Tese Edimilson Na Net

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Tese de doutorado

Citation preview

  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    FACULDADE DE EDUCAO

    PS-GRADUAO EM EDUCAO

    O NEGRO E A CULTURA AFRO-BRASILEIRA: UMA BRICOLAGEM

    MULTICULTURAL DO ENSINO DE GEOGRAFIA

    DOUTORANDO: EDIMILSON ANTNIO MOTA

    ORIENTADORA: PROF. DR ANA CANEN

    Rio de Janeiro, 2013

  • 2

    Edimilson Antnio Mota

    O NEGRO E A CULTURA AFRO-BRASILEIRA: UMA BRICOLAGEM

    MULTICULTURAL DO ENSINO DE GEOGRAFIA

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Educao, Faculdade de

    Educao, Universidade Federal do Rio de

    Janeiro, como parte dos requisitos necessrios

    obteno do ttulo de Doutor em Educao.

    Orientadora: Prof Dr Ana Canen

    Rio de Janeiro, 2013

  • 3

  • 4

    queles que reinventam a cultura como

    reconhecimento e emancipao social.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    minha esposa Cidinha, meu grande amor, que est ao meu lado desde o incio

    da minha carreira, que me compreendeu e me motivou a lutar por esse sonho de

    chegar ao doutorado.

    minha linda filha, Sofia, o meu maior presente, que, no meu silncio e recluso,

    levou-me abraos e beijinhos.

    minha orientadora, Prof. Dr Ana Canen, pela competncia, rigor, exigncia, e,

    sobretudo, pela amizade, generosidade, delicadeza, e parceria, por ter acreditado

    no meu potencial e me apoiado sempre.

    Prof Dr Libnia Nacif Xavier, pelas observaes e contribuies tericas

    indispensveis para a realizao desse estudo, pelo carinho que pude sentir no

    Exame Especial e na Qualificao e, por ter, ao mesmo tempo, acreditado na

    superao dos meus limites.

    Secretria do Programa de Ps-Graduao em Educao da UFRJ, Solange

    Rosa de Arajo, pela sua dedicao cotidiana com todos ns - uma amiga sempre.

    s professoras da banca examinadora, pelas contribuies importantes para o

    aperfeioamento do meu trabalho.

  • 6

    O discurso no simplesmente aquilo que traduz as

    lutas ou os sistemas de dominao, mas aquilo por que,

    pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.

    A produo do discurso ao mesmo tempo controlada,

    selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero

    de procedimentos que tm por funo conjurar seus

    poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio.

    FOUCAULT

  • 7

    RESUMO

    MOTA, Edimilson Antnio. O negro e a cultura afro-brasileira: uma

    bricolagem multicultural do ensino de geografia. Rio de Janeiro, 2013. Tese

    (Doutorado em Educao) Faculdade de Educao, Universidade Federal do Rio

    de Janeiro, 2013.

    Com a homologao da lei 10.639 em janeiro de 2003, tornou-se obrigatrio o

    ensino da histria da frica e da cultura afro-brasileira em toda a educao bsica.

    Com isso, o campo do currculo foi levado a repensar o seu sentido, em termos de

    como tm sido abordadas as disciplinas, e em que perspectiva pedagogicamente

    estas temticas tm sido apresentadas nos livros didticos. No caso do ensino da

    Geografia, o presente estudo teve como objetivo resgatar a importncia do negro e

    da cultura afro-brasileira, a partir de recortes discursivos extrados dos livros

    didticos dessa disciplina no stimo ano, com base nas categorias de lugar,

    espao, paisagem, regio e populao. O objetivo foi saber a partir de quais

    paradigmas so construdas estas abordagens, e em que medida elas coadunam

    com o multiculturalismo emancipatrio. Para responder a essa questo,

    entendemos que o ensino de Geografia est dividido em dois paradigmas

    principais: o da geografia tradicional e o da geografia crtica. No primeiro, o

    negro seria reconhecido a partir do paradigma do determinismo biolgico, visto

    como o selvagem, o no civilizado e de raa inferior, o que justificou a sua

    escravizao e a construo poltica e moral do reconhecimento negativo e

    estereotipado a seu respeito pelo colonialismo. No segundo, baseia-se no

    paradigma crtico marxista, em que, a crena est no motor da histria gerada pelo

    modo de produo capitalista, e na organizao, e na transformao do espao

    social; o que levaria desigualdade social e luta de classes, em detrimento da

    discusso da desigualdade por raa. Nesse sentido, os resultados apontaram que, nos discursos a respeito da importncia do negro e do resgate da cultura afro-

    brasileira nos livros didticos, tais conceitos deveriam ser descolonizados e

    desconstrudos. Para tal, um fio condutor poderia ser o do reconhecimento das diferenas nas diferenas, na construo da prxis do ensino de Geografia de forma dialgica e dialtica. Nesse sentido, far-se-ia necessrio trazer as

    contribuies do multiculturalismo emancipatrio no com um fim, como uma

    categoria fechada e estanque, mas, ao contrrio, como um campo contestado,

    aberto s prticas educativas dos sujeitos sociais.

    Palavras-chave: negro; cultura afro-brasileira; livro didtico; multiculturalismo

    emancipatrio; reconhecimento; ensino de geografia.

  • 8

    ABSTRACT

    MOTA, Edimilson Antonio. The black and african-Brazilian: culture in

    multicultural patchwork geography education. Rio de Janeiro, 2013. Thesis

    (Doctorate in Education) - College of Education, University Federal of Rio de

    Janeiro, 2013.

    With the homologation of the law 10.639 in January of 2003, it has become

    obligatory the teaching of the history of Africa and of African-Brazilian culture in

    all basic education, which has led the camp of curriculum to rethink its sense of

    how the disciplines have been addressed, and in which pedagogical perspective

    these subjects have been presented in the contents of textbooks. In the case of the

    Geography subject, the present study had the objective to rescue the importance of

    black and Afro-Brazilian culture, through clippings taken from the school books

    of the sixth grade, based on the categories of place, space, landscape, region and

    population to know from what paradigms these approaches are built, and as they

    coadunate with the multiculturalism emancipatory. To answer this question, we

    understand that the teaching of geography is divided in 2 main paradigms: the

    traditional geography and the critical geography. In the former, the black people

    would be accepted from the paradigm of the biological determinism, seen as the

    wild, the uncivilized and the inferior race which justified their slavery and the

    political and moral construction of the negative acknowledgment and stereotype

    generated by colonialism. The latter is based on the Marxist critical paradigm, in

    which the belief is in the motor of the history generated by the capitalist mode of

    production, and in the organization, and in the transformation of the social

    space, which would lead to social inequality and class struggle, instead of

    inequality by race. In this sense, the results pointed out that the speeches about the

    importance of black culture and the ransom of African-Brazilian culture in the

    school books, the concepts should be decolonized and deconstructed, which

    would require, as a guiding mostly the recognition of the difference in the

    difference in the construction of the praxis of teaching geography dialogically and

    dialectically and, accordingly, far would be necessary to evoke the

    multiculturalism emancipatory not as an end, as a category closed watertight, but

    on the contrary as a contested field, open for educational practices of social

    subjects.

    Kaywords: black; Afro-Brazilian culture; school books; multiculturalism

    emancipatory; recognition; geography teach

  • 9

    RSUM

    MOTA, Edimilson Antonio. Le noir et la culture afro-brsilienne : un

    bricolage multiculturel de lenseignement de Gographie. Rio de

    Janeiro,2013. Thse ( Doctorat en ducation) - Faculdade de Educao,

    Universidade Federal do Rio de Janeiro.2013.

    partir de lhomologation de la loi 10639, en janvier 2003, lenseignement de lhistoire de lAfrique et de la culture afro-brsilienne est devenu obligatoire en toute lducation fondamentale ce qui a conduit le camp du curriculum repenser son sens de lapproche des disciplines et savoir en quelle perspective ces thmatiques sont prsentes pdagogiquement par les

    contenus dans les livres didactiques. Par rapport lenseignement de la discipline Gographie,cette tude a le but de racheter limportance du noir et de la culture afro-brsilienne, partir des morceaux de discours extraits

    des livres didactiques de Gographie de la septime anne, fonds sur des

    catgories de lieu, espace, paysage, rgion et population, pour savoir partir

    de quels paradigmes ces approches sont construites et en quelle mesure

    elles se conforment au multiculturalisme mancipateur. Pour rpondre

    cette question, nous comprenons que lenseignement de la Gographie est divis en deux paradigmes principaux : celui-ci de la Gographie

    traditionnelle et celui-l de la Gographie critique. Dans le premier le noir

    serait reconnu partir du paradigme du dterminisme biologique, vu comme

    le sauvage, le non civilis et de race infrieure, ce qui a justifi son

    esclavage et la construction politique et morale de la reconnaissance

    ngative et strotipe son sujet par le colonialisme. Dans le deuxime

    on est bas sur le paradigme critique marxiste , o la croyance est dans le

    moteur de lhistoire engendre par le mode de production capitaliste et dans lorganisation et la transformation de lespace social, ce qui conduirait la lutte de classes, en dommage de lingalit par la race. En ce sens les rsultats ont indiqu que dans les discours au sujet de limportance du noir et du rachat de la culture afro-brsilienne, en livres didactiques, ses concepts

    devraient tre dcoloniss et dconstruits, ce qui exigerait pour cela, comme

    fil conducteur, la reconnaissance de la diffrence dans la diffrence, dans la

    construction de la praxis de lenseignement de la Gographie, de forme dialogique et dialectique. et dans ce sens, il faudrait voquer le

    multiculturalisme mancipateur, non comme une fin, comme une catgorie

    ferme et fige, mais au contraire, comme un camp contest, ouvert aux

    pratiques ducatives des sujets sociaux.

    Mots-cls : noir; culture afro-brsilienne; livre didactique; multiculturalisme

    mancipateur; reconnaissance; enseignement de la gographie.

  • 10

    SIGLRIO

    CAPES - Coordenao de Aperfeioamento Pessoal de Nvel Superior.

    CNE/CP - Conselho Nacional de Educao/Conselho Pleno.

    DCN - Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-

    Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

    DEM - Democratas.

    DIT - Diviso Internacional do Trabalho.

    ENEM Exame Nacional do Ensino Mdio.

    FF- Fundao Ford

    FFCL/USP - Faculdade de Filosofia Cincias e Letras da Universidade de So

    Paulo.

    FNB - Frente Negra Brasileira.

    IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica.

    IDEB - ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica.

    IHGB - Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro.

    INL- Instituto Nacional do Livro.

    LDB - Lei de Diretrizes e Bases

    MEC - Ministrio da Educao e Cultura.

    MES - Ministrio da Educao e Sade.

    MN - Movimento Negro.

    MNB - Movimento Negro Brasileiro

    MNU - Movimento Negro Unificado.

    PCN - Parmetros Curriculares Nacionais

    PNE - Plano Nacional de Educao.

    PNLD - Programa Nacional do Livro Didtico.

    STF - Supremo Tribunal Federal.

    TEM- Teatro Experimental Negro.

    UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

  • 11

    IMAGENS

    IMAGEM 1. Moinho de acar..........................................................................118

    IMAGEM 2. Engenho de acar em Itamarac .................................................120

    IMAGEM 3. Manifestaes Populares .............................................................131

    IMAGEM 4. Oferendas Iemanj .....................................................................134

    IMAGEM 5. Capoeira: luta e dana ..................................................................135

    IMAGEM 6. Jovens no Ibirapuera .....................................................................138

    MAPAS

    MAPA 1. Analfabetismo no Brasil segundo a cor ou raa .................................149

  • 12

    SUMRIO

    CAPTULO 1: RECONHECIMENTO E ENSINO DE GEOGRAFIA ........13

    1.1 Justificativa ..................................................................................................16

    1.2 Objetivos ......................................................................................................18

    1.3 Referencial metodolgico ............................................................................25

    1.4 Estrutura do trabalho ....................................................................................29

    CAPTULO 2: GEOGRAFIA E MULTICULTURALISMO ........................30

    2.1 A Geografia Tradicional: conceitos e tendncias.........................................31

    2.1.1 O negro e a raa: Delgado de Carvalho e Aroldo de Azevedo ......... 42

    2.2 A Geografia Crtica e a transformao social pelo ensino.......................... 48

    2.2.1 O livro didtico e os paradigmas dominantes ....................................59

    2.3 O vir-a-ser diferena e igualdade ................................................................70

    2.3.1 Pensando o multiculturalismo no currculo .......................................80

    CAPTULO 3: O NEGRO, DA CASA-GRANDE CIDADE GRANDE

    ...............................................................................................................................90

    3.1 A cultura afro-brasileira e Gilberto Freyre ...................................................91

    3.2 O negro na sociedade de classes por Florestan Fernandes .........................101

    3.3 A cultura e a luta por reconhecimento........................................................ 107

    CAPTULO 4: OS DISCURSOS DOS LIVROS DIDTICOS DE

    GEOGRAFIA ...................................................................................................111

    4.1 O reconhecimento do escravo: da frica casa-grande................................112

    4.2 A cultura afro-brasileira: da cozinha ao hip hop............................................126

    4.3 Raa e renda, negros e brancos em espaos desiguais ..................................141

    4.4 A Descolonialidade do ensino de Geografia.................................................156

    5 CONCLUSO ..............................................................................................165

    6 REFERNCIAS ............................................................................................174

    7 APNDICE.............................................................................................187-222

  • 13

    1. RECONHECIMENTO E ENSINO DE GEOGRAFIA

    Todo homem quer uma boa vida, e isto desejo, porque, como gente,

    desejar faz parte da condio humana. O que sabemos que o desejo a uma boa

    vida a busca exterior do Eu no Outro; no Outro que somos reconhecidos. Por

    isso, h muitos tipos de reconhecimentos. O homem em sociedade luta por

    reconhecimento afetivo, poltico, cultural, social, porque, na verdade, a luta por

    reconhecimento histrica, dialtica e dialgica, e, em cada poca, os motivos

    pelos quais se luta so diferentes e mutveis como o desejo daqueles que lutam.

    No foi diferente, por exemplo, com o homem europeu. Desejoso em romper com

    a fora das guas e os domnios dos mares e oceanos, aprendeu a alcanar terras e

    a fazer continentes. Tudo pela conquista. Da o seu encontro com outros povos e

    raas e a luta travada pelo conquistador sobre o conquistado, o que passou a ser o

    sentido da colonizao. Desde ento, no caso do africano, este passou a ser

    reconhecido pelo europeu como povos de raa inferior, sem cultura, cujo modo de

    vida social seria selvagem e num grau de desenvolvimento bem prximo ao da

    natureza, ou seja, quase igual a um animal das selvas e savanas daquele

    continente.

    No mesmo sentido, o processo de colonizao americano, a partir do

    sculo XVI, teve como base o tipo de reconhecimento feito pelo europeu sobre o

    continente conquistado, e, ao mesmo tempo, para o seu desenvolvimento

    econmico, reconheceu a escravido de africanos e indgenas legal e moral. As

    instituies da poca defendiam a sua desconstruo com base na maldio de

    Cam, j que este no tinha alma, ou ento pelo direito natural de que, como

    selvagem, j havia nascido desigual e, portanto, no reconhecido como gente.

    Como tal, o trabalho compulsrio seria o meio da sua redeno e da sua

    socializao para ento se tornar parte do mundo dos justos: branco, cristo e

    europeu. Neste sentido, podemos afirmar que, entre o europeu e o africano,

    durante a escravido, a diferena foi a base da luta por reconhecimento. Isto

    porque o europeu, a partir da sua suposta superioridade de raa e de cultura,

    subjugou, classificou e hierarquizou o africano e o colocou na escala mais baixa

  • 14

    da estratificao social, quando o fez escravo nas colnias conquistadas. Desde

    ento, a luta entre europeu e africano ganhou o sentido da luta por

    reconhecimento, de vida ou morte, entre o senhor e o escravo, j que, para o

    senhor existir, o africano seria o escravo. Foi com base na narrativa da escravido,

    especificamente no caso do Brasil, que este presente trabalho buscou

    problematizar a luta por reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira no

    ensino de Geografia, considerando que, desde a colonizao, havia no imaginrio

    social a vontade e a potncia do multiculturalismo com base na diferena, o que

    fez com que a escravido permanecesse por muitos sculos. Se, atualmente, h o

    desejo de resgatar o negro e a cultura afro-brasileira numa dimenso positiva do

    reconhecimento, necessrio conhecer o passado colonial construdo com base no

    reconhecimento negativo e de esteretipo que o europeu construiu sobre o

    africano. Para isso, entendemos ser necessrio problematizar a diferena e a

    igualdade como marcadores filosficos, porque foi com base nisso que se

    justificaram sculos de dominao de relao social e de reconhecimento entre

    senhor e escravo, como ser abordado a seguir.

    Abordar a luta por reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira no

    ensino de Geografia, requer primeiramente olhar para trs e fazer uma incurso

    histrica a respeito da luta entre africanos e europeus a partir do sculo XVI,

    quando todo o processo de reconhecimento entre eles teve o seu incio. O ensino

    de Geografia, como uma disciplina do currculo escolar, foi uma inveno social

    do final do sculo XIX, mas a escravido de africanos no. Hoje, enquanto ensino

    o currculo do programa do stimo ano, o contedo sobre a formao territorial

    brasileira tem como abordagem a presena e a contribuio dos povos africanos

    que para aqui foram trazidos na condio de escravos, para a realizao de

    trabalho compulsrio na economia agrria.

    O que temos, desde ento, um passado, uma narrativa construda do

    ponto de vista do europeu e reproduzida pela histria oficial. O que buscamos

    agora revisitar tais narrativas e desconstruir pontos de vistas e esteretipos

    principalmente no contedo dos livros didticos de Geografia do stimo ano. Para

    isso, foram elaboradas as seguintes questes que tm como fim desencadear a

    discusso geral desse presente estudo, em que se buscou dissertar a luta por

    reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira, no ensino de Geografia:

  • 15

    1. Considerando o currculo de Geografia um campo contestado, em que

    medida os discursos sobre o negro e a cultura afro-brasileira tm sidos

    tensionados pelo multiculturalismo emancipatrio como reconhecimento social?

    2. Com base nos paradigmas da geografia tradicional e da geografia

    crtica, em que perspectiva o negro foi reconhecido no que se refere ao conceito

    de raa?

    3. Qual a importncia e a contribuio de Gilberto Freyre em Casa-grande

    e senzala, e de Florestan Fernandes em A integrao do negro na sociedade de

    classes, no reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira para o ensino de

    Geografia do stimo ano?

    4. Em que perspectiva do reconhecimento social os marcadores raa e

    renda so apresentados nos discursos dos livros didticos do stimo ano,

    considerando a importncia do resgate do negro e da cultura afro-brasileira, com

    vistas para o multiculturalismo emancipatrio como uma nova abordagem no

    ensino de Geografia?

    5. Em que medida a evocao do multiculturalismo emancipatrio pode

    tensionar a descolonialidade do ensino de Geografia?

    Para resgatar a importncia do negro e da cultura afro-brasileira no ensino

    de Geografia, especificamente no contedo do stimo ano, a ideia voltar, a partir

    do sculo XVI ao marco inicial da formao do povo brasileiro e problematizar a

    luta por reconhecimento do negro antes e aps a Abolio, em que a diferena foi

    o marcador entre o senhor e o escravo durante o regime escravagista. Antes: a

    luta por reconhecimento entre o senhor e o escravo - o primeiro, para existir,

    usava de todo o mecanismo de controle moral para construir a falta de conscincia

    social no segundo, de modo que refletisse sobre ele somente a subservincia do

    escravismo. Depois: ps-abolio - diante da lei, o negro tornava-se livre e, agora,

    o seu desafio seria fazer a sua integrao na sociedade de classes. Como resgatar a

    sua cultura, a sua autoestima, o seu reconhecimento social como um cidado?

    Enfim, a luta por reconhecimento na sociedade livre continuou intensa.

    No sculo XX, o pas j no era mais o mesmo do sculo anterior. A

    industrializao e a urbanizao das capitais, como So Paulo e Rio de Janeiro,

    impunham um novo ritmo; ao mesmo tempo, tornava-se desafio dirio para o

    imigrante disputar um lugar na ordem competitiva da emergente sociedade

    capitalista. Para o negro, nada foi fcil, visto que, agora, ele disputava tal lugar

  • 16

    com esse branco imigrante que trazia consigo, na sua maioria, um grau de

    instruo diferente do dele, que havia sado do campo, sem reparao social e

    despreparado. Grande parte passou ento a subsistir das atividades do mercado

    informal. Diante desse quadro, para alm do rano do tratamento desigual que o

    negro trazia da escravido, agora a desigualdade estaria tambm na busca da renda

    per capita, visto que, quando comparado com o branco, ele se encontrava numa

    posio social inferior.

    Para refletir sobre o contexto social antes e aps a Abolio, com base nos

    discursos constitudos nos livros didticos do stimo ano, escolhemos fazer uma

    bricolagem multicultural, ou seja, uma montagem tcnica de cunho qualitativo

    que visa emancipao dos sujeitos sociais, e, para isso, como diz Kincheloe

    (2007) improvisamos, recortamos, ajuntamos narrativas, crenas e lutas acerca

    do negro e da cultura afro-brasileira dos discursos dos livros didticos de

    Geografia do stimo ano. O desafio pensar um ensino de Geografia e a sua

    relevncia conforme os argumentos a seguir.

    1.1 Justificativa

    Este trabalho fruto das minhas inquietaes e reflexes, quando eu, ainda

    no exerccio de Professor de Geografia da educao bsica, uma dcada atrs, vi

    tornar-se obrigatrio o ensino da histria da frica e da cultura afro-brasileira,

    com a homologao da Lei 10.639/03 para todo o currculo e disciplinas. Na

    ocasio, passei a observar que, especificamente para o ensino de Geografia, no

    havia uma orientao curricular oficial e, muito menos, metodologias que

    atendessem as demandas evocadas pela legislao para o professor de Geografia

    abordar a questo tnica racial como preconiza a lei. Movido por essa

    inquietao, Mota (2010), no mestrado, com base num estudo de caso de uma

    escola estadual do Rio de Janeiro, foi investigado o cotidiano de professores da

    disciplina de Histria para saber em que medida estaria sendo implementado, na

    prtica docente, um ensino que fosse de acordo com as exigncias das Diretrizes

    Curriculares da Educao das Relaes Etnicorraciais do Ensino da Histria da

    frica e da Cultura Afro-Brasileira. Os resultados apontaram que so muitos os

  • 17

    desafios dos professores, e que ainda faltam-lhes estudos especializados e a

    formao continuada com a abordagem voltada para as exigncias da lei.

    No doutorado, a inquietao persistiu, porm, agora, a ideia era saber

    como os discursos de raa e de cultura afro-brasileira so refletidos nos livros

    didticos de Geografia e, ao mesmo tempo, saber como a questo racial est sendo

    refletida e investigada no campo da pesquisa em educao no Brasil. Para isso, em

    2010 fizemos uma busca no banco de dados da Coordenao de Aperfeioamento

    Pessoal de Nvel Superior CAPES, dos ltimos dez anos, com as seguintes

    palavras: multiculturalismo e geografia; racismo e livro didtico; lei 10639 e

    ensino de geografia; geografia e racismo, e foram selecionados 20 resumos

    pertinentes questo racial no ensino de Geografia. Desse total, apenas um

    resumo de Simo (2005) tinha como abordagem o preconceito e o racismo no

    ensino de Geografia; nos demais, no se mencionava a questo racial com base

    nas questes propostas pela lei 10.639/03 e tampouco os textos interfaciavam com

    o multiculturalismo. Vimos, ento, que, no ensino das relaes etnicorraciais com

    vistas para a educao bsica, havia uma lacuna a respeito de orientaes

    metodolgicas para o campo das prticas pedaggicas, como tambm faltavam

    estudos que tratassem da cultura afro-brasileira no ensino de Geografia.

    Neste sentido, o presente estudo justifica-se ao ter como fim avanar sobre

    a questo etnicorracial no campo do currculo de Geografia, a respeito do negro e

    da cultura afro-brasileira, com base nos discursos constitudos nos livros didticos

    de Geografia e, ao mesmo tempo, evocar a discusso entre ensino de Geografia e

    multiculturalismo emancipatrio, buscando, assim, como abordagem, a luta por

    reconhecimento de raa e de cultura, com base na diferena da diferena dos

    sujeitos sociais e com base no conceito de descolonialidade do ensino de

    Geografia. Acredita-se que pensar o resgate do negro e da cultura afro-brasileira

    no seria negar os paradigmas das cincias sociais, polticas e econmicas

    eurocntricas, contudo, preciso desconstruir, rever e recontar narrativas at ento

    construdas com base num discurso afirmativo do Outro com esteretipos e

    racismo.

    Para tanto, foram propostos os seguintes objetivos:

  • 18

    1.2 Objetivos

    Geral:

    Resgatar a importncia do negro e da cultura afro-brasileiro no ensino de

    Geografia, com vistas para o multiculturalismo emancipatrio na

    construo da cidadania plena e da democracia racial.

    Especficos:

    Fazer o levantamento dos discursos sobre o negro e da cultura afro-

    brasileira, nos livros didticos de Geografia do stimo ano, a partir das

    categorias: lugar, espao, territrio, paisagem, regio e populao;

    Selecionar e fazer a leitura de imagens que retratem o negro e a cultura

    afro-brasileira, nos livros didticos de Geografia do stimo ano, e

    interpretar luz do reconhecimento social com que as narrativas textuais

    foram recortadas;

    Resgatar o pensamento social brasileiro de Freyre (1933)1 e de Fernandes

    (1964)2 com base nos marcadores de raa, cultura e classe, para refletir

    sobre o ensino de Geografia com vistas para o multiculturalismo

    emancipatrio;

    Discutir a situao social do negro e da cultura afro-brasileira a partir dos

    marcadores de raa e de renda luz do pensamento social brasileiro,

    considerando o multiculturalismo como meio, como uma forma de

    reconhecimento social, na reflexo dos paradigmas do ensino de

    Geografia;

    Propor a descolonialidade do ensino de Geografia no resgate do negro e da

    cultura afro-brasileira, no contedo do stimo ano, com base no

    multiculturalismo emancipatrio.

    Por que importante identificar, selecionar e refletir para ento propor o

    resgate do negro e da cultura afro-brasileira no ensino de Geografia? Na verdade,

    o contedo do ensino de Geografia sobre o negro e a cultura afro-brasileira faz

    1 Ano de lanamento da obra.

    2 Idem.

  • 19

    parte do currculo oficial, todavia, o que desde ento vem sendo mudado a sua

    abordagem epistmica e metodolgica de como ensinar. A ideia , com base no

    multiculturalismo emancipatrio, desconstruir o reducionismo histrico e

    econmico das narrativas mestras em que o negro reproduzido como uma

    coisa da estrutura social do escravismo. Essa viso no suficiente para gerar o

    autorrespeito, a autoconfiana e a autoestima no aluno hoje; do mesmo jeito, nas

    narrativas sobre o Continente Africano os povos so vistos como exticos,

    selvagens, e estigmatizados pela fome, pela pobreza, e pela AIDS divulgada pela

    indstria cultural do ocidente sob uma esttica perversa. Atualmente, no campo do

    currculo de Geografia, essas reprodues tm sido tensionadas no sentido de

    construir um reconhecimento positivo do negro e da cultura afro-brasileira sem

    distoro e preconceito. Mas, a luta por esse reconhecimento no campo do

    currculo no tem ocorrido de forma gratuita e esvaziada de tenso poltica. Na

    verdade, ela fruto dos primeiros movimentos sociais negros, como a Frente

    Negra Brasileira - FNB fundada nos anos 30, que se opunha opresso que

    pesava sobre o negro. Desde ento, setores e instituies tm sido tensionados

    pela sua integrao na sociedade de classes.

    Hoje, a lei 10.639/03 representa uma resposta s reivindicaes sociais

    historicamente iniciadas nas primeiras dcadas do sculo XX, construdas pelos

    movimentos sociais negros na luta por reconhecimento social. Contudo, verdade

    que, para alcanar o entendimento de criar uma lei especfica para o campo da

    educao, primeiro, na Conferncia de Durban (2001), oficialmente o Brasil se

    assumiu um pas racista. Na ocasio, a delegao brasileira contou com muitos

    brasileiros engajados em lutas sociais e abertos aos debates que propusessem

    novos caminhos que levassem reverso do quadro de desigualdade racial vivido,

    at ento por negros e brancos. Para mitigar a diviso entre negros e brancos,

    desde ento, o governo passou a criar polticas afirmativas e programas

    educacionais estratgicos proativos no combate a esteretipos e a preconceitos

    raciais e culturais contra o negro.

    O desafio do momento tem exigido um ensino que seja combativo ao

    racismo e que, ao mesmo tempo, proponha o reconhecimento social do negro e da

    cultura afro-brasileira no currculo de Geografia. Acreditamos existir um longo

  • 20

    caminho a percorrer e, ao mesmo tempo, de se construrem teorias e propostas

    pedaggicas voltadas para o reconhecimento social do negro e da cultura afro-

    brasileira. Estamos certos ser isto importante para a educao bsica e para a

    afirmao da pluralidade cultural como aponta o referencial terico.

    Propor o resgate do negro e da cultura afro-brasileira no ensino de

    Geografia representa um desafio para este pesquisador tendo em vista que esse

    um estudo orientado na pesquisa qualitativa em educao. Com base em Bardin

    (1977, p. 34), primeiramente fizemos a anlise de contedo das narrativas oficiais

    dos livros didticos de Geografia do stimo ano, o que exigiu selecionar os

    discursos de acordo com as categorias bsicas do ensino de Geografia: lugar,

    espao, territrio, paisagem, regio e populao. Aps, no segundo momento, o

    nosso desafio aumentou j que escolhemos a tcnica da bricolagem como

    pesquisa qualitativa, o que demandou assumir o ponto de vista de um pesquisador

    bricoleur com base em Dezin e Linconl (2006) e Kincheloe (2007). Para alcanar

    esse fim, buscamos fazer sobreposies, montagens, oposio, comparao e

    snteses de diferentes paradigmas a respeito do que hoje reconhecido como

    cultura afro-brasileira; isso porque, no passado, na viso eurocntrica, a

    cosmologia africana no era considerada cultura, e, para o campo das Cincias

    Naturais, os africanos seriam da raa inferior. Ento, neste sentido, para recontar

    sobre a luta do negro no resgate da sua cultura, seria insuficiente toda essa

    montagem apenas por uma perspectiva da cincia.

    Segundo Khun (2011, p. 29), o ato de fazer cincia normal significa a

    pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizaes cientficas passadas

    sendo assim, entendemos que, para resgatar a importncia do negro e da cultura

    afro-brasileira no ensino de Geografia com o rigor da narrativa, no mnimo

    seramos obrigados a retonar ao sculo XVI, quando se iniciou a sua participao

    na formao do povo brasileiro, e ver em que perspectivas cientficas e filosficas

    ele era reconhecido. Primeiramente preciso dizer que, no sculo XVI, escola

    pblica sob o controle do Estado, estava ainda longe de existir e muito menos a

    disciplina de Geografia. Entretanto, hoje, ao abordarmos esta questo no campo

    da disciplina, no podemos nos esquecer de que o que fizemos foi uma

    montagem, uma bricolagem sobre o passado, no sentido de organizar as narrativas

  • 21

    luz dos paradigmas com os quais acreditamos responder as questes do nosso

    tempo. Ainda nessa mesma direo, Khun (2011) afirma que o ato de fazer cincia

    no algo isolado, ou seja, no se cria nada sem uma finalidade social, ao

    contrrio, toda cincia estaria integrada a uma unidade histrica e

    pedagogicamente anterior, onde so apresentados os seus fins (Idem, 2011, p.

    71). A partir disso, para resgatar a importncia do negro e da cultura afro-

    brasileira, o presente trabalho foi construdo considerando o paradigma da

    geografia tradicional que tinha como base as cincias naturais e, como tal, a sua

    crena no determinismo biolgico, em que o meio preponderava sobre o homem,

    ou seja, a natureza seria determinante sobre o meio social. Estaria o homem

    vivendo o processo da histria natural e, de acordo com o grau de evoluo,

    seriam os povos selecionados por raa, que, numa escala de mbito geral, estariam

    sujeitos classificao social hierrquica. Na verdade, at as primeiras dcadas do

    sculo XX, foi esta mentalidade de base naturalista biolgico que dominou a

    cincia normal, com um consenso. Esta viso geogrfica a respeito do meio e da

    raa, para La Blache (1921), ainda preponderante, como ele prprio afirma:

    As origens das principais diversidades de raas escapam-nos;

    perdem-se num passado bem longnquo. Mas, e apesar da

    reserva que a imperfeio das observaes nos impe, muitos

    fatos advertem-nos de que a matria humana conserva a sua

    plasticidade e que, incessantemente modelada pelas influncias

    do meio, capaz de prestar-se a combinaes e formas novas.

    [...] Os povos adaptam-se, ou, para melhor dizer, domam-se aos

    seus habitats sucessivos. Sobre essas misturas que formam trao

    de unio entre raas distantes e diversas, a influncia do meio

    reserva a ltima palavra. (LA BLACHE, 1921, p. 372).

    Nota-se, poca, como conceito, que o meio preponderava sobre o social.

    Apesar disso, o autor avanou na compreenso sobre a potencialidade humana ao

    fazer a densa descrio dos lugares habitados e modelados pelo homem, o que ele

    conceituou como modo de vida. Em sntese, para ele, estaria o homem vivendo o

    modo de vida de acordo com a sua raa e o seu grau de apropriao e de

    transformao da natureza em materialidade (cultura),3 que variava numa escala

    de desenvolvimento que ia do homem civilizado ao homem selvagem.

    Nesse mesmo sentido, Brunhes (1956) recorreu mesma escala de

    estratificao para explicar o potencial de ocupao destrutiva do homem

    3 Acrscimo meu.

  • 22

    europeu, considerado o civilizado. Segundo o autor, esse possua maior domnio

    sobre as tcnicas, mas por outro lado, seria infinitamente maior a sua capacidade

    de degradao das florestas, quando comparado ao homem selvagem. O mesmo

    afirma:

    Certos povos selvagens praticam a devastao incendiando

    floresta e cultivando o terreno assim conquistado, at que o solo

    fique esgotado. Nessas regies, porm, h superabundncia de

    terra e esse processo no traz como consequncia a penria dos

    meios de subsistncia; acarreta, apenas, o nomadismo. A

    queimada da grande floresta e, sobretudo, da grande floresta

    mida , realmente, o nico meio de instalao para as

    existncias que vivem mais ou menos desses tipos de cultura

    (BRUNHES, 1956, p. 292).

    Por possuir um baixo grau de desenvolvimento da cultura do manejo

    agrcola, seria selvagem o homem cuja capacidade de destruio seria menos

    impactante do que a capacidade do homem europeu?

    A geografia tradicional um ponto de vista construdo com base na

    cincia moderna, eurocntrica, cujo princpio se assenta na inveno do homem

    universal civilizado do sculo XVIII, de modo que, tudo que no fosse europeu,

    seria o contrrio disso. Durante muito tempo esse foi o paradigma dominante no

    ensino de Geografia: a descrio do Outro visto a partir das narrativas mestras

    eurocntricas, que reproduziam o Continente Africano com um lugar de povos

    escravizados e de raa inferior, sem cultura, selvagem e extico.

    Essa foi a ideia reproduzida nos contedos e currculos do ensino de

    Geografia. Todavia, no Brasil, na dcada de 80 do sculo XX, o paradigma da

    geografia tradicional foi abalado com a emergncia da geografia crtica, que

    tinha como base e inspirao as ideias da Geografia Radical de cunho marxista.

    Um grupo de autores brasileiros comeou a pensar o ensino de Geografia com o

    poder de explicao do espao geogrfico a partir das diferenas sociais

    produzidas pela desigualdade oriunda do sistema econmico capitalista. Seria a

    desigualdade, consequncia do modo de produo, o que levaria diviso social

    do tipo interclassistas, pobre e rico, m distribuio de renda e etc. Como pontua

    Vesentini (1991, p. 13):

    O confronto geografia tradicional versus geografia crtica,

    assim, foi aos poucos cedendo lugar a uma diferenciao interna

    geografia renovada ou crtica que mostra ter mltiplas vias.

    [...] Enquanto, por um lado, ainda existe o professor

    tradicionalista que ensina nomes de rios ou montanhas, por

    outro lado h o fundamentalista, que substitui esse contedo

    pela transmisso dos conceitos de modo de produo ou

  • 23

    formao scio-espacial. Ao mesmo tempo, surgem aqueles que buscam no somente substituir um contedo por outro, mas

    principalmente uma relao pedaggica por outra (tornando o

    aluno sujeito do conhecimento e construtor de conceitos, ao

    invs de receb-los prontos; oferecendo material para a crtica

    do capitalismo e tambm do socialismo real e do marxismo-leninismo; procurando ajudar na formao de cidados ativos e

    no de militantes fanticos e intransigentes.

    Como o autor defende, o paradigma da geografia crtica estaria voltado

    para explicar o espao geogrfico a partir da desigualdade produzida pelo sistema

    capitalista, e, ao mesmo tempo, desenvolvendo uma relao de ensino e

    aprendizagem em que o aluno seria colocado na condio de sujeito, para que o

    mesmo alcanasse a sua cidadania. Desde ento, o que tem sido observado que o

    currculo de Geografia apresenta um misto de tendncias e de paradigmas, tanto

    da geografia tradicional quanto da geografia crtica. Entretanto, hoje, o desafio

    que est sendo posto pelas polticas educacionais de ao afirmativa, como a lei

    10.639/03 que obriga o resgate da cultura afro-brasileira, a exigncia de um

    ensino de Geografia, a respeito dessa temtica, com novas abordagens e diferente

    das perspectivas tradicionais presentes nos currculos e programas em vigor.

    Nesse trabalho, procuramos avanar a respeito da importncia do negro e

    do resgate da cultura afro-brasileira, com base na reflexo dos paradigmas crtico

    e ps-crtico no campo do currculo do ensino da disciplina Geografia e, nesse

    sentido, buscou-se, ao mesmo tempo, o dilogo com o multiculturalismo

    emancipatrio por entender que, epistemologicamente, esse conceito tem refletido

    sobre o marcador de raa para alm do entendimento das teorias raciais do sculo

    XIX, que se baseava no paradigma biolgico determinista do meio geogrfico

    cuja base ontolgica est na inveno do homem do Iluminismo: universal,

    civilizado, de raa superior, e que hierarquizava e classificava o Outro o no

    europeu, como selvagem, sem cultura e de raa inferior.

    Com base em Santos (2010), o multiculturalismo emancipatrio tensiona o

    conceito de raa na perspectiva dos estudos culturais. Para Hall (2008), seria

    esse um significado que opera sob-rasura, visto que, biologicamente, ele caiu,

    contudo, mesmo assim, continua sendo lido sob outras perspectivas. Nesse

    sentido, o multiculturalismo emancipatrio abre o debate para o reconhecimento

    do negro e da cultura afro-brasileira, com base no jogo das diferenas histrico-

    sociais sobre o qual foi construda a formao do povo brasileiro e em que o

  • 24

    africano foi marcado pela diferena de raa. Isso fez dele o inferior, o escravo,

    aquele que esteve a servio da estrutura branca, crist e europeia (GONALVES

    & SILVA, 2006).

    Ao mesmo tempo, pensar o multiculturalismo emancipatrio significa

    evocar o reconhecimento na diferena da diferena do Outro e nesse caso,

    necessrio retomar, no mnimo, as narrativas mestras do sculo XVI, quando

    ento foi pensado o projeto eurocntrico colonial, no qual em nome das certezas e

    a afirmao do homem europeu, o Outro o africano era reconhecido de forma

    negativa, como aquele que no tinha alma, sem direito de ter direito igualdade.

    Ao contrrio, sua diferena era um marcador da sua desigualdade. Com base

    nisso, hoje, para reconhecer, evocamos teoricamente as contribuies de Hegel

    (2011), Honneth (2007), Fraser (2007); Taylor (1994) e outros que pensaram a

    dialtica entre os sujeitos sociais na luta por reconhecimento, na perspectiva da

    Filosofia do Direito e das polticas sociais.

    Na educao, o reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira uma

    luta que se realiza no campo do currculo e, para Silva (1995), o currculo um

    campo contestado e de disputas, o que significa que culturas so includas e outras

    so excludas, ou, s vezes, culturas so reconhecidas de forma positiva e outras

    so reconhecidas com esteretipos e preconceitos. Nesse caso, muitos tm sido os

    autores do campo do currculo que tm apresentado tendncias do

    multiculturalismo e que abordam, portanto, conceitos e temas voltados para o

    reconhecimento do Outro. Para Canen (2002, p. 37), estaria o multiculturalismo,

    no campo da educao, voltado para a centralidade da cultura e da desconstruo

    dos discursos educacionais, no sentido de resgatar ou at mesmo de construir

    outros discursos alternativos de reconhecimento do Outro. Para a autora, o

    multiculturalismo teria vrias formas de discursos: 1. o multiculturalismo

    folclrico, que valoriza os mitos e festas populares que, geralmente, fazem parte

    do currculo oficial, como o Dia do ndio, ou o Dia 13 de maio, em que se

    comemora a Abolio; 2. o multiculturalismo crtico, que compreende a

    desigualdade social como consequncia do modo de produo do sistema

    capitalista, o que levaria a luta de classes; ou 3. o multiculturalismo ps-colonial,

    uma tendncia que evoca e desafia o binarismo, ou seja, em outras palavras,

    negro x branco, feminino x masculino e outros, que acabam por reproduzir, de

  • 25

    forma invertida, o binarismo eu x outro, normalidade x diferena, bons x maus

    (CANEN, 2006, p. 39).

    Na verdade, acreditamos que todo o referencial terico aqui citado, a

    escolha de cada autor, foi feita pela relevncia e a contribuio de cada um,

    porm, no corpo deste trabalho, ao propor o resgate do negro e da cultura afro-

    brasileira para o ensino de Geografia, procuramos no nos prender a tipos e a

    categorias, ou seja, cercar o campo da anlise na tentativa de manter a reflexo

    dentro do referencial, mas, ao contrrio disso, o que se pretendeu que o

    referencial fosse um meio para as possveis reflexes. O que se deseja construir

    a narrativa do resgate do negro e da cultura afro-brasileira no ensino de Geografia

    na perspectiva em que o multiculturalismo emancipatrio sirva de suporte, ou

    seja, de meio para que se faa a bricolagem de diversos tipos de teorias e de

    paradigmas diferentes que levem compreenso do que se quer, hoje, na prxis

    do currculo do ensino de Geografia e que esse seja um meio e no um fim no

    sentido de construir cidadania do aluno e de provocar a emancipao humana.

    Para que isso ocorra e seja possvel, nos referenciamos em procedimentos

    metodolgicos, que sero vistos no prximo item.

    1.5 Referencial metodolgico

    Para resgatar a importncia do negro e da cultura afro-brasileira no ensino de

    Geografia, foi necessrio reunir, a partir da perspectiva do multiculturalismo

    emancipatrio, pedaos de narrativas produzidas sobre diversos recortes com

    base em paradigmas, que envolveram diferentes reas e campos de investigao,

    para explicar os tipos de reconhecimentos, que foram feitos sobre o negro, desde

    o sculo XVI at o sculo XXI. E, para isso, utilizou-se a pesquisa qualitativa

    em educao por envolver um conjunto de prticas interpretativas para explicar

    os conceitos de ensino de Geografia, currculo, livro didtico, cultura, raa,

    renda, relacionados a tudo que se refere ao reconhecimento do negro. No

    primeiro momento o procedimento foi selecionar os 10 volumes do stimo ano

    das colees de livros didticos de Geografia aprovados pelo PNLD/MEC para

    os anos seguintes: 2011 a 2013. O contedo do stimo ano, que aborda a

  • 26

    geografia do Brasil, so os volumes: 1. ADAS, Melhem. Construo do espao

    geogrfico brasileiro - 7 ano. So Paulo: Editora Moderna, 2006; 2. SENE, E

    de & MOREIRA, J. C. Geografia Moreira e Sene: Geografia: ontem e hoje

    7 ano. So Paulo, Scipione, 2009; 3. VESSENTINI, J. W & VLACH, V.

    Geografia Crtica: O espao brasileiro 7. So Paulo: tica, 2009; 4.

    BOLIGIAN, L. [et al.]. Geografia espao e vivncia: a organizao do espao

    brasileiro, 7. So Paulo: Atual, 2009; 5. BIGOTTO, J. F. [et al.]. Geografia

    sociedade e cotidiano: espao brasileiro, 7 ano. So Paulo: Escala

    Educacional, 2009; 6. CARVALHO, M. B & PEREIRA, D. A. C. Geografia do

    mundo: Brasil, 7 ano. So Paulo: FTD, 2009; 7. SAMPAIO, F. dos S. [et al.].

    Para viver juntos: geografia, 7 ano. So Paulo: Edies SM, 2009; 8.

    MAGALHES, C. [et al]. Perspectiva. So Paulo: Editora do Brasil, 2009; 9.

    DANELLI, S, C de S. Projeto Ararib: Geografia. So Paulo: Editora

    Moderna, 2007; 10. PIRES, V & PIRES, B. B. Projeto Radix Geografia, 7

    ano. So Paulo: Scipione, 2009. Todos os discursos com referncia ao negro e

    cultura afro-brasileira foram recortados dos mesmos e distribudos nas

    categorias4 de lugar, espao, paisagem, regio, territrio e populao, com o

    objetivo de verificar em que medida esses conceitos eram refletidos pelo

    paradigma da geografia tradicional e pelo paradigma da geografia crtica e, ao

    mesmo tempo, interfaci-los com a discusso do campo do currculo na

    perspectiva do multiculturalismo emancipatrio.

    Reunido esse material, foi considerado esse o corpus da pesquisa. E, para

    fazer os recortes das narrativas sobre o resgate do negro e da cultura afro-

    brasileira foi utilizada a tcnica de anlise documental com base em Andr e

    Ldke (1986, p. 40), que consideram o livro didtico documento oficial. Para

    alcanar os devidos fins, que problematizassem os tipos de reconhecimentos do

    negro e da cultura afro-brasileira do sculo XVI aos paradigmas multiculturais

    foi necessrio dialogar com outras reas como a Sociologia, a Antropologia, a

    Filosofia e com a Teoria do Currculo, portanto essa abordagem exige conhecer

    as concepes de raa construdas no campo das Cincias Sociais e Polticas a

    respeito do Outro. Sobretudo, por ser essa uma reflexo no domnio do campo

    da Educao, na rea do ensino de Geografia, o que requereu um exerccio maior

    4 Conforme mostra do apndice nas pginas 187-222.

  • 27

    e o mximo de rigor possvel. Na verdade, isso exigiu a tarefa de improvisar,

    recortar, colar, e de confeccionar uma colcha multicultural, com diversos

    pedaos de teorias e paradigmas sobre o negro e a cultura afro-brasileira do

    sculo XVI lei 10639/03 no ensino de Geografia. Consciente dessa escolha,

    medida que houve um esforo de mostrar como a relao do pesquisador com

    o mundo a pesquisa passou a ser conduzida pela tcnica da bricolagem. Como

    diz Kincheloe (2007, p. 17), a bricolagem um processo cognitivo de alto

    nvel, que envolve construo e reconstruo, diagnstico contextual,

    negociao e readaptao, e, com base nesse sentido, a partir de cada pedao e

    recorte narrativo retirado dos livros didticos de Geografia, costurou-se cultura e

    raa, como conceitos centrais na compreenso da narrativa montada sobre o

    negro e a cultura afro-brasileira desde o sculo XVI. E, para refletir acerca de

    cada recorte discursivo, categorias e conceitos foram bricolados, dos quais o

    primeiro foi o reconhecimento social, que serviu de fio condutor na abordagem

    da luta entre senhor e escravo, cuja batalha era de vida e morte, iniciada no seu

    apresamento em frica at a sua re-construo-escrava na casa-grande no

    cotidiano do engenho de acar.

    A segunda parte da bricolagem foi feita dos diferentes pedaos de recortes

    textuais sobre o negro e a cultura afro-brasileira em diferentes abordagens como a

    culinria, a msica, a dana e a religio afro-brasileira, com base nos paradigmas

    do ensino de Geografia, e dos fundamentos da Teoria Social do Currculo. O

    reconhecimento social foi a categoria central e usada para colar e fixar as

    narrativas multiculturais.

    Na terceira parte da bricolagem, o estudo abordou o conceito renda e raa

    que servem para hierarquizar, gerar preconceitos e a desigualdade entre negros e

    brancos. Foram recortadas e coladas ainda, imagens relacionadas ao contexto

    porque, como diz Manguel (2001, p. 24): as narrativas existem no tempo, e as

    imagens, no espao e, nesse caso, elas tiveram a capacidade de auxiliar na

    reflexo e de provocar na conscincia do intrprete e do espectador, tipos de

    sentimentos sobre o reconhecimento do negro antes da Abolio, como mostra o

    captulo 4.

    Foram escolhidas seis imagens e um mapa, para compor a narrativa geral

    do captulo. Na seo 4.1, a imagem 01, leo sobre tela, Moinho de acar,

  • 28

    Rugendas (1835), In: (ADAS 2006, p. 37); a imagem 02, leo sobre tela,

    Engenho de acar em Itamarac, Post (1647), In: (Idem, 2006, p. 38).

    Na seo 4.2, foram interpretadas as imagens fotogrficas: 03.

    Manifestaes Populares In: (SAMPAIO, 2009, p. 40); 04. Oferendas

    Iemanj, (Idem, 2009, p. 15); 05. Capoeira: luta e dana, In: (PIRES e PIRES,

    2009, p. 68); e 06. Jovens no Ibirapuera In: (BIGOTO, 2009, p. 9).

    Na seo 4.3, foi exposto o mapa 01, Analfabetismo no Brasil segundo a

    cor ou raa, In: (DANELLI, 2007, p. 45). Para cada narrativa textual dos livros

    didticos de Geografia recortada, seu fundo foi colorido na cor cinza, para ajudar

    a compor a nuance da colcha bricoleur multicultural negro-afro-brasileira.

    comum aos autores de livros didticos utilizarem fontes imagticas de domnio

    pblico. Com isso, muitas imagens dos 10 livros analisados se repetem.

    Na ltima seo 4.4, se recomenda que, para desconstruir as narrativas

    mestras coloniais, seria necessrio descolonizar ideias e certezas, a partir dos

    paradigmas ps-coloniais do reconhecimento da diferena na diferena.

    Entendemos que, na pesquisa qualitativa, o seu campo de domnio no se prende

    a um conjunto de tcnicas, quando esse no capaz de refletir a natureza de um

    fenmeno social, como o da educao. nesse sentido, que a bricolagem

    permite, e com rigor, fazer os recortes, as colagens e as montagens dos

    diferentes discursos de tempos e espaos para um determinado fim do presente

    trabalho (DENZIN & LINCOLN, 2006), contar a histria:

    A interpretao na bricolagem no pode acontecer sem a

    compreenso de uma ontologia relacional e de uma

    hermenutica simblica. Por mais que essas noes possam soar

    radicais, interessantes observar que tais conceitos no so

    novos, j tendo sido expressos por poetas, griots e contadores de

    histria em diversas civilizaes (KINCHELOE, 2007, p. 111).

    Espera-se que, de acordo com a estrutura planejada nesse estudo, os

    objetivos propostos tenham sido cumpridos com clareza e coerncia, e que

    alcancem o leitor, a partir das generalizaes feitas pelo pesquisador, visto que,

    como pesquisa qualitativa, esse seria seu fim, (ESTEBAN, 2010, p. 139),

    conforme descrito na estrutura do trabalho.

  • 29

    1.6 Estrutura do trabalho

    A tese se encontra organizada na seguinte estrutura: o captulo 1 trata o

    reconhecimento no ensino de Geografia, com a abordagem para o resgate do

    negro e da cultura afro-brasileira, com base nos discursos dos livros didticos,

    na seguinte ordem: a apresentao do problema, a justificativa, os objetivos, o

    referencial terico, o referencial metodolgico, e a estrutura do trabalho. No

    captulo 2, trata da Geografia e do multiculturalismo com vistas para os

    conceitos e tendncia da geografia tradicional, com abordagem racial sobre o

    negro pela viso de La Blache (1921) e de Brunhes (1956) e, tambm, pelos

    autores brasileiros, Carvalho (1935; 1949; 1963; 1967) e Azevedo (1943;

    1958; 1959; 1968; 1976). Num segundo momento discute os paradigmas da

    geografia tradicional e da geografia crtica e as implicaes hoje do

    reconhecimento social na diferena e na igualdade racial. Na terceira

    subseo, visa sobre o resgate do negro e da cultura afro-brasileira pensada a

    partir do multiculturalismo no currculo. No captulo 3, discorre sobre a

    contribuio de Freyre (1998) com a obra Casa-grande e senzala e de

    Fernandes (1978; 2008) com a obra A integrao do negro na sociedade de

    classes, em que o primeiro resgata o negro e a cultura afro-brasileira pela

    cultura e o segundo retrata a tenso social vivida pelo negro na sociedade de

    classes. No captulo 4, expe a interpretao dos dados dos discursos dos

    livros didticos Geografia, com o recorte desde o sculo XVI, quando o

    africano foi trazido da frica para ser escravizado e foi reconhecido como

    coisa, at a Abolio, quando esse quadro foi mudado. Na segunda seo,

    discute a msica, a capoeira, a culinria e a lngua como resgate e

    reconhecimento da cultura afro-brasileira nos livros didticos de Geografia do

    stimo ano, que refletiu o reconhecimento social do negro do passado at o

    presente com a cultura hip hop. Na terceira seo, compara raa, renda e cor,

    entre negros e brancos, como marcadores de desigualdades sociais. Para

    finalizar, a ltima seo evoca a descolonialidade do ensino de Geografia para

    que possa efetivamente levar emancipao humana do sujeito social.

  • 30

    2. GEGOGRAFIA E MULTICULTURALISMO

    Para a geografia clssica tradicional sistematizada a partir do sculo

    XVII, como mtodo, o mais importante seria descrever as coisas do espao do que

    refletir as contradies sociais sobre elas (CLAVAL, 2001). Entretanto, no sculo

    XX, com as transformaes sociais trazidas pela industrializao e pela

    urbanizao, o paradigma da geografia tradicional com base na descrio das

    coisas e dos lugares entrou em crise. Como uma cincia social, o seu desafio

    passou a ser no somente descrever, mas explicar o espao e as suas contradies.

    Para Corra (2003), o espao um dos conceitos-chave da Geografia pelo qual o

    homem, atravs da cultura e do trabalho, dinamiza e significa os lugares na

    paisagem. Para Moreira (2010, p. 61), a Geografia tem a funo de desvendar

    mscaras sociais; por isso, seria ento sua funo revelar os porqus de, ainda

    hoje, negros e brancos no Brasil socialmente viverem em espaos to desiguais.

    Para refletir sobre isso e desvelar tais mscaras, na primeira seo desse

    captulo, atravs do paradigma da geografia clssica tradicional, buscou-se saber

    como que os gegrafos europeus interpretavam o homem africano no seu modo de

    vida. Sabe-se a Geografia se baseava no mtodo descritivo, cuja finalidade seria

    explicar as propriedades das unidades terrestres e tambm explicar a combinao

    dos fenmenos naturais porque, poca, como diz La Blache (1982, p. 47) a

    Geografia uma cincia dos lugares e no dos homens. O paradigma dominante

    era de uma geografia com base naturalista e, neste sentido, se ocupava com a

    descrio do espao em detrimento da reflexo social, com aquilo que seria

    subjetivo ao homem (CLAVAL, 2009).

    Dessa foram, o presente captulo trata dos conceitos e tendncias da

    geografia tradicional, em que o homem africano visto pelos gegrafos europeus

    como algum de raa inferior e no civilizado. No segundo momento do captulo,

    a geografia crtica busca explicar as contradies e os conflitos sociais, em

    seguida prosseguindo com a reflexo no mbito do ensino de Geografia com

    vistas para o livro didtico e a crise dos paradigmas. Num terceiro momento, o

    texto aborda a dialtica entre a diferena e a igualdade. E, para finalizar, reflete

    sobre o multiculturalismo na educao com base na Teoria do Currculo.

  • 31

    2.1 A Geografia Tradicional: conceitos e tendncias

    At h bem pouco tempo, os livros didticos de geografia distribudos pelo

    MEC s redes escolares eram orientados por currculos e programas cujas

    propostas pedaggicas valorizavam a reproduo de contedos, em que o professor

    era o reprodutor e o aluno o receptor. Ao segundo cabia o papel de decorar

    conceitos e temas propostos pelo primeiro, muitas vezes de pouco significado para

    a sua vida. A funo da escola seria a de preparar o aluno para a aprendizagem do

    contedo. Neste sentido, era papel do especialista fazer o controle do programa,

    que exigia do professor o planejamento do contedo, o seu plano de curso, com

    objetivos gerais e especficos do ensino, que deveriam ser distribudos de acordo

    com a carga horria do ano letivo (DOTTORI, 1963, p. 185).

    Na regncia, esperava-se do professor o domnio do contedo e a didtica

    para orientar diferentes tipos de aprendizagens. No contedo ensinado, o mtodo

    recorrente para fazer a transmisso era o mnemnico. A orientao era para

    memorizar nomes de rios, pases, capitais, e responder a questionrios, colorir

    mapas - tudo com o fim de induzir o aluno repetio do contedo ensinado, ou

    seja, promover uma educao bancria5.

    Durante muito tempo, esse modelo de educao inspirava certezas e abria

    caminhos sociedade. Atualmente, essa tendncia de ensino, que tinha como

    meio a repetio e a memorizao do contedo est em crise. Os objetivos

    vinham esvaziados de crticas o que tornava a aprendizagem, muitas vezes, com

    um fim em si mesma, distante da realidade do aluno, fazendo com que ele

    desenvolvesse uma viso estreita de mundo. Entretanto, acerca dessa concepo,

    Carvalho (1949, p.231) preconizava ao contrrio. No sculo passado, no Brasil,

    autores de livros didticos concebiam um discurso, em que se dizia fazer uma

    Geografia Moderna. Postulava a ideia de ser o homem, o elemento importante da

    paisagem, o primeiro, o agente causador e transformador da paisagem cultural,

    que dito com outras palavras, no que tange ao ensino da Geografia, significava ir

    de encontro aos princpios da educao bancria. O que o autor queria dizer que

    ele propunha, em seus livros didticos, um ensino de Geografia significativo e

    aplicado vida do aluno. Todavia, analisando seus discursos em outras edies de

    5 Um conceito de Paulo Freire, do livro Pedagogia do Oprimido. So Paulo: Paz e Terra, 1970.

  • 32

    seus livros, notamos que ele dialogava com o paradigma determinista (Homem e

    Natureza) pelo qual categorizava a populao numa concepo naturalista. Esse

    posicionamento terico foi mantido at final dos anos 60 (CARVALHO &

    CASTRO, 1967, p. 28).

    Enquanto isso, outras tendncias e abordagens emergiram no campo do

    currculo no ensino da disciplina de Geografia. Graas quebra do paradigma da

    geografia tradicional pela geografia crtica, novas perspectivas pedaggicas

    surgiram revelando outras vises sobre o ensino e a aprendizagem. Agora o

    momento era outro, e os desafios educacionais tambm eram outros, diferentes

    dos anteriores. Entretanto, analisando-se as contribuies dos paradigmas

    tradicional e crtico, notou-se um vazio deixado no currculo de geografia tocante

    s polticas de identidade racial que refletissem acerca da populao negra, pois

    esses paradigmas no foram capazes de traduzir de forma propositiva essa

    questo. Dessa forma, s depois de mais de um sculo da Abolio da escravatura,

    que custou caro sociedade e que deixou o racismo por herana, o Estado

    reconheceu ser o Brasil um pas racista, e passou a criar polticas nesse sentido.

    Desde ento, no sculo XXI, para reverter esse quadro, no mbito da educao foi

    criada a Lei 10.639/03, que teve como finalidade resgatar a cultura afro-brasileira

    e abrir possibilidades para repensar as diferenas tnicas e raciais, no sentido de

    promover a igualdade social.

    De acordo com isso, o presente captulo visa refletir acerca de temas e

    paradigmas da geografia tradicional e da geografia crtica, e estabelecer um

    possvel dilogo com as tendncias da geografia ps-crtica, que se caracteriza ao

    querer novas perspectivas que ultrapassam o discurso crtico propositivo

    transformador, ao oferecer uma viso menos monolgica da cincia geogrfica e

    mais bricoleur na construo das narrativas (KINCHELOE & BERRY, 2007;

    DENZIN & LINCOLN, 2006).

    A fim de acurar o presente discurso desse trabalho, importante esclarecer

    dois aspectos: o primeiro, o pblico alvo para o qual direcionamos os fins desta

    tese, o professor que atua na educao bsica, e tambm a todos aqueles que tm o

    interesse de compreender e de refletir sobre a educao das relaes etnicorraciais

    no mbito escolar; e, o segundo: refletir, a partir da bricolagem, outras

    epistemologias que apresentem aberturas para o dilogo com as polticas

  • 33

    educacionais, com vistas para o reconhecimento da diferena na diferena para

    pensar uma geografia de tendncia ps-crtica.

    Historicamente, desde o incio da ocupao portuguesa, a geografia, como

    cincia estava presente nos empreendimentos nuticos das Grandes Navegaes

    no mar e na terra. Reconhecer territrios, controlar fronteiras e organizar espaos

    eram os instrumentos desta cincia, os meios utilitrios usados pelo ento

    colonizador para dominar lugares. Nos relatos deixados pelos viajantes e cronistas

    da poca apaixonante a forma com que eles descreviam a beleza dos quadros

    naturais e, sobretudo, das paisagens brasileiras. Vista de outro ponto, outras vezes

    era possvel constatar raas e cores atravs das pinturas e de desenhos de artistas

    europeus que tanto traduziram o cotidiano patriarcal e escravocrata, ora na

    Colnia, ora no Imprio. Como se sabe, a histria do descobrimento um arranjo

    feito de narrativas sobre a ocupao europeia, que passou a ser contada pelo

    vencedor. E, nisto, a Geografia serviu para instrumentalizar o conquistador que

    soube estabelecer os seus domnios territoriais na organizao do espao.

    Mas, foi no sculo XIX, com a inaugurao do Instituto Histrico e

    Geogrfico Brasileiro IHGB, criado em 1838, um marco da investigao

    cientifica do pas, que o estudo da Geografia se sistematizou como uma cincia

    (MARY, 2010). Para Schwarcz (1993, p. 99), poca, o IHGB inaugurou a era

    dos homens de cincia aqueles que vo colligir, methodizar e guardar

    documentos. A esses cabia o papel de escrever a histria e de produzir os mitos

    fundacionais do Brasil tocante a sua diversidade e a sua grandeza natural. Para

    isto, a histria servia para fabricar heris e geografia para descrever os aspectos

    territoriais e naturais dessa fbrica de nao.

    Todavia, a pesquisa cientfica, de fato, s se consumou no limiar do sculo

    XX, a partir dos anos 30, com a fundao do Instituto Brasileiro de Geografia e

    Estatstica - IBGE, voltado para pesquisa quantitativa e que, at hoje, um rgo

    de referncia federal. Haja vista que, durante muito tempo, este instituto

    contribuiu sobremaneira para com o ensino de geografia. Por mais de trs

    dcadas, publicou a Revista Tipos e aspectos do Brasil, uma sntese das

    potencialidades naturais e culturais do pas, feita com as ilustraes em bico de

    pena por Percy Lau6 (BRASIL/IBGE/CNG, 1966); e tambm proporcionou o

    6 (1903-1972) desenhista contratado pelo IBGE. Seu trabalho, segundo Lustosa (2000, p. 3) vai

    alm disso. Ele insere-se num seleto grupo de artistas grficos que muito contriburam para o

  • 34

    curso de frias para professores, no ano de 63, na cidade do Rio de Janeiro e,

    um ano depois do treinamento, foram publicadas as smulas das aulas e

    disponibilizadas pelo IBGE (BRASIL,1964).

    Em So Paulo, nesta mesma dcada de criao do IBGE, foi fundada a

    Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo

    (FFCL/USP) e, doze anos depois, em 1946, criou-se o Departamento de

    Geografia, muito importante para o desenvolvimento da cincia geogrfica e para

    a formao de bacharis e para a formao de professores licenciados para o

    ensino da disciplina de Geografia (PONTUSCHKA, 2007). poca da fundao

    do Departamento de Geografia, parte dos professores que assumiu as cadeiras no

    curso veio da Frana, como Pierre Deffontaines, Pierre Monbeig, entre outros.

    Certamente, esta ligao entre o Brasil e a Frana contribuiu para que o

    pensamento geogrfico brasileiro fosse influenciado pelas tendncias da Escola

    Francesa, de Paul Vidal de La Blache (1845-1918), o seu maior expoente.

    Enquanto isto, na Frana, o ensino de geografia j havia se consolidado

    sob a gide da geografia tradicional cujos paradigmas refletiam muito do

    discurso nacionalista daquele pas, que difundia o projeto imperialista e

    civilizatrio com o domnio colonial na Amrica, frica, sia e na Oceania. Por

    isso, era urgente ao francs conhecer as suas potencialidades naturais e culturais,

    para ento civilizar o Outro7 e fazer o controle do seu territrio. Neste sentido,

    a geografia, antes de mais nada, serviu para afirmar a civilizao francesa, pela

    qual o Outro foi interpretado como o no civilizado, o no francs, o no branco.

    Tocante ao campo do ensino, as tendncias pedaggicas tinham como fim

    difundir a ideia de que era papel da disciplina de Geografia descrever o espao

    como algo real, ou seja, como ele parecia ser. Sendo assim, devia a disciplina

    levar a criana a desenvolver habilidades e competncias de como aprender a

    descrever a regio e a gostar do seu lugar como um francs. No era importante

    raciocinar e desenvolver um senso crtico no aluno sobre o espao descrito e

    inventariado na aprendizagem. O importante para o ensino era se ocupar em fazer

    uma geografia que despertasse o patriotismo e o esprito de pertena sua nao

    (BRABANT, 1994).

    desenvolvimento da tcnica do desenho e da gravura no nosso pas. Sua produo tornou-se uma sntese do Brasil, um banco de imagens dos quadros naturais e culturais. 7 Grifo meu. O outro tem o sentido de inferior; pelo discurso epistemolgico colonial ele

    diminudo.

  • 35

    De fato, a geografia escolar teve suas tendncias pedaggicas baseadas nos

    paradigmas da geografia tradicional e, como diz La Blache (1921), esta era uma

    cincia dos lugares. Na sua concepo, o papel do gegrafo era o de se ocupar

    com a descrio da paisagem e de como ela parecia ser com os seus recursos

    naturais, como o clima, o relevo, a vegetao, os mares e os oceanos e, a partir

    desses diferentes quadros, explicar como que o homem se adaptou ao meio. Para

    tanto, o autor desenvolveu uma metodologia de anlise de grau de civilizao,

    chamada de modo de vida8. Esta metodologia permitia, a partir da observao,

    avaliar o grau que variava do de selvagem ao de civilizado. O modo de vida na

    escala de aferio, inclua o critrio de hbitos, costumes e valores do primitivo ao

    mais complexo dos valores dos civilizados. O conjunto de tcnica e o seu domnio

    o que definia o grau de evoluo da raa ou de um povo. Quanto maior domnio

    das tcnicas, menor dependncia o homem tinha do meio.

    Para compreender uma corrente ou um pensamento, fundamental

    conhecer a epistemologia que lhe d o suporte terico. Da, nesta seo,

    buscarmos compreender os fundamentos da geografia tradicional e a sua

    contribuio para o ensino de Geografia no que tange questo racial do negro.

    Por isso, perguntamos: qual seria o objeto de estudo da geografia tradicional?

    Qual seria o sentido de homem, natureza, meio, raa e paisagem, de acordo com

    esse paradigma? Responder a estas questes certamente esclarece os paradigmas

    de uma poca, desde que haja o esforo alteridade, prtica de se colocar no

    lugar do Outro, para que no faamos uma anlise maniquesta sobre as suas

    tendncias.

    A geografia tradicional, nascida com a Cincia Moderna, teve origem no

    campo da Fsica e da Matemtica, e foi atravs dessas reas, dessa base

    epistemolgica, que ela se firmou como cincia natural e fsica. Com isso, o seu

    mtodo se desenvolveu com base no determinismo biolgico e geogrfico, em que

    o meio natural era determinante sobre o meio social, mas, segundo Claval (2001),

    s no sculo XX, com a emergncia do paradigma da Geografia Humana, esse

    entrou em crise. Com base no paradigma biolgico, a classificao da populao

    era determinada por raa pelo meio natural geogrfico, como o clima e o relevo,

    sendo que esses fatores seriam determinantes para a evoluo do homem. Este,

    8 Grifo meu. Modo de vida a capacidade de criar tcnicas para se adaptar ao meio natural e at

    transform-lo.

  • 36

    embora fosse o objeto de preocupao da geografia tradicional, era o produto do

    meio natural, estava suscetvel natureza. Para o pensamento geogrfico fsico,

    numa escala natural, o homem estava sujeito s foras determinantes do meio

    assim como os demais animais; contudo, o que o diferenciava estaria na sua

    habilidade e no seu esforo intelectual que o colocavam num ranking de evoluo

    que ia do marco um, do homem primitivo (o selvagem), ao mais alto grau (o

    civilizado). A diferena, portanto, entre o selvagem e o civilizado estaria no

    domnio da artificialidade que o segundo tinha sobre a natureza, enquanto, no

    primeiro, a natureza era determinante sobre ele. Isso foi possvel graas ao

    desenvolvimento de estudos etnogrficos que permitiam descrever os diferentes

    graus de evoluo da populao e a sua distribuio segundo os critrios naturais

    e raciais sobre os diferentes estgios dos habitantes do globo (RATZEL 1990, p.

    72). A este autor deve-se a introduo dos princpios da Geografia Humana, visto

    que ele foi pioneiro ao propor a Antropogeografia, um subcampo da Geografia

    Fsica e Natural. Como tal, suas reflexes avanaram no que tange s questes do

    homem. Ainda que sob uma tica determinista de forte e fraco, potencializava

    pelo menos a dimenso poltica e psicossocial do homem no espao, quando

    ento, este passa a ser objeto de disputa vital da luta pelo territrio.

    Foi o determinismo geogrfico e biolgico a base do paradigma

    hegemnico entre os gegrafos do sculo XIX, e foi tambm o que embasou o

    pensamento da geografia tradicional. Para a Geografia daquele sculo, no se

    pensava o espao do homem, mas o espao dominado pela natureza; e isto,

    poca, era a base do discurso e do pensamento naturalista que, como tal, partia da

    premissa de que o homem era o produto do meio, portanto, estaria ele suscetvel

    ao determinismo do clima, relevo, vegetao e outros elementos; e, ao mesmo

    tempo, essas variveis eram dominantes e influenciavam o comportamento do

    homem. De acordo com esse paradigma, no era objeto da Geografia ocupar-se

    com paixes, sentimentos, subjetividade humana, temas para outra Cincia, como

    a Sociologia. A Geografia devia se ocupar em descrever as coisas do espao

    natural; a dimenso poltica e social no era o seu objeto (MARTINS, 1921).

    Nesta concepo, a paisagem era um conjunto de unidades que compunha

    o quadro natural geomorfolgico. Quanto a distribuio da populao sobre a

    Terra, explicava-se a partir do meio natural geogrfico. Mesmo com suas

    tcnicas, o homem vivia sob o imperativo do determinismo geogrfico, e era

  • 37

    passvel de ser observado em diferentes estgios da evoluo, o que podia variar

    de acordo com a raa e o seu modo de vida. Quanto menor fosse o seu domnio

    sobre as tcnicas, maior seria a probabilidade do seu atraso na escala da evoluo

    humana.

    Ao explicar a atuao do homem sobre o meio, La Blache (1921) criou

    uma categoria de anlise chamada de modo de vida, uma categoria intelectual que

    tinha a funo de avaliar em larga escala o quadro natural e o quadro humano da

    Terra, e as relaes das coisas que havia sobre ela. Nesta avaliao, o autor fazia

    um inventrio geogrfico e estabelecia a relao do meio com o homem. Para ele,

    as variveis naturais ainda determinavam povos e raas, contudo, de acordo com o

    grau do modo de vida, o homem podia variar de selvagem a civilizado; segundo a

    sua capacidade humana de transformar e de modificar o meio, de acordo com o

    domnio das tcnicas de que ele dispunha. Entre muitos procedimentos de campo,

    La Blache (1921) avaliou o modo de vida dos povos andinos e dos ndios do

    Amazonas e atribuiu a um conjunto de variveis naturais e biolgicas grau de

    evoluo desses povos, a ponto de acreditar que o clima determinava o seu estado

    natural, e que isso atingia o fsico e afetava tambm o seu comportamento, como

    ele prprio coloca:

    A igual suavidade das temperaturas e a facilidade do clima

    no so, provavelmente, a causa nica desse fato. Como a

    presso atmosfrica diminui sensivelmente nessas elevadas

    altitudes, a combinao do oxignio do ar com os glbulos

    do sangue opera-se mais lentamente nos pulmes: a apatia,

    a repugnncia por todo o prolongamento de esforo

    muscular ou outro qualquer seriam, segundo observaes

    dignas de f, a consequncia deste afrouxamento do

    mecanismo essencial que, pelo sangue, age sobre a vida

    nervosa (LA BLACHE, 1921, p. 163).

    Ao ser avaliado o modo de vida dos povos americanos, concluiu o autor

    que os mesmos ainda viviam num grau baixo da evoluo humana e estariam

    longe de conquistar o progresso e tornarem-se uma gente civilizada, isto porque

    os fatores naturais ainda seriam determinantes sobre o modo de vida de cada um.

    Homem e meio so conceitos importantes apresentados em Princpios de

    Geografia Humana (1921). Para ele, o homem encontrava-se numa escala de

    evoluo em diferentes graus conforme o modo de vida e o quadro que

    diferenciava a distribuio da populao sobre a Terra por raa, que ia de superior

    a inferior tinha na sua organizao, muito dos aspectos naturais (o meio) e isto

  • 38

    determinava tipos e comportamentos diferentes. Na explicao dos fatores

    naturais sobre o homem americano, para ele, a raa importante e o que explica

    o seu comportamento e a sua moral:

    Provenientes de raas, por certo, muito diversas, eles parecem,

    entretanto, haver contrado, sob a influncia do ambiente, um

    carter comum que se enraizou: a antipatia pelo esforo. [...] eu

    recordo-me de ter ficado surpreendido, no Mxico, com a falta

    de movimento e da alegria, at dos prprios garotos, naqueles

    grupos que se formavam para as refeies volta dos cais das

    estaes. No seria isto apenas um simples efeito de

    hereditariedade fisiolgica? (Idem, 1921, p. 163).

    O que se observa que, ao se tratar do homem e do meio, ainda que La

    Blache (1921) tenha avanado sobre as relaes do desenvolvimento e da

    apropriao das tcnicas no modo de vida, para ele, ainda no ficava claro se o

    que diferenciava o comportamento dos povos mais atrasados era o meio

    geogrfico ou se isso se devia a fatores internos (subjetivos) de cada povo, ele

    deixa em aberto a possibilidade de acompanhar com maior frequncia o

    comportamento de tais fenmenos. Na verdade, ainda que o homem se mostrasse

    ativo natureza, e evoludo e civilizado, mesmo assim, por outro lado, estaria

    sujeito tambm aos fatores do meio geogrfico, de acordo com o seu grau de

    evoluo. Para ele, o homem que no estava no mesmo nvel de evoluo do

    homem francs, mas, o contrrio, o oposto disso, como era o caso do homem

    americano, o determinismo biolgico e geogrfico explicava o seu tipo de

    comportamento.

    Em Princpios de Geografia Humana (1921), o autor considerou tudo

    aquilo que fazia parte do processo civilizatrio para descrever a distribuio

    humana no globo, as desigualdades e as anomalias, os instrumentos, os modos de

    alimentao, a habitao, meios de transportes, estradas, caminhos de ferro, tipos

    de navegao martima ou lacustre, ou seja, tudo que ele alcanou e viu no seu

    tempo. Sem dvida, seu trabalho representou um legado para a Geografia Humana

    mundial. Contudo, no se pode perder de vista que os seus estudos sobre o homem

    e o meio foram produzidos numa poca em que o paradigma dominante era o da

    Geografia Fsica com base naturalista e no determinismo biolgico. Portanto,

    todas as referncias do homem possibilista e civilizado, notado em seu discurso,

    se voltavam para o homem branco e europeu, porque, para La Blache (1921), os

  • 39

    outros povos no eram civilizados, estavam em diferentes fases de sua evoluo e,

    nessa escala, a evoluo prosseguia em seus extremos: de selvagem a civilizado.

    Quem tambm corroborou para com o pensamento da Geografia Humana

    foi Brunhes (1869-1930), contemporneo de La Blache (1845-1918): foi ele

    quem imps a denominao Geografia Humana em lugar da de

    Antropogeografia, diz Deffontaines (1956, p. 9). Segundo esse autor, assumir

    uma cincia inteiramente humana, era uma postura ousada, visto que, naquele

    tempo, o hegemnico era o paradigma naturalista.

    A Geografia Humana tratava de tipos de atividade humana, que no

    tinham fora de explicao na Geografia Fsica. A partir dela, o homem saa do

    imperativo da natureza e ganhava fora de explicao sobre si mesmo e sobre a

    sua capacidade de transformao, sobre o espao, como aborda o autor:

    Os homens reflorestam; desse modo, moderam a obra destrutiva

    das enxurradas e modificam os climas. Plantam o pinheiro

    martimo, para fixar as areias, e a zostera, para fixar a lama

    submarina. Em meio aos seres viventes, podem regular e

    orientar numerosas selees artificiais; cultivam plantas e

    domesticam animais. O conjunto de todos esses fatos de que

    participa a atividade humana um grupo verdadeiramente

    especial de fenmenos superficiais: ao estudo dessa categoria de

    fenmenos geogrficos, damos o nome de Geografia Humana

    (BRUNHES, 1956, p. 27).

    Todo o tipo de atividade produzida pelo homem passava a ser explicada

    como um fenmeno humano, artificial, ou seja, criado por ele e no mais

    atribudo ao natural. Transformaes espaciais a partir da fora econmica,

    tecnologia desenvolvida pelas grandes civilizaes, o homem tornava-se agora

    capaz de alterar a paisagem numa velocidade nunca vista antes, e isto o autor

    conceituou e passou a chamar de fora destrutiva. A Geografia Humana, obra

    deixado por Brunhes (1869-1930), um legado para os estudiosos e, neste

    trabalho, a sua contribuio sobre as atividades humanas relevante. O seu

    esforo levou a uma geografia cujo poder de explicao saiu da esfera da natureza

    para a esfera econmica, poltica, e social.

    A partir dessa perspectiva, as mudanas ocorridas no espao no eram

    mais obra apenas da natureza, um agente modelador e transformador. Agora, o

    poder de transformar, e de destruir e reconstruir vinha das tcnicas e da

    inteligncia humana capazes de produzir espao exclusivamente artificial, como

    era o caso das cidades que acompanhavam o fenmeno urbanizao. Artificial,

  • 40

    para Brunhes (1956), era tudo aquilo que o homem fazia e que a natureza era

    incapaz de fazer.

    O foco sai da natureza e volta-se para o homem. O poder de explicao

    que ele busca no est no Fsico, no natural, mas, no humano, no artificial, ou

    seja, naquilo que o homem faz no e com o espao, de homem para homem e com

    os homens.

    Neste trabalho, notamos que o autor se preocupava em fundamentar a

    Geografia Humana metodologicamente. Procurava dialogar com os gegrafos, os

    seus contemporneos, para sistematizar e classificar o campo que ele entendia ser

    da Geografia Humana, tomou o cuidado de organizar os fatos da Geografia

    Humana, o que ele chamou de Geografia das necessidades vitais bsicas, comer,

    dormir, vestir-se, e classificou mais duas categorias, a Geografia Poltica e a

    Geografia da Histria. Ento, nesse sentido inaugurou uma geografia do homem e

    no da natureza. Seguindo essa perspectiva, organizou a Geografia Humana por

    fatos essenciais, ou seja, explicava a ocupao improdutiva do solo com base nos

    fatores humanos; tratava de descrever formas e tipos de ocupao humana

    distribudas na paisagem, como casas, aldeias, ruas, estradas, cidades,

    fortificaes e etc.

    Um segundo grupo de fatos por ele classificado, diz respeito descrio da

    conquista do homem sobre o mundo vegetal, animal e cultural. Neste grupo,

    numa escala global sobre os elementos naturais, o autor estabeleceu um paralelo

    da fora destrutiva entre os povos civilizados e os povos selvagens. Ele dizia que

    a devastao do quadro natural feito pelos povos civilizados era quase

    irrecupervel, enquanto a destruio feita pelos povos selvagens era passvel de

    recuperao. Mas essa comparao no era a mais importante, no sentido da fora

    destrutiva. O poder maior da ocupao destrutiva ficava com as exportaes de

    recursos naturais conquistados dos selvagens pelos civilizados. Sobre isto, o autor

    vai alm da funo de descrever os fluxos e o seu impacto destrutivo. Nota-se que,

    ao referir-se s modalidades de ocupao, ao falar dos povos primitivos

    africanos explorados pelos civilizados, passvel de observao um senso de

    justia em seus argumentos sobre a forma com que eram tratados os selvagens:

    Uma das formas mais repugnantes da devastao entre os

    homens o trfico de negros. Em seus incios, a colonizao

    europeia desenvolveu a escravatura, transplantando infelizes

    negros de um continente para outro. A colonizao muito

  • 41

    frequentemente prejudicou os selvagens, seja pela destruio de

    seus recursos alimentares, seja