente e de todos os modos possveis: Mrcia, Dbora, Priscila, Claudia, Carlos, Iracema, Pedro e, de um modo especial, Jandira, minha mulher e amiga.

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RESUMOInterrogam-se algumas teorias sobre o planejamento urbano e nota-se que so incapazes de prover explicaes para a sucesso dos modelos de deciso e ao: as teorias analisadas referem-se a algumas tradies intelectuais como se delas, de modo espontneo, surgissem solues que, por sua qualidade intrnseca, j estariam destinadas a assumir lugar de predominncia entre os modelos de tomada de deciso. Assim fazendo, tais teorias ignoram a dinmica prpria do espao social e, portanto, as condies sociais que permitem a emergncia e aceitabilidade de novas idias onde tais modelos so gerados, legitimados e difundidos. A anlise da origem da estratgia na empresa e do sentido atribudo ao planejamento estratgico de cidades, nos EUA, onde foi, primeiramente, sistematizado (Harvard), depois em Barcelona e no Rio de Janeiro, revela que a produo de modelos de planejamento urbano est sujeita s questes, tenses e presses caractersticas de cada lugar. A adoo do planejamento estratgico supe, por um lado, o recurso a bases pr-reflexivas e o trabalho poltico de imposio de representaes e categorias de percepo e julgamento; por outro lado, ela depende do trabalho intelectual de ajustamento do modelo importado nova situao encontrada. Ressalta-se, assim, o carter conjuntural e a dimenso prtica da produo terica em planejamento urbano.

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ABSTRACTSome urban planning theories are questioned for they are unable to provide explanations for the succession of models of decision and action: the theories analyzed refer to some intellectual traditions as if planning solutions would spring from them in a spontaneous way and would be destined to assume a predominant place among other decision-making models because of their intrinsic quality. So considering, these theories ignore the proper dynamic of the social space and therefore the intellectual work and the social conditions that allow the emergence and acceptance of new ideas in which these models are generated, legitimated and diffused. The analysis of the origins of corporate strategy and of the meaning attached to urban strategic planning, in the USA where it was firstly systematized (Harvard), then in Barcelona and in Rio de Janeiro, reveals that the production of urban planning models is submitted to the questions, tensions and pressures related to each place. The adoption of strategic planning presupposes, on the one hand, reliance on prereflexive basis and a political work necessary to impose representations and categories of perception and judgement; on the other hand, it depends upon the intellectual work of adjustment of the imported model to the new situation. This way, the work emphasizes the situationist character and the practical dimension of urban planning theoretical production.

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SUMRIO1 1.11.1.1 1.1.2 1.1.3 1.1.4 1.1.5

MUDANAS NO PLANEJAMENTO URBANO E OS LIMITES DA TEORIA

1

Explicaes para mudanas na formulao e prtica do planejamento urbano________ 8Modelos de ao no setor pblico como respostas tcnicas____________________________________8 Planejamento como instrumento do Estado a favor da acumulao capitalista _____________________9 Modelos de ao pblica como expresso do pluralismo de interesses __________________________16 Vises intelectualistas sobre o desenvolvimento de teorias no planejamento urbano________________18 Limites da teoria em planejamento urbano _______________________________________________20

1.21.2.1 1.2.2

Para ir alm dos limites do debate ___________________________________________ 21O real relacional ________________________________________________________________25 Estratgia de pesquisa e exposio _____________________________________________________37

2 2.1 2.2 2.3 2.4 3 3.1 3.23.2.1 3.2.2 3.2.3 3.2.4

HARVARD: AS ORIGENS DA ESTRATGIA

42

Os sentidos da abordagem estratgica: do universo militar ao empresarial __________ 42 O trabalho intelectual: identificar o setor privado com o setor pblico______________ 58 O trabalho poltico: criar uma nova realidade institucional_______________________ 70 Efeitos do campo acadmico ________________________________________________ 73 BARCELONA: IDENTIDADE, OPORTUNIDADE E ESTRATGIA 84

A democratizao espanhola e a reestruturao da organizao empresarial ________ 85 O trabalho poltico: criar consenso ___________________________________________ 96A institucionalizao democrtica, e as questes de identidade e autonomia_____________________100 A crise econmica e a questo da participao poltica _____________________________________107 Os Jogos Olmpicos de 1992 e o projeto de cidade ________________________________________114 Liderana e formao de consenso em torno de um projeto de cidade _________________________118

3.3 3.43.4.1 3.4.2

Efeitos do espao social ___________________________________________________ 124 O trabalho intelectual: produzir um modelo __________________________________ 134A cidade no mundo________________________________________________________________140 Dos movimentos sociais cidade-ator poltico ___________________________________________146

3.53.5.1

Missionrios e mercenrios: de Barcelona para o mundo _______________________ 157A generalizao (globalizao) de um movimento localista _________________________________158

4 4.1 4.2 5 6

RIO DE JANEIRO: ELITES POLTICAS E PLANO ESTRATGICO

178

Agentes na importao da abordagem estratgica para o Rio de Janeiro___________ 180 A estratgia depende de disposies _________________________________________ 219 PLANEJAMENTO ESTRATGICO COMO ESTRATGIA BIBLIOGRAFIA 230 244

ix

1. MUDANAS NO PLANEJAMENTO URBANO E OS LIMITES DA TEORIA

Conforme a descrio mais comum, subordinada idia de globalizao, o mundo experimenta um processo irreversvel de expanso e intensificao das relaes capitalistas e de competio intercapitalista: capitais globais, com grande capacidade de mobilidade, vagam pelo planeta e eventualmente capturam foras localizadas (capitais locais, trabalho, etc.). A relao de foras resultante desse processo estruturaria o espao contemporneo nos termos de uma dicotomia global-local (LIMA JUNIOR, ago./dez. 2000), reafirmada, ainda, pela competio interurbana, isto , pela disputa entre lugares para atrair os benefcios desses capitais em fluxo. A viso de cidade resultante desse quadro, e as propostas para seu planejamento, de modo que possa enfrentar o mundo da globalizao, difundem-se pela Amrica Latina desde o incio da dcada de 90. Tais propostas se objetivam num conjunto de polticas pblicas de caractersticas competitivas1, das quais pode ser destacado, pela capacidade de canalizar foras sociais e de propiciar um momento de produo da imagem que a cidade tem de si, o planejamento estratgico de cidades.

Para refletir sobre a produo, circulao e adoo de modelos de ao e responder s concepes correntes sobre o desenvolvimento das teorias e prticas no planejamento urbano, (que sero tratadas neste captulo 1), buscou-se acompanhar a trajetria espacial do planejamento estratgico de cidades e as condies de sua adoo em diferentes lugares. Recuperou-se a emergncia e sistematizao da estratgia na

Utiliza-se o termo polticas urbanas competitivas para designar as propostas concebidas para aplicao num contexto de competio entre diferentes atores e que aparecem, na maioria das vezes, afinadas com o pensamento do meio empresarial (da as referncias que se encontram empresa, gesto, administrao pblica gerencial, ao city-marketing, etc). Com relao cidade, o termo marca a idia da disputa com outros territrios pela preferncia de capitais que transitam nos circuitos globais (VAINER, Carlos Bernardo. In: SEMINRIO INTERNACIONAL A COMPETIO INTERURBANA NA ERA DO GLOBALISMO: contradies, riscos e benefcios, 1998, Viosa. Palestra. Viosa: DAU/UFV, 1998. ).1

1

uma estratgia chamada planejamento estratgico

empresa e no setor pblico, tendo Harvard como local de referncia (captulo 2.Harvard: as origens da estratgia). A partir de Barcelona a idia de planejamento estratgico difundida para toda a Amrica Latina (captulo 3.Barcelona: Identidade, Oportunidade e Estratgia), chegando ao Rio de Janeiro no incio da dcada de 90 (captulo 4.Rio de Janeiro: elites polticas e plano estratgico). Nessa trajetria observam-se as adaptaes que, em cada lugar, a idia suscitou e que deram novo e particular sentido prtica. Pretendeu-se, com isto, evidenciar a influncia das condies sociais na produo terica do planejamento urbano.

O planejamento estratgico teve origem no meio empresarial, como proposta de ajustes organizacionais (o ambiente interno) para que as grandes corporaes pudessem enfrentar a crescente competio no mercado internacional (o ambiente externo) (KAUFMAN; JACOBS, 1996). Sua posterior adaptao para a esfera pblica implicou a manuteno de categorias de leitura da realidade presentes na origem. Assim, verifica-se no planejamento estratgico de cidades a mesma distino dos mbitos de ao interno e externo, que servem para configurar o mundo dos negcios. Representase o contexto externo por uma acirrada competio entre cidades, todas agindo em busca de seus prprios interesses. Para vencer a concorrncia, cada qual deve reorganizar-se internamente, de modo a minimizar seus pontos fracos e maximizar seus pontos fortes: formulando aes voltadas para esse ambiente interno, a cidade poder responder s oportunidades e ameaas advindas do exterior. A escala global, isto , o conjunto de cidades em condies assemelhadas e identificadas com os mesmos interesses, torna-se, assim, referncia espacial para a tomada de decises, pois em relao a ela que as questes do ambiente interno so formuladas, num processo de relativizao dos chamados problemas urbanos2 que, deslocando o ngulo de

2

Essa relativizao dos problemas urbanos foi notada numa anlise anterior, sobre o lanamento do processo de planejamento estratgico em Vitria-ES (LIMA JUNIOR, Pedro de Novais. Modelos de planejamento e a mediao de interesses em Vitria ES. In: SEMANA DO IPPUR, 6., 1999a, Rio de2

uma estratgia chamada planejamento estratgico

abordagem do objeto, permite inverter os princpios, os meios e os objetivos da deciso.

A identificao com a iniciativa privada reafirmada na constante referncia que se faz empresa, apelando-se, com freqncia, para sua eficincia e para a eficcia e flexibilidade de seu processo decisrio, indicando-o como padro a ser perseguido3. Pensar a cidade em referncia empresa sugere administr-la como na iniciativa privada e, portanto, uma mudana na prpria natureza da ao governamental. Deste modo, incorporando administrao pblica, lgicas, conceitos e tcnicas do processo decisrio caracterstico da iniciativa privada, o planejamento estratgico de cidades e o conjunto de polticas competitivas do qual parte, aponta para um movimento de despolitizao da polis4, isto , de reduo do espao da poltica na cidade, que se consolida (1) pela instrumentalizao da participao poltica, agora concebida como o processo de definio de objetivos comuns e de construo de uma espcie de pacto

Janeiro. Comunicao. Rio de Janeiro: UFRJ/IPPUR, 1999a. ). Segregao espacial, tomada como falncia do convvio entre estratos sociais (conforme sugerem as noes de cidade partida, dual-city, etc.), no , na viso estratgica, um problema urbano em si, ou melhor, um ponto fraco. Pelo contrrio, pode constituir um ponto forte, um objetivo a ser perseguido, conforme nota-se no plano estratgico da cidade, que numa avaliao do melhor dos possveis horizontes da cidade, conclui: Neste cenrio, Vitria apresentar-se- como centro de intercmbio com o exterior, concentrando os servios nobres de apoio a esta atividade, com excelente infra-estrutura de comunicao e lugar de moradia da populao de renda mais elevada da Regio Metropolitana (Vitria do Futuro: Plano Estratgico da Cidade: 1996-2010, p.69; negrito acrescentado). Segundo Paulo Hartung, ento Prefeito de Vitria-ES, A maior dificuldade de um governo gerenciar uma mquina que foi construda para funcionar h 60 anos. Coisas que a iniciativa privada faz em duas horas ns levamos um ano para descobrir o caminho. As cidades hoje tm que ser competitivas, pois disputam turistas, fbricas e at moradores (citado por FIGUEIREDO, Rubens; LAMOUNIER, Bolvar. As cidades que do certo: experincias inovadoras na administrao pblica brasileira. s.l.: M. H. Comunicaes, 1996. 216 p., p.239; negrito acrescentado). Parafraseando Bourdieu, pode-se sugerir que se trata de uma ao poltica que visa a despolitizao. Conforme esse autor, os dominantes, [...] ayant intrt au laisser-faire, ils travaillent annuler la politique dans un discours politique dpolitis, produit d'un travail de neutralisation ou mieux, de dngation, qui vise restaurer l'tat d'innocence originaire de la doxa et qui, tant orient vers la naturalisation de l'ordre social, emprunte toujours le langage de la nature (BOURDIEU, Pierre. Dcrire et prescrire. Note sur les conditions de possibilit et les limites de l'efficacit politique. Actes de la recherche en sciences sociales, n.38, p.69-73, 1981., p.71).34 3

uma estratgia chamada planejamento estratgico

social, na forma de consenso, para enfrentamento das ameaas externas; (2) pela demanda de uma liderana forte5, personalizao dos interesses da cidade e, finalmente, (3) pela participao privilegiada do empresariado nos processos de tomada de decises estes teriam, melhor que ningum, condies de perceber a eficcia de uma ao estratgica, as ameaas s quais a cidade est exposta e as oportunidades existentes6.

A identificao da cidade com a empresa e com seus objetivos7 e a conseqente perda do carter poltico do processo coletivo de deciso manifestam uma reformulao da problemtica urbana, anteriormente dominada pela idia de garantir maior permeabilidade do Estado em questes de cunho social. Trata-se, por assim dizer, de uma nova questo urbana, agora colocada em termos de competitividade e produtividade (VAINER, 1999a).

A noo de questo urbana permite designar a interrogao que a sociedade faz a si mesma naquilo que diz respeito ao processo de urbanizao. Ribeiro a define como as aporias por meio das quais a sociedade brasileira vem reconhecendo e experimentando os enigmas e dramas decorrentes das mudanas econmicas, sociais, simblicas e territoriais expressos pela urbanizao (RIBEIRO, 2001, p.134).

Conforme nota Vainer, a presena de uma liderana forte e carismtica, fundamental para o sucesso das estratgias das cidades. Segundo esse autor, o planejamento estratgico urbano e seu patriotismo de cidade desembocam claramente num projeto de eliminao da esfera poltica local, transformada em espao do exerccio de um projeto empresarial encarnado por uma liderana personalizada e carismtica (VAINER, Carlos Bernardo. Ptria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratgia discursiva do planejamento estratgico urbano. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 8., 1999a, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: PROPUR/UFRGS, 1999a. , p.10). Da a constante referncia participao de lideranas empresariais nos processos de deciso, situao de Vitria-ES, por exemplo, conforme seu Plano Estratgico (1996, p.10). Postula-se que o desenvolvimento econmico a nica alternativa para garantir, num contexto de crise e instabilidade, a melhoria das condies locais de vida. A cidade tratada como uma empresa, cujo produto a ser vendido no mercado global o ambiente favorvel ao investimento, instalao de empresas, ao turismo e a qualquer tipo de atividade econmica que possa contribuir para o progresso local.47 6

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uma estratgia chamada planejamento estratgico

Processo social8, por excelncia portanto, sujeita a disputas e metamorfoses , no planejamento urbano, esta interrogao implica a formulao dos diagnsticos e prognsticos, dos princpios e objetivos, dos procedimentos e modelos de ao pblica. Em torno desses elementos que se luta pela definio do que seja planejamento urbano, atividade que se concretiza pela definio e implementao de polticas pblicas, explcitas ou implcitas em planos, projetos e leis, relacionadas com a regulao do uso e produo da cidade, com a alocao de recursos oramentrios e/ou com intervenes diretas no espao urbano.

A nova questo urbana significa, em termos ideolgicos, um rompimento radical com os princpios e objetivos que dominaram a pauta de reivindicaes populares no perodo de democratizao caracterizada por demandas populares pela reforma do Estado, no sentido de garantir-lhe maior permeabilidade, possibilitando a considerao de questes de cunho social e que contriburam para conformar a experincia recente de planejamento urbano na Amrica Latina. Segundo Carlos Vainer,[...] se durante um largo perodo o debate acerca da questo urbana remetia, entre outros, a temas como crescimento desordenado, reproduo da fora de trabalho, equipamentos de consumo coletivo, movimentos sociais urbanos, racionalizao do uso do solo, a nova questo urbana teria, agora, como nexo central a problemtica da competitividade urbana (VAINER, 1999a).

Para Robert Castel, a questo social uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coeso e tenta conjurar o risco de sua fratura. um desafio que interroga, pe em questo a capacidade de uma sociedade (o que, em termos polticos, se chama uma nao) para existir como um conjunto ligado por relaes de interdependncia (CASTEL, Robert. As metamorfoses da questo social: uma crnica do salrio. Petrpolis: Vozes, 1998. 611 p. (Zero esquerda)., p.30). Tal observao assemelha-se de Durkheim (1996, p.466-467; ver p.230, acima), para quem a sociedade se recria criando seus ideais.5

8

uma estratgia chamada planejamento estratgico

Segundo Ribeiro, a partir dos anos 80, em contraposio com o iderio do nacionaldesenvolvimentismo dominante, no qual a cidade era um problema econmico e a questo urbana tratada como questo de desenvolvimento, surgem no pensamento social brasileiro vises radiosas da cidade, como locus da construo da cidadania ativa (RIBEIRO, 2001, p.150). Esta posio se consolida numa agenda de reforma urbana a cidade diagnosticada como lugar da produo de desigualdades sociais , traduzida no Movimento da Reforma Urbana, muito ativo durante o processo constituinte de 1988. Ainda que a relativa expresso desse movimento se faa sentir nos dias de hoje (por exemplo, com a aprovao do Estatuto da Cidade), Ribeiro observa que a agenda reformista, voltada para a questo de justia social e democracia perde prestgio medida que passa a se impor uma nova elaborao da questo urbana explicada como resultante de um desajustamento entre a cidade e a economia global e dos modos de enfrent-la (RIBEIRO, 2001, p.135, 153; 2002). Trata-se, segundo esse autor, de mais um momento na trajetria da questo urbana no Brasil:Na dcada de 1980, [...] a questo urbana integrada questo social, e as representaes antiurbanas so substitudas pelo diagnstico orientado por ideais republicanos de justia social e democracia. A tarefa do pensamento e da ao dos urbanistas passa a ser o fazer coincidir a cidade e a cidadania. Vivemos hoje, contudo, um momento de transio histrica, no qual essa questo urbana perde paulatinamente a legitimidade alcanada por sua disseminao no pensamento social e a sua traduo em polticas pblicas, sob os impactos da agenda neoliberal. Os problemas urbanos deixam de ser reconhecidos como integrantes da questo social e passam a ser explicados como decorrentes do suposto divrcio entre a cidade e os imperativos da ordem econmica global, e o saber e a ao urbansticos so mobilizados para fazer coincidir a cidade com o mercado (RIBEIRO, 2001, p.134-135).

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uma estratgia chamada planejamento estratgico

As diferentes pticas segundo as quais o planejamento urbano definido seja tratado como o conjunto de tcnicas aplicadas ao espao fsico ou como a soma das tticas de governo em relao cidade remetem sempre a um ideal normativo, um paradigma para ao, ponto de convergncia de escolhas relativas aos princpios, modos, objetivos e atores do processo decisrio. nesse sentido que se justifica, na designao do planejamento estratgico, o uso do conceito de modelo: seu carter arquetpico permite capturar as referncias a um exemplo ou imagem que serve de inspirao ou que se busca reproduzir nas prticas sociais: a experincia de Barcelona, a eficcia do planejamento estratgico de empresas, etc. (ver ANSART, P., Modle et Modlisation in AKOUN; ANSART, 1999).

Verdade , deve ser dito, que o planejamento estratgico de cidades foi objeto de um esforo de sistematizao, prximo idia de um modelo terico, conforme apresentam J. Borja e M. Castells (1997); R. Lopes, (1998); J.M. Fernndez Gell, (1997); entre outros. No entanto, agindo como empresrios morais por excelncia (BECKER, 1977), em seus trabalhos encontram-se explicitados elementos do senso comum mais atual e que se prestam a garantir uma atitude adequada face a um mundo apresentado como em competio. Elementos esses que dependem de concepes sobre a sociedade e a natureza da interao social e que legitimam, nos termos de uma racionalidade formal, decises sobre questes substantivas da vida social (ver SIMMIE, 1974; GUILLN, 1994, p.3). Se, na anlise dessa sistematizao, for acionada a distino entre modelos mimticos e modelos analgicos ou estruturais estes procuram reconstituir os princpios de funcionamento da realidade estudada e so o resultado de esforos de enfrentamento e reconstruo simblica da realidade, enquanto os modelos mimticos apenas reproduzem as propriedades fenomenais dos objetos, conforme estes se apresentam intuio (BOURDIEU, mai 1968, p.26) e, se for considerado o fundamento social da gnese dos esquemas de percepo, pensamento e ao (BOURDIEU, 1987d), pode-se perceber que estes modelos (agora no sentido mimtico do termo) constituem snteses de vises de mundo dominantes e so construdos ipso facto para serem imitados.7

uma estratgia chamada planejamento estratgico

1.1.

Explicaes para mudanas na formulao e prtica do planejamento

urbano A colocao da questo urbana em novos termos sugere a fora e subentende a complexidade dos processos pelos quais idias adquirem legitimidade social. Analisar as condies para essa mudana permite interpelar parte significativa da produo terica do planejamento de cidades, aparentemente encerrada na disputa entre uma leitura tradicional que, priorizando o aspecto tcnico do planejamento, no reconhece essa dimenso poltico-ideolgica das novas prticas para a cidade, e a leitura politizada, seja aquela de inspirao marxista ortodoxa, que submete o desenvolvimento de idias e teorias em planejamento urbano e polticas pblicas imediata funcionalizao do sistema capitalista; seja a que infere uma relao direta entre opo ideolgica e prtica do planejamento; seja ainda a idealista, que v a emergncia de modelos e teorias como resultado do desenvolvimento endgeno dos meios de conhecimento.

1.1.1. Modelos de ao no setor pblico como respostas tcnicas

As explicaes mais tradicionais creditam s exigncias da prtica a dinmica de mudanas no planejamento urbano. Essa dinmica acionada por processos intelectuais que, por aproximaes sucessivas, buscam reagir s questes emergentes: o planejamento evolve atravs da contnua aplicao de velhos mtodos para novos problemas e a descoberta de novos mtodos para lidar com velhos problemas (HUDSON, 1979, p.396). No sentido que Hudson, entre outros, d s mudanas no planejamento, os diversos modelos de deciso constituem uma caixa de ferramentas que atende diversidade de questes que o planejador encontra em sua prtica diria (1979, p.396). Portanto, tradicionalmente o planejamento visto como uma atividade tcnica, orientada para a resoluo de problemas postos.

8

uma estratgia chamada planejamento estratgico

A apologia do planejamento estratgico de cidades apia-se justamente nessa dimenso tcnica a pressuposio de conhecimento capaz de caracterizar os ambientes, desenvolver alvos, objetivos e estratgias, e monitorar as aes (KAUFMAN; JACOBS, 1996) , que permite apresent-lo como a resposta adequada insero competitiva no mundo globalizado (CASTELLS, 1990; BORJA, 1996; BORJA; CASTELLS, 1997). No entanto, o desprezo pela reelaborao do problema enfrentado tomado como evidente e demandando respostas imediatas e a idia de reciprocidade em relao a uma soluo tcnica que lhe exgena evidenciam a incapacidade dessa perspectiva de romper com o senso comum, segundo o qual h uma natureza autnoma da tcnica em relao ao mundo social quando esta s faz sentido se impregnada de sentidos sociais, em outras palavras, quando se inscreve no espao de significaes prprias a uma sociedade (LE DOUARIN, 1999, p.528; traduzido) , e, assim, de produzir uma explicao para as mudanas no planejamento urbano9.

1.1.2. Planejamento como instrumento do Estado a favor da acumulao capitalista

Para alguns tericos de orientao marxista, a dinmica do processo decisrio, evidenciada pela adoo de diferentes modelos orientadores, diz respeito a fatores estruturais. Compreend-la implica enquadrar o planejamento como uma atividade do Estado capitalista, no contexto das demandas sociais e econmicas surgidas em funo do modo capitalista de produo. Assim, Manuel Castells (1978, p.86-88) observa a funo social do planejamento urbano na mediao dos interesses das diversas fraes de capital e na atenuao do conflito capital-trabalho e David Harvey (1979)

Questiona-se, inclusive, se tal perspectiva permite uma abordagem consistente, uma vez que as questes conceituais resultam em problemas prticos, conforme observado em relao proposta de planejamento estratgico de cidades de Jordi Borja e Manuel Castells (Local y Global, 1997) e tratada em LIMA JUNIOR, Pedro de Novais. Ideologia e representao do espao no planejamento estratgico de cidades. Cadernos IPPUR, v.14, n.2, p.143-166, ago./dez. 2000.9

9

uma estratgia chamada planejamento estratgico

considera o planejamento urbano como parte das instrumentalidades do Estado, garantindo as condies do processo de acumulao. Essa linha de argumentao encontra uma de suas snteses no trabalho sobre continuidade e mudana nas funes do Estado capitalista desenvolvido por Claus Offe (1975). Para esse autor, as mudanas na forma do processo decisrio (ou no modo de operao do poder pblico) que orienta as aes do Estado intervencionista so resultantes de tentativas de adequar sua estrutura interna s exigncias do processo de acumulao.

Offe define o Estado capitalista em termos de uma relao funcional e da dependncia estrutural ao processo de acumulao, que se caracteriza por quatro condies ou princpios bsicos: excluso, manuteno, dependncia e legitimidade. De acordo com o primeiro princpio, o Estado est excludo do processo de acumulao que se restringe aos capitais privados e no possui autoridade para iniciar ou para controlar a produo daquilo que seja considerado interessante ou no para a acumulao. Segundo o princpio da manuteno, o Estado tem o mandato de criar e preservar as condies de acumulao em face de ameaas desestabilizadoras (concorrncia entre capitais individuais, presses da classe trabalhadora, atores em atividades desviantes). Conforme o terceiro princpio, o Estado, seu poder de ao e sobrevivncia, depende da continuidade do processo de acumulao, tanto em funo dos recursos gerados neste processo, quanto para a manuteno de sua prpria natureza enquanto Estado capitalista10. Legitimidade, o quarto princpio definidor do Estado capitalista, caracteriza os esforos para que este se apresente como instituio democrtica, em busca dos interesses sociais gerais, garantindo, assim, sua existncia em um ambiente conflituoso, por natureza. Conforme Carnoy (1994, p.173), o Estado no pode aparecer como representante dos interesses de determinados capitais individuais, em prejuzo de

10

Carnoy observa que para Offe, o Estado, no capitalismo adiantado, est to intimamente envolvido no processo de acumulao que a acumulao privada torna-se uma funo da atividade burocrtica do Estado e do conflito poltico organizado (CARNOY, Martin. Estado e teoria poltica. Campinas: Papirus, 1994., p.174).10

uma estratgia chamada planejamento estratgico

sua legitimidade junto ao interesse social do capital, nem pode aparecer como representante do capital em geral, em prejuzo de sua base de apoio de massa. Segundo Offe, o Estado s pode subsistir como Estado capitalista quando oculta sua natureza capitalista (OFFE, 1975, p.127).

As polticas pblicas so funo desses quatro princpios intrnsecos existncia do Estado capitalista (excluso, manuteno, dependncia e legitimidade). No entanto, a forma do processo de elaborao dessas polticas varia, primeiramente, em funo do tipo de resposta que o Estado chamado a dar em suporte ao processo de acumulao: a atividade estatal pode tomar a forma alocativa ou produtiva (OFFE, 1975, p.127). A forma do processo decisrio tambm objeto de constante reorganizao em virtude da necessidade de o Estado compatibilizar as demandas especficas da acumulao capitalista (conforme expressa nos trs primeiros princpios) com a busca por legitimidade, que lhe garante existncia (CARNOY, 1994, p.173-74). A necessidade de apresentar respostas no contexto dinmico e contraditrio de sua atuao impe ao Estado a adoo de procedimentos e critrios organizacionais internos que lhe permitiro produzir e implementar polticas pblicas em direo ao contexto externo (um problema externo tambm um problema interno pois demanda de sua capacidade de perceber e agir; OFFE, 1975, p.135) 11. Em termos do processo decisrio, Offe identifica trs alternativas lgicas de organizao e operao do aparato estatal: a burocrtica, a planejada e a consensual (OFFE, 1975, p.135). Esses diferentes modos de operao se distinguem por sua adequao ao tipo de atividade requerida do Estado: alocativa ou produtiva.

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Portanto, nos termos da representao do espao da ao poltica, encontra-se em Offe uma conexo com o planejamento estratgico de cidades. Note-se que o autor escreve quando a abordagem estratgica ainda no havia atingido seu apogeu.11

uma estratgia chamada planejamento estratgico

A atividade alocativa se d no contexto em que a criao e manuteno das condies de acumulao so dependentes apenas da aplicao dos recursos que so prprios do Estado, isto , que esto em sua esfera de deciso. A formao das polticas governamentais toma referncias do processo poltico, sendo expresso das relaes de poder e de conflito de interesses. Conforme nota Offe, o que caracteriza as polticas pblicas alocativas que poltica e polticas pblicas no so diferenciadas: Polticas pblicas so congruentes com a poltica (OFFE, 1975, p.128; traduzido).

A atividade produtiva do Estado ocorre no contexto em que a sustentao das condies de acumulao depende de sua interveno afirmativa, atravs de ingressos fsicos que contribuam para o processo de produo. Esses ingressos tm por objetivo satisfazer demandas materiais necessrias acumulao de algumas unidades capitalistas, incapazes de atend-las por si prprias ou de serem supridas pelo mercado, o que ocorre quando sua produo no apresenta atrativos para a acumulao privada ou, na interpretao de Carnoy, quando as condies da produo privada so tais que o capitalista no pode captar o valor total do produto (CARNOY, 1994, p.177)12. As atividades do Estado em relao acumulao capitalista implicam a adoo (institucionalizao) de procedimentos e normas para a produo de suas polticas. Esses procedimentos e normas constituem o modo de operao do Estado, que varia, conforme exposto acima, de acordo com as trs diferentes lgicas (burocracia, ao planejada, consenso).

Note-se que neste caso em que o Estado chamado a produzir (ao invs de simplesmente decidir sobre) as condies para a acumulao contnua (OFFE, Claus. The theory of the capitalist state and the problem of policy formation. In: LINDBERG, Leon N.; ALFORD, Robert; CROUCH, Colin; et al (Ed.). Stress and contradiction in modern capitalism. Lexington: D. C. Heath, 1975. p.125-44., p.134; traduzido), o processo decisrio para a definio das polticas governamentais no pode tomar referncias do processo poltico: o Estado no pode optar pelos interesses de grupos dominantes quando o objetivo a restaurao do equilbrio do sistema de acumulao como um todo.12

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uma estratgia chamada planejamento estratgico

O modo de operao burocrtico aquele no qual a organizao interna e o processo decisrio do Estado so centralizados, seguindo critrios e rotinas previamente estabelecidas em normas e controladas por estruturas hierrquicas. Segundo Offe, a ao sob a lgica burocrtica, embora conveniente para o processo de alocao de recursos, inadequada para a administrao da atividade produtiva do Estado em face da demanda diferenciada que esta atividade apresenta ao aparato estatal. Offe explica que, enquanto o processo decisrio para a determinao da alocao de recursos toma por referncia elementos que lhe so externos e que nele ingressam (inputs) normas, decises superiores, etc. , as atividades produtivas so orientadas para os resultados (outputs) do processo de deciso (1975, p.136). Em outras palavras, as atividades alocativas se referem a elementos dados no incio do processo decisrio, ao passo que a referncia para as atividades produtivas est projetada no fim desse processo. Assim, o Estado no tem como definir objetivos compatveis com a atividade produtiva sem transformar a forma do processo decisrio e, portanto, a prpria estrutura burocrtica.

O modo de operao consensual aquele em que a formao das polticas pblicas toma por base o processo descentralizado de conflito poltico e consenso, o que significa que tanto os ingressos quanto os resultados do processo decisrio so determinados fora do aparelho estatal, pelos beneficirios da ao do Estado. Eliminase assim, segundo Offe, a distino (lgica e institucional) entre administrao e poltica, e entre Estado e sociedade civil. Nessa situao, alm da constante interferncia do processo participativo sobre a administrao pblica tornar invivel qualquer planejamento de longo prazo, a expectativa de que o Estado ser responsivo tende a aumentar as demandas por sua ao e esgotar sua capacidade de atend-las, aprofundando os conflitos e trazendo dificuldades para a ao em favor da reproduo das condies de acumulao (OFFE, 1975, p.139; 142).

Ao planejada o modo de operao no qual o Estado volta-se para a consecuo de resultados (indo alm do cumprimento e muitas vezes contribuindo para a mudana de normas previamente estabelecidas). Para tal, nota Offe, o processo decisrio de13

uma estratgia chamada planejamento estratgico

formulao de polticas pblicas tem que se organizar de modo semelhante empresa privada. No entanto, ao contrrio da empresa privada, onde os objetivos (o que e quanto produzir) so definidos em relao ao mercado, a ao planejada problemtica pois, no ambiente extremamente diversificado e contraditrio da atuao do Estado, no h como tomar elementos de referncia para a definio dos objetivos do processo (OFFE, 1975, p.138). H ainda outros problemas: a longa durao do ciclo de produo que faz o processo de implementao mais suscetvel a fatores no contemplados na formulao inicial; os efeitos indesejveis da ao do Estado, em face da necessidade de legitimar-se e ocultar sua funo enquanto Estado capitalista (1975, p.139) e, finalmente, a impossibilidade de considerar (falta conhecimento e instrumental tcnico-administrativo) ou controlar (faltam instrumentos tcnicoadministrativos e autoridade) todas as variveis do processo que se dispe a implementar, tornando o planejamento vulnervel s retaliaes por parte do capital (1975, p.142).

Todas as alternativas lgicas de adequao da forma do processo decisrio dinmica do processo de acumulao tm limitaes (OFFE, 1975, p.142). Primeiramente, a organizao burocrtica do Estado ineficaz para a atuao em atividades produtivas. Em segundo lugar, a implantao de processos participativos inconveniente por desequilibrar o arranjo de foras no qual o sistema capitalista se apia. Finalmente, as tentativas de reestruturar o aparelho governamental para assemelh-lo organizao privada de produo so infrutferas, pois o planejamento encontra obstculos quando entra em conflito com interesses dos capitais privados. Devido a essas limitaes, Offe conclui que nenhuma das alternativas conduzir a um equilbrio entre a forma do processo de formulao de polticas pblicas e a funo do Estado no processo de acumulao (OFFE, 1975, p.144) e, portanto, haveria uma constante reorganizao interna do aparato estatal, alternando-se entre os trs modos de operao (OFFE, 1975; JESSOP, 1990, p.41).

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uma estratgia chamada planejamento estratgico

Particularmente em funo de seu artigo The theory of the capitalist state and the problem of policy formation. Stress and contradiction in Modern Capitalism (in LINDBERG; ALFORD; CROUCH et al., 1975, p.125-144), Offe referncia para os que se debruam sobre as teorias do Estado, como atestam os trabalhos de vrios autores (ver, entre outros, CARNOY, 1994; DUNLEAVY; O'LEARY, 1987; HELD, 1995; JESSOP, 1982; JESSOP, 1990). Esse artigo teve tambm repercusso direta no campo do planejamento urbano anglo-americano pela mediao de Patsy Healey (ver HEALEY, 1983). Porm, seu poder explicativo passou a ser questionado medida que aumentaram as crticas abordagem estruturalista em cincias polticas e sociais. Por um lado, apesar de sua coerncia interna, no d conta de processos particulares ao operar, conforme demonstrou Przeworsky, uma reificao do Estado e deixar, em conseqncia, pouco espao para a ao social, isto , para as interaes estratgicas entre mltiplas foras polticas, cujos interesses envolvem misturas variveis de conflito e cooperao, e que resultam em polticas pblicas especficas (PRZEWORSKY, 1995, p.126). A tendncia a tratar como homogneas e monolticas as categorias histricas [Estado, classe trabalhadora] que primam pelo inverso, a heterogeneidade e a segmentao (COIMBRA, 1994, p.125) ainda foi alvo das crticas de Coimbra, para quem, nas abordagens marxistas dominantes (OConnor; Piven; Holloway e Piccioto), tambm prevaleciam redues simplistas ou seja, que vem a dinmica de produo de polticas como resultante unicamente de interaes entre classe trabalhadora e o Estado e a-histricas isto , que ignoram o carter cambiante do capitalismo e as conseqentes especificidades das sociedades capitalistas do mtodo de Marx (COIMBRA, 1994).

Por outro lado, a explicao da dinmica das mudanas nas polticas pblicas com base na idia de respostas funcionais acumulao capitalista, desconsidera os processos intelectuais que explicitam os interesses e as estratgias de classes e grupos e que do forma aos diversos modelos de ao, subordinando-os a determinaes de ordem estrutural.

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1.1.3. Modelos de ao pblica como expresso do pluralismo de interesses

nfase na tcnica ou nas demandas de um sistema, contrape-se a viso da produo de polticas pblicas do planejamento urbano, em particular como um processo de natureza poltica, cujas decises dizem respeito alocao de recursos limitados, disputados por foras sociais organizadas em torno de projetos polticos. Esses projetos encontrariam correspondncia nos diferentes modelos de planejamento, em funo do modo como nestes esto enunciados conceitos sobre a sociedade, sua natureza e a adequada forma de governo, e que resultam, conforme os diferentes modelos, na definio dos atores (a quem cabe tomar decises, quem define objetivos e meios) e dos objetivos do processo decisrio (o que deve ser prioritariamente contemplado). O leque relativamente diversificado de alternativas identificadas com distintas matrizes do pensamento poltico permitiria, portanto, a adoo de modelos conforme as preferncias ideolgicas dos diferentes decisores (FAINSTEIN; FAINSTEIN, 1996; FRIEDMANN, 1987) e conforme o estado das relaes de fora num determinado territrio: como os modelos de planejamento abraam diferentes valores e crenas e promovem interesses polticos distintos, a adoo de um determinado modelo de planejamento pode se tornar objeto de discrdia e disputa entre diferentes grupos sociais (HEALEY, 1983, p.23; traduzido). Em suma, a partir de diferentes correntes tericas desenvolvem-se os diferentes modelos de ao, dos quais se serve uma pluralidade de posies poltico-ideolgicas.

A associao entre modelos de planejamento e projetos polticos foi descrita por Klaus Frey em seu estudo sobre Curitiba e Santos (1996). Num artigo em que compara as experincias de gesto desses dois municpios, o autor observa que, no primeiro, prevalece o projeto social-democrata, imbudo do propsito da reforma do Estado: o governo de Curitiba, na gesto de Jaime Lerner, colocou a maior nfase na modernizao da mquina pblica e num planejamento tcnico eficiente (FREY, 1996, p.109-10); na experincia de Santos (gesto de Telma de Souza), sobressai o projeto democrtico-popular que visa sobretudo estimular a organizao da16

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sociedade civil e promover uma reestruturao dos mecanismos de deciso, em favor de um maior envolvimento da populao (FREY, 1996, p.109). Esses projetos exprimem-se atravs de dois diferentes modelos de gesto que Frey designa por gesto tcnico-pragmtica (Curitiba) e gesto poltico-ideolgica (Santos). A cada modelo correspondem posies polticas das quais derivam polticas pblicas e estilos de ao, de administrao pblica e arranjos institucionais, que se distinguem, principalmente, nos termos da relao Estado - sociedade civil. Em Curitiba, a gesto pblica, orientada para a eficincia tcnica, depende de autonomia do executivo para a execuo de seus projetos, o que implica uma tendncia ao autoritarismo . . . sem muitas possibilidades de influenciar no planejamento, por parte da sociedade civil (FREY, 1996, p.135). Por isso, em Curitiba, a participao popular um instrumental, isto , tem por objetivo incluir a populao em processos cuja definio se deu nos gabinetes do governo municipal (p.114; 117). Em Santos, o processo de gesto politizado, privilegiando as formas de envolvimento da sociedade no processo decisrio governamental (p.120). Para Frey, esses modelos exprimem projetos, mas tambm estilos polticos que, para serem bem sucedidos, devem estar afinados com as particularidades culturais das diferentes localidades onde so manifestos (1996, p.138).

Associando os diferentes modelos de ao do poder pblico s opes polticas dos grupos que se sucedem no governo, estudos que enfatizam a dimenso polticoideolgica do planejamento em suas diferentes manifestaes sugerem que a dinmica de mudanas no planejamento ocorreria com o propsito de: (1) encontrar novas bases de legitimidade para o poder pblico (HAGUE, 1991); (2) favorecer a determinados segmentos da sociedade local (HEALEY, 1983; LIMA JUNIOR, 1996a; LIMA JUNIOR, 1998; COMPANS, 2001, p.187) e/ou ainda; (3) distinguir e promover posies polticas ou ideolgicas, estabelecendo diferenciao de governos predecessores, divulgando aes governamentais (GRANT, 1994; TAUXE, 1995), ou ainda ajustando-se aos valores das localidades nas quais so aplicados (FREY, 1996).

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Note-se que aqui no h mediaes: cada modelo de ao identificado com uma, e somente uma, posio ideolgica. Porm, as explicaes sobre as mudanas no planejamento urbano que pressupem uma correspondncia entre os diferentes modelos e a pluralidade de posies poltico-ideolgicas esbarram na evidncia emprica, que atesta a distncia entre a idealizao terica e a realidade das experincias recentes: verifica-se a reproduo do mesmo modelo em municpios com governos de correntes polticas aparentemente contrrias a suas prescries fundamentais, ou seja, governos de direita adotam prticas participativas (identificadas com a esquerda) e governos ditos de esquerda adotam o planejamento estratgico (prximo ao pensamento da direita)13.

1.1.4. Vises intelectualistas sobre o desenvolvimento de teorias no planejamento urbano

No extremo idealista desse continuum de vises politizadas o referente a gnese ideal das teorias e modelos de planejamento urbano. Nele encontram-se as explicaes que privilegiam os processos intelectuais e que subentendem o surgimento de novos modelos de ao como resultado de uma espcie de movimento autnomo da teoria, dependente, exclusivamente, de fatores endgenos para a gerao e desenvolvimento das diversas tradies intelectuais. Este , por exemplo, o caso de John Friedmann em

A associao das prticas participativas a governos de esquerda e do planejamento estratgico aos de direita tambm pode ser percebida no texto de Ribeiro, supracitado (RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Cidade, nao e mercado: gnese e evoluo da questo urbana no Brasil. In: SACHS, Ignacy; WILHEIM, Jorge; PINHEIRO, Paulo Sergio (Org.). Brasil: um sculo de transformaes. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.133-161., particularmente na p.153). Ainda que a adoo de um modelo de planejamento no signifique o engajamento numa prtica poltica. Para uma breve comparao do planejamento participativo e do planejamento estratgico e a identificao desses modelos com posies polticas de esquerda ou direita, verificar LIMA JUNIOR, Pedro de Novais. Clones, clichs e planejamento. In: SEMINRIO INTERNACIONAL PLANEJAMENTO E GESTO MUNICIPAL, 1997, Natal. Palestra. Natal: Departamento de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Norte DARQ/UFRN, 17 a 19 de maro, 1997, 1997. .18

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Planning in the public domain: from knowledge to action (FRIEDMANN, 1987)14, que posteriormente reconheceu ter elaborado seu apanhado histrico sobre as tradies intelectuais europias e americanas no domnio da ao pblica, com base numa abstrao das referncias scio-espaciais do planejamento (FRIEDMANN, 1998, p.250-253)15. Essa abordagem, que tem grande destaque no campo anglo-americano, conta com outros proponentes e caracteriza-se pela representao do desenvolvimento das diferentes tradies em linhas cronolgicas, construdas com base na idia de relaes de filiao intelectual entre indivduos que contriburam para a conformao atual daquela matriz terica. Curiosamente, como fica evidente no grfico proposto por Yiftachel, tais desenvolvimentos ocorrem isoladamente, isto , sem que as linhas se encontrem (YIFTACHEL, 1989; ver ainda FRIEDMANN, 1987).

Restritas a classificaes para as quais desconsidera-se o lugar social onde as diferentes teorias so elaboradas, apresentadas e legitimadas, tais explicaes podem ser o resultado das imposies dos critrios subjetivos do classificador sobre o objeto de anlise. Essa inclinao escolstica que desconhece as relaes objetivas que entre si mantm os diversos agentes (envolvidos com a produo terica ou com a prtica do planejamento) em um mesmo espao social j foi objeto de comentrios de Bourdieu, ao observar que,O longo processo de emergncia histrica no decorrer do qual se afirma progressivamente a necessidade especfica de cada campo no

14

Livro que Castells atribui rea de filosofia poltica, e que discorre sobre o fundamento epistemolgico das cincias sociais e das polticas pblicas (extrado da contra capa, traduzido).

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Assim se expressa o autor: I would do differently today than when I worked on the manuscript for Planning in the Public Domain in the early 1980s. [] Trying to get an historical overview of how we in Europe and America have thought about the relation between knowledge and action, I deliberately abstracted from any specific applications of planning. [...] Theorizing planning by incorporating cityforming processes into the planning paradigm, rather than talking about planning outside of any historical and spatial context is thus one of the ways by which I would want to amend Planning in the public domain. And there are two additional ways [...] The inclusion of civil society as one of three collective actors shaping our cities [...] The third theme is power. [...] (FRIEDMANN, John. Planning theory revisited. European Planning Studies, v.6, n.3, p.245-253, 1998., p.250-252).19

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essa espcie de partenognese continuada da razo que se fecunda a si mesma e redutvel (retrospectivamente) a uma longa cadeia de razes imaginadas pela viso intelectualista (pela histria das idias, sobretudo cientficas ou filosficas). Tampouco se reduz a um puro e simples encadeamento de acasos, como por vezes sugere Pasqual, a fim de melhor combater a arrogncia da razo triunfante. Ele deve sua lgica especfica, propriamente sociolgica, ao fato de que as aes produzidas num campo so duplamente determinadas pela necessidade especfica desse campo: a cada momento, a estrutura do espao de posies resultante de toda a histria do campo, quando percebida por agentes condicionados em suas disposies pelas exigncias dessa estrutura, aparece a tais agentes como um espao de possveis capaz de orientar suas expectativas e seus projetos por suas solicitaes e at mesmo de determin-los, ao menos negativamente, por meio de seus constrangimentos, favorecendo assim aes tendentes a contribuir para o desenvolvimento de uma estrutura mais complexa (BOURDIEU, 2001c, p.138)16.

1.1.5. Limites da teoria em planejamento urbano

Ao fim desta tentativa de sntese, nota-se que a incapacidade de perceber a eventual incoerncia entre princpios polticos verbalizados e modelos de planejamento adotados, e mesmo de considerar as nuanas da prtica, talvez possa ser explicada pela ignorncia do papel das trocas simblicas, ou seja, da influncia exercida pelas condies de transformao de experincias em modelos, de sua exportao,

Em outro texto, referindo-se a uma tradio da histria da cincia esse autor nota que ela [...] dcrit le processus de perptuation de la science comme une sorte de parthnogense, la science sengendrant elle-mme en dehors de toute intervention du monde social (BOURDIEU, Pierre. Les usages sociaux de la science: pour une sociologie clinique du champ scientifique. Paris: INRA, 1997c. (Sciences en questions)., p.13).20

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importao e aplicao, em funo das disputas que se estabelecem para impor ou negar as representaes e categorias de pensamento a eles associadas. Justamente quando a ampla difuso de planos estratgicos e, mesmo, a abundncia de tentativas de reproduo de prticas participativas sugerem a ao de um nmero considervel de atores sociais, individuais ou coletivos, difundindo tcnicas e modelos em escala global nota-se a circulao internacional de determinados expoentes nos domnios da teoria sociolgica, da geografia econmica, ou da consultoria em planejamento urbano, e seu trabalho de afirmao de representaes de mundo; nota-se tambm a ao de organismos internacionais, impondo, induzindo ou divulgando e, assim, sancionando experincias tidas como positivas, segundo ptica particular17 , as teorias descritas, subentendendo uma dinmica autnoma da cincia, concebem um universo sem atores.

1.2.

Para ir alm dos limites do debate

O debate no planejamento urbano possvel porque seus proponentes percebem a realidade social de um modo particular, construindo instrumentos para compreend-la e providenciando meios para, sobre ela, intervir18. O reconhecimento da existncia de

Sobre o apoio de agncias multilaterais na difuso do modelo de planejamento, Carlos Vainer observa que de um lado, praticamente total o comprometimento de agncias de cooperao e instituies multilaterais em sua difuso e de seus conceitos bsicos, de que so exemplos recentes: a) a publicao de alentado volume sobre a experincia de Barcelona, pela Oficina Regional para Amrica Latina e Caribe do Programa de Gesto Urbano, constitudo e financiado pela Agncia Habitat das Naes Unidas, PNUD e Banco Mundial; b) a encomenda, feita pela Agncia Habitat das Naes Unidas, para que Jordi Borja e Manuel Castells produzissem um documento de anlise e propostas especialmente para a Conferncia Habitat II (Istambul), em que retomam vrios de seus trabalhos anteriores e em que apresentam, mais alm de anlises e propostas, verdadeiras receitas para a aplicao do modelo (VAINER, Carlos Bernardo. Ptria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratgia discursiva do planejamento estratgico urbano. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 8., 1999a, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: PROPUR/UFRGS, 1999a. ).18

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O debate de idias permite notar uma disputa poltica pela representao legtima e modificao da realidade social, disputa que se alimenta pela produo dessas representaes. Como nota Bourdieu, Nombre de dbats d'ides sont moins irralistes qu'il ne parat si l'on sait le degr auquel on peut21

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vises diferenciadas explicitadas pelo surgimento de modelos de descrio e interveno na realidade no explica a dinmica dos debates, mas implica a considerao de um espao social, na forma de um campo de lutas onde se disputa a definio legtima do que seja planejamento e de seu objeto.

Como a definio de planejamento urbano objeto de disputas que giram em torno do escopo (ou do alcance territorial considerado: a cidade, a metrpole, a cidade num espao global, etc.), dos princpios (a partir das tradies poltico-ideolgicas, das posies sociais, dos interesses particulares), dos objetivos (desenvolvimento econmico, resoluo de problemas, explicitao de problemas, etc.), da forma de interveno (por projetos, pelo planejamento fsico-territorial, etc.), dos modos de deciso (participativo, incremental, etc.) e, por fim, dos atores do processo decisrio (os indivduos, os coletivos organizados da sociedade, o empresariado, o poder pblico, etc.)19 , delicado tomar uma definio como descritiva da prtica do planejamento, pois cada uma diz respeito e reafirma a posio nesse espao social daquele que a adota. Dito de outro modo, necessrio relativizar a definio de planejamento urbano justamente para escapar do confronto imediato advindo da luta de representaes onde se visa ao monoplio da definio de planejamento.

modifier la ralit sociale en modifiant la reprsentation que s'en font les agents (BOURDIEU, Pierre. Dcrire et prescrire. Note sur les conditions de possibilit et les limites de l'efficacit politique. Actes de la recherche en sciences sociales, n.38, p.69-73, 1981., p.69-70). Tratou-se mais detalhadamente de algumas das diferentes posies que alimentam essa disputa nos trabalhos: LIMA JUNIOR, Pedro de Novais. Planning changes in a changing country. In: LATIN AMERICA: MOVING BEYOND NEO-LIBERALISM, 1998, Vancouver. Anais... Vancouver: Canadian Association for Latin American and Caribbean Studies / Canadian Association for Mexican Studies, 1998. p.33-41.; LIMA JUNIOR, Pedro de Novais. As possibilidades e o espao da participao popular nos anos 90. In: SEMINRIO DE DIREITO URBANSTICO DA ZONA DA MATA, 1, 1996b, Viosa. Palestra. Viosa: Departamento de Direito / Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Viosa, 04 a 06 de novembro, 1996, 1996b. ; LIMA JUNIOR, Pedro de Novais. Modelos de planejamento e a mediao de interesses em Vitria ES. In: SEMANA DO IPPUR, 6., 1999a, Rio de Janeiro. Comunicao. Rio de Janeiro: UFRJ/IPPUR, 1999a. ).2219

uma estratgia chamada planejamento estratgico

Objeto de disputa, pode-se notar que o planejamento no contm em si os princpios de sua dinmica, os quais esto dados nesse espao social, onde as idias so formuladas20, e na relao que este espao guarda com as demandas que sobre ele se impem. O planejamento urbano resulta, assim, de um complexo processo de construo social e s pode ser compreendido pelo estudo desse processo, no qual os atores, agindo por motivaes diversas (so diferentes suas origens sociais, culturais, domnios disciplinares, etc.) e, em funo das relaes que estabelecem entre si e com o mundo, constituem um espao social objetivamente estruturado (so diferentes as suas condies de ao), delimitado pelos constrangimentos mtuos e pelas possibilidades individuais de ao.

O campo de lutas, ou mais apropriadamente, o campo de relaes onde se pensa a cidade, pode-se denominar campo do planejamento e pesquisa urbana21, lugar que poderia ser definido como uma interseo: entre saberes disciplinares, entre domnios estatais (isto , o modo especfico como, em cada pas, define-se o municpio) e, sobretudo, entre teoria (a academia, os intelectuais, etc.) e prtica (as agncias de planejamento, os profissionais, etc.). A noo de interseo permite, primeiramente, demarcar o carter difuso desse campo e, em segundo lugar, como corolrio, assinalar a intensidade das trocas e embates que nele se realizam. A idia de

Com base em Bourdieu apud DEZALAY, Yves; GARTH, Bryant G. Dealing in virtue: international commercial arbitration and the construction of a transnational legal order. Chicago: The University of Chicago Press, 1996. 344 p. (Language and Legal Discourse).21

20

Ribeiro o define como, campo do urbanismo, entendido como um conjunto de enunciados organizados em representaes, imagens e narrativas que identificam, simultaneamente, os problemas urbanos e propem as terapias subjacentes. As etapas dessa trajetria [da questo urbana no Brasil] so identificadas como conjunturas intelectuais que se diferenciam segundo os diagnsticos hegemnicos e os modelos de ao pblica propostos para resolver os problemas urbanos. Esta associao saber/ representao/ prtica aqui assumida como intrnseca ao campo intelectual e profissional do urbanismo, ou seja, a enunciao do urbano como um problema aparece no interior de propostas que articulam, de formas diferentes, um saber disciplinar com pretenses cientficas e tcnicas de ao, ao mesmo tempo que agencia narrativas oriundas do que podemos identificar como o pensamento social (RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Cidade, nao e mercado: gnese e evoluo da questo urbana no Brasil. In: SACHS, Ignacy; WILHEIM, Jorge; PINHEIRO, Paulo Sergio (Org.). Brasil: um sculo de transformaes. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.133-161., p.134).23

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interdisciplinaridade sugere no apenas a dificuldade em lidar com um objeto comum a vrias disciplinas, seno o recurso aos instrumentais dessas mesmas disciplinas como elementos de luta. Ela permite, por isso, acentuar as trocas entre teoria e prtica, manifestando a permanncia de disputas e tornando evidentes os confrontos entre diferentes prticas nacionais, que so acirrados pelo crescimento do Estado em escala internacional (na forma das organizaes multilaterais, das regulamentaes internacionais, etc.).

Pensar a emergncia, a dinmica e o desenvolvimento das teorias, modelos e prticas de planejamento urbano em termos de espaos sociais implica uma opo metodolgica que deve ser esclarecida: ao fazer uso do conceito de campo, indica-se como referncia terica a obra de Pierre Bourdieu, apresentada a seguir, em linha gerais.

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1.2.1. O real relacional 22

Toute thorie, le mot le dit, est un programme de perception" Pierre Bourdieu23

A histria do planejamento urbano recua h pouco mais de um sculo. Prtica social e campo disciplinar, trata-se de um produto tardio da revoluo industrial que emerge de forma mais ou menos sincronizada em diversos pases da Europa. Sua institucionalizao no pode ser pensada sem referncias espaciais: desde a origem, a evoluo do planejamento urbano (teoria e prtica) responde tanto s condies objetivas da industrializao, quanto s subjetivas (relacionadas percepo dessas condies e circulao e troca de idias), todas realizando-se num espao que transcende as fronteiras nacionais, mas que depende, dada a referncia obrigatria a um aparato jurdico, de experincias circunscritas por essas fronteiras. Resulta da um carter originalmente transnacional certamente internacionalizante do planejamento de cidades, que apresentado por Sutcliffe (1981) como resultante do intercmbio profcuo ocorrido entre o fim do sculo XIX e a Primeira Guerra Mundial.

Esta apresentao baseia-se em discusses com o Prof. Carlos Vainer e o Grupo de Estudos de Polticas Territoriais, no incio de 2000 e na sntese sobre a obra de Bourdieu, elaborada por Anna Boschetti, em seu trabalho BOSCHETTI, Anna. Sartre et 'Les Temps Modernes': une entreprise intellectuelle. Paris: Les ditions de Minuit, 1985. (Le Sens Commun). Utilizou-se ainda: ACCARDO, Alain; CORCUFF, Philippe. La sociologie de Bourdieu: textes choisis et comments. Bordeaux: Le Mascaret, 1986.; LEBARON, Frdric. Le structuralisme gntique. In: BERTHELOT, Jean-Michel (Ed.). La sociologie franaise contemporaine. Paris: Presses Universitaires de France, 2000. p.59-69. (PUF Fondamental).; BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loc J. D. An invitation to Reflexive Sociology. Chicago: The University of Chicago Press, 1992a.; PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social. Rio de Janeiro: Editora Fundao Getlio Vargas, 2000.; CORCUFF, Philippe. As Novas sociologias: construes da realidade social. Bauru: EDUSC, 2001. 206 p. (Humus).; ANSART, Pierre. Les sociologues contemporaines. Paris: ditions du Seuil, 1990. (Points: Essais).; MOUNIER, Pierre. Pierre Bourdieu, une introduction. Paris: Pocket / La Dcouverte, 2001. (Srie 'Une introduction'; 'Agora', 231).; MICELI, Srgio. Introduo: a fora do sentido. In: BOURDIEU, Pierre (Ed.). A economia das trocas simblicas. 5 ed. So Paulo: Editora Perspectiva, 1999. p.VII-LXI. (Coleo Estudos, 20).23

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BOURDIEU, Pierre. Dcrire et prescrire. Note sur les conditions de possibilit et les limites de l'efficacit politique. Actes de la recherche en sciences sociales, n.38, p.69-73, 1981., p.69.25

uma estratgia chamada planejamento estratgico

Nesse perodo, a idia de planejamento urbano se consolida e serve de referncia para diversos pases, que extraem dela elementos para desenvolver suas prprias experincias24.

No presente, o campo do planejamento e da pesquisa urbana tambm se caracteriza por elevado grau de internacionalizao, para a qual concorre a atuao, muitas vezes concertada, de um grande nmero de agentes (redes de pesquisadores e instituies, especialistas e expoentes, empresas de consultoria, etc.), o que constitui um desafio particular quele que se prope a tratar do debate terico e das mudanas na prtica: como transformar os inmeros dados da experincia sensvel em objeto do conhecimento, sem interpor conceitos e vises de mundo particulares ao que busca conhecer?

A resposta, seguindo Cassirer (1977b), comea pela recusa do conhecimento experimental, em sua aproximao a realidade sensvel intuitivamente percebida como o somatrio de substncias estveis que se impem apreenso e pensada como fato auto-evidente: como se pudesse ser capturada em sua essncia25. Para romper com essa nfase nas substncias, o conhecimento capaz de dar resposta a esta indagao deve passar, em seguida, pela ateno s relaes que constituem o universo considerado.

A compreenso do carter transnacional do planejamento urbano leva Sutcliffe a se perguntar se o desenvolvimento da idia no deveria ser pensado a partir de uma escala supranacional, derivando-se em seguida para as prticas nacionais, de acordo com cada pas: Might not the whole development of urban environmental policy be usefully approached as a world movement, on which each country drew according to its own needs and possibilities? (SUTCLIFFE, Anthony. Towards the planned city: Germany, Britain, the United States and France 1780-1914. New York: St. Martin's Press, 1981., p.162).25

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Ou, ainda, atribuindo representao a capacidade de reproduzir mentalmente o que percebido: Ao contrrio, para Cassirer, nos impressions et nos reprsentations sont des signes des objets, non leur dcalque (CASSIRER, Ernst. Substance and Function: Dover Publications, 1923., p.344).26

uma estratgia chamada planejamento estratgico

A argumentao de Cassirer se constri a partir do exame da lgica aristotlica formal, expresso da metafsica aristotlica e, assim, em dvida para com sua concepo da essncia e das divises do ser: a metafsica subjacente a esta lgica condiciona a concepo das formas fundamentais de pensamento (1977b, p.14). Na lgica aristotlica, a construo do conceito genrico supe a faculdade espiritual de apreender as caractersticas comuns da multiplicidade de coisas que coexistem no mundo. A mente tem a tarefa de, a partir dos dados da experincia sensvel, comparar e diferenciar a diversidade de objetos, esquadrinhando-os em busca de traos convergentes. Num movimento de abstrao, retm-se os traos aparentemente comuns entre os objetos, eliminando-se os elementos heterogneos. Os objetos que partilham uma mesma propriedade so agrupados e o procedimento se repete para os vrios grupos deles e em vrios nveis, conforme permitem as semelhanas fsicas de cada um (CASSIRER, 1977b, p.15).

A fora dessa concepo se deve ao fato de ela no problematizar a imagem natural, de unidade, que se faz do mundo. Sua fraqueza est no prprio processo de reflexo e abstrao. Cassirer explica que objetos submetidos comparao so agregados por um conceito genrico, que rene em si todas as determinaes com as quais concordam esses objetos. Com base nas diferenas e semelhanas percebidas entre eles, formam-se os conceitos especficos em vrios nveis: desce-se de nvel agregando traos distintivos, que enriquecem o contedo nele especificado; passa-se para um nvel superior eliminando-se traos que, retidos, caracterizavam o nvel inferior. No processo que pode ser pensado como a formao de uma pirmide conceitual , quanto mais alto se sobe na escala, mais extensa ser a quantidade de objetos abarcados no conceito, porm menos se alcana em termos de contedo, j que a eliminao dos traos do nvel inferior implica a negao dos casos particulares e de suas peculiaridades. O conceito genrico , portanto, uma representao abstrata, uma coisa qualquer que por pretender englobar tudo no tem nenhuma especificidade: o resultado algo vazio (CASSIRER, 1977b, p.16).

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uma estratgia chamada planejamento estratgico

O processo de abstrao que permite o conceito genrico, apia-se na pressuposio ou na imposio do princpio que associa uma srie de objetos: a similaridade entre certos elementos s pode ser determinada se um ponto de vista a partir do qual a semelhana entre os elementos definida tiver sido previamente enunciado. Alm disso, pensar nessa associao com base numa propriedade comum reter um caso particular dentre os possveis de associao e ordenao lgica (CASSIRER, 1977b, p.27-29); sintetizar a totalidade dos objetos apreendida inicialmente pela intuio em um dos traos componentes daquilo que percebidos. O trabalho mental que d lugar conceituao genrica , portanto, insuficiente:l abstraction naltre en rien le cours ordinaire de la conscience et de la ralit des choses ; elle se contente simplement de lui imposer un certain nombre de clivages et de distributions ; elle dissocie les composantes de limpression sensible sans leur ajouter le moindre donn nouveau (CASSIRER, 1977b, p.25).

O que se espera do conceito cientfico que substitua o carter impreciso e a ambigidade que caracteriza o contedo percebido por uma determinao rigorosa e inequvoca, ao mesmo tempo, evitando a perda de distino que caracteriza os nveis mais altos na formao do conceito genrico. Assim, Cassirer observa que o conceito matemtico se distancia do ontolgico, no sentido de que, quanto mais universal, mais rico ele em contedo; retendo as particularidades dos diversos elementos, permite a deduo de relaes matemticas a partir da frmula universal. Ao invs de descartar as particularidades que subsume, o conceito cientfico aponta a necessria ocorrncia e a conexo dessas particularidades de modo que,ce quil nous propose, cest une rgle universelle nous permettant de composer et de combiner llment particulier em personne (CASSIRER, 1977b, p.31).

O conceito cientfico caracteriza-se, portanto, pela validade de um princpio de ordenamento e articulao, no mais, como no conceito genrico, pela gnralit 28

uma estratgia chamada planejamento estratgico

dune image reprsentative [...] (CASSIRER, 1977b, p.32). No se isolam partes da multiplicidade de coisas que se nos apresentam; estabelecem-se relaes, associando os elementos com base numa lei. As propriedades inerentes dos objetos, suas marcas, anteriormente tomadas como para a formao do conceito genrico portanto, sujeitas a um empobrecimento do contedo conceitual so substitudas por regras universais, libertadas dos dados presumidos (p.34-35)26. Os elementos, anteriormente agregados com base na percepo, passam a ser considerados em seu conjunto pelo modo como esto implicados entre si27. Assim, em confronto com os objetos da percepo sensvel, aos quais se poderia qualificar de primeira ordem, constri-se um objeto de segunda ordem, cujo estatuto expresso na relao estabelecida entre os diferentes elementos no ato de unificao e sntese (CASSIRER, 1977b, p.36).

Ao contrapor ao conceito de coisa, o de relao; noo de substncia, a de funo, Cassirer procura explicitar o debate entre dois tipos de lgica caracterizadas pelos valores atribudos a esses conceitos que se desenvolve na formao da cincia contempornea (CASSIRER, 1977b, p.19; 33). Na perspectiva que deu lugar aos avanos tericos do incio do sculo XX, o conhecimento cientfico se apia em construes tericas que visam a constituir a unidade do conhecimento experimental (ver SEIDENGART, 2000, p.10). Para Cassirer,connatre un contenu cest le rinvestir pour lui donner valeur dobjet en le dtachant de la simple phase du donn immdiat et en lui confrant une certaine constance et un certaine ncessit logiques. Ce faisant, nous ne connaissons pas les objets au sens o on

No o conceito de objeto que condiciona o de lei; a lei que torna possvel compreender a realidade (ver SEIDENGART, Jean. Prsentation. In: CASSIRER, Ernst (Ed.). La Thorie de la relativit d'Einstein: lements pou une thorie de la connaissance. Paris: Les ditions du Cerf, 2000. p.7-26. (Passages: Srie Ernst Cassirer: Oeuvres XX)., p.24).27

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Nas palavras do autor, au cours du progrs de la pense, la conscience de luniformit se trouve complte et rectifie par la conscience de la communaut dappartenance (CASSIRER, Ernst. Substance and Function: Dover Publications, 1923., p.35)29

uma estratgia chamada planejamento estratgico

atteindrait leur dtermination telle quelle leur est donne lorigine et lexclusion de toute autre ; nous construisons une connaissance de lobjet, en oprant certaines dlimitations lintrieur du cours uniforme des contenus dexprience et en retenant tels lments et tels enchanements invariants destins oprer la liaison de lexprience. [...] nous connaissons, non pas sans doute le rel lui-mme, dans son tre en soi, mais bien les rgles qui prsident ce rel et conditionnent les changements qui sy produisent (CASSIRER, 1977b, p.343-344).

Propostas como a de Cassirer encontram uma sistematizao no pensamento social contemporneo no estruturalismo (PINTO, 2000; BOURDIEU, mai 1968, p.102). Bourdieu observa que a corrente estruturalista na antropologia acionou, nas cincias do homem, princpios da teoria do conhecimento cientfico que se opunham teoria espontnea do conhecimento:Loriginalit du structuralisme rside fondamentalement dans le fait quil attaque dans son dernier retranchement le mode de pense substantialiste que la mathmatique et la physique modernes nont cess de faire reculer (BOURDIEU, mai 1968, p.2)28.

A apropriao, por Pierre Bourdieu, desse modo de pensar relacional, opo metodolgica para escapar da imposio dos objetos direta e imediatamente perceptveis da realidade sensvel desse modo resistentes ao trabalho de

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Notar que o apoio em Cassirer se evidencia tambm pela referncia aos avanos de certos ramos cientficos. Aqui, matemtica e fsica. Em outro trecho o autor refere-se geometria: On voit immdiatement tous les obstacles pistmologiques que les sciences de lhomme doivent surmonter pour parvenir traiter leurs objets, systmes culturels et systmes de relations sociales, comme fait la gomtrie moderne, cest--dire comme systmes dfinis non pont par quelque contenu substantiel mais par les seules lois de la combinaison de leurs lments constitutifs (BOURDIEU, Pierre.

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uma estratgia chamada planejamento estratgico

conhecimento leva-o a dois movimentos tericos que constituem a base de sua obra. Por um lado, Bourdieu representa o mundo social em termos espaciais: o espao ressalta a sincronia, a simultaneidade, a multiplicidade, e permite a comparao e o espao social em Bourdieu, assim como o espao fsico em Einstein29, um espao relacional, cujas distncias so medidas em quantidade de capital (1987c, p.93). Por outro lado, ele confronta aquilo que chama de uma inclinao estruturalista30, de substituir o realismo da substncia pelo realismo das estruturas (mai 1968, p.34), com a proposta de considerao do sentido e da unidade das prticas sociais tanto com essas estruturas quanto com as representaes que as orientam , Bourdieu adapta31 e desenvolve o conceito de habitus. Esse conceito tem por objetivo conduzlo na mediao entre as estruturas objetivas e as prticas e pretende ser uma contribuio para uma teoria materialista do conhecimento (BOURDIEU; WACQUANT, 1992b, p.97)32.

Structuralisme et theorie de la connaissance sociologique. Paris: cole Pratique des Hautes tudes, mai 1968. 35 p., p.3-4). Cassirer dedica-se anlise do trabalho de Einstein por perceber sua contribuio isto , as conseqncias epistemolgicas a uma teoria crtica do conhecimento (CASSIRER, Ernst. La Thorie de la relativit d'Einstein: lements pou une thorie de la connaissance. Paris: Les ditions du Cerf, 2000. (Passages: Srie Ernst Cassirer: Oeuvres XX)., Avant-propos, p.29). No possvel pensar as formulaes de Bourdieu sem referncia ao estruturalismo (ver seu comentrio em BOURDIEU, Pierre. A gnese dos conceitos de habitus e campo. In: ______ (Ed.). O poder simblico. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998e. p.59-73., p.65 n.5). O prprio Bourdieu diz que a noo de habitus surge contra a filosofia da ao estruturalista (p.61) e Louis Pinto observa que a noo de campo surge numa conjuntura intelectual em que confrontavam o estruturalismo e o marxismo (PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social. Rio de Janeiro: Editora Fundao Getlio Vargas, 2000., p.76).31 30 29

Bourdieu assim se refere ao conceito: [...] la notion d'habitus, vieux concept aristotlicien-thomiste que j'ai compltement repens [...] (BOURDIEU, Pierre. Fieldwork in sociology. In: ______ (Ed.). Choses dites. Paris: Les ditions de Minuit, 1987e. p.13-46. (Le Sens Commun)., p.20).

Habitus, campo e capital so conceitos sistmicos, que devem ser considerados em inter-relao (BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loc J. D. Rponses: pour une anthropologie rflexive. Paris: ditions du Seuil, 1992b. (Libre Examen)., p.71; BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, J.-C.; PASSERON, J.-C. Le mtier de sociologue: pralables epistemologiques. Paris: Mouton, 1973. (Textes de sciences sociales, 1)., p.54). A idia de habitus permite pensar a interiorizao da exterioridade, isto , o modo como as estruturas sociais so introjetadas. A idia de campo permite considerar a exteriorizao da interioridade, ou seja, o modo como os agentes contribuem para a construo do31

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uma estratgia chamada planejamento estratgico

O habitus, uma matriz de percepo, apreciao e ao33, surge como alternativa iluso de explicar as prticas como resultantes da norma ou do clculo racional e, ao mesmo tempo, como tentativa de encontrar um fundamento objetivo das condutas regulares, portanto, da regularidade das condutas (BOURDIEU, 1987b, p.94-96). Trata-se de um sistema de disposies durveis (mas tambm transponveis), um princpio gerador de prticas ajustadas s estruturas objetivas. Funcionando como um senso prtico34, o habitus supe a capacidade de improvisar diante das circunstncias sempre cambiantes da realidade social.

Produto da experincia biogrfica corresponde inscrio, no corpo, de estruturas sociais , o habitus produz histria, mas de acordo com os esquemas engendrados pela histria na formao do habitus35. Nesse movimento circular, v-se o modo como garantida a regularidade das prticas sociais: o habitus,

mundo social (CORCUFF, Philippe. As Novas sociologias: construes da realidade social. Bauru: EDUSC, 2001. 206 p. (Humus)., p.51-53).33

O autor tambm se refere aos habitus como espcies de programas (no sentido da informtica) [...] (Bourdieu, em Le MONDE (Ed.). A Sociedade. So Paulo: tica, 1989. (Entrevistas do Le Monde,).). Senso do jogo no qual o jogador tem ampla liberdade criativa, ao mesmo tempo em que est encerrado nas regras socialmente definidas para aquele jogo: L'habitus comme sense du jeu est le jeu social incorpor, devenu nature. Rien n'est plus libre ni plus contraint la fois que l'action du bon joueur (BOURDIEU, Pierre. De la rgle aux stratgies. In: ______ (Ed.). Choses dites. Paris: Les ditions de Minuit, 1987c. p.75-93. (Le Sens Commun)., p.80).

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Miceli explica que o habitus completa o movimento de interiorizao de estruturas exteriores, ao passo que as prticas dos agentes exteriorizam os sistemas de disposies incorporadas (MICELI, Srgio. Introduo: a fora do sentido. In: BOURDIEU, Pierre (Ed.). A economia das trocas simblicas. 5 ed. So Paulo: Editora Perspectiva, 1999. p.VII-LXI. (Coleo Estudos, 20)., p.XLI). Os sistemas simblicos tm um papel ativo no conhecimento e construo do mundo, so estruturados e estruturantes: o poder estruturante dos sistemas simblicos, poder simblico, em sntese, um poder de construo da realidade que oferece aos que participam de um mesmo sistema simblico uma base comum de concordncia do sentido do mundo social (BOURDIEU, Pierre. Sobre o poder simblico. In: ______ (Ed.). O poder simblico. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998k. p.7-16., p.9-10). Os sistemas simblicos so, por sua vez, estruturados: a gnese e funes de simbolizao so sociais (e no formas a priori do esprito humano): as categorias de percepo do mundo social so, no essencial, produto da incorporao das estruturas objetivas do espao social (BOURDIEU, Pierre. Espao social e genese de classes. In: ______ (Ed.). O poder simblico. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998c. p.133-161., p.141).32

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assure la prsence active des expriences passes qui, dposes en chaque organisme sous la forme de schmes de perception, de pense et daction, tendent, plus srement que toutes rgles formelles et toutes les normes explicites, garantir la conformit des pratiques et leur constance travers le temps (BOURDIEU, 1980, p.91).

Retorna-se, assim, a uma argumentao equivalente de Cassirer: o habitus funciona como uma regra de construo do real, uma lei imanente produo de uma srie relativamente homognea de fenmenos (PINTO, 2000, p.97). Como as funes matemticas, o conceito de habitus tambm proposto no sentido de permitir ver, ao mesmo tempo, o todo e as partes, o geral e o particular. Ele o faz operando uma ruptura epistemolgica: os indivduos e suas prticas que se apresentam, ou melhor, que se impem apreenso primeira e intuitiva como os elementos de constituio do real so pensados em funo da estrutura de relaes na qual esto implicados e que lhes empresta sentido e valor, de outro modo, da qual so produtos, manifestando-se em termos de propriedades relacionais (BOURDIEU, mai 1968, p.17). A dimenso topolgica da obra de Bourdieu encontra-se, portanto, implcita na idia de habitus36. Pinto fala do aspecto distribucional do habitus: constatao da distribuio socialmente diferenciada dos meios de apropriao de bens culturais, interpretada como resultante do fato de as disposies individuais serem funo das diferentes condies de acesso a esses bens, isto , das diferentes distncias a que indivduos e grupos distribudos desigualmente no espao social esto submetidos.

Louis Pinto observa que se, em seu surgimento, a noo de habitus ainda no era inteiramente uma noo relacional e, portanto, imediatamente fundadora do carter topolgico da obra de Bourdieu, j continha em si os germes de uma tal viso, pois pensar em termos de oposio, como nos sugere a teoria do habitus, j , ao menos em parte, pensar em termos de relao, pois, no mundo social, ser estar situado e situar-se num espao diferenciado, ajustando-se aos seus prprios possveis e a eles somente (PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social. Rio de Janeiro: Editora Fundao Getlio Vargas, 2000., p.39).33

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A noo de espao uma construo terica37, um modelo cientfico que visa a apreender a estrutura e a dinmica ou, de outro modo, os princpios de funcionamento do mundo social, ao qual Bourdieu sugere que poder ser representadoem forma de um espao (a vrias dimenses) construdo na base de princpios de diferenciao ou de distribuio constitudos pelo conjunto das propriedades que atuam no universo social considerado, quer dizer, apropriadas a conferir, ao detentor delas, fora ou poder neste universo. Os agentes e grupos de agentes so assim definidos pelas suas posies relativas neste espao (1998c, p.133-134).

A noo de campo pluralizao da idia de espao social38 reafirma a considerao da realidade estruturada em termos de relaes e indica o carter heurstico do mtodo: ela visa a enfrentar a tendncia de diferenciao do mundo social em espaos sociais relativamente autnomos, isto , submetidos a leis prprias (LEBARON, 2000, p.65; BOURDIEU, 2001b, p.120). Um campo um microcosmo social, que se constitui historicamente e se reproduz indefinidamente, em funo dos interesses em torno dos quais est unificado. Bourdieu usa a idia de illusio para designar interesses emanantes e constituintes do campo:os jogos sociais so jogos que se fazem esquecer como jogos e a illusio essa relao encantada com um jogo que o produto de uma

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Conforme nota Louis Pinto, ao substituir a coisa pela relao, esse modo de pensamento na verdade satisfaz uma exigncia muito geral, imposta em diferentes domnios: a exigncia de criar entidades de nvel mais abstrato, plenas de novas possibilidades operatrias (Ibid., p.102).

Conforme ressalta Pinto, espao, para Bourdieu, uma unidade de anlise, um termo que designa a extenso e o quadro de referncias de uma classe de indivduos. Permite enfrentar o conhecimento intuitivo, sujeito, como est, ao fetichismo das evidncias, reconstruindo a experincia num modo de conhecimento propriamente cientfico: um espao social no funo do nmero de indivduos o indivduo, pode-se dizer, uma emanao desse espao (BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loc J. D. Rponses: pour une anthropologie rflexive. Paris: ditions du Seuil, 1992b. (Libre Examen)., p.82) , seno da distribuio de propriedades entre indivduos (BOURDIEU, Pierre. Introduo a uma sociologia reflexiva. In: ______ (Ed.). O poder simblico. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998g. p.17-58., p.29).34

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relao de cumplicidade ontolgica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espao social (BOURDIEU, 1997b, p.139140).

Tais interesses, que no so os de atores independentes mas os de agentes implicados no jogo e que nele participam em condies desiguais, indicam o campo como um lugar estruturado onde se acionam estratgias (orientadas pelas condies objetivas do campo) visando a conservao ou modificao de sua estrutura: campo de foras, dotado de uma estrutura, mas campo de lutas para a conservao ou modificao da relao de foras (BOURDIEU, 1998i; 2001d).

Um campo estruturado, no sentido de que as posies que o constituem e nele se constituem so sempre relativas e se referenciam umas s outras. Esta estruturao assimtrica, pois h uma distribuio desigual de recursos, ou seja, das condies de transformar ou de conservar a estrutura do campo. A noo de capital visa a explicitar essa distribuio desigual de recursos, conferindo valor fora de transformao/conservao a cada posio. A noo de capital denota, assim, a nergie de la physique sociale (BOURDIEU, 1980, p.209), sendo definida como trabalho social acumulado que pode ser apropriado privadamente, conferindo poder nas lutas que se desenrolam no campo:capital is accumulated labor (in its materialized form or its incorporated, embodied form) which, when appropriated on a private, i.e., exclusive, basis by agents or groups of agents, enables them to appropriate social energy in the form of reified or living labor (1986, p.241-242).

A distribuio desigual de recursos num campo objetivada em termos da distribuio de espcies diferentes de capital (a estrutura de distribuio de tipos de capital reflete a estrutura do mundo social). Bourdieu refere-se a trs espcies fundamentais de capital (o grau de importn