Tese - Ebe Faria de Lima Siqueira - 2013

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOISFaculdade de Letras

    Programa de Ps-Graduao em Letras e Lingustica

    TESE DE DOUTORADO

    Literatura sem fronteira: por uma educao literria

    Doutoranda: Ebe Maria de Lima SiqueiraOrientadora: Profa. Dra. Goiandira Ortiz de Camargo

    Coorientadora: Profa. Dra. Rosana Kohl Bines

    Goinia, maio de 2013

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    TERMO DE CINCIA E DE AUTORIZAO PARA DISPONIBILIZAR AS TESES E

    DISSERTAES ELETRNICAS (TEDE) NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG

    Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Gois(UFG) a disponibilizar, gratuitamente, por meio da Biblioteca Digital de Teses e Dissertaes(BDTD/UFG), sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com a Lei n 9610/98, o do-cumento conforme permisses assinaladas abaixo, para fins de leitura, impresso e/ou down-load , a ttulo de divulgao da produo cientfica brasileira, a partir desta data.

    1. Identificao do material bibliogrfico : [ ] Dissertao [ X ] Tese

    2. Identificao da Tese ou Dissertao Autor (a): Ebe Maria de Lima SiqueiraE-mail: [email protected] e-mail pode ser disponibilizado na pgina? [ X ]Sim [ ] NoVnculo empregatcio do autor Professora da UEGAgncia de fomento: CNPq Sigla: CNPqPas: Brasil UF:

    GoisCNPJ:

    Ttulo: Literatura sem fronteiras: por uma educao literria

    Palavras-chave: Formao de leitor; Mediao; Literatura sem fronteiraTtulo em outra lngua: Literature without frontiers: for a literary education

    Palavras-chave em outra lngua: Formation reader; Mediation; Literature withoutfrontiers

    rea de concentrao: Estudos LiterriosData defesa: (21/06/2013)Programa de Ps-Graduao: PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS E LIN-

    GUSTICAOrientador (a): Goiandira de Ftima Ortiz de CamargoE-mail: [email protected](a):*

    Rosana Kohl Bines

    E-mail: [email protected]*Necessita do CPF quando no constar no SisPG3. Informaes de acesso ao documento:

    Concorda com a liberao total do documento [ ] SIM [ X ] NO 1

    Havendo concordncia com a disponibilizao eletrnica, torna-se imprescindvel o en-vio do(s) arquivo(s) em formato digital PDF ou DOC da tese ou dissertao.

    O sistema da Biblioteca Digital de Teses e Dissertaes garante aos autores, que os ar-quivos contendo eletronicamente as teses e ou dissertaes, antes de sua disponibilizao,recebero procedimentos de segurana, criptografia (para no permitir cpia e extrao decontedo, permitindo apenas impresso fraca) usando o padro do Acrobat.

    _____________________________________________ Data: 16 / 08/ 2013Ebe Maria de Lima SiqueiraAssinatura do (a) autor (a)

    1 Neste caso o documento ser embargado por at um ano a partir da data de defesa. A extenso deste prazo suscita justificativa junto coordenao do curso. Os dados do documento no sero disponibilizados durante o perodo deembargo.

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    EBE MARIA DE LIMA SIQUEIRA

    LITERATURA SEM FRONTEIRAS: POR UMA EDUCAO LITERRIA

    Goinia, maio de 2013

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    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    S028l Siqueira, Ebe Faria de Lima.Literatura sem fronteira [manuscrito]: por uma educao

    literria / Ebe Faria de Lima Siqueira. - 2013.321 f.: il.

    Orientadora: Profa. Dra. Goiandira Ortiz de Camargo;Co-orientadora: Profa. Dra. Rosana Kohl Bines.

    Tese (Doutorado) Universidade Federal de Gois,Faculdade de Letras, 2013.

    Bibliografia: f. 305 - 321.

    1. Formao de leitores 2. Mediao da leitura 3.Literatura

    CDU: 026.6: 821

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    DEFESA DE TESE

    SIQUEIRA, Ebe Maria de Lima. Literaturasem fronteira: por uma educao literria.Goinia: Universidade Federal de Gois UFG, Faculdade de Letras, 2013. 317 flS.Tese de Doutorado em Estudos Literrios.

    Tese defendida e aprovada em 21 de junho de 2013, pela Banca Examinadora

    constituda pelos professores:

    ___________________________________________________Prof Dra. Goiandira Ortiz de Camargo - UFG

    (Orientadora e Presidente da Banca Examinadora)

    ____________________________________________________Prof Dra. Maria Zaira Turchi - UFG

    ____________________________________________________Prof Dr. Agostinho Potenciano de Souza - UFG

    ___________________________________________________Prof Dra. Eliana Yunes - PUC-Rio

    ____________________________________________________Prof Dr. Flvio Carneiro - UERJ

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    Para minhas filhas Mariana e Vitria e meus filhosMrio e Pedro, que so meu motivo de sentir a poesiacomo acontecimento de todas as demais pessoas e coisas.

    Para meu esposo, Jos do Carmo, com quem divido

    o amor que move o sol e as mais estrelas.

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    AGRADECIMENTOS

    A Deus, por colocar em meu caminho pessoas que me ajudam a compreender quedesejar uma vida boa, o mesmo que lutar por uma sociedade justa e fraterna, porque

    no meio da cidade, como cidado, que nos tornamos humanos. minha orientadora, Prof. Dra. Goiandira Ortiz de Camargo, que tem sido a minhamestra-mediadora, desde a Graduao. Sua vida dedicada a transformar o que belo noque verdadeiro atende a princpios bsicos de humanidade, que a boa disposio para o prximo e o afinamento das emoes.

    minha irm Edina Maria, que me ensina lies de gratido e superao como nenhumoutro sbio erudito foi capaz de me ensinar. E em seu nome agradeo toda a minhanumerosa famlia: Helena Maria, Elizete Maria, Elizanete Maria, Elzita Maria. Mariastodas como eu a lembrar a Mariazinha do Zico, nossa me. E os irmos Joo e Eduardo,que no me deixam esquecer a memria do nosso pai Conceio (Zico). Ao meucunhado Hilton e minha sobrinha Laura (Laurinha), com quem ensaiei as minhas primeiras experincias de maternagem e de mediao amorosa.

    Prof. Dra. Eliana Yunes que tem dedicado toda uma vida a ser humanamentemediadora entre homens, mulheres, crianas e os livros e seus desdobramentos, fazendodesse gesto uma misso de amor.

    Prof. Dra. Rosana Khol Bines, co-orientadora deste trabalho, pela presena distncia, pela leitura rigorosa e pelas indicaes do melhor caminho.

    Aos professores do doutorado com os quais tive aulas memorveis:Dr. Agostinho Potenciano de SouzaDr. Cristvo Giovani BugarelliDra. Eliana Gabriel AiresProf. Emrito Egdio Turchi (in memorian)Dr. Jamesson BuarqueDr. Jorge Alves SantanaDra. Maria Zaira TurchiDra. Suzana Yolanda L. Machado Canovas

    Prof. Joana Oliveira, em nome de quem eu agradeo toda a comunidade educacionalda Escola Letras de Alfenim, pelo apoio e convivncia fraterna.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Letras e Lingustica e seus funcionrios.

    Universidade Estadual de Gois e ao Departamento de Letras da UnidadeUniversitria Cora Coralina, pela licena concedida, que me propiciou dedicaointegral ao curso e pesquisa.

    Ao CNPq Conselho Nacional do Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico pela bolsa.

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    Se nada adoecer a prpria forma justaE no todo se integra como palavra em verso.

    Sophia de Mello Breyner Andresen

    Vamos conjugarO verbo fundamental essencial,o verbo transcender, acima das gramticase do medo e da moeda e da poltica,o verbo sempreamar,o verbo pluriamarrazo de ser e de viver.

    Carlos Drummond de Andrade

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    RESUMO

    A presente pesquisa aborda a formao do leitor literrio fundamentada em reflexessobre o papel e a importncia da mediao, com vistas construo de bases para umaEducao Literria. Inicialmente, delineamos o que entendemos por formao do leitorliterrio. Para isso, fazemos um percurso histrico do conceito de formao,demonstrando a sua articulao com a educao. Em seguida, inscrevemos a literaturano espao de reflexo com o propsito de apresentar o que entendemos por Literaturasem Fronteiras, que introduz e norteia na pesquisa as obras a serem analisadas vis--visa caracterizao dessa literatura como aquela que desfaz as fronteiras de gnero,entrelaa fico e inveno e no define a sua recepoa priori. Tais caractersticas soexaminadas no corpus das obras literrias escolhidas, mobilizando sondagem einvestigao sobre tpicos decorrentes e articulados ao estudo proposto, comohibridizao dos gneros literrios, experincia de vida, pacto autobiogrfico, mediao,reendereamento, mercado, entre outros. Para desenvolvermos a pesquisa recorremosaos pressupostos tericos de Theodor Adorno e Walter Benjamim; a Antonio Candido,Tzvetan Todorov e Antoine Compagnon, que asseguram a atualidade do papel formadorda literatura na sociedade, alm de Roland Barthes, Umberto Eco, Wolfgang Iser, HansRobert Jauss e pesquisadores como Roger Chartier, Michle Petit, Tereza Colomer,Daniel Pennac, Eliana Yunes, Joo Lus Ceccantini, Vera Aguiar, entre outros, quequestionam os modos de ler e o papel dos mediadores na formao, prioritariamente, deleitores literrios.

    Palavras-chave: Formao de leitor; Mediao; Literatura sem Fronteira

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    ABSTRACT

    This research addresses the formation of the literary reader based on reflections on therole and importance of mediation, in order to build foundations for a literary education.Initially, we outline what we understand by forming the literary reader. For this, we

    make a historical account of the concept of forming, demonstrating their connectionwith education. Then, inscribe the literature in the space of reflection in order to presentwhat we understand by literature without frontiers, which introduces and guides in theresearch works to be analyzed one by one the characterization of this literature as onethat breaks the frontiers of gender, interweaves fiction and invention and does not defineyour receptiona priori. Such characteristics are examined in the corpus of literaryworks chosen by mobilizing probe and research on topics arising from the proposedstudy and articulated as hybridization of literary genres, life experience,autobiographical pact, mediation, readdress, market, among others. To develop theresearch we used the theoretical assumptions of Theodor Adorno and Walter Benjamin,Antonio Candido, Tzvetan Todorov and Antoine Compagnon which ensure therelevance of the formative role of literature in society, and Roland Barthes, UmbertoEco, Wolfgang Iser, Hans Robert Jauss and researchers such as Roger Chartier, MichlePetit, Teresa Colomer, Daniel Pennac, Eliana Yunes, Joo Lus Ceccantini, VeraAguiar, among others, who question the ways of reading and the role of mediators in theformation primarily of literary readers.

    Keywords: Formation reader; Mediation; Literature without Frontier

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    SUMRIO

    INTRODUO..................................................................................................................... 10

    1. FORMAO DO LEITOR LITERRIO...................................................................... 17 1.1 Formao: uma perspectiva histrico-esttica ........................................................... 171.2 O papel da literatura como formao ......................................................................... 361.3 Formao do leitor literrio ....................................................................................... 521.4 Uma educao literria .............................................................................................. 67

    2. A MEDIAO DE LEITURA NA FORMAO DO LEITOR LITERRIO ........... 832.1 O que mediar e a quem cabe esse papel .................................................................. 862.2 Mediao de leitura tarefa que comea em casa ..................................................... 942.3 O papel da mediao na escola: entre formar e deformar ........................................ 115

    2.3.1 Biblioteca: depsito de livros ou uma ponte para a terceira margem? ............ 1322.4 A mediao e as novas tecnologias .......................................................................... 140

    2.4.1 Dos meios mediao: televiso..................................................................... 1442.5 O mercado editorial e o fenmeno da mediao ...................................................... 153

    3. O DESLIMITE DA PALAVRA: A LITERATURA PARA TODOS ...................... 169 3.1. Em busca de uma definio..................................................................................... 171

    3.1.1 Das rodas de camponeses para os sales da corte: os contos de fadas eO reendereamento ao contrrio ............................................................................... 174

    3.1.2 Endereado ou reendereado? Afinal, para quem a literatura? ................... 1823.1.3 Cora Coralina e Manoel de Barros: dois casos de reendereamento .............. 1883.2 O deslimite da palavra: o hibridismo dos gneros literrios .................................... 201

    3.2.1 Desaparecer de cantar ...................................................................................... 2053.2.2 Feridar o silncio ............................................................................................. 2153.2.3 Quando narrar narrar-se ................................................................................ 225

    3.3 Somos o que lembramos ......................................................................................... 2313.3.1 Antes do depois ............................................................................................... 2373.3.2 Um vaso de loua vidrada ............................................................................... 2473.3.3 Joozito X Miguilim ........................................................................................ 2563.3.4 Confisses de Aninha ...................................................................................... 2703.3.5 Memrias inventadas: as infncias .................................................................. 287

    CONSIDERAES FINAIS............................................................................................... 299

    REFERNCIAS ................................................................................................................... 304

    ANEXOS

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    INTRODUO

    Saber o lugar de onde se constri o discurso, quem o constri e para quem construdo, segundo Dominique Maingueneau (1997, p.37), garante ao discurso sermais eficiente, porque contribui com o entendimento do que est sendo enunciado. Issoequivale a dizer que os discursos trazem sempre marcas culturais, histricas, sociais, polticas e ideolgicas daquele que enuncia. Nessa perspectiva, importante que seestabeleam, nas linhas iniciais desta tese, alguns dados que podero basilar a sualeitura. A este trabalho aqui apresentado, aps quatro anos como aluna do curso dedoutoramento da Universidade Federal de Gois, soma-se uma experincia de mais devinte e cinco anos como educadora das redes pblica e particular de educao no Estadode Gois. A escolha de abordar a Educao Literria, que tambm pode ser entendidacomo uma Educao Esttica, e por isso como processo de formao do ser humano,no surgiu, exclusivamente, das teorias discutidas no doutorado. Este tema j vinhasendo pesquisado desde o Mestrado, momento em que empreendemos a leitura da obrade Bartolomeu Campos de Queirs, na tentativa de apontar sua condio fronteiria.Acrescentem-se ainda aqui as vivncias de sala de aula. Seja na condio de gestora deescola ou de professora no ensino Superior ou ainda como coordenadora de cursos de ps-graduao, sempre como mediadora que se coloca numa postura de afeto para comos livros e os leitores, mas entendendo a mediao, sobretudo, como uma misso socialque exige um posicionamento tico-poltico. Por esse motivo que algumasexperincias, especialmente a da Escola Letras de Alfenim, aparecem no corpo da tese eso mais bem expostas nos anexos, em que apresentamos um esboo do trabalhorealizado com a leitura na referida escola.

    Outra experincia que aparece pontuada no conjunto das discusses sobre o papel do mediador, que preciso destacar, diz respeito experincia de ser primeiramenteuma tia mediadora, em especial para a minha sobrinha Laura, que hoje j acadmicado curso de Letras, e que acompanhou ativamente as aes de promoo da leitura quedesenvolvemos por longos anos na Cidade de Gois, em parceria com o Programa Nacional de Incentivo Leitura (PROLER). A segunda experincia diz respeito aoexerccio dematernagem, com a Mariana, minha primognita, para quem eu lia desde

    a barriga, e que hoje, com 14 anos, define a sua alfabetizao como lugar de felicidade

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    porque, segunda ela, dormia ouvindo as histrias da mitologia grega lidas por mim.Com o Mrio, hoje com 12 anos, que me confirmou aos 9 a noo de clssicoapresentada por talo Calvino, porque, ao terminar de ler a Ilada, na traduo de RuthRocha, ele me pediu:Me, posso ler de novo? Com o Pedro, de9 anos, que possuiuma queda para a diplomacia, e encontra sempre um jeito de negociar uma hora a maisde leitura no meu colo, ou no colo da madrinha, prolongando o prazer da leituramediada. Por ltimo, com Vitria, meninazinha de 7 anos, que no se contenta com aleitura que fazemos juntas dos livros, pois quer ela mesma j escrever os seus.

    Essas crianas no me deixam esquecer que a mediao uma fonte de alegriadupla. A alegria do encontro com o texto literrio e a alegria de sua partilha com os queamamos. E para que outras crianas tenham as mesmas oportunidades que elas quetenho buscado formas diversas de expandir a minha experincia com outros professorese com outras famlias, que ainda no se deram conta da responsabilidade, do respeito eda beleza que esto contidos no ato de mediar.

    Em poucas palavras diria que a tese que defendo a de que, por intermdio deuma boa mediao, realizada com um conjunto de textos exemplares, o gosto ou afruio pela leitura literria pode ser formado em leitores de todas as idades. E essacondio de leitor literrio, se no contribui para fazer uma pessoa melhor, pelo menos,

    pode coloc-la diante dos acontecimentos da vida, e isso j um passo para fazer viver.Depois de situado o lugar de onde falo, acrescento que a abordagem aqui

    enunciada sobre a formao de um leitor literrio parte da ideia elaborada por AntonioCandido, quando este trata a literatura como uma questo de direitos humanos e comodireito inalienvel (grifo meu). Entender a literatura como um bem cultural onde seconcentra a essncia do humano as cincias acrescentam muito ao que o homem ,mas a literatura o prprio homem (NAPOLEO apud CANDIDO, 2008) o

    primeiro passo para lutar por sua socializao em todas as escalas, do particular ao pblico, entre os pequenos e os grandes, ricos e pobres, loiros e negros, entre os quedefendem a heterossexualidade ou os que acreditam no poliamor, repudiando, nessa perspectiva, qualquer tipo de segregao de obras ou de leitores.

    Com o propsito de delinear o que entendemos por formao do leitor literrio,nosso primeiro captulo se pauta na discusso sobre a evoluo do conceito de formaoao longo da histria, em que ocorre uma conexo entre os termos educar e formar, desde

    a Grcia antiga at a atualidade. Nesse aspecto apropriamo-nos da sntese feita pela professora Eliana Yunes (2011, p. 84), que aponta para o fato de, na atualidade, se ter

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    rompido o modelo tradicional de humanismo diante da pluralidade, da diversidade e donecessrio respeito s diferenas que se impem ao desenvolvimento e paz:diversidade, pluralidade, tolerncia, ou seja, postura de respeito em relao cultura doacolhimento.

    Ainda nesse captulo, tomamos o texto literrio, desde sua concepo clssica,cannica, presa materialidade da obra, da linguagem, a uma viso mais poltica,articulada ao contexto, cuja compreenso voltada para aspectos extrnsecos; e, porltimo, discutimos tambm os efeitos da recepo. A literatura, portanto, foi investigadalevando em conta a perspectiva de que aproduo e fruio desta se baseiam numaespcie de necessidade universal de fico e de fantasia, que de certo coextensiva aohomem, pois aparece invariavelmente em sua vida, como indivduo e como grupo, aolado da satisfao das necessidades mais elementares (CANDIDO, 1972, p.804).

    Entendida dessa maneira, destacamos o fato de que a literatura no deve serreduzida apenas a sua dimenso de aprendizagem, mas, sobretudo, deve ser tomadacomo expresso por onde se manifestam as emoes e viso de mundo e, por isso, sematerializa em construes objetais autnomas com estrutura e significado.

    Nesse ponto, definimos o que entendemos por uma Educao Literria eatravs de que estratgias poderamos alcan-la. Pontuamos a natureza do texto que,

    na nossa compreenso, atenderia a estas trs dinmicas: serem objetos de construo,formas de expresso e, por isso, serem tomadas como forma de conhecimento.Elencamos obras que apontam para uma condio fronteiria dos gneros literrios, quese hibridizam; para uma condio de entrelugar que aponta para as especificidades do pblico que poder ter acesso s obras, ampliando a noo de faixa etria ou mesmocolocando-a prova e, por ltimo, estabelecendo a condio de limiar entre o quesepara as experincias de vida e a fico no tecido dos textos, lembrando com Bosi

    (1986, p. 65) que:No h grande texto artstico que no tenha sido gerado no interiorde uma dialtica de lembrana pura e memria social; de fantasia criadora e visoideolgica da Histria; de percepo singular das coisas e cadncias estilsticas herdadasno trato com pessoas e livros. A confluncia entre esses trs aspectos o quedestacamos como Literatura sem Fronteira, aquela que se traduz por uma metfora dacondio humana e que, por isso, pode contribuir para a humanizao.1

    1

    Compreendemos o termohumanizao no s neste ponto de nosso trabalho, mas em seu todo,comoest em Antonio Candido: o processo que confirma no homem aqueles traos que reputamos essenciais,como o exerccio da reflexo, a aquisio do saber, a boa disposio para o prximo, o afinamento das

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    Nomear uma literatura como fronteiria ou de limiar implica tom-la comotexto que inaugura o conceito de deslimite, que tomamos de emprstimo da potica barriana, entendido no como ausncia de limites mas como a possibilidade detransgredi-los. Uma Literatura sem Fronteira, portanto, aquela que leva ao extremo asua natureza artstica, assumindo sua condio de acontecimento das coisas,rompendo com o horizonte de expectativas no s do leitor, mas, inclusive, do autor.Literatura que se nega s classificaes de natureza didtica e historicista, mas que secompromete com aquilo que se traduz como verdade do homem. E como da naturezado humano a incompletude, a busca permanente de um vir a ser, essa literatura permite, por isso mesmo, o contrabando entre a lrica e a prosa, entre memria e inveno, entrehistria e fico, entre o que foi e o que poderia ter sido e o que ser.

    Uma vez delineado aquilo que se entende por literatura e por Literatura semFronteira, discutimos o papel da literatura hoje, voltando velha pergunta: para queserve a literatura? Tendo sido sua morte apregoada por Adorno, a literatura ainda teriaum papel a desempenhar na atualidade? Seria a literatura de fato um direitoincompressvel, como assevera Antonio Candido? Onde situ-la dentro de umasociedade que caminha para um multiculturalismo, para uma hibridizao cultural?

    No segundo captulo, sabendo que o acesso literatura pressupe o domnio de

    um cdigo, discutimos o processo de letramento literrio, responsvel pela aquisio dodomnio da literatura como cdigo escrito, mas, sobretudo, enfatizamos as diferentesagncias de mediao. Nesse aspecto, discutimos a passagem da cultura oral para acultura escrita, e de como se rarefez na contemporaneidade a presena dos mediadoresque se sustentavam na oralidade, uma vez que, hoje, o impresso e as novas tecnologiassubstituem ou exigem modelos diferenciados de mediao. Trouxemos para o foco dasdiscusses os efeitos da mediao, lembrando que se algo est em perigo no a

    literatura, e sim o leitor-mediador e que, por isso, merece proteo, cuidado e zelo, porque ele em cujo trao/abrao se delineiam os possveis leitores de geraes futuras.Ideia que comungamos com Eliana Yunes h quase trinta anos.

    Na atualidade, marcada pelo incio do sculo XXI, tudo que aponte para umaideia de socialismo parecedmodou dj vu, sonho utpico que deveria se ter rudo junto com o Muro de Berlim, desde o sculo passado. No entanto, retomar posturas

    emoes, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepo da

    complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em ns a quota dehumanizao na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, osemelhante. (CANDIDO, 2004, p. 180).

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    obras especulares a refletirem o percurso de formao de um dado personagem, que seconfessa leitor de outras obras e do mundo, e esse confessar-se como leitor fingido, naverdade, desvela a presena de um autor emprico. Para a aglutinao desse trio,formado por autor narrador e personagem, Philippe Lejeune (2008) cunhou a expressoespao autobiogrfico. Essa dupla entrada ao mesmo tempo seduz o leitor tambmemprico, idealizado como leitor modelo, para o espelho estilhaado que a obra.

    Uma vez acreditando que uma seduo de tal natureza seja capaz de imprimirum modelo de formao que leve o leitor condio de humanidade conformedelineamos no incio desta Introduo, ou pelo menos condio de algum que secoloca diante da literatura como algo que lhe revela o risco (viver muito perigoso,diz-nos Guimares Rosa), o atrito, caberia encontrar os melhores meios de fazer comque esse modelo de texto chegue s mos dos leitores o mais cedo possvel. Para isso que colocamos no centro de nossas discusses o modelo de mediao que precisamosvalorizar, entre o mediador emprico, real, que est em toda parte, e o mediador queidealizamos, como aquele que se dispe a fazer uma mesma a causa de algum e a sua,numa misso de afeto e de solidariedade.

    Contribuir com a formao desse mediador foi o que nos impulsionou noempreendimento desta pesquisa, que buscou como subsdio de fundamentao terica,

    alm dos estudiosos que j foram nominados nas linhas anteriores, o pensamento deEdgar Morin (2010), necessrio para pensar a religao dos saberes, como estratgiacapaz de levar a um estado potico; Franco Cambi (1999), cuja contribuio fundamental no traado do perfil da educao oferecida hoje, como resultado de um percurso histrico, marcado pelas posies sociais, culturais e especificamentefilosficas desde a Grcia Antiga; e sobre esse ponto Werner Jaeger (2010); PhilipeLejeune (2008) e suas reflexes sobre o pacto autobiogrfico, Paul Ricouer (2006), com

    quem fizemos um percurso de reconhecimento do nosso papel em busca de uma tica pautada no viver bem do ponto de vista de uma coletividade; George Steiner (1988),Tzvetan Todorov(2009), Antoine Compagnon (2009), Roland Barthes (2004), UmbertoEco (1986), talo Calvino (1993), com quem especulamos sobre a literatura e seu papelhumanizador; Hans Magnus Jauss (1994), Wolfgang Iser(1996), Roger Chartier (1999),Tereza Colomer (2003), Michle Petit (2008), Daniel Pennac (1996), entre outros, so basilares para a compreenso do papel do leitor e os modos de ler. A estes, somam-se

    outros nomes sempre na perspectiva de compreender o pensamento crtico e tericonaquilo que cada um possa contribuir para o alargamento do que est arquitetado na

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    obra, mas nunca como estatuto absolutizante, que faria de nosso estudo uma camisa defora redutora do potencial libertador que deve pairar sobre toda manifestao artstica.

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    1 FORMAO DO LEITOR LITERRIO

    Se o livro que lemos no nos desperta como se fosseum punho nos martelando o crnio, para que l-loento?

    Franz Kafka

    Este captulo tem como eixo de discusso a formao de leitor de literatura.Para isso, inicialmente, com o objetivo de fundamentar e estabelecer os fulcrosepistemolgicos das ideias a serem desenvolvidas, teceremos consideraes acerca deformao do ser humano, aspecto que, desde a Paideia grega, esteve sempre presentenas bases de organizao de uma sociedade. Inscrita no mbito da educao para acivilidade, a formao do ser humano teve e tem importncia poltico-ideolgica e todas

    as prticas culturais tm nela seu foco de interesse.Dentre as artes, a literatura tem se apresentado por sua natureza interativa e

    catrtica, alm de ser um tipo de discurso originado na faculdade da imaginao comouma das que mais pode interferir na formao do ser humano. Sendo a linguagem verbalseu meio mdia primria da comunicao humana , a literatura tem sua origem, desdequando se fundava na oralidade, vinculada educao. As prticas de leituraseducativas so ainda hoje, em sua maioria, de textos literrios, o que demonstra a sua

    fora de interveno e sedimentao de valores.Posteriormente a essa discusso, trataremos da formao do leitor de literatura,

    explicitando o nosso entendimento sobre leitura e leitor, para, depois disso, e articuladoa essa discusso anterior, discorrermos sobre o que se compreende como literatura e asua funo. Para encerrar o captulo, trataremos da proposta de uma educao literria.Aristteles (1984), Steiner (1988), Candido (1995), Cambi (1999), Nietzsche (2004),Gadamer (2005), Plato (2010), Compagnon (2009), Adorno (2010), Jaeger (2010),

    Schiller (2010) e Todorov (2011) so alguns dos autores presentes neste captulo, com o propsito de adensar nossas reflexes.

    1.1 Formao: uma perspectiva histrico-esttica

    Tu, como um juiz nomeado graas sua honradez,s o teu prprio criador e artfice. Podes esculpir ati mesmo na forma que preferires.

    Pico della Mirandola

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    O conceito de formao do ser humano assume muitos significados ao longodo processo de civilizao e, desde os primrdios, se confunde com o termo educao.Voltar sua origem significa empreender uma viagem aos primeiros agrupamentoshumanos, ainda na pr-histria, quando os homens paleolticos comearam adesenvolver habilidades capazes de garantir no s a sobrevivncia da espcie, comotambm habilidades que responderiam ao seu desejo primitivo de comunicao eludicidade. Tratando da histria da pedagogia, o historiador italiano Franco Cambi(1999) faz um recuo no tempo para mostrar como na pr-histria humana dos homensde Neanderthal at o Homo sapiens j havia manifestaes das quais se poderiadepreender uma ideia primria de formao ou educao, revelada na transmisso deconhecimentos tcnicos como o domnio do fogo, do uso das armas, da caa e dosrituais. Mesmo vivendo dentro de uma mentalidade primitiva, j nesta fase, a educaodos jovens torna-se o instrumento central para a sobrevivncia do grupo e a atividadefundamental para realizar a transmisso eo desenvolvimento da cultura (CAMBI,1999, p. 58). Para Cambi, j existiria nesse momento, inclusive, um gosto esttico(visvel nas pinturas), e o Homo sapiens, na sua perspectiva, poderia ser considerado umartista (de uma arte naturalista e animalista). Segundo Walter Benjamin (1994), estarianessas manifestaes a origem da arte vinculada a uma funo mgica:

    A produo artstica comea com imagens a servio da magia. O queimporta, nessas imagens, que elas existem, e no que sejam vistas. Oalcance, copiado pelo homem paleoltico nas paredes de sua caverna, uminstrumento de magia, s ocasionalmente exposto aos olhos dos outroshomens: no mximo, ele deve ser visto pelos espritos.(BENJAMIN, 1994, p. 173).

    As inscries nas grutas de Lascaux (Frana), descobertas em 1940, que teriam

    sido pintadas entre 15.000 e 13.000 a. C. e muitos outros stios histricos dessa naturezaso basilares para sustentar a ideia de que a arte elemento definidor que est na baseda formao da natureza do que entendemos por humano e que pressupem um processo de formao ou educao desde a aurora do que se entende por humanidade.O poeta alemo Schiller (2002, p. 123), do sculo XVIII, em suas indagaes acerca doque indicaria o fenmeno que anuncia no selvagem o advento da humanidade, elabora aseguinte resposta: Por muito que indaguemos histria, encontramos sempre a mesmaresposta para povos todos que tenham emergido da escravido do estado animal: aalegria com a aparncia, a inclinao para o enfeite e par a o jogo. Sob essa tica

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    levantada por Schiller, ou considerando as ideias de Cambi e Benjamin, desde a suaorigem o homem tem necessidade do ldico e do esttico como condio to vital para asua sobrevivncia tal como a necessidade do alimento para o corpo fsico. E o repassedisso para os seus descendentes era a condio de assegurar-lhes a sobrevivncia.

    Essa tese pode tambm ser confirmada pelo historiador Johan Huizinga, em seulivro Homo Ludens(1993), ao defender que o princpio que rege o ldico e o esttico, presentes nas inscries primitivas deixadas nas cavernas, o mesmo encontrado noque, posteriormente, ser entendido como o princpio da poiesis:

    Na realidade, a poiesis uma funo ldica. Ela se exerce no interior daregio ldica do esprito no qual as coisas possuem uma fisionomiainteiramente diferente da lgica e da causalidade. [...] Ela est para alm daseriedade, naquele plano mais primitivo originrio a que pertencem ascrianas, o animal, o selvagem e o visionrio, na regio do sonho, doencantamento, do xtase, do riso. (HUIZINGA, 1993, p. 133).

    Huizinga defende a ideia de que o jogo pode ser considerado como atividaderesponsvel pela entrada do homem no processo civilizacional, e que isto estaria situadohistoricamente anterior a qualquer conceito de cultura. Para ele, o jogo responde a umanecessidade humana que ultrapassa os limites da atividade puramente fsica ou

    biolgica porque possui uma funo significante.

    Na criao da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosafaculdade de designar, como se o esprito estivesse constantemente saltandoentre a matria e as coisas pensadas. Por detrs de toda expresso abstrata seoculta uma metfora, e toda metfora jogo de palavras. Assim, um mundo potico, ao lado do da natureza. (HUIZINGA, 1993, p. 7).

    No discorreremos neste trabalho sobre a origem da arte de modo geral. O

    nosso propsito abordar a Educao Literria como formao num sentido completo,que, numa perspectiva cultural, articula o esttico ao tico. Refere-se constituio dohomem como ser social, tendo em vista filsofos, tericos e crticos que, desde aantiguidade clssica, acreditam na arte como fundadora do humano. Com odesenvolvimento da linguagem falada e, depois, com o seu desdobramento na escrita, a partir das sociedades hidrulicas, momento em que comea a histria no sentido prprio,2 o que se entende por educao mudar profundamente, uma vez que se

    2 Segundo Franco Cambi (1999, p. 60), oadvento das grandes sociedades hidrulicas leva-nos,doravante, para o terreno da histria, da grande histria: de povos, de Estados, de culturas, de tradies.

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    basear cada vez mais em saberes discursivos e no somente em repasse de prticasatravs do ensinamento da tradio via imitao.

    Trilhar os caminhos que compreendem as investigaes em torno da histria doque se entende por civilizao, seja ela entendida como um procedimento de formaoou de educao, revela-nos que tudo o que se refere ao humano ser sempre ao de um processo historicizado ou historicizvel. Assim, nossa trajetria seguir invariavelmenteum movimento de recuo e de avano em busca dos vestgios deixados desde a culturahelnica at o que vivenciamos na atualidade, em pleno sculo XXI, ressaltando acrena na literatura, porque ela atua com a mais poderosa forma de cultura e deexpresso artstica feita pelo homem, que a palavra. Ao interpretar o mundo dandoforma ao informe, a arte nos educa, permite descobrir facetas ignoradas dos objetos eseres que nos cercam. o que nos diz Todorov (2009, p. 81), destacando que a literatura nos d no um novo saber, mas uma nova capacidade de comunicao com seresdiferentes de ns; [...]. O horizonte ltimo dessa experincia no a verdade, mas oamor, forma suprema da ligao humana. Nesse cenrio, entendemos que o trabalho ea arte, principalmente a arte literria, so condies fundamentais para que se forjem ese construam homens e mulheres que consigam ampliar a sua viso de mundo,alargando o seu acesso literatura, por entendermos, como Yunes (2012, p. 134), que

    fazer -se sujeito, homem, tem a ver com o domnio do verbo. O processo dehominizao se faz pelo domnio da linguagem, lembra Eliana Yunes (2012, p. 133),recuperando o filsofo Wittegenstein, para quem o tamanho do mundo corresponde aotamanho da linguagem. E mais, completa a professora e pesquisadora: Se a linguagem,nossos recursos de expresso e comunicao, por razes diversas pobre, no podemosapropriar-nos de muita coisa, alm do automatismo cotidiano que nos parece natural .

    Nos dias de hoje, o termo formao, via de regra, tomado por educao e se

    coloca, no entanto, muito mais no campo da cultura do que no campo do ensino propriamente dito. Se no passado ser culto significava acumular informaes, naatualidade esse conceito aponta como pessoa culta a que sabe lidar com a diversidadecultural. A realidade que no lidamos mais com o conceito burgus de cultura.3 A

    3 O conceito de cultura, na atualidade, assume to diversas possibilidades que talvez o melhor sejamesmo usar o termo no plural como o faz Michel De Certeau em seu livro A cultura no plural (2001).Para ele, A relao com a sociedade modificou-se: a cultura no est mais reservada a um grupo social;

    ela no mais constitui uma propriedade particular de certas especialidades profissionais (docentes, profissionais liberais), ela no mais estvel e definida por um cdigo aceito por todos (DE CERTEAU,2001, p. 104).

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    preocupao hoje passa pelo coletivo, pelo social, uma vez que pensar a diversidade no pode excluir o pensar sobre a igualdade. Tal abordagem, contudo, nos obriga a fazeruma volta ao passado, cujas ideias de insero social e de igualdade estariamintimamente ligadas ou dissolvidas nos conceitos de tica e poltica, que sempreestiveram em cena quando se coloca em foco o tema da formao humana, seja noestudo da filosofia da educao, seja nas cincias ditas humanas da atualidade, como ocaso da antropologia.

    Nessa volta ao passado, a primeira lio que aprendemos a de que, se anatureza do homem, dividida em corpo e esprito, cria condies especiais para amanuteno e transmisso da sua forma particular de ser e estar no mundo, garantindo asua sobrevivncia e a propagao da sua espcie, isso se deve to somente ao fato de ohomem ser capaz de se organizar fsica e espiritualmente. A essa forma de organizaoWerner Jaeger denomina educao. Para ele, com os gregos est a origem ou fonteespiritual, a que sempre, seja qual for o grau de desenvolvimento, se tem de regressar para encontrarorientao (JAEGER, 2010, p.5). Corrobora com essa viso de Jaeger oentendimento de Cambi (1999), para quem a virada, oportunizada pelo milagregrego, compreende alguns dos pr incpios que vo estruturar durante 2.500 anos osmodelos e as agncias de formao, prprios da tradio ocidental, com dimenso de

    longa durao.

    [Essa virada] investe em particular sobre a cultura, tornando-a maisautnoma, mais enciclopdica (articulada sobre todos os saberes e vista comosua reunio orgnica), mais propriamente humana (basta pensar na noo dePaideia, de formao humana, por meio de atividades mais prprias dohomem, culturais portanto) [...] a construo de um grande ideal de formaohumana com a Paidia: repita-se, o homem s tal por meio do comrciontimo com a cultura, que deve estrutur-lo como sujeito e torn-lo indivduo- pessoa. E ainda: a idia dos studia humanitatis ligados centralidade daliteratura e da histria, dos saberes do homem e pelo homem, que devem sertambm o eixo cultural da escola e dos prprios programas de estudo.(CAMBI, 1999, p. 73-74).

    Historicamente, na cultura do Ocidente, a educao tem sido vista como processo de formao humana, uma vez que o homem, como sujeito emdesenvolvimento, um ser que no surge pronto, mas enfrenta desde o seu nascimentouma constante busca na tentativa de alcanar estgios mais elevados de humanizao.

    Outro conceito que se aproxima do de Michel De Certeau o de cultura hbrida de Nstor Garcia Canclini(2008, p. 19), que define culturas hbridas como processos socioculturais nos quais estruturas prticasdiscretas, que existem de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e prticas.

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    Nessa perspectiva, a formao acontece em todas as etapas de desenvolvimento do serhumano, sem nunca estar pronta e acabada. Joo Guimares Rosa, mdico de profissoe escritor contemporneo, chamou nossa ateno para esse aspecto no seu clssicoGrande serto: veredas (1994, p. 20-21):

    O senhor Mire veja: o maisimportante e bonito, do mundo, isto: que as pessoas no esto sempre iguais, ainda no foram terminadas mas que elasvo sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. o que a vidame ensinou. Isso que me alegra, monto.

    Tanto Riobaldo como Miguilim, personagens centrais de duas das maisimportantes narrativas de Guimares Rosa, so indivduos que empreendem viagens que

    podem ser tomadas como trajetrias de autoformao. Mas, sobretudo, essas trajetriasdesignam a formao como processo de aprendizagem assim como est formulado pelaexpresso alem Bildung ,4 de forte conotao pedaggica e educativa, segundo AntoineBerman (1984). O conceito de Bildung,como processo de formao, ser retomadomais adiante. Por ora, a propsito dos personagens rosianos citados, ressaltamos que a"grande viagem" de Bildung a experincia da alteridade. Para tornar-se o que , oviajante experimenta aquilo que ele no , pelo menos aparentemente. Ou no dizer de

    Friedrich Schlegel (1994, p. 16), o nosso verdadeiro lugar aquele ao qual sempreretornamos, depois de percorrer os caminhos excntricos do entusiasmo e da alegria,no aquele do qual nunca samos".

    A formao, desde a antiguidade clssica, se confunde com a ideia que se tinhade educao, uma vez que, ainda na primeira infncia, os filhos dos nobres deveriamreceber uma educao esmerada, e nesse momento que, pela primeira vez, o termoeducao se converte em formao, conforme assevera Jaeger (2010, p. 44):

    No basta crescer, como as plantas, de acordo com os usos e costumes dosantepassados. A posio e o domnio preeminente dos nobres acarretam a

    4 O conceito de Bildung,segundo Antoine Berman (1984), um dos conceitos centrais da cultura alemno final do sculo XVIII. Bildung significa geralmente cultura e pode ser considerada como a varianteerudita da palavra Kultur , de origem latina. Mas, para a famlia lexical qual pertence, esse termosignifica muito mais e se aplica a muitos outros registros: assim, pode-se falar da Bildung de uma obra dearte, de seu grau de formao. Da mesma maneira, Bildung tem uma fortssima conotao pedaggica eeducativa, por isso pode ser entendido como processo de formao. Podemos dizer que o termo Bildung ao mesmo tempo um processo e seu resultado. Pela Bildung , um indivduo, um povo, uma nao, mastambm uma lngua, uma literatura, uma obra de arte em geral se formam e adquirem assim uma forma,

    uma Bild . Como no incio, todo ser privado de sua forma, a Bildung sempre um movimento emdireo a uma forma que uma forma prpria.

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    obrigao de estruturar os seus membros desde a mais tenra idade segundo osideais vlidos dentro do seu crculo. A educao converte-se aqui, pela primeira vez, em formao, isto , na modelao do homem integral deacordo com um tipo fixo.

    A relao entre a educao e a formao humana est centrada no devirhumano, naquilo que significa a sua interao com seus pares e com o mundo que ocerca, assumindo o verbo formar, nesse contexto, dimenses que implicam mudana deestado como criar, aperfeioar, construir, compor, fundar, ordenar, desenvolver-se einstruir-se. Observamos tambm que o ser humano, por esse prisma, engendra suacapacidade de maleabilidade, uma vez que se deixa esculpir ou se autoesculpe ou seautomodela. Importa ressaltar que esse esculpir ou modelar no pode ser um movimento

    de fora para dentro, mas uma ao que surge de uma elaborao interna daquilo que jexista em grmen: a capacidade de aprender a aprender. A aquisio da linguagemassim como das demais habilidades, que diferenciam o homem dos outros animais,constituem-se em um processo que nunca encontra um ponto final:

    Cada indivduo particular que se eleva de seu ser natural a um ser espiritualencontra no idioma, no costume, nas instituies de seu povo uma substncia prvia de que deve se apropriar, como o aprender a falar. Assim, cadaindivduo j est sempre a caminho da formao e da superao de sua

    naturalidade, na medida em que o mundo em que est crescendo formadohumanamente em linguagem e costumes. (GADAMER, 2005, p. 50).

    Em cada etapa de desenvolvimento, o ser humano sente falta de novashabilidades que o convvio em sociedade exige como condio para o bem viver. O bemviver entendido aqui como querer uma vida boa, tal como refere o filsofo PaulRicoeur, fazendo um nexo entre vida, desejo, carncia e realizao. Para ele, istoconstitui o fundamento da moralidade, reservando para esta, por conveno de

    linguagem, o termo tica. assim que defino a tica como querer uma vida boa(RICOEUR, 2008, p. 10). Lembra ainda Ricoeur (2008, p. 11), retomando Aristteles,

    que a pretenso felicidade no detm sua trajetria na solido e,acrescentarei, na amizade , mas no meio da cidade. A poltica, tomada emsentido amplo, constitui ento a arquitetnica da tica. Dizemos a mesmacoisa numa linguagem mais prxima de Hannah Arendt: nointer-esse5 queo querer viver bem encerra seu percurso. como cidado que nos tornamoshumanos.

    5 Latiminter-sum, inter-es, inter-esse = estar entre. [N. da T.] (RICOEUR, 2008, p. 11).

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    O pr-requisito que exige que o homem seja entendido como um ser socialestar presente em todos os momentos da discusso que travaremos sobre a questo daformao humana. Isso porque, mesmo que a formao tica pressuponha a construode uma subjetividade, essa subjetividade s se completar na convivncia com outrassubjetividades, afirmando o sentido amplo da poltica como arquitetnica da tica.

    Ao longo do processo de civilizao, nos diz a histria da filosofia que aformao de uma personalidade integral desloca sua ateno do foco de uma educaoformal tica, ou em seus desdobramentos na formao poltica, para uma formaocultural, pois no processo de humanizao do indivduo natural desponta o ser cultural(SEVERINO, 2006). Segundo Werner Jaeger (2010, p. 15), a descoberta do Homem, para o grego, no a do eu subjetivo, mas a conscincia gradual das leis gerais quedeterminam a essncia humana. Por isso a educao, desde os gregos, sempre pertencer esfera do coletivo e nunca ser vista como uma propriedade individual soba qual cada homem poderia se apropriar de forma isolada. Toda educao assim oresultado da conscincia viva de uma norma que rege uma comunidade humana, quer setrate da famlia, de uma classe ou de uma profisso, quer se trate de um agregado maisvasto, como um grupo tnico ou um Estado (JAEGER, 2010, p. 3-4). A formaohumana, contudo, ultrapassa a ideia de educao como um simples processo

    institucional e instrucional destinado a um indivduo ou a uma coletividade. Elaresponde s carncias nticas do ser humano, que se coloca sempre em condio deeducabilidade, dada a sua natureza lacunar ou inacabada, como lembra Guimares Rosaem fragmento citado anteriormente, o que tambm pode ser depreendido dasinvestigaes sobre educao realizadas por Ceclia Meireles (2001, p. 33), conformefragmento que segue:

    O processo da vida se opera em tentativas sucessivas de libertao. Estamostodos os dias renovando, na criatura que fomos na vspera, a criatura queseremos amanh. Mais do que renovando-a: refazendo-a, porque notornamos a ser jamais o que fomos, salvos apenas de uma velhice posterior,mas construmos de fato uma vida prpria, que das outras s guarda alembrana das experincias e uma certa memria de durao com que vamosacreditando na sua continuidade.

    Cabe nesse ponto chamar a ateno para o fato de que, se o pensamento grego,conforme assevera Jaeger, entende a educao como uma norma que rege uma

    comunidade humana, ele traz em si uma natureza dialtica. Porque a chamadaNatureza humana diz respeito no aos gregos de modo geral, mas a uma pequena

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    casta de eleitos. Tal pensamento, por isso, revela um processo dialtico pautado nalgica da aparncia, ilusrio uma vez que os efeitos de tal processo educativoatingiriam apenas a aristocracia.

    Se para os gregos dos tempos mais antigos era no conceito dearete6 que seconcentrava o ideal de educao, a histria do pensamento filosfico mostra que esteideal representado por umthos tradicional da polis grega, de carter aristocrtico-religioso, caminha para a formao de um modelo de homem com valores universaissem limites de etnias e castas. Essa guinada antropolgica da educao, marcada poruma viso que compreende a educao como uma tcnica de formao humana vialinguagem, segundo Cambi (1999, p. 86), ser acentuada por Scrates.

    [Scrates] ir mostrar a dramaticidade e a universalidade de tal processo, queenvolve o indivduoab imis e busca sua identidade pela ativao de umdaimon que traa seu caminho e pelo uso da dialtica que produz auniversalizao do indivduo pela discusso racional e pelo seu processosempre renovado, a fim de atingir a virtude mais prpria do homem, que oconhecer -te a ti mesmo.

    Esse ideal de formao de uma humanidade superior nutrida de cultura ecivilizao, que atribui ao homem, sobretudo, uma identidade cultural e histrica,

    continua Cambi, no parte do indivduo, mas da ideia. Acima do homem-rebanho, e dohomem pretensamente autnomo, est o homem como ideia. Ou seja, como imagemuniversal e exemplar da espcie [...]. O humanismo, visto sob essa tica, ningum o possui por natureza, ele fruto apenas da educao, e o desafio mximo que alimentatodos os processos deeducao (CAMBI, 1999, p. 87).

    Num segundo momento, afastando-se do quadro da cultura clssica greco-latina e aproximando-se da modernidade, a grande matriz da formao humana passa a

    ser a poltica. No a poltica como decorrncia da tica conforme ensinado desde Platoe Aristteles e incorporada por So Toms de Aquino e Santo Agostinho, mas uma poltica que teria, com o advento do Iluminismo, de levar em conta um contrato social,uma vez que o indivduo passa a ser visto como parte integrante de um corpo social que

    6 Para Jaeger (2010, p. 44-45), aarete atributo prprio da nobreza. Os gregos sempre consideraram adestreza e a fora incomuns como base indiscutvel de qualquer posio dominante. Senhorio e Areteestavam inseparavelmente unidos. A raiz da palavra a mesma:pioro, superlativo de distinto eescolhido, que no plural era constantemente empregado para designar a nobreza. [...]Aarete prpria damulher a formosura ( p. 46).

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    o atravessa. Se, desde Scrates, a tica a fora motriz de todo investimento pedaggico, com Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant, principalmente, inaugura-seoutra concepo pedaggica, numa dimenso antropoeducativa,7 em que a formaohumana pressupe, como condio natural do homem, a sua insero na sociedade. O pensamento iluminista alimenta no homem o desejo de se aprimorar no de acordo coma sua forma particular de pensar, levando em conta apenas a sua vontade interior, masseguindo tambm determinaes da vida social. As leis da cidade devem ser sobrepostasao desejo individual de seus cidados.

    Para Kant (2003, p. 12), o homem s se pode tornar homem atravs da suaeducao. Nada mais do que aquilo que a educao o torna. A teoria kantiana, queinfluenciar grande parte dos tericos que investigaram a condio do homem nomundo, deixa como legado a noo de maleabilidade do ser humano, que se coloca em permanente busca de um aperfeioamento na direo de uma livre conscincia moralque poder torn-lo mais feliz. Deixando para trs o Sculo das Luzes e entrando naconfusa modernidade lquida, segundo Antnio Joaquim Severino (2006, p. 603), aeducao se converte em formao cultural:

    Minha idia que as posies tericas elaboradas pelos pensadoresfrankfurtianos, partindo claramente de Adorno e Horkheimer, inauguram umaconcepo diferenciada da educao, que no se expressaria mais nem comoformao tica do sujeito pessoal nem como formao poltica do sujeitocoletivo, mas como formao cultural, conceituada como realizaoantropolgicatout court , sem qualquer adjetivao de qualquer natureza. Eno rastro dessa ideia originante, a grande maioria das manifestaes dafilosofia contempornea vai avanando no sentido de se conceber essaformao como a prpria substncia da educao.

    Podemos sintetizar os vrios momentos em que o conceito de formaohumana se entrelaa com a concepo que se tinha de educao em trs movimentosfundamentais, como foi feito por Antonio Joaquim Severino em seu artigo A busca dosentido da formao humana: tarefa da filosofia da educao (2006). O primeiro estsituado na antiguidade clssica, como j lembramos, de pensamento platnico earistotlico. O segundo passa pelos desdobramentos levantados pelos iluministas, quetinham na poltica o grande modelo que deveria mover o processo de formao humanaatravs de uma instrumentalizao da razo. E, por ltimo, chegamos aos pensadores daEscola de Frankfurt, em que se explicita um paradoxo cultural: a certeza de que o

    7 Expresso utilizada por Antnio Joaquim Severino em artigo citado.

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    esclarecimento tomado como pedra fundamental do Iluminismo trouxe consigo umelemento de destruio. Diante desse pessimismo metafsico, os frankfurtianosinauguraram uma concepo diferenciada de educao, levando em conta o processode formao cultural como sntese dos processos de formao tica e poltica. Alm dedenunciar a instrumentalidade da razo, a crtica dos frankfurtianos resgata aexperincia esttica como caminho para, atravs da imaginao esttica, reencantar omundo despoetizado da tcnica, embora tenham claro que o desenvolvimento dasociedade a partir da Ilustrao, em que cabe importante papel educao e formaocultural, conduziu inexoravelmente a barbrie (MAAR apud ADORNO, 1995, p. 28).

    A pergunta que se coloca nesta perspectiva : Como pde um pas to culto eeducado como a Alemanha de Goethe desembocar na barbrie nazista de Hitler?(MAAR apud ADORNO, 1995, p. 28). A tentativa de resposta para essa pergunta passaria pelo conceito dehalbbildung semiformao 8, que seria uma dasconsequncias da indstria cultural e seus desdobramentos alienantes.

    Tomar a educao como um investimento formativo do humano o que vamosencontrar tambm emVerdade e mtodo (2005), obra-sntese do mais longevo dosfilsofos da atualidade, j citado anteriormente, Hans-Georg Gadamer, que, retomandoas ideias do primeiro Hegel, que compreendia, em sua primeira fase, a formao como

    uma elevao universalidade:

    O homem se caracteriza pela ruptura com o imediato e o natural, vocao quelhe atribuda pelo aspecto espiritual e racional de sua natureza. Segundoesse aspecto, ele no por natureza o que deve ser, razo pela qual temnecessidade de formao. O que Hegel chama de natureza formal daformao repousa na sua universalidade. [...] A essncia universal daformao humana tornar-se um ser espiritual, no sentido universal. Quemse entrega particularidade inculto (ungebildet ) [...] A formao comoelevao universalidade , pois, uma tarefa humana. Exige sacrifcio do que particular em favor do universal. (GADAMER, 2005, p. 47-48).

    Na perspectiva levantada por Gadamer, o que pareceu ser negado ao homem aodestituir-se do que lhe era particular, no servir,

    [n]a medida em que ele se submeteu a um sentido que lhe era estranho, voltaem seu proveito, enquanto ele uma conscincia laboriosa. Como tal,encontra em si mesmo um sentido prprio, sendo perfeitamente correto dizer

    8 O conceito desemiformao, na obra de Theodor Adorno (1995), est diretamente ligado a uma

    tendncia objetiva da sociedade, ao prprio modo de produzir e reproduzir-se desta, o que leva a umrompimento entre o objeto e o sujeito nas relaes de trabalho, que, para ele, impedem as experinciasformativas.

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    que o trabalho forma. O sentimento prprio (Selbstgefhl ) da conscincialaboriosa contm todos os momentos daquilo que constitui uma formao prtica: distanciamento da imediatez, da cobia, das necessidades pessoais edo interesse privado e a exigncia de um sentido universal. (GADAMER,2005, p. 48).

    A ideia de que o trabalho retira o sujeito do egocentrismo, exigindo sua entregaa tarefas que no seriam assumidas para os fins privados, pode ser encontrada na poesiade Cora Coralina, que se baseia nas reminiscncias para apropriar-se do mundo e dalinguagem dos antigos com o fato de que esse mundo -nos suficientemente remoto eestranho para produzir a separao necessria que nos aparte de ns mesmos(GADAMER, 2005, p. 50). Escreve a poeta: Sou mulher operria e essa segurana meengrandece, / o meu apoio e umalegitimao do que sou realmente (p. 53); A vida boa. Saber viver a grande sabedoria./ Saber viver dar maior dignidade ao trabalho(p. 153); A vida boa e ns podemos faz-la sempre melhor,/ e o melhor da vida otrabalho (p. 166); E a vidase renova na fora contagiante do trabalho (p. 180).

    Entretanto, as polticas que pem em curso os processos deinternacionalizao, mundializao e globalizao do mercado econmico, nacontemporaneidade, esto longe de fazer do trabalho um processo que leve a umaformao omnilateral,9 capaz de gerar uma emancipao social e individual. E essaincapacidade j havia sido denunciada pela teoria marxista, que assevera estar, entreoutros motivos, na diviso do trabalho a responsabilidade pela reificao das relaesentre os homens, tese que ser utilizada por Adorno em seus estudos junto aos demaistericos da Escola de Frankfurt. Mas nossa inteno neste momento tomar o trabalhona sua dimenso formadora, como princpio educativo, o que, para Frigotto (1989, p.27),

    [...] implica superar a viso utilitarista, reducionista de trabalho. Implicainverter a relao, situando o homem e todos os homens como sujeitos do seudevir. Esse um processo coletivo, organizado, de busca prtica detransformao das relaes sociais desumanizadoras e, portanto,deseducativas. A conscincia crtica o primeiro elemento deste processoque permite perceber que dentro dessas velhas e adversas relaes sociaisque podemos construir outras relaes, em que o trabalho se tornemanifestao de vida e, portanto, um ato educativo.

    9 A omnilateralidade , pois, o chegar do homem a uma totalidade de capacidades e, ao mesmo tempo, a

    uma totalidade de capacidade de consumo e gozo, em que se deve considerar, sobretudo, o usufruir dos bens espirituais alm dos materiais de que o trabalhador tem estado excludo em conseqncia da divisodo trabalho (MANACORDA, 1990 apud GADOTTI, 1995, p. 58).

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    A grandeza educativa do trabalho est presente no termo alemo Bildung ,como escreve Berman (1984, p. 143-144):

    Designativa de um processo, a palavra Bildungaparece, tanto em Hegelquanto em Goethe, ligada ao prtica, aotrabalho. Elemento definidor eresultado do processo cultural, Bildung significa, no pensamento de Hegel, a partir de sua Propedutica filosfica, ruptura com o imediato e passagem do particular ao universal, mais ainda, elevao ao universal, conotandoaprimoramento, engrandecimento.

    O aprimoramento se faz ento pela formao prtica:

    Ao formar o objeto, portanto, enquanto age ignorando a si e dando lugar a umsentido universal, a conscincia que trabalha eleva-se acima do imediatismode sua existncia rumo universalidade ou, como diz Hegel: ao formar acoisa, forma a si mesmo. (GADAMER, 2005, p. 48).

    Como consequncia dos ideais defendidos pelo idealismo alemo, o termo Bildung se desdobra embildungsroman, contemplando trs outras acepes alm da quereconhece no trabalho uma ao formativa. Compreende o tema da viagem: enquantoromance, Bildung experincia da aparente estranheza do mundo e, tambm, daaparente estranheza do mesmo para si prprio, conforme j salientamos acerca dos personagens de Guimares Rosa e que se evidencia no clssico personagem de Goethe,Wilhelm Meister. Associa-se ao tema da traduo:

    E no por acaso que, na cultura alem do final do sculo XVIII, a traduotem um papel essencial [...]. medida que Bildung se define como certa provao do estrangeiro, do Estranho, a traduo pode e deve manifestar-secomo um dos agentes principais da formao. (BERMAN, 1984, p. 148-149).

    E, por ltimo, contempla a ideia da volta a um passado remoto:

    No tocante arte e literatura, a partir da contribuio do pensadorJoachim Winckelmann criador da luminosa viso apolnea da Grcia nasegunda metade do sculo XVIII que a Antigidade grega se torna modeloe arqutipo na Alemanha. (BERMAN, 1984, p. 150).

    Neste vis, segundo Berman, renem-se todos os esforos para alcanar umgrau de cultura equivalente dos Antigos, principalmente, por uma apropriao de suas

    formas poticas. Nessas condies, a disciplina que adquire um papel de primeiro plano,

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    definindo-se em geral como estudo dos textos e das lnguas antigas, a filologia tomadana sua dimenso de amor aologos".

    Na cadeia de implicaes que pressupe a formao humana, o conjunto dedimenses do verbo formar resulta em atividades transformadoras das relaes com anatureza e com os outros homens e por isso que a relao com o trabalho e com asartes tambm se constitui como vias de formao. A arte, contudo, no pode servir a umfim utilitarista. Em seu livro A educao esttica do homem(2010, p. 23), Schillerafirma, ainda no sculo XVIII:

    A utilidade o grande dolo do tempo; quer ser servida por todas as foras ecultuada por todos os talentos. Nesta balana grosseira, o mrito espiritual daarte nada pesa, e ela, roubada de todo estmulo, desaparece do ruidosomercado do sculo.

    E continua ele: Para resolver na experincia o problema poltico necessriocaminhar atravs do esttico, pois pela beleza que se vai liberdade (SCHILLER,2010, p. 24). Com Jaeger sabemos:Aspirar a beleza (que para os Gregos significa aomesmo tempo nobreza e eleio) e faz-la sua no perder nenhuma ocasio deconquistar o prmio da mais alta Arete (WERNER, 2010, p. 36). Contudo, em Schiller,

    a noo de beleza se distancia do conceito vinculado a Arete grega, e prepara o caminho para a ideia de autonomia e liberdade adquiridas na e pela educao.A experincia pode responder-nos se existe uma beleza, e o saberemos, to logo ela nos ensine seexiste uma humanidade (SCHILLER, 2010, p. 74). Beleza e nobreza para Schillertomam uma dimenso diversa da do heri grego da Ilada, por exemplo, e mesmo dosheris humanizados de aOdisseia. Diz o filsofo alemo: nobre toda forma queimprime o selo da autonomia quilo que, por natureza, apenas serve ( mero meio). Umesprito nobre no se basta com ser livre: precisa pr em liberdade todo o mais suavolta, mesmo o inerte (SCHILLER, 2010, p. 15).

    A ideia de liberdade proposta por Schiller passa pelo impulso ldico, pelacapacidade do homem que se mostra inclinado ao jogo, que sabe conciliar o impulsosensvel com o impulso racional. Dessa forma, entende Schiller que no h maneira detornar racional o homem sensvel sem torn-lo esttico ou, em outras palavras, torn-loum ser humano capaz de abrir caminho de uma realidade comum a uma realidadeesttica, dos meros sentimentos vitais a sentimentos de beleza (SCHILLER, 2010,

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    p.128). Esse ponto de vista levantado por Schiller o situa historicamente como algumque percebe o mundo no s como filsofo, mas, tambm, como poeta.

    Antonio Candido, j no sculo XX, teorizando sobre o direito literatura, tomaa poesia de Toms Antnio Gonzaga ressaltando sobre o seu papel humanizador. Nesse ponto, o crtico vale-se das consideraes do poeta Schiller:

    Propunha-me dormir no teu regaoAs quentes horas da comprida sesta;Escrever teus louvores nos olmeiros,Toucar-te de papoulas na floresta.

    (GONZAGA, 2000, p. 123).

    E conclui Candido (2004, p. 179) sobre os versos de Gonzaga:

    [...] o poeta transforma o informal ou o inexpresso em estrutura organizada,que se pe acima do tempo e serve para cada um representar mentalmente assituaes amorosas desse tipo. A alternncia regulada de slabas tonas, o poder sugestivo da rima, a cadncia do ritmo criaram uma ordem definidaque serve de padro para todos e, deste modo, a todos humaniza, isto , permite que os sentimentos passem do estado de mera emoo para o daforma construda, que assegura a generalidade e permanncia.

    Antes de Candido, contudo, quase um sculo e meio depois de Schiller terconstrudo o seu ideal de educao esttica, ser a vez de Theodor Adorno diante dasexperincias de dominao e violncias de toda ordem contra os direitos naturais,sociais e polticos dos homens defender a experincia intelectual como forma de fazercom que a liberdade seja uma construo humana, que permita a todos que, estando na posse do seu livre-arbtrio, evitem a repetio, entre os homens, da barbrieexemplificada por Auschwitz. Porque, para ele,a seriedade moral [da escola] est emque, no mbito do existente, somente ela pode apontar para a desbarbarizao dahumanidade, na medida em que se conscientiza disto (ADORNO, 1995, p. 117).Adorno, conforme j lembramos anteriormente, o grande nome que se destaca entre osfrankfurtianos, e em seu livro Educao e emancipao ser um defensor eloquente do papel emancipatrio da educao, que ele assim apresenta:

    Evidentemente no a assim chamada modelagem de pessoas, porque notemos o direito de modelar pessoas a partir de seu exterior; mas tambm noa mera transmisso de conhecimento, cuja caracterstica de coisa morta j foimais do que destacada, mas a produo de uma conscincia verdadeira. Istoseria inclusive de maior importncia poltica; sua ideia, se permitido dizerassim, uma exigncia poltica. Isto : uma democracia com o dever de no

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    apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito; demanda pessoasemancipadas. Uma democracia efetiva s pode ser imaginada enquanto umasociedade de quem emancipado. (ADORNO, 1995, p. 142).

    Concebendo a educao como uma exigncia poltica, Adorno toma o processo de formao educativa como umacapacidade de fazer experincias. Eu diriaque pensar o mesmo que fazer experincias intelectuais. Nessa medida e nos termosque procuramos expor, a educao para a experincia idntica educao para aemancipao (ADORNO, 1995, p. 151).

    Por questes conceituais que envolvem aquilo que se entendia, na Antiguidadeclssica, como tica e poltica, o conceito de formao humana passou, como vimos, por

    transformaes significativas ao longo da histria. Porque sabido que o ideal dehomem inaugurado pelos gregos e, posteriormente, conhecido como helenocentrismo,contemplava essencialmente os filhos da nobreza.10 No se podia imaginar umaeducao e formao fora desse contexto. O ideal de educao, assim como o ideal dedemocracia, originados na Grcia antiga, a rigor, ainda guarda similaridades com o quese v nos nossos dias. Contudo, o que muda consideravelmente o conceito de cultura ede homem culto na atualidade. O homem culto de ontem se transformou no cidado dehoje. Aqueles que criticam o idealismo alemo, o fazem por acreditar que essemovimento iniciado no sculo XVIII aglutinava um conceito de educao voltado no para o cidado em geral, mas para o burgus em especial.

    A contradio apontada pelos estudos de Adorno, em relao estticahegeliana de carter metafsico e idealista, ocorre em funo de o socilogo Adorno noconcordar com o conceito de totalidade, que para a sua perspectiva scio-histricalevava a consequncias conservadoras incapazes de contemplar a complexidade dasexperincias individuais e sociais. Incapacitado de se desvencilhar das cicatrizesdeixadas pelo horror aos regimes totalitrios e suas consequncias traumticas, e pelaaverso ao do mercado capitalista reificante, Adorno, como j mostramos, apostarna experincia esttica, que, segundo ele, pode ser entendida tambm como experinciaeducativa, como nica possibilidade de se enfrentar a indiferena diante da barbrie.

    10 Segundo Cambi (1999, p. 51), aeducao no mundo antigo, pr-grego e grego-romano, tambm umaeducao por classes: diferenciada por papis e funes sociais, por grupos sociais e pela tradio de quenutre. O caso-Grcia talvez o mais emblemtico: a composio entre aristoi (excelentes) edemos (povo) ntida e fundamental, mas tambm sujeita a tenses e reviravoltas. Aqui tambm vigora uma

    educao que mostra a imagem de uma sociedade nitidamente separada entre dominantes e dominados,entre grupos sociais governantes e grupos subalternos, ligados muitas vezes s etnias dominantes edominadas, mas que contrapem nitidamente os modelos educativos.

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    A definio de Arete, na qual se traduzia a Paideia grega, pode ter inaugurado,como afirma Jaeger, o que podemos com plena conscincia chamar de cultura. Mas omodelo de relaes sociais que hoje se apresentam diante dos indivduoscontemporneos, num mundo movido pelas leis do mercado, aponta para uma profundacrise do conceito de formao humana ou formao cultural conforme salientamAdorno, Horkheimer, Marcuse, Benjamin, entre outros, quando fundam a TeoriaCrtica, em oposio a todo pensamento da identidade, da no-contradio, tpico dafilosofia desde Descartes, denominada pelos frankfurtianos Teoria Tradicional(MATOS, 2005, p. 14). Na contemporaneidade, o modelo da Paideia e o de Bildung ,entendendo ambos como processo e ao mesmo tempo resultado do esforo dos homensde conhecer e dominar a natureza, de promover o aperfeioamento moral e aemancipao poltica, fracassaram.

    Segundo Adorno (1998), o mundo sensvel e o mundo intelectual j no searticulam mais no processo do trabalho, impedindo as experincias formativas, queacabam por se desembocar na semiformao. A arte, na era da reprodutibilidadetcnica,11 perdeu no s a sua aura mas tambm a capacidade de encantamento. Emoutras palavras, o desejo dos romnticos de salvar o mundo por intermdio de umaeducao esttica, representado pelo idealismo alemo, aparentemente, parece ter

    fracassado. Por isso, tornou-se emblemtica desse momento de pessimismo a frase deAdorno (1995, p. 26): ''escrever um poema aps Auschwitz um ato brbaro, e issocorri at mesmo o conhecimento de por que se tornou impossvel escrever poemas''. Aafirmativa de Adorno ou a suposta morte do verso apregoada pelos concretistas noforam capazes, contudo, de neutralizar a criao potica. Portanto, explorar at aexausto a experincia com o verso livre, caindo at mesmo na prosa, e lutar com osilncio diante do inenarrvel dos experimentos modernos so apenas algumas das

    posturas assumidas por poetas de todas as nacionalidades nesse incio de milnio. A

    11 A reprodutibilidade tcnica um conceito que est presente no livro Magia e tcnica, arte e poltica, deWalter Benjamin. No ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica, comeado a serescrito em 1936, Benjamin discute as mudanas decisivas marcadas, a princpio, pela inveno daxilografia e da imprensa at a inveno do cinema. Conceitos como autenticidade e aura so colocados em xeque diante da nova era. Diz Benjamin (1994, p. 68): Mesmo na reproduo mais perfeita, umelemento est ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existncia nica, no lugar em que ela seencontra. [...] A autenticidade de uma coisa a quintessncia de tudo que foi transmitido pela tradio, a partir de sua origem, desde sua durao material at o seu testemunho histrico. Como este depende damaterialidade da obra, quando ela se esquiva do homem atravs da reproduo, tambm o testemunho se

    perde. Sem dvida, s esse testemunho desaparece, mas o que desaparece com ele a autenticidade dacoisa, seu peso tradicional. O conceito de aura permite resumir essas caractersticas: o que se atrofia naera da reprodutibilidade tcnica da obra de arte a sua aura.

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    resistncia intentada pelos poetas da contemporaneidade e, a seu modo, tambm pelosescritores de prosa revela que ainda se acredita, como se acreditou na antiguidadeclssica, que a literatura uma das mais competentes, e mais completas, manifestaesartsticas capazes de colocar em curso o processo de formao humana. Basilar paraessa linha de raciocnio a afirmao de Jaeger (2010, p.18):

    Sem dvida, os verdadeiros representantes da paideia grega no so osartistas mudos escultores, pintores, arquitetos , mas os poetas e osmsicos, os filsofos, os retricos e os oradores, quer dizer, os homens deEstado. [...] A palavra e o som, o ritmo e a harmonia, na medida em queatuam pela palavra, pelo som ou por ambos, so as nicas foras formadorasda alma, pois o fator decisivo em toda paidia a energia, mais importanteainda para a formao do esprito que para a aquisio das aptides corporaisno agon.

    Seguindo este raciocnio possvel afirmar que na literatura est o sentidooriginrio da autoformao do homem grego. Hlderlin disse em versorecorrentemente citado:O que permanece a obra dos poetas. Este verso exprime alei fundamental da histria da educao helnica. As suas pedras fundamentais esto naobra dos poetas, o que nos afirma Jaeger (2010, p. 66), para quem osimples fato demanter viva a glria atravs do canto , por isso s, uma ao educadora. Esse

    pensamento, contudo, ele o retira de Plato: A possesso e o delrio das musasapoderam-se de uma alma sensvel e consagrada, despertam-na e extasiam-na em cantose em toda sorte de criaes poticas; e ela, enquanto glorifica os inmeros feitos do passado, educa a posteridade (JAEGER, 2010, p. 77). Certamente que Odissia aque se refere Plato:

    Filho de Laertes, de origem divina, Odisseu engenhoso, , ento, verdade que queres voltar para a ptria querida,

    sem mais delongas? Pois parte feliz, apesar do que sinto.Mas se pudesse saber o que o Fado te tem reservadode sofrimentos, primeiro que alcances a terra nativa,escolherias comigo ficar e guardar esta casa,como tornar-te imortal, apesar das saudades que senteslonge da esposa, por causa de quem de contnuo suspiras.Mas me envaideo de em nada inferior ser tua consorte,nem nas feies nem no porte, que aos seres mortais no competevir disputar com os eternos na forma perfeita e na altura. Disse-lhe o muito solerte Odisseu o seguinte, em reposta:Deusa potente, no queiras com isso agastar-te; conheo perfeitamente que minha querida e prudente Penlope de menor aparncia e feies menos belas que as tuas.

    Ela uma simples mortal; tu, eterna, a velhice no temes.Mas, apesar de tudo isso, consumo-me todos os dias para que ptria retorne e reveja o meu dia de volta.

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    Mesmo que em meio do mar cor de vinho algum deus me atingisse,meu corao resistente isso, decerto, sofrera.J suportei muitas dores, passei numerosos trabalhos,tanto no mar que na guerra;que venham, por isso, mais esses Disse, no tempo em que o Sol se deitou, vindo a noite em seguida.Para o interior ambos eles se foram da gruta escavada;

    do-se aos deleites do amor, e bem juntos um do outro se ficam.(HOMERO, 2009, p.103-104).

    Ou estaria o filsofo se referindo dcima musa, Safo de Lesbos, poetisa que,atravs de seu crculo de admiradores, mostra que mesmo passando do heroico aohumano a poesia ainda conserva a atitude educadora?

    O que belo belo aos olhos

    e basta.Mas o que bom subitamente belo.

    (SAFO, 1992, p. 23).

    Em seu livro Linguagem e silncio, especificamente no captuloPara civilizarnossos cavalheiros, George Steiner (1988, p. 81) coloca sob suspeio o papelhumanizador dos estudos literrios dizendo: temos poucas provas de que uma tradio

    de estudos literrios de fato torna o homem mais humano. Entretanto, ao mesmotempo em que se diz incapaz de assegurar que as cincias humanas humanizam, eleafiana que:

    [a] cincia no pode nos dizer o que acarretou a barbrie da situaomoderna. No pode nos dizer de que modo salvar nosso modo de vida,embora tenha tornado mais precisa a ameaa imediata a ele. Uma grandedescoberta da fsica ou da bioqumica pode ser neutra. Um humanismo neutroou um artifcio pedante ou um prlogo do desumano. (STEINER, 1988, p.87).

    Steiner (1988, p. 86), ao reclamar por uma no neutralidade do humanismo,aconselha: Antes de comearmos a ensinar, temos certamente de nos perguntar: ascincias humanas so humanas, e, caso afirmativo, por que fracassaram diante doholocausto?. Por ltimo, quase que contradizendo as suas afirmaes anteriores,Steiner nos lembra da impossibilidade de sermos as mesmas pessoas aps a leitura docanto LXXXI, da obra Os Cantos, de Ezra Pound. Mesmo que se diga que deve-se

    calar sobre aquilo de que no se pode falar, a literatura ser sempre uma vozdissonante, pelo menos o que nos assegura Franz Kafka, em fragmento de carta, com o

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    qual Steiner fecha seu captulo Para civilizar nossos cavalheiros e que tomamos parafechar esse nosso subcaptulo.

    Se o livro que lemos no nos desperta como se fosse um punho nosmartelando o crnio, para que l-lo ento? Para que nos faa feliz? MeuDeus, tambm seramos felizes se no tivssemos livros, e livros que nosfaam felizes poderamos, se necessrio, escrev-los ns mesmos. Mas o quetemos de ler so aqueles livros que se abatem sobre ns como o infortnio, enos causam profunda perturbao, como a morte de algum a quem amamosmais do que a nos mesmos, como o suicdio. Um livro deve ser uma picaretaa quebrar o mar congelado em nosso interior. (STEINER,1988, p. 88).

    Desvendar o que Kafka prenuncia no fragmento citado j antecipa aquilo queabordaremos no prximo subcaptulo, no qual trataremos da natureza e funo da

    literatura numa perspectiva da formao humana.

    1.2 O papel da literatura como formao

    L-se para sentir-se ler, para sentir-se lendo, para sentir-se vivo lendo. L-se para tocar, por um instante ecomo uma surpresa, o centro vivo da vida ou suaexterioridade impossvel.

    Jorge Larrosa

    Por entendermos que a relao entre a educao e a formao humana estcentrada no devir humano, propomo-nos, neste subcaptulo, discorrer sobre a natureza ea funo da literatura, partindo das ideias de Gilles Deleuze (1997, p. 11), para quem aliteratura est antes do lado do informe, ou do inacabamento[...]. Escrever um casode devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquermatria vivvel ou vivida. Nessa visada, encontramos um ponto de conexo entre as

    diferentes abordagens daquilo que pode ser entendido como estatuto do texto literrio, oque nos permitir, em seguida, discutir sobre a sua funo no processo formativo dohomem.

    Antoine Compagnon inicia seu livro Literatura para qu?(2009) com umconjunto de perguntas, que j haviam sido, de certa forma, por ele tratadas emOdemnio da teoria (1999). Essas indagaes nos auxiliam a pensar sobre a natureza efuno da literatura, ajudando a compreender o seu papel na formao de um leitor

    literrio. Reproduzo aqui algumas delas, para, como no mtodo maiutico, desconfiardo que j sabemos, nos livrando das presunes, j que este o primeiro caminho para

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    uma investigao sobre a leitura literria, segundo Bloom (2001). Quais valores aliteratura pode criar e transmitir ao mundo atual? Que lugar deve ser o seu no espao pblico? Ela til para a vida? Por que defender sua presena na escola? H realmentecoisas que s a literatura pode nos oferecer?

    Acreditar na existncia de coisas que s a literatura pode nos proporcionar uma ideia anacrnica, uma vez que possui a capacidade de fazer com que escritores,tericos e crticos, alm de leitores comuns, mesmo que deslocados historicamente,sejam contemporneos. Essa contemporaneidade lhes dada exatamente pelo carter deintempestividade natural presente no texto literrio, como nos lembra Roland Barthes,12 para quem o contemporneo o intempestivo. O poeta, segundo Agamben (2009), temuma prtica anacrnica por excelncia, uma vez que permite, pela literatura, apreender onosso tempo na forma de um muito cedo, que tambm um ainda no, condioque nos coloca de volta diante da ideia do inacabamento do texto literrio. A naturezamesma deste texto, tomado como discurso,traz tona as razes esquecidas do serhumano, que estono mtico, no ldico, na imaginao. (CAMARGO, 2012, p. 124).Deixar fluir essa natureza o que, segundo os formalistas russos, daria literatura a sualiterariedade.13 Jakobson escrevia em 1919: O objeto da cincia literria no aliteratura, mas a literariedade, ou seja, o que faz de uma determinada obra uma obra

    literria(JAKOBSON, 1988).A literariedade seria, pois, a essncia que instaura o literrio, fazendo com que

    o mesmo material lingustico do cotidiano ganhe uma outra forma de organizaodiferenciada. Porque o que se espera do texto literrio que ele, em primeiro lugar,coloque em suspenso a relao direta do discurso com o real j constitudo, j descritocom os recursos da linguagem vulgar ou da linguagem cientfica. O segundo que odiscurso literrio traga linguagem aspectos, valores de realidade que no tm acesso

    linguagem diretamente descritiva e que s podem ser ditos graas ao jogo complexo daenunciao metafrica e da transgresso regrada das significaes usuais das nossas palavras (RICOEUR, 1989). Transgresso, refigurao, inacabamento,estranhamento, desfamiliarizao, intensificao da linguagem comum, afastando-sesistematicamente da fala cotidiana (EAGLETON, 1983, p.2); aquilo que confirma um

    12 Essa citao de Barthes feita por Giorgio Agamben (2009, p. 58), em seu livroO que ocontemporneo? E outros ensaios.13 Os formalistas russos tomam como critrio de literariedade a desfamiliarizao, ou o estranhamento

    (ostrannie): a literatura ou a arte em geral renova a sensibilidade lingustica dos leitores atravs de procedimentos que desarranjam as formas habituais e automticas da percepo (EIKHENBAUM et al.,1976).

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    consenso, mas produz tambm a dissenso, o novo, a ruptura (COMPAGNON, 1999, p. 38), ou uma violncia organizada contra a fala comum, diria Jakobson. Contrria aouso normativo estruturado pelas regras gramaticais, impostas ao texto comum, aespecificidade da linguagem esttica justamente violar o cdigo da linguagemnormal (COHEN, 1978, p.161). Tratando do texto potico, nos ensina Octavio Paz(1982, p. 47):

    A criao potica se inicia como violncia sobre a linguagem. O primeiro atodessa operao consiste no desenraizamento das palavras. O poeta arranca-asde suas conexes e misteres habituais: separados do mundo informativo dafala, os vocbulos se tornam nicos, como se acabassem de nascer.

    Visto por esse prisma, o que distinguiria o texto literrio do que se entende porlinguagem comum, trivial, cotidiana seriam os traos distintivos da linguagem literria.O que, para os formalistas, implicaria aquilo que entendiam como os artifcios,responsveis pelo estranhamento capaz de desautomatizar as percepes presentesna fala cotidiana. Nesse sentido, outro aspecto precisa ser considerado no processo deidentificao de um texto literrio, que o de reconhecer que, como objeto esttico, ostextos precisam ser construdos e no descobertos. E que as estratgias interpretativas

    colocadas em funcionamento no podem implicar apenas uma subjetividadeidiossincrtica, pois os meios atravs dos quais os objetos (nesse caso o texto literrio)so construdos so sociais e convencionais. Esse pensamento de Stanley Fish aponta para a ideia de uma comunidade interpretativa, que seria responsvel no s por darconta dos significados que possam ser atribudos a um poema, representando aqui, odiscurso literrio como um todo, mas, antes de mais nada, o fato de o reconhecermoscomo tal:

    Embora seja correto dizer que criamos poesia (tal como criamos indicaesde leitura e listas), ns o fazemos atravs de estratgias interpretativas queem ltima anlise no so nossas, porm tm sua origem em um sistema deinteligibilidade que pblico. Na medida em que o sistema (nesse caso osistema literrio) nos limita, ele tambm nos d forma, provendo-nos decategorias de entendimento com as quais ns, em contrapartida, damos formas entidades para as quais podemos, ento, nos voltar. Em resumo, lista deobjetos feitos ou construdos temos que acrescentar ns mesmos, pois somos,tanto quanto os poemas [...], produtos de estruturas de pensamento sociais eculturais. (FISH, 1993, p. 20).

    Dizer que preciso ter olhos-de-ver-literatura pressupe que determinadascaractersticas do texto literrio precisam ser aprendidas, porque, para Fish, no a

  • 7/24/2019 Tese - Ebe Faria de Lima Siqueira - 2013

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    presena de qualidades poticas que compele a prestar um determinado tipo de ateno,mas sim o fato de prestar um certo tipo de ateno, que faz com que as qualidades poticas se evidenciem. Corrobora com esse pensamento a forma como o poeta e professor Jamesson Buarque (2011)14 entende o processo de nascimento de um poeta.Para ele, para se fazer poeta (escritor de literatura) necessrio que se tenha acesso aotexto potico; que se aprendam os mecanismos de funcionamento desse discurso, seja pela educao formal, seja por procedimentos outros, como a audio de poemas,estratgias que nos reportam ao seu nascimento no bero da msica. Todas essasabordagens apontam para a impossibilidade de uma nica definio para esse fenmenoesttico, que parece to antigo quanto o desejo do homem de, atravs da investigao do passado, retornar sua ptria mtica, ou ao seio materno do mito (NIETSCHE, 2004, p.143). Essa tentativa de retornar a um tempo primordial o que Manoel Antnio deCastro (1994) entende como capacidade de ficcionalizar, comum aos artistas e scrianas, o que , em verdade, uma busca pela liberdade.

    Mas ao mesmo tempo em que a literatura constituda de um corpo esttico prprio, avesso aos usos cotidianos da linguagem, ela, como toda arte, possui tambm, por natureza, um carter formador. sob esse aspecto que ela alimenta a intelignciageral, enfrenta as grandes interrogaes humanas, estimula a reflexo sobre o saber e

    favorece a integrao pessoal dos conhecimentos (MORIN, 2010, p.17). Dizer,contudo, que a literatura educa no pode ser entendido como tom-la como matriadisciplinar, ou que sirva de pr-texto para o ensino de uma qualquer disciplina. Afinalidade da literatura, parafraseando Morin (1997, p. 38) ao se referir poesia, o denos colocar em estado literrio. O que equivaleria no a um estado de viso, mas aoestado de vivncia apontado por Rimbaud na sua famosa Lettre du voyageur . Esteestado de vivncia tambm explicitado por Gilles Deleuze, para quem na escrita

    literria no deve haver linha reta, nemnas coisas, nem na linguagem. A sintaxe oconjunto dos desvios necessrios criados a cada vez para revelar a vida nas coisas(DELEUZE, 1997, p. 12). Em entrevista ao programaSangue Latino, do Canal Brasil2011, Ferreira Gullar, retomando Fernando Pessoa, sentencia que, para ele, a arte(entendendo aqui a lite