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Tese de doutorado
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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE EDUCAO
PS-GRADUAO EM EDUCAO
O NEGRO E A CULTURA AFRO-BRASILEIRA: UMA BRICOLAGEM
MULTICULTURAL DO ENSINO DE GEOGRAFIA
DOUTORANDO: EDIMILSON ANTNIO MOTA
ORIENTADORA: PROF. DR ANA CANEN
Rio de Janeiro, 2013
2
Edimilson Antnio Mota
O NEGRO E A CULTURA AFRO-BRASILEIRA: UMA BRICOLAGEM
MULTICULTURAL DO ENSINO DE GEOGRAFIA
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Educao, Faculdade de
Educao, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessrios
obteno do ttulo de Doutor em Educao.
Orientadora: Prof Dr Ana Canen
Rio de Janeiro, 2013
3
4
queles que reinventam a cultura como
reconhecimento e emancipao social.
5
AGRADECIMENTOS
minha esposa Cidinha, meu grande amor, que est ao meu lado desde o incio
da minha carreira, que me compreendeu e me motivou a lutar por esse sonho de
chegar ao doutorado.
minha linda filha, Sofia, o meu maior presente, que, no meu silncio e recluso,
levou-me abraos e beijinhos.
minha orientadora, Prof. Dr Ana Canen, pela competncia, rigor, exigncia, e,
sobretudo, pela amizade, generosidade, delicadeza, e parceria, por ter acreditado
no meu potencial e me apoiado sempre.
Prof Dr Libnia Nacif Xavier, pelas observaes e contribuies tericas
indispensveis para a realizao desse estudo, pelo carinho que pude sentir no
Exame Especial e na Qualificao e, por ter, ao mesmo tempo, acreditado na
superao dos meus limites.
Secretria do Programa de Ps-Graduao em Educao da UFRJ, Solange
Rosa de Arajo, pela sua dedicao cotidiana com todos ns - uma amiga sempre.
s professoras da banca examinadora, pelas contribuies importantes para o
aperfeioamento do meu trabalho.
6
O discurso no simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou os sistemas de dominao, mas aquilo por que,
pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.
A produo do discurso ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero
de procedimentos que tm por funo conjurar seus
poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio.
FOUCAULT
7
RESUMO
MOTA, Edimilson Antnio. O negro e a cultura afro-brasileira: uma
bricolagem multicultural do ensino de geografia. Rio de Janeiro, 2013. Tese
(Doutorado em Educao) Faculdade de Educao, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, 2013.
Com a homologao da lei 10.639 em janeiro de 2003, tornou-se obrigatrio o
ensino da histria da frica e da cultura afro-brasileira em toda a educao bsica.
Com isso, o campo do currculo foi levado a repensar o seu sentido, em termos de
como tm sido abordadas as disciplinas, e em que perspectiva pedagogicamente
estas temticas tm sido apresentadas nos livros didticos. No caso do ensino da
Geografia, o presente estudo teve como objetivo resgatar a importncia do negro e
da cultura afro-brasileira, a partir de recortes discursivos extrados dos livros
didticos dessa disciplina no stimo ano, com base nas categorias de lugar,
espao, paisagem, regio e populao. O objetivo foi saber a partir de quais
paradigmas so construdas estas abordagens, e em que medida elas coadunam
com o multiculturalismo emancipatrio. Para responder a essa questo,
entendemos que o ensino de Geografia est dividido em dois paradigmas
principais: o da geografia tradicional e o da geografia crtica. No primeiro, o
negro seria reconhecido a partir do paradigma do determinismo biolgico, visto
como o selvagem, o no civilizado e de raa inferior, o que justificou a sua
escravizao e a construo poltica e moral do reconhecimento negativo e
estereotipado a seu respeito pelo colonialismo. No segundo, baseia-se no
paradigma crtico marxista, em que, a crena est no motor da histria gerada pelo
modo de produo capitalista, e na organizao, e na transformao do espao
social; o que levaria desigualdade social e luta de classes, em detrimento da
discusso da desigualdade por raa. Nesse sentido, os resultados apontaram que, nos discursos a respeito da importncia do negro e do resgate da cultura afro-
brasileira nos livros didticos, tais conceitos deveriam ser descolonizados e
desconstrudos. Para tal, um fio condutor poderia ser o do reconhecimento das diferenas nas diferenas, na construo da prxis do ensino de Geografia de forma dialgica e dialtica. Nesse sentido, far-se-ia necessrio trazer as
contribuies do multiculturalismo emancipatrio no com um fim, como uma
categoria fechada e estanque, mas, ao contrrio, como um campo contestado,
aberto s prticas educativas dos sujeitos sociais.
Palavras-chave: negro; cultura afro-brasileira; livro didtico; multiculturalismo
emancipatrio; reconhecimento; ensino de geografia.
8
ABSTRACT
MOTA, Edimilson Antonio. The black and african-Brazilian: culture in
multicultural patchwork geography education. Rio de Janeiro, 2013. Thesis
(Doctorate in Education) - College of Education, University Federal of Rio de
Janeiro, 2013.
With the homologation of the law 10.639 in January of 2003, it has become
obligatory the teaching of the history of Africa and of African-Brazilian culture in
all basic education, which has led the camp of curriculum to rethink its sense of
how the disciplines have been addressed, and in which pedagogical perspective
these subjects have been presented in the contents of textbooks. In the case of the
Geography subject, the present study had the objective to rescue the importance of
black and Afro-Brazilian culture, through clippings taken from the school books
of the sixth grade, based on the categories of place, space, landscape, region and
population to know from what paradigms these approaches are built, and as they
coadunate with the multiculturalism emancipatory. To answer this question, we
understand that the teaching of geography is divided in 2 main paradigms: the
traditional geography and the critical geography. In the former, the black people
would be accepted from the paradigm of the biological determinism, seen as the
wild, the uncivilized and the inferior race which justified their slavery and the
political and moral construction of the negative acknowledgment and stereotype
generated by colonialism. The latter is based on the Marxist critical paradigm, in
which the belief is in the motor of the history generated by the capitalist mode of
production, and in the organization, and in the transformation of the social
space, which would lead to social inequality and class struggle, instead of
inequality by race. In this sense, the results pointed out that the speeches about the
importance of black culture and the ransom of African-Brazilian culture in the
school books, the concepts should be decolonized and deconstructed, which
would require, as a guiding mostly the recognition of the difference in the
difference in the construction of the praxis of teaching geography dialogically and
dialectically and, accordingly, far would be necessary to evoke the
multiculturalism emancipatory not as an end, as a category closed watertight, but
on the contrary as a contested field, open for educational practices of social
subjects.
Kaywords: black; Afro-Brazilian culture; school books; multiculturalism
emancipatory; recognition; geography teach
9
RSUM
MOTA, Edimilson Antonio. Le noir et la culture afro-brsilienne : un
bricolage multiculturel de lenseignement de Gographie. Rio de
Janeiro,2013. Thse ( Doctorat en ducation) - Faculdade de Educao,
Universidade Federal do Rio de Janeiro.2013.
partir de lhomologation de la loi 10639, en janvier 2003, lenseignement de lhistoire de lAfrique et de la culture afro-brsilienne est devenu obligatoire en toute lducation fondamentale ce qui a conduit le camp du curriculum repenser son sens de lapproche des disciplines et savoir en quelle perspective ces thmatiques sont prsentes pdagogiquement par les
contenus dans les livres didactiques. Par rapport lenseignement de la discipline Gographie,cette tude a le but de racheter limportance du noir et de la culture afro-brsilienne, partir des morceaux de discours extraits
des livres didactiques de Gographie de la septime anne, fonds sur des
catgories de lieu, espace, paysage, rgion et population, pour savoir partir
de quels paradigmes ces approches sont construites et en quelle mesure
elles se conforment au multiculturalisme mancipateur. Pour rpondre
cette question, nous comprenons que lenseignement de la Gographie est divis en deux paradigmes principaux : celui-ci de la Gographie
traditionnelle et celui-l de la Gographie critique. Dans le premier le noir
serait reconnu partir du paradigme du dterminisme biologique, vu comme
le sauvage, le non civilis et de race infrieure, ce qui a justifi son
esclavage et la construction politique et morale de la reconnaissance
ngative et strotipe son sujet par le colonialisme. Dans le deuxime
on est bas sur le paradigme critique marxiste , o la croyance est dans le
moteur de lhistoire engendre par le mode de production capitaliste et dans lorganisation et la transformation de lespace social, ce qui conduirait la lutte de classes, en dommage de lingalit par la race. En ce sens les rsultats ont indiqu que dans les discours au sujet de limportance du noir et du rachat de la culture afro-brsilienne, en livres didactiques, ses concepts
devraient tre dcoloniss et dconstruits, ce qui exigerait pour cela, comme
fil conducteur, la reconnaissance de la diffrence dans la diffrence, dans la
construction de la praxis de lenseignement de la Gographie, de forme dialogique et dialectique. et dans ce sens, il faudrait voquer le
multiculturalisme mancipateur, non comme une fin, comme une catgorie
ferme et fige, mais au contraire, comme un camp contest, ouvert aux
pratiques ducatives des sujets sociaux.
Mots-cls : noir; culture afro-brsilienne; livre didactique; multiculturalisme
mancipateur; reconnaissance; enseignement de la gographie.
10
SIGLRIO
CAPES - Coordenao de Aperfeioamento Pessoal de Nvel Superior.
CNE/CP - Conselho Nacional de Educao/Conselho Pleno.
DCN - Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-
Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
DEM - Democratas.
DIT - Diviso Internacional do Trabalho.
ENEM Exame Nacional do Ensino Mdio.
FF- Fundao Ford
FFCL/USP - Faculdade de Filosofia Cincias e Letras da Universidade de So
Paulo.
FNB - Frente Negra Brasileira.
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica.
IDEB - ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica.
IHGB - Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro.
INL- Instituto Nacional do Livro.
LDB - Lei de Diretrizes e Bases
MEC - Ministrio da Educao e Cultura.
MES - Ministrio da Educao e Sade.
MN - Movimento Negro.
MNB - Movimento Negro Brasileiro
MNU - Movimento Negro Unificado.
PCN - Parmetros Curriculares Nacionais
PNE - Plano Nacional de Educao.
PNLD - Programa Nacional do Livro Didtico.
STF - Supremo Tribunal Federal.
TEM- Teatro Experimental Negro.
UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
11
IMAGENS
IMAGEM 1. Moinho de acar..........................................................................118
IMAGEM 2. Engenho de acar em Itamarac .................................................120
IMAGEM 3. Manifestaes Populares .............................................................131
IMAGEM 4. Oferendas Iemanj .....................................................................134
IMAGEM 5. Capoeira: luta e dana ..................................................................135
IMAGEM 6. Jovens no Ibirapuera .....................................................................138
MAPAS
MAPA 1. Analfabetismo no Brasil segundo a cor ou raa .................................149
12
SUMRIO
CAPTULO 1: RECONHECIMENTO E ENSINO DE GEOGRAFIA ........13
1.1 Justificativa ..................................................................................................16
1.2 Objetivos ......................................................................................................18
1.3 Referencial metodolgico ............................................................................25
1.4 Estrutura do trabalho ....................................................................................29
CAPTULO 2: GEOGRAFIA E MULTICULTURALISMO ........................30
2.1 A Geografia Tradicional: conceitos e tendncias.........................................31
2.1.1 O negro e a raa: Delgado de Carvalho e Aroldo de Azevedo ......... 42
2.2 A Geografia Crtica e a transformao social pelo ensino.......................... 48
2.2.1 O livro didtico e os paradigmas dominantes ....................................59
2.3 O vir-a-ser diferena e igualdade ................................................................70
2.3.1 Pensando o multiculturalismo no currculo .......................................80
CAPTULO 3: O NEGRO, DA CASA-GRANDE CIDADE GRANDE
...............................................................................................................................90
3.1 A cultura afro-brasileira e Gilberto Freyre ...................................................91
3.2 O negro na sociedade de classes por Florestan Fernandes .........................101
3.3 A cultura e a luta por reconhecimento........................................................ 107
CAPTULO 4: OS DISCURSOS DOS LIVROS DIDTICOS DE
GEOGRAFIA ...................................................................................................111
4.1 O reconhecimento do escravo: da frica casa-grande................................112
4.2 A cultura afro-brasileira: da cozinha ao hip hop............................................126
4.3 Raa e renda, negros e brancos em espaos desiguais ..................................141
4.4 A Descolonialidade do ensino de Geografia.................................................156
5 CONCLUSO ..............................................................................................165
6 REFERNCIAS ............................................................................................174
7 APNDICE.............................................................................................187-222
13
1. RECONHECIMENTO E ENSINO DE GEOGRAFIA
Todo homem quer uma boa vida, e isto desejo, porque, como gente,
desejar faz parte da condio humana. O que sabemos que o desejo a uma boa
vida a busca exterior do Eu no Outro; no Outro que somos reconhecidos. Por
isso, h muitos tipos de reconhecimentos. O homem em sociedade luta por
reconhecimento afetivo, poltico, cultural, social, porque, na verdade, a luta por
reconhecimento histrica, dialtica e dialgica, e, em cada poca, os motivos
pelos quais se luta so diferentes e mutveis como o desejo daqueles que lutam.
No foi diferente, por exemplo, com o homem europeu. Desejoso em romper com
a fora das guas e os domnios dos mares e oceanos, aprendeu a alcanar terras e
a fazer continentes. Tudo pela conquista. Da o seu encontro com outros povos e
raas e a luta travada pelo conquistador sobre o conquistado, o que passou a ser o
sentido da colonizao. Desde ento, no caso do africano, este passou a ser
reconhecido pelo europeu como povos de raa inferior, sem cultura, cujo modo de
vida social seria selvagem e num grau de desenvolvimento bem prximo ao da
natureza, ou seja, quase igual a um animal das selvas e savanas daquele
continente.
No mesmo sentido, o processo de colonizao americano, a partir do
sculo XVI, teve como base o tipo de reconhecimento feito pelo europeu sobre o
continente conquistado, e, ao mesmo tempo, para o seu desenvolvimento
econmico, reconheceu a escravido de africanos e indgenas legal e moral. As
instituies da poca defendiam a sua desconstruo com base na maldio de
Cam, j que este no tinha alma, ou ento pelo direito natural de que, como
selvagem, j havia nascido desigual e, portanto, no reconhecido como gente.
Como tal, o trabalho compulsrio seria o meio da sua redeno e da sua
socializao para ento se tornar parte do mundo dos justos: branco, cristo e
europeu. Neste sentido, podemos afirmar que, entre o europeu e o africano,
durante a escravido, a diferena foi a base da luta por reconhecimento. Isto
porque o europeu, a partir da sua suposta superioridade de raa e de cultura,
subjugou, classificou e hierarquizou o africano e o colocou na escala mais baixa
14
da estratificao social, quando o fez escravo nas colnias conquistadas. Desde
ento, a luta entre europeu e africano ganhou o sentido da luta por
reconhecimento, de vida ou morte, entre o senhor e o escravo, j que, para o
senhor existir, o africano seria o escravo. Foi com base na narrativa da escravido,
especificamente no caso do Brasil, que este presente trabalho buscou
problematizar a luta por reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira no
ensino de Geografia, considerando que, desde a colonizao, havia no imaginrio
social a vontade e a potncia do multiculturalismo com base na diferena, o que
fez com que a escravido permanecesse por muitos sculos. Se, atualmente, h o
desejo de resgatar o negro e a cultura afro-brasileira numa dimenso positiva do
reconhecimento, necessrio conhecer o passado colonial construdo com base no
reconhecimento negativo e de esteretipo que o europeu construiu sobre o
africano. Para isso, entendemos ser necessrio problematizar a diferena e a
igualdade como marcadores filosficos, porque foi com base nisso que se
justificaram sculos de dominao de relao social e de reconhecimento entre
senhor e escravo, como ser abordado a seguir.
Abordar a luta por reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira no
ensino de Geografia, requer primeiramente olhar para trs e fazer uma incurso
histrica a respeito da luta entre africanos e europeus a partir do sculo XVI,
quando todo o processo de reconhecimento entre eles teve o seu incio. O ensino
de Geografia, como uma disciplina do currculo escolar, foi uma inveno social
do final do sculo XIX, mas a escravido de africanos no. Hoje, enquanto ensino
o currculo do programa do stimo ano, o contedo sobre a formao territorial
brasileira tem como abordagem a presena e a contribuio dos povos africanos
que para aqui foram trazidos na condio de escravos, para a realizao de
trabalho compulsrio na economia agrria.
O que temos, desde ento, um passado, uma narrativa construda do
ponto de vista do europeu e reproduzida pela histria oficial. O que buscamos
agora revisitar tais narrativas e desconstruir pontos de vistas e esteretipos
principalmente no contedo dos livros didticos de Geografia do stimo ano. Para
isso, foram elaboradas as seguintes questes que tm como fim desencadear a
discusso geral desse presente estudo, em que se buscou dissertar a luta por
reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira, no ensino de Geografia:
15
1. Considerando o currculo de Geografia um campo contestado, em que
medida os discursos sobre o negro e a cultura afro-brasileira tm sidos
tensionados pelo multiculturalismo emancipatrio como reconhecimento social?
2. Com base nos paradigmas da geografia tradicional e da geografia
crtica, em que perspectiva o negro foi reconhecido no que se refere ao conceito
de raa?
3. Qual a importncia e a contribuio de Gilberto Freyre em Casa-grande
e senzala, e de Florestan Fernandes em A integrao do negro na sociedade de
classes, no reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira para o ensino de
Geografia do stimo ano?
4. Em que perspectiva do reconhecimento social os marcadores raa e
renda so apresentados nos discursos dos livros didticos do stimo ano,
considerando a importncia do resgate do negro e da cultura afro-brasileira, com
vistas para o multiculturalismo emancipatrio como uma nova abordagem no
ensino de Geografia?
5. Em que medida a evocao do multiculturalismo emancipatrio pode
tensionar a descolonialidade do ensino de Geografia?
Para resgatar a importncia do negro e da cultura afro-brasileira no ensino
de Geografia, especificamente no contedo do stimo ano, a ideia voltar, a partir
do sculo XVI ao marco inicial da formao do povo brasileiro e problematizar a
luta por reconhecimento do negro antes e aps a Abolio, em que a diferena foi
o marcador entre o senhor e o escravo durante o regime escravagista. Antes: a
luta por reconhecimento entre o senhor e o escravo - o primeiro, para existir,
usava de todo o mecanismo de controle moral para construir a falta de conscincia
social no segundo, de modo que refletisse sobre ele somente a subservincia do
escravismo. Depois: ps-abolio - diante da lei, o negro tornava-se livre e, agora,
o seu desafio seria fazer a sua integrao na sociedade de classes. Como resgatar a
sua cultura, a sua autoestima, o seu reconhecimento social como um cidado?
Enfim, a luta por reconhecimento na sociedade livre continuou intensa.
No sculo XX, o pas j no era mais o mesmo do sculo anterior. A
industrializao e a urbanizao das capitais, como So Paulo e Rio de Janeiro,
impunham um novo ritmo; ao mesmo tempo, tornava-se desafio dirio para o
imigrante disputar um lugar na ordem competitiva da emergente sociedade
capitalista. Para o negro, nada foi fcil, visto que, agora, ele disputava tal lugar
16
com esse branco imigrante que trazia consigo, na sua maioria, um grau de
instruo diferente do dele, que havia sado do campo, sem reparao social e
despreparado. Grande parte passou ento a subsistir das atividades do mercado
informal. Diante desse quadro, para alm do rano do tratamento desigual que o
negro trazia da escravido, agora a desigualdade estaria tambm na busca da renda
per capita, visto que, quando comparado com o branco, ele se encontrava numa
posio social inferior.
Para refletir sobre o contexto social antes e aps a Abolio, com base nos
discursos constitudos nos livros didticos do stimo ano, escolhemos fazer uma
bricolagem multicultural, ou seja, uma montagem tcnica de cunho qualitativo
que visa emancipao dos sujeitos sociais, e, para isso, como diz Kincheloe
(2007) improvisamos, recortamos, ajuntamos narrativas, crenas e lutas acerca
do negro e da cultura afro-brasileira dos discursos dos livros didticos de
Geografia do stimo ano. O desafio pensar um ensino de Geografia e a sua
relevncia conforme os argumentos a seguir.
1.1 Justificativa
Este trabalho fruto das minhas inquietaes e reflexes, quando eu, ainda
no exerccio de Professor de Geografia da educao bsica, uma dcada atrs, vi
tornar-se obrigatrio o ensino da histria da frica e da cultura afro-brasileira,
com a homologao da Lei 10.639/03 para todo o currculo e disciplinas. Na
ocasio, passei a observar que, especificamente para o ensino de Geografia, no
havia uma orientao curricular oficial e, muito menos, metodologias que
atendessem as demandas evocadas pela legislao para o professor de Geografia
abordar a questo tnica racial como preconiza a lei. Movido por essa
inquietao, Mota (2010), no mestrado, com base num estudo de caso de uma
escola estadual do Rio de Janeiro, foi investigado o cotidiano de professores da
disciplina de Histria para saber em que medida estaria sendo implementado, na
prtica docente, um ensino que fosse de acordo com as exigncias das Diretrizes
Curriculares da Educao das Relaes Etnicorraciais do Ensino da Histria da
frica e da Cultura Afro-Brasileira. Os resultados apontaram que so muitos os
17
desafios dos professores, e que ainda faltam-lhes estudos especializados e a
formao continuada com a abordagem voltada para as exigncias da lei.
No doutorado, a inquietao persistiu, porm, agora, a ideia era saber
como os discursos de raa e de cultura afro-brasileira so refletidos nos livros
didticos de Geografia e, ao mesmo tempo, saber como a questo racial est sendo
refletida e investigada no campo da pesquisa em educao no Brasil. Para isso, em
2010 fizemos uma busca no banco de dados da Coordenao de Aperfeioamento
Pessoal de Nvel Superior CAPES, dos ltimos dez anos, com as seguintes
palavras: multiculturalismo e geografia; racismo e livro didtico; lei 10639 e
ensino de geografia; geografia e racismo, e foram selecionados 20 resumos
pertinentes questo racial no ensino de Geografia. Desse total, apenas um
resumo de Simo (2005) tinha como abordagem o preconceito e o racismo no
ensino de Geografia; nos demais, no se mencionava a questo racial com base
nas questes propostas pela lei 10.639/03 e tampouco os textos interfaciavam com
o multiculturalismo. Vimos, ento, que, no ensino das relaes etnicorraciais com
vistas para a educao bsica, havia uma lacuna a respeito de orientaes
metodolgicas para o campo das prticas pedaggicas, como tambm faltavam
estudos que tratassem da cultura afro-brasileira no ensino de Geografia.
Neste sentido, o presente estudo justifica-se ao ter como fim avanar sobre
a questo etnicorracial no campo do currculo de Geografia, a respeito do negro e
da cultura afro-brasileira, com base nos discursos constitudos nos livros didticos
de Geografia e, ao mesmo tempo, evocar a discusso entre ensino de Geografia e
multiculturalismo emancipatrio, buscando, assim, como abordagem, a luta por
reconhecimento de raa e de cultura, com base na diferena da diferena dos
sujeitos sociais e com base no conceito de descolonialidade do ensino de
Geografia. Acredita-se que pensar o resgate do negro e da cultura afro-brasileira
no seria negar os paradigmas das cincias sociais, polticas e econmicas
eurocntricas, contudo, preciso desconstruir, rever e recontar narrativas at ento
construdas com base num discurso afirmativo do Outro com esteretipos e
racismo.
Para tanto, foram propostos os seguintes objetivos:
18
1.2 Objetivos
Geral:
Resgatar a importncia do negro e da cultura afro-brasileiro no ensino de
Geografia, com vistas para o multiculturalismo emancipatrio na
construo da cidadania plena e da democracia racial.
Especficos:
Fazer o levantamento dos discursos sobre o negro e da cultura afro-
brasileira, nos livros didticos de Geografia do stimo ano, a partir das
categorias: lugar, espao, territrio, paisagem, regio e populao;
Selecionar e fazer a leitura de imagens que retratem o negro e a cultura
afro-brasileira, nos livros didticos de Geografia do stimo ano, e
interpretar luz do reconhecimento social com que as narrativas textuais
foram recortadas;
Resgatar o pensamento social brasileiro de Freyre (1933)1 e de Fernandes
(1964)2 com base nos marcadores de raa, cultura e classe, para refletir
sobre o ensino de Geografia com vistas para o multiculturalismo
emancipatrio;
Discutir a situao social do negro e da cultura afro-brasileira a partir dos
marcadores de raa e de renda luz do pensamento social brasileiro,
considerando o multiculturalismo como meio, como uma forma de
reconhecimento social, na reflexo dos paradigmas do ensino de
Geografia;
Propor a descolonialidade do ensino de Geografia no resgate do negro e da
cultura afro-brasileira, no contedo do stimo ano, com base no
multiculturalismo emancipatrio.
Por que importante identificar, selecionar e refletir para ento propor o
resgate do negro e da cultura afro-brasileira no ensino de Geografia? Na verdade,
o contedo do ensino de Geografia sobre o negro e a cultura afro-brasileira faz
1 Ano de lanamento da obra.
2 Idem.
19
parte do currculo oficial, todavia, o que desde ento vem sendo mudado a sua
abordagem epistmica e metodolgica de como ensinar. A ideia , com base no
multiculturalismo emancipatrio, desconstruir o reducionismo histrico e
econmico das narrativas mestras em que o negro reproduzido como uma
coisa da estrutura social do escravismo. Essa viso no suficiente para gerar o
autorrespeito, a autoconfiana e a autoestima no aluno hoje; do mesmo jeito, nas
narrativas sobre o Continente Africano os povos so vistos como exticos,
selvagens, e estigmatizados pela fome, pela pobreza, e pela AIDS divulgada pela
indstria cultural do ocidente sob uma esttica perversa. Atualmente, no campo do
currculo de Geografia, essas reprodues tm sido tensionadas no sentido de
construir um reconhecimento positivo do negro e da cultura afro-brasileira sem
distoro e preconceito. Mas, a luta por esse reconhecimento no campo do
currculo no tem ocorrido de forma gratuita e esvaziada de tenso poltica. Na
verdade, ela fruto dos primeiros movimentos sociais negros, como a Frente
Negra Brasileira - FNB fundada nos anos 30, que se opunha opresso que
pesava sobre o negro. Desde ento, setores e instituies tm sido tensionados
pela sua integrao na sociedade de classes.
Hoje, a lei 10.639/03 representa uma resposta s reivindicaes sociais
historicamente iniciadas nas primeiras dcadas do sculo XX, construdas pelos
movimentos sociais negros na luta por reconhecimento social. Contudo, verdade
que, para alcanar o entendimento de criar uma lei especfica para o campo da
educao, primeiro, na Conferncia de Durban (2001), oficialmente o Brasil se
assumiu um pas racista. Na ocasio, a delegao brasileira contou com muitos
brasileiros engajados em lutas sociais e abertos aos debates que propusessem
novos caminhos que levassem reverso do quadro de desigualdade racial vivido,
at ento por negros e brancos. Para mitigar a diviso entre negros e brancos,
desde ento, o governo passou a criar polticas afirmativas e programas
educacionais estratgicos proativos no combate a esteretipos e a preconceitos
raciais e culturais contra o negro.
O desafio do momento tem exigido um ensino que seja combativo ao
racismo e que, ao mesmo tempo, proponha o reconhecimento social do negro e da
cultura afro-brasileira no currculo de Geografia. Acreditamos existir um longo
20
caminho a percorrer e, ao mesmo tempo, de se construrem teorias e propostas
pedaggicas voltadas para o reconhecimento social do negro e da cultura afro-
brasileira. Estamos certos ser isto importante para a educao bsica e para a
afirmao da pluralidade cultural como aponta o referencial terico.
Propor o resgate do negro e da cultura afro-brasileira no ensino de
Geografia representa um desafio para este pesquisador tendo em vista que esse
um estudo orientado na pesquisa qualitativa em educao. Com base em Bardin
(1977, p. 34), primeiramente fizemos a anlise de contedo das narrativas oficiais
dos livros didticos de Geografia do stimo ano, o que exigiu selecionar os
discursos de acordo com as categorias bsicas do ensino de Geografia: lugar,
espao, territrio, paisagem, regio e populao. Aps, no segundo momento, o
nosso desafio aumentou j que escolhemos a tcnica da bricolagem como
pesquisa qualitativa, o que demandou assumir o ponto de vista de um pesquisador
bricoleur com base em Dezin e Linconl (2006) e Kincheloe (2007). Para alcanar
esse fim, buscamos fazer sobreposies, montagens, oposio, comparao e
snteses de diferentes paradigmas a respeito do que hoje reconhecido como
cultura afro-brasileira; isso porque, no passado, na viso eurocntrica, a
cosmologia africana no era considerada cultura, e, para o campo das Cincias
Naturais, os africanos seriam da raa inferior. Ento, neste sentido, para recontar
sobre a luta do negro no resgate da sua cultura, seria insuficiente toda essa
montagem apenas por uma perspectiva da cincia.
Segundo Khun (2011, p. 29), o ato de fazer cincia normal significa a
pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizaes cientficas passadas
sendo assim, entendemos que, para resgatar a importncia do negro e da cultura
afro-brasileira no ensino de Geografia com o rigor da narrativa, no mnimo
seramos obrigados a retonar ao sculo XVI, quando se iniciou a sua participao
na formao do povo brasileiro, e ver em que perspectivas cientficas e filosficas
ele era reconhecido. Primeiramente preciso dizer que, no sculo XVI, escola
pblica sob o controle do Estado, estava ainda longe de existir e muito menos a
disciplina de Geografia. Entretanto, hoje, ao abordarmos esta questo no campo
da disciplina, no podemos nos esquecer de que o que fizemos foi uma
montagem, uma bricolagem sobre o passado, no sentido de organizar as narrativas
21
luz dos paradigmas com os quais acreditamos responder as questes do nosso
tempo. Ainda nessa mesma direo, Khun (2011) afirma que o ato de fazer cincia
no algo isolado, ou seja, no se cria nada sem uma finalidade social, ao
contrrio, toda cincia estaria integrada a uma unidade histrica e
pedagogicamente anterior, onde so apresentados os seus fins (Idem, 2011, p.
71). A partir disso, para resgatar a importncia do negro e da cultura afro-
brasileira, o presente trabalho foi construdo considerando o paradigma da
geografia tradicional que tinha como base as cincias naturais e, como tal, a sua
crena no determinismo biolgico, em que o meio preponderava sobre o homem,
ou seja, a natureza seria determinante sobre o meio social. Estaria o homem
vivendo o processo da histria natural e, de acordo com o grau de evoluo,
seriam os povos selecionados por raa, que, numa escala de mbito geral, estariam
sujeitos classificao social hierrquica. Na verdade, at as primeiras dcadas do
sculo XX, foi esta mentalidade de base naturalista biolgico que dominou a
cincia normal, com um consenso. Esta viso geogrfica a respeito do meio e da
raa, para La Blache (1921), ainda preponderante, como ele prprio afirma:
As origens das principais diversidades de raas escapam-nos;
perdem-se num passado bem longnquo. Mas, e apesar da
reserva que a imperfeio das observaes nos impe, muitos
fatos advertem-nos de que a matria humana conserva a sua
plasticidade e que, incessantemente modelada pelas influncias
do meio, capaz de prestar-se a combinaes e formas novas.
[...] Os povos adaptam-se, ou, para melhor dizer, domam-se aos
seus habitats sucessivos. Sobre essas misturas que formam trao
de unio entre raas distantes e diversas, a influncia do meio
reserva a ltima palavra. (LA BLACHE, 1921, p. 372).
Nota-se, poca, como conceito, que o meio preponderava sobre o social.
Apesar disso, o autor avanou na compreenso sobre a potencialidade humana ao
fazer a densa descrio dos lugares habitados e modelados pelo homem, o que ele
conceituou como modo de vida. Em sntese, para ele, estaria o homem vivendo o
modo de vida de acordo com a sua raa e o seu grau de apropriao e de
transformao da natureza em materialidade (cultura),3 que variava numa escala
de desenvolvimento que ia do homem civilizado ao homem selvagem.
Nesse mesmo sentido, Brunhes (1956) recorreu mesma escala de
estratificao para explicar o potencial de ocupao destrutiva do homem
3 Acrscimo meu.
22
europeu, considerado o civilizado. Segundo o autor, esse possua maior domnio
sobre as tcnicas, mas por outro lado, seria infinitamente maior a sua capacidade
de degradao das florestas, quando comparado ao homem selvagem. O mesmo
afirma:
Certos povos selvagens praticam a devastao incendiando
floresta e cultivando o terreno assim conquistado, at que o solo
fique esgotado. Nessas regies, porm, h superabundncia de
terra e esse processo no traz como consequncia a penria dos
meios de subsistncia; acarreta, apenas, o nomadismo. A
queimada da grande floresta e, sobretudo, da grande floresta
mida , realmente, o nico meio de instalao para as
existncias que vivem mais ou menos desses tipos de cultura
(BRUNHES, 1956, p. 292).
Por possuir um baixo grau de desenvolvimento da cultura do manejo
agrcola, seria selvagem o homem cuja capacidade de destruio seria menos
impactante do que a capacidade do homem europeu?
A geografia tradicional um ponto de vista construdo com base na
cincia moderna, eurocntrica, cujo princpio se assenta na inveno do homem
universal civilizado do sculo XVIII, de modo que, tudo que no fosse europeu,
seria o contrrio disso. Durante muito tempo esse foi o paradigma dominante no
ensino de Geografia: a descrio do Outro visto a partir das narrativas mestras
eurocntricas, que reproduziam o Continente Africano com um lugar de povos
escravizados e de raa inferior, sem cultura, selvagem e extico.
Essa foi a ideia reproduzida nos contedos e currculos do ensino de
Geografia. Todavia, no Brasil, na dcada de 80 do sculo XX, o paradigma da
geografia tradicional foi abalado com a emergncia da geografia crtica, que
tinha como base e inspirao as ideias da Geografia Radical de cunho marxista.
Um grupo de autores brasileiros comeou a pensar o ensino de Geografia com o
poder de explicao do espao geogrfico a partir das diferenas sociais
produzidas pela desigualdade oriunda do sistema econmico capitalista. Seria a
desigualdade, consequncia do modo de produo, o que levaria diviso social
do tipo interclassistas, pobre e rico, m distribuio de renda e etc. Como pontua
Vesentini (1991, p. 13):
O confronto geografia tradicional versus geografia crtica,
assim, foi aos poucos cedendo lugar a uma diferenciao interna
geografia renovada ou crtica que mostra ter mltiplas vias.
[...] Enquanto, por um lado, ainda existe o professor
tradicionalista que ensina nomes de rios ou montanhas, por
outro lado h o fundamentalista, que substitui esse contedo
pela transmisso dos conceitos de modo de produo ou
23
formao scio-espacial. Ao mesmo tempo, surgem aqueles que buscam no somente substituir um contedo por outro, mas
principalmente uma relao pedaggica por outra (tornando o
aluno sujeito do conhecimento e construtor de conceitos, ao
invs de receb-los prontos; oferecendo material para a crtica
do capitalismo e tambm do socialismo real e do marxismo-leninismo; procurando ajudar na formao de cidados ativos e
no de militantes fanticos e intransigentes.
Como o autor defende, o paradigma da geografia crtica estaria voltado
para explicar o espao geogrfico a partir da desigualdade produzida pelo sistema
capitalista, e, ao mesmo tempo, desenvolvendo uma relao de ensino e
aprendizagem em que o aluno seria colocado na condio de sujeito, para que o
mesmo alcanasse a sua cidadania. Desde ento, o que tem sido observado que o
currculo de Geografia apresenta um misto de tendncias e de paradigmas, tanto
da geografia tradicional quanto da geografia crtica. Entretanto, hoje, o desafio
que est sendo posto pelas polticas educacionais de ao afirmativa, como a lei
10.639/03 que obriga o resgate da cultura afro-brasileira, a exigncia de um
ensino de Geografia, a respeito dessa temtica, com novas abordagens e diferente
das perspectivas tradicionais presentes nos currculos e programas em vigor.
Nesse trabalho, procuramos avanar a respeito da importncia do negro e
do resgate da cultura afro-brasileira, com base na reflexo dos paradigmas crtico
e ps-crtico no campo do currculo do ensino da disciplina Geografia e, nesse
sentido, buscou-se, ao mesmo tempo, o dilogo com o multiculturalismo
emancipatrio por entender que, epistemologicamente, esse conceito tem refletido
sobre o marcador de raa para alm do entendimento das teorias raciais do sculo
XIX, que se baseava no paradigma biolgico determinista do meio geogrfico
cuja base ontolgica est na inveno do homem do Iluminismo: universal,
civilizado, de raa superior, e que hierarquizava e classificava o Outro o no
europeu, como selvagem, sem cultura e de raa inferior.
Com base em Santos (2010), o multiculturalismo emancipatrio tensiona o
conceito de raa na perspectiva dos estudos culturais. Para Hall (2008), seria
esse um significado que opera sob-rasura, visto que, biologicamente, ele caiu,
contudo, mesmo assim, continua sendo lido sob outras perspectivas. Nesse
sentido, o multiculturalismo emancipatrio abre o debate para o reconhecimento
do negro e da cultura afro-brasileira, com base no jogo das diferenas histrico-
sociais sobre o qual foi construda a formao do povo brasileiro e em que o
24
africano foi marcado pela diferena de raa. Isso fez dele o inferior, o escravo,
aquele que esteve a servio da estrutura branca, crist e europeia (GONALVES
& SILVA, 2006).
Ao mesmo tempo, pensar o multiculturalismo emancipatrio significa
evocar o reconhecimento na diferena da diferena do Outro e nesse caso,
necessrio retomar, no mnimo, as narrativas mestras do sculo XVI, quando
ento foi pensado o projeto eurocntrico colonial, no qual em nome das certezas e
a afirmao do homem europeu, o Outro o africano era reconhecido de forma
negativa, como aquele que no tinha alma, sem direito de ter direito igualdade.
Ao contrrio, sua diferena era um marcador da sua desigualdade. Com base
nisso, hoje, para reconhecer, evocamos teoricamente as contribuies de Hegel
(2011), Honneth (2007), Fraser (2007); Taylor (1994) e outros que pensaram a
dialtica entre os sujeitos sociais na luta por reconhecimento, na perspectiva da
Filosofia do Direito e das polticas sociais.
Na educao, o reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira uma
luta que se realiza no campo do currculo e, para Silva (1995), o currculo um
campo contestado e de disputas, o que significa que culturas so includas e outras
so excludas, ou, s vezes, culturas so reconhecidas de forma positiva e outras
so reconhecidas com esteretipos e preconceitos. Nesse caso, muitos tm sido os
autores do campo do currculo que tm apresentado tendncias do
multiculturalismo e que abordam, portanto, conceitos e temas voltados para o
reconhecimento do Outro. Para Canen (2002, p. 37), estaria o multiculturalismo,
no campo da educao, voltado para a centralidade da cultura e da desconstruo
dos discursos educacionais, no sentido de resgatar ou at mesmo de construir
outros discursos alternativos de reconhecimento do Outro. Para a autora, o
multiculturalismo teria vrias formas de discursos: 1. o multiculturalismo
folclrico, que valoriza os mitos e festas populares que, geralmente, fazem parte
do currculo oficial, como o Dia do ndio, ou o Dia 13 de maio, em que se
comemora a Abolio; 2. o multiculturalismo crtico, que compreende a
desigualdade social como consequncia do modo de produo do sistema
capitalista, o que levaria a luta de classes; ou 3. o multiculturalismo ps-colonial,
uma tendncia que evoca e desafia o binarismo, ou seja, em outras palavras,
negro x branco, feminino x masculino e outros, que acabam por reproduzir, de
25
forma invertida, o binarismo eu x outro, normalidade x diferena, bons x maus
(CANEN, 2006, p. 39).
Na verdade, acreditamos que todo o referencial terico aqui citado, a
escolha de cada autor, foi feita pela relevncia e a contribuio de cada um,
porm, no corpo deste trabalho, ao propor o resgate do negro e da cultura afro-
brasileira para o ensino de Geografia, procuramos no nos prender a tipos e a
categorias, ou seja, cercar o campo da anlise na tentativa de manter a reflexo
dentro do referencial, mas, ao contrrio disso, o que se pretendeu que o
referencial fosse um meio para as possveis reflexes. O que se deseja construir
a narrativa do resgate do negro e da cultura afro-brasileira no ensino de Geografia
na perspectiva em que o multiculturalismo emancipatrio sirva de suporte, ou
seja, de meio para que se faa a bricolagem de diversos tipos de teorias e de
paradigmas diferentes que levem compreenso do que se quer, hoje, na prxis
do currculo do ensino de Geografia e que esse seja um meio e no um fim no
sentido de construir cidadania do aluno e de provocar a emancipao humana.
Para que isso ocorra e seja possvel, nos referenciamos em procedimentos
metodolgicos, que sero vistos no prximo item.
1.5 Referencial metodolgico
Para resgatar a importncia do negro e da cultura afro-brasileira no ensino de
Geografia, foi necessrio reunir, a partir da perspectiva do multiculturalismo
emancipatrio, pedaos de narrativas produzidas sobre diversos recortes com
base em paradigmas, que envolveram diferentes reas e campos de investigao,
para explicar os tipos de reconhecimentos, que foram feitos sobre o negro, desde
o sculo XVI at o sculo XXI. E, para isso, utilizou-se a pesquisa qualitativa
em educao por envolver um conjunto de prticas interpretativas para explicar
os conceitos de ensino de Geografia, currculo, livro didtico, cultura, raa,
renda, relacionados a tudo que se refere ao reconhecimento do negro. No
primeiro momento o procedimento foi selecionar os 10 volumes do stimo ano
das colees de livros didticos de Geografia aprovados pelo PNLD/MEC para
os anos seguintes: 2011 a 2013. O contedo do stimo ano, que aborda a
26
geografia do Brasil, so os volumes: 1. ADAS, Melhem. Construo do espao
geogrfico brasileiro - 7 ano. So Paulo: Editora Moderna, 2006; 2. SENE, E
de & MOREIRA, J. C. Geografia Moreira e Sene: Geografia: ontem e hoje
7 ano. So Paulo, Scipione, 2009; 3. VESSENTINI, J. W & VLACH, V.
Geografia Crtica: O espao brasileiro 7. So Paulo: tica, 2009; 4.
BOLIGIAN, L. [et al.]. Geografia espao e vivncia: a organizao do espao
brasileiro, 7. So Paulo: Atual, 2009; 5. BIGOTTO, J. F. [et al.]. Geografia
sociedade e cotidiano: espao brasileiro, 7 ano. So Paulo: Escala
Educacional, 2009; 6. CARVALHO, M. B & PEREIRA, D. A. C. Geografia do
mundo: Brasil, 7 ano. So Paulo: FTD, 2009; 7. SAMPAIO, F. dos S. [et al.].
Para viver juntos: geografia, 7 ano. So Paulo: Edies SM, 2009; 8.
MAGALHES, C. [et al]. Perspectiva. So Paulo: Editora do Brasil, 2009; 9.
DANELLI, S, C de S. Projeto Ararib: Geografia. So Paulo: Editora
Moderna, 2007; 10. PIRES, V & PIRES, B. B. Projeto Radix Geografia, 7
ano. So Paulo: Scipione, 2009. Todos os discursos com referncia ao negro e
cultura afro-brasileira foram recortados dos mesmos e distribudos nas
categorias4 de lugar, espao, paisagem, regio, territrio e populao, com o
objetivo de verificar em que medida esses conceitos eram refletidos pelo
paradigma da geografia tradicional e pelo paradigma da geografia crtica e, ao
mesmo tempo, interfaci-los com a discusso do campo do currculo na
perspectiva do multiculturalismo emancipatrio.
Reunido esse material, foi considerado esse o corpus da pesquisa. E, para
fazer os recortes das narrativas sobre o resgate do negro e da cultura afro-
brasileira foi utilizada a tcnica de anlise documental com base em Andr e
Ldke (1986, p. 40), que consideram o livro didtico documento oficial. Para
alcanar os devidos fins, que problematizassem os tipos de reconhecimentos do
negro e da cultura afro-brasileira do sculo XVI aos paradigmas multiculturais
foi necessrio dialogar com outras reas como a Sociologia, a Antropologia, a
Filosofia e com a Teoria do Currculo, portanto essa abordagem exige conhecer
as concepes de raa construdas no campo das Cincias Sociais e Polticas a
respeito do Outro. Sobretudo, por ser essa uma reflexo no domnio do campo
da Educao, na rea do ensino de Geografia, o que requereu um exerccio maior
4 Conforme mostra do apndice nas pginas 187-222.
27
e o mximo de rigor possvel. Na verdade, isso exigiu a tarefa de improvisar,
recortar, colar, e de confeccionar uma colcha multicultural, com diversos
pedaos de teorias e paradigmas sobre o negro e a cultura afro-brasileira do
sculo XVI lei 10639/03 no ensino de Geografia. Consciente dessa escolha,
medida que houve um esforo de mostrar como a relao do pesquisador com
o mundo a pesquisa passou a ser conduzida pela tcnica da bricolagem. Como
diz Kincheloe (2007, p. 17), a bricolagem um processo cognitivo de alto
nvel, que envolve construo e reconstruo, diagnstico contextual,
negociao e readaptao, e, com base nesse sentido, a partir de cada pedao e
recorte narrativo retirado dos livros didticos de Geografia, costurou-se cultura e
raa, como conceitos centrais na compreenso da narrativa montada sobre o
negro e a cultura afro-brasileira desde o sculo XVI. E, para refletir acerca de
cada recorte discursivo, categorias e conceitos foram bricolados, dos quais o
primeiro foi o reconhecimento social, que serviu de fio condutor na abordagem
da luta entre senhor e escravo, cuja batalha era de vida e morte, iniciada no seu
apresamento em frica at a sua re-construo-escrava na casa-grande no
cotidiano do engenho de acar.
A segunda parte da bricolagem foi feita dos diferentes pedaos de recortes
textuais sobre o negro e a cultura afro-brasileira em diferentes abordagens como a
culinria, a msica, a dana e a religio afro-brasileira, com base nos paradigmas
do ensino de Geografia, e dos fundamentos da Teoria Social do Currculo. O
reconhecimento social foi a categoria central e usada para colar e fixar as
narrativas multiculturais.
Na terceira parte da bricolagem, o estudo abordou o conceito renda e raa
que servem para hierarquizar, gerar preconceitos e a desigualdade entre negros e
brancos. Foram recortadas e coladas ainda, imagens relacionadas ao contexto
porque, como diz Manguel (2001, p. 24): as narrativas existem no tempo, e as
imagens, no espao e, nesse caso, elas tiveram a capacidade de auxiliar na
reflexo e de provocar na conscincia do intrprete e do espectador, tipos de
sentimentos sobre o reconhecimento do negro antes da Abolio, como mostra o
captulo 4.
Foram escolhidas seis imagens e um mapa, para compor a narrativa geral
do captulo. Na seo 4.1, a imagem 01, leo sobre tela, Moinho de acar,
28
Rugendas (1835), In: (ADAS 2006, p. 37); a imagem 02, leo sobre tela,
Engenho de acar em Itamarac, Post (1647), In: (Idem, 2006, p. 38).
Na seo 4.2, foram interpretadas as imagens fotogrficas: 03.
Manifestaes Populares In: (SAMPAIO, 2009, p. 40); 04. Oferendas
Iemanj, (Idem, 2009, p. 15); 05. Capoeira: luta e dana, In: (PIRES e PIRES,
2009, p. 68); e 06. Jovens no Ibirapuera In: (BIGOTO, 2009, p. 9).
Na seo 4.3, foi exposto o mapa 01, Analfabetismo no Brasil segundo a
cor ou raa, In: (DANELLI, 2007, p. 45). Para cada narrativa textual dos livros
didticos de Geografia recortada, seu fundo foi colorido na cor cinza, para ajudar
a compor a nuance da colcha bricoleur multicultural negro-afro-brasileira.
comum aos autores de livros didticos utilizarem fontes imagticas de domnio
pblico. Com isso, muitas imagens dos 10 livros analisados se repetem.
Na ltima seo 4.4, se recomenda que, para desconstruir as narrativas
mestras coloniais, seria necessrio descolonizar ideias e certezas, a partir dos
paradigmas ps-coloniais do reconhecimento da diferena na diferena.
Entendemos que, na pesquisa qualitativa, o seu campo de domnio no se prende
a um conjunto de tcnicas, quando esse no capaz de refletir a natureza de um
fenmeno social, como o da educao. nesse sentido, que a bricolagem
permite, e com rigor, fazer os recortes, as colagens e as montagens dos
diferentes discursos de tempos e espaos para um determinado fim do presente
trabalho (DENZIN & LINCOLN, 2006), contar a histria:
A interpretao na bricolagem no pode acontecer sem a
compreenso de uma ontologia relacional e de uma
hermenutica simblica. Por mais que essas noes possam soar
radicais, interessantes observar que tais conceitos no so
novos, j tendo sido expressos por poetas, griots e contadores de
histria em diversas civilizaes (KINCHELOE, 2007, p. 111).
Espera-se que, de acordo com a estrutura planejada nesse estudo, os
objetivos propostos tenham sido cumpridos com clareza e coerncia, e que
alcancem o leitor, a partir das generalizaes feitas pelo pesquisador, visto que,
como pesquisa qualitativa, esse seria seu fim, (ESTEBAN, 2010, p. 139),
conforme descrito na estrutura do trabalho.
29
1.6 Estrutura do trabalho
A tese se encontra organizada na seguinte estrutura: o captulo 1 trata o
reconhecimento no ensino de Geografia, com a abordagem para o resgate do
negro e da cultura afro-brasileira, com base nos discursos dos livros didticos,
na seguinte ordem: a apresentao do problema, a justificativa, os objetivos, o
referencial terico, o referencial metodolgico, e a estrutura do trabalho. No
captulo 2, trata da Geografia e do multiculturalismo com vistas para os
conceitos e tendncia da geografia tradicional, com abordagem racial sobre o
negro pela viso de La Blache (1921) e de Brunhes (1956) e, tambm, pelos
autores brasileiros, Carvalho (1935; 1949; 1963; 1967) e Azevedo (1943;
1958; 1959; 1968; 1976). Num segundo momento discute os paradigmas da
geografia tradicional e da geografia crtica e as implicaes hoje do
reconhecimento social na diferena e na igualdade racial. Na terceira
subseo, visa sobre o resgate do negro e da cultura afro-brasileira pensada a
partir do multiculturalismo no currculo. No captulo 3, discorre sobre a
contribuio de Freyre (1998) com a obra Casa-grande e senzala e de
Fernandes (1978; 2008) com a obra A integrao do negro na sociedade de
classes, em que o primeiro resgata o negro e a cultura afro-brasileira pela
cultura e o segundo retrata a tenso social vivida pelo negro na sociedade de
classes. No captulo 4, expe a interpretao dos dados dos discursos dos
livros didticos Geografia, com o recorte desde o sculo XVI, quando o
africano foi trazido da frica para ser escravizado e foi reconhecido como
coisa, at a Abolio, quando esse quadro foi mudado. Na segunda seo,
discute a msica, a capoeira, a culinria e a lngua como resgate e
reconhecimento da cultura afro-brasileira nos livros didticos de Geografia do
stimo ano, que refletiu o reconhecimento social do negro do passado at o
presente com a cultura hip hop. Na terceira seo, compara raa, renda e cor,
entre negros e brancos, como marcadores de desigualdades sociais. Para
finalizar, a ltima seo evoca a descolonialidade do ensino de Geografia para
que possa efetivamente levar emancipao humana do sujeito social.
30
2. GEGOGRAFIA E MULTICULTURALISMO
Para a geografia clssica tradicional sistematizada a partir do sculo
XVII, como mtodo, o mais importante seria descrever as coisas do espao do que
refletir as contradies sociais sobre elas (CLAVAL, 2001). Entretanto, no sculo
XX, com as transformaes sociais trazidas pela industrializao e pela
urbanizao, o paradigma da geografia tradicional com base na descrio das
coisas e dos lugares entrou em crise. Como uma cincia social, o seu desafio
passou a ser no somente descrever, mas explicar o espao e as suas contradies.
Para Corra (2003), o espao um dos conceitos-chave da Geografia pelo qual o
homem, atravs da cultura e do trabalho, dinamiza e significa os lugares na
paisagem. Para Moreira (2010, p. 61), a Geografia tem a funo de desvendar
mscaras sociais; por isso, seria ento sua funo revelar os porqus de, ainda
hoje, negros e brancos no Brasil socialmente viverem em espaos to desiguais.
Para refletir sobre isso e desvelar tais mscaras, na primeira seo desse
captulo, atravs do paradigma da geografia clssica tradicional, buscou-se saber
como que os gegrafos europeus interpretavam o homem africano no seu modo de
vida. Sabe-se a Geografia se baseava no mtodo descritivo, cuja finalidade seria
explicar as propriedades das unidades terrestres e tambm explicar a combinao
dos fenmenos naturais porque, poca, como diz La Blache (1982, p. 47) a
Geografia uma cincia dos lugares e no dos homens. O paradigma dominante
era de uma geografia com base naturalista e, neste sentido, se ocupava com a
descrio do espao em detrimento da reflexo social, com aquilo que seria
subjetivo ao homem (CLAVAL, 2009).
Dessa foram, o presente captulo trata dos conceitos e tendncias da
geografia tradicional, em que o homem africano visto pelos gegrafos europeus
como algum de raa inferior e no civilizado. No segundo momento do captulo,
a geografia crtica busca explicar as contradies e os conflitos sociais, em
seguida prosseguindo com a reflexo no mbito do ensino de Geografia com
vistas para o livro didtico e a crise dos paradigmas. Num terceiro momento, o
texto aborda a dialtica entre a diferena e a igualdade. E, para finalizar, reflete
sobre o multiculturalismo na educao com base na Teoria do Currculo.
31
2.1 A Geografia Tradicional: conceitos e tendncias
At h bem pouco tempo, os livros didticos de geografia distribudos pelo
MEC s redes escolares eram orientados por currculos e programas cujas
propostas pedaggicas valorizavam a reproduo de contedos, em que o professor
era o reprodutor e o aluno o receptor. Ao segundo cabia o papel de decorar
conceitos e temas propostos pelo primeiro, muitas vezes de pouco significado para
a sua vida. A funo da escola seria a de preparar o aluno para a aprendizagem do
contedo. Neste sentido, era papel do especialista fazer o controle do programa,
que exigia do professor o planejamento do contedo, o seu plano de curso, com
objetivos gerais e especficos do ensino, que deveriam ser distribudos de acordo
com a carga horria do ano letivo (DOTTORI, 1963, p. 185).
Na regncia, esperava-se do professor o domnio do contedo e a didtica
para orientar diferentes tipos de aprendizagens. No contedo ensinado, o mtodo
recorrente para fazer a transmisso era o mnemnico. A orientao era para
memorizar nomes de rios, pases, capitais, e responder a questionrios, colorir
mapas - tudo com o fim de induzir o aluno repetio do contedo ensinado, ou
seja, promover uma educao bancria5.
Durante muito tempo, esse modelo de educao inspirava certezas e abria
caminhos sociedade. Atualmente, essa tendncia de ensino, que tinha como
meio a repetio e a memorizao do contedo est em crise. Os objetivos
vinham esvaziados de crticas o que tornava a aprendizagem, muitas vezes, com
um fim em si mesma, distante da realidade do aluno, fazendo com que ele
desenvolvesse uma viso estreita de mundo. Entretanto, acerca dessa concepo,
Carvalho (1949, p.231) preconizava ao contrrio. No sculo passado, no Brasil,
autores de livros didticos concebiam um discurso, em que se dizia fazer uma
Geografia Moderna. Postulava a ideia de ser o homem, o elemento importante da
paisagem, o primeiro, o agente causador e transformador da paisagem cultural,
que dito com outras palavras, no que tange ao ensino da Geografia, significava ir
de encontro aos princpios da educao bancria. O que o autor queria dizer que
ele propunha, em seus livros didticos, um ensino de Geografia significativo e
aplicado vida do aluno. Todavia, analisando seus discursos em outras edies de
5 Um conceito de Paulo Freire, do livro Pedagogia do Oprimido. So Paulo: Paz e Terra, 1970.
32
seus livros, notamos que ele dialogava com o paradigma determinista (Homem e
Natureza) pelo qual categorizava a populao numa concepo naturalista. Esse
posicionamento terico foi mantido at final dos anos 60 (CARVALHO &
CASTRO, 1967, p. 28).
Enquanto isso, outras tendncias e abordagens emergiram no campo do
currculo no ensino da disciplina de Geografia. Graas quebra do paradigma da
geografia tradicional pela geografia crtica, novas perspectivas pedaggicas
surgiram revelando outras vises sobre o ensino e a aprendizagem. Agora o
momento era outro, e os desafios educacionais tambm eram outros, diferentes
dos anteriores. Entretanto, analisando-se as contribuies dos paradigmas
tradicional e crtico, notou-se um vazio deixado no currculo de geografia tocante
s polticas de identidade racial que refletissem acerca da populao negra, pois
esses paradigmas no foram capazes de traduzir de forma propositiva essa
questo. Dessa forma, s depois de mais de um sculo da Abolio da escravatura,
que custou caro sociedade e que deixou o racismo por herana, o Estado
reconheceu ser o Brasil um pas racista, e passou a criar polticas nesse sentido.
Desde ento, no sculo XXI, para reverter esse quadro, no mbito da educao foi
criada a Lei 10.639/03, que teve como finalidade resgatar a cultura afro-brasileira
e abrir possibilidades para repensar as diferenas tnicas e raciais, no sentido de
promover a igualdade social.
De acordo com isso, o presente captulo visa refletir acerca de temas e
paradigmas da geografia tradicional e da geografia crtica, e estabelecer um
possvel dilogo com as tendncias da geografia ps-crtica, que se caracteriza ao
querer novas perspectivas que ultrapassam o discurso crtico propositivo
transformador, ao oferecer uma viso menos monolgica da cincia geogrfica e
mais bricoleur na construo das narrativas (KINCHELOE & BERRY, 2007;
DENZIN & LINCOLN, 2006).
A fim de acurar o presente discurso desse trabalho, importante esclarecer
dois aspectos: o primeiro, o pblico alvo para o qual direcionamos os fins desta
tese, o professor que atua na educao bsica, e tambm a todos aqueles que tm o
interesse de compreender e de refletir sobre a educao das relaes etnicorraciais
no mbito escolar; e, o segundo: refletir, a partir da bricolagem, outras
epistemologias que apresentem aberturas para o dilogo com as polticas
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educacionais, com vistas para o reconhecimento da diferena na diferena para
pensar uma geografia de tendncia ps-crtica.
Historicamente, desde o incio da ocupao portuguesa, a geografia, como
cincia estava presente nos empreendimentos nuticos das Grandes Navegaes
no mar e na terra. Reconhecer territrios, controlar fronteiras e organizar espaos
eram os instrumentos desta cincia, os meios utilitrios usados pelo ento
colonizador para dominar lugares. Nos relatos deixados pelos viajantes e cronistas
da poca apaixonante a forma com que eles descreviam a beleza dos quadros
naturais e, sobretudo, das paisagens brasileiras. Vista de outro ponto, outras vezes
era possvel constatar raas e cores atravs das pinturas e de desenhos de artistas
europeus que tanto traduziram o cotidiano patriarcal e escravocrata, ora na
Colnia, ora no Imprio. Como se sabe, a histria do descobrimento um arranjo
feito de narrativas sobre a ocupao europeia, que passou a ser contada pelo
vencedor. E, nisto, a Geografia serviu para instrumentalizar o conquistador que
soube estabelecer os seus domnios territoriais na organizao do espao.
Mas, foi no sculo XIX, com a inaugurao do Instituto Histrico e
Geogrfico Brasileiro IHGB, criado em 1838, um marco da investigao
cientifica do pas, que o estudo da Geografia se sistematizou como uma cincia
(MARY, 2010). Para Schwarcz (1993, p. 99), poca, o IHGB inaugurou a era
dos homens de cincia aqueles que vo colligir, methodizar e guardar
documentos. A esses cabia o papel de escrever a histria e de produzir os mitos
fundacionais do Brasil tocante a sua diversidade e a sua grandeza natural. Para
isto, a histria servia para fabricar heris e geografia para descrever os aspectos
territoriais e naturais dessa fbrica de nao.
Todavia, a pesquisa cientfica, de fato, s se consumou no limiar do sculo
XX, a partir dos anos 30, com a fundao do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatstica - IBGE, voltado para pesquisa quantitativa e que, at hoje, um rgo
de referncia federal. Haja vista que, durante muito tempo, este instituto
contribuiu sobremaneira para com o ensino de geografia. Por mais de trs
dcadas, publicou a Revista Tipos e aspectos do Brasil, uma sntese das
potencialidades naturais e culturais do pas, feita com as ilustraes em bico de
pena por Percy Lau6 (BRASIL/IBGE/CNG, 1966); e tambm proporcionou o
6 (1903-1972) desenhista contratado pelo IBGE. Seu trabalho, segundo Lustosa (2000, p. 3) vai
alm disso. Ele insere-se num seleto grupo de artistas grficos que muito contriburam para o
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curso de frias para professores, no ano de 63, na cidade do Rio de Janeiro e,
um ano depois do treinamento, foram publicadas as smulas das aulas e
disponibilizadas pelo IBGE (BRASIL,1964).
Em So Paulo, nesta mesma dcada de criao do IBGE, foi fundada a
Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo
(FFCL/USP) e, doze anos depois, em 1946, criou-se o Departamento de
Geografia, muito importante para o desenvolvimento da cincia geogrfica e para
a formao de bacharis e para a formao de professores licenciados para o
ensino da disciplina de Geografia (PONTUSCHKA, 2007). poca da fundao
do Departamento de Geografia, parte dos professores que assumiu as cadeiras no
curso veio da Frana, como Pierre Deffontaines, Pierre Monbeig, entre outros.
Certamente, esta ligao entre o Brasil e a Frana contribuiu para que o
pensamento geogrfico brasileiro fosse influenciado pelas tendncias da Escola
Francesa, de Paul Vidal de La Blache (1845-1918), o seu maior expoente.
Enquanto isto, na Frana, o ensino de geografia j havia se consolidado
sob a gide da geografia tradicional cujos paradigmas refletiam muito do
discurso nacionalista daquele pas, que difundia o projeto imperialista e
civilizatrio com o domnio colonial na Amrica, frica, sia e na Oceania. Por
isso, era urgente ao francs conhecer as suas potencialidades naturais e culturais,
para ento civilizar o Outro7 e fazer o controle do seu territrio. Neste sentido,
a geografia, antes de mais nada, serviu para afirmar a civilizao francesa, pela
qual o Outro foi interpretado como o no civilizado, o no francs, o no branco.
Tocante ao campo do ensino, as tendncias pedaggicas tinham como fim
difundir a ideia de que era papel da disciplina de Geografia descrever o espao
como algo real, ou seja, como ele parecia ser. Sendo assim, devia a disciplina
levar a criana a desenvolver habilidades e competncias de como aprender a
descrever a regio e a gostar do seu lugar como um francs. No era importante
raciocinar e desenvolver um senso crtico no aluno sobre o espao descrito e
inventariado na aprendizagem. O importante para o ensino era se ocupar em fazer
uma geografia que despertasse o patriotismo e o esprito de pertena sua nao
(BRABANT, 1994).
desenvolvimento da tcnica do desenho e da gravura no nosso pas. Sua produo tornou-se uma sntese do Brasil, um banco de imagens dos quadros naturais e culturais. 7 Grifo meu. O outro tem o sentido de inferior; pelo discurso epistemolgico colonial ele
diminudo.
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De fato, a geografia escolar teve suas tendncias pedaggicas baseadas nos
paradigmas da geografia tradicional e, como diz La Blache (1921), esta era uma
cincia dos lugares. Na sua concepo, o papel do gegrafo era o de se ocupar
com a descrio da paisagem e de como ela parecia ser com os seus recursos
naturais, como o clima, o relevo, a vegetao, os mares e os oceanos e, a partir
desses diferentes quadros, explicar como que o homem se adaptou ao meio. Para
tanto, o autor desenvolveu uma metodologia de anlise de grau de civilizao,
chamada de modo de vida8. Esta metodologia permitia, a partir da observao,
avaliar o grau que variava do de selvagem ao de civilizado. O modo de vida na
escala de aferio, inclua o critrio de hbitos, costumes e valores do primitivo ao
mais complexo dos valores dos civilizados. O conjunto de tcnica e o seu domnio
o que definia o grau de evoluo da raa ou de um povo. Quanto maior domnio
das tcnicas, menor dependncia o homem tinha do meio.
Para compreender uma corrente ou um pensamento, fundamental
conhecer a epistemologia que lhe d o suporte terico. Da, nesta seo,
buscarmos compreender os fundamentos da geografia tradicional e a sua
contribuio para o ensino de Geografia no que tange questo racial do negro.
Por isso, perguntamos: qual seria o objeto de estudo da geografia tradicional?
Qual seria o sentido de homem, natureza, meio, raa e paisagem, de acordo com
esse paradigma? Responder a estas questes certamente esclarece os paradigmas
de uma poca, desde que haja o esforo alteridade, prtica de se colocar no
lugar do Outro, para que no faamos uma anlise maniquesta sobre as suas
tendncias.
A geografia tradicional, nascida com a Cincia Moderna, teve origem no
campo da Fsica e da Matemtica, e foi atravs dessas reas, dessa base
epistemolgica, que ela se firmou como cincia natural e fsica. Com isso, o seu
mtodo se desenvolveu com base no determinismo biolgico e geogrfico, em que
o meio natural era determinante sobre o meio social, mas, segundo Claval (2001),
s no sculo XX, com a emergncia do paradigma da Geografia Humana, esse
entrou em crise. Com base no paradigma biolgico, a classificao da populao
era determinada por raa pelo meio natural geogrfico, como o clima e o relevo,
sendo que esses fatores seriam determinantes para a evoluo do homem. Este,
8 Grifo meu. Modo de vida a capacidade de criar tcnicas para se adaptar ao meio natural e at
transform-lo.
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embora fosse o objeto de preocupao da geografia tradicional, era o produto do
meio natural, estava suscetvel natureza. Para o pensamento geogrfico fsico,
numa escala natural, o homem estava sujeito s foras determinantes do meio
assim como os demais animais; contudo, o que o diferenciava estaria na sua
habilidade e no seu esforo intelectual que o colocavam num ranking de evoluo
que ia do marco um, do homem primitivo (o selvagem), ao mais alto grau (o
civilizado). A diferena, portanto, entre o selvagem e o civilizado estaria no
domnio da artificialidade que o segundo tinha sobre a natureza, enquanto, no
primeiro, a natureza era determinante sobre ele. Isso foi possvel graas ao
desenvolvimento de estudos etnogrficos que permitiam descrever os diferentes
graus de evoluo da populao e a sua distribuio segundo os critrios naturais
e raciais sobre os diferentes estgios dos habitantes do globo (RATZEL 1990, p.
72). A este autor deve-se a introduo dos princpios da Geografia Humana, visto
que ele foi pioneiro ao propor a Antropogeografia, um subcampo da Geografia
Fsica e Natural. Como tal, suas reflexes avanaram no que tange s questes do
homem. Ainda que sob uma tica determinista de forte e fraco, potencializava
pelo menos a dimenso poltica e psicossocial do homem no espao, quando
ento, este passa a ser objeto de disputa vital da luta pelo territrio.
Foi o determinismo geogrfico e biolgico a base do paradigma
hegemnico entre os gegrafos do sculo XIX, e foi tambm o que embasou o
pensamento da geografia tradicional. Para a Geografia daquele sculo, no se
pensava o espao do homem, mas o espao dominado pela natureza; e isto,
poca, era a base do discurso e do pensamento naturalista que, como tal, partia da
premissa de que o homem era o produto do meio, portanto, estaria ele suscetvel
ao determinismo do clima, relevo, vegetao e outros elementos; e, ao mesmo
tempo, essas variveis eram dominantes e influenciavam o comportamento do
homem. De acordo com esse paradigma, no era objeto da Geografia ocupar-se
com paixes, sentimentos, subjetividade humana, temas para outra Cincia, como
a Sociologia. A Geografia devia se ocupar em descrever as coisas do espao
natural; a dimenso poltica e social no era o seu objeto (MARTINS, 1921).
Nesta concepo, a paisagem era um conjunto de unidades que compunha
o quadro natural geomorfolgico. Quanto a distribuio da populao sobre a
Terra, explicava-se a partir do meio natural geogrfico. Mesmo com suas
tcnicas, o homem vivia sob o imperativo do determinismo geogrfico, e era
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passvel de ser observado em diferentes estgios da evoluo, o que podia variar
de acordo com a raa e o seu modo de vida. Quanto menor fosse o seu domnio
sobre as tcnicas, maior seria a probabilidade do seu atraso na escala da evoluo
humana.
Ao explicar a atuao do homem sobre o meio, La Blache (1921) criou
uma categoria de anlise chamada de modo de vida, uma categoria intelectual que
tinha a funo de avaliar em larga escala o quadro natural e o quadro humano da
Terra, e as relaes das coisas que havia sobre ela. Nesta avaliao, o autor fazia
um inventrio geogrfico e estabelecia a relao do meio com o homem. Para ele,
as variveis naturais ainda determinavam povos e raas, contudo, de acordo com o
grau do modo de vida, o homem podia variar de selvagem a civilizado; segundo a
sua capacidade humana de transformar e de modificar o meio, de acordo com o
domnio das tcnicas de que ele dispunha. Entre muitos procedimentos de campo,
La Blache (1921) avaliou o modo de vida dos povos andinos e dos ndios do
Amazonas e atribuiu a um conjunto de variveis naturais e biolgicas grau de
evoluo desses povos, a ponto de acreditar que o clima determinava o seu estado
natural, e que isso atingia o fsico e afetava tambm o seu comportamento, como
ele prprio coloca:
A igual suavidade das temperaturas e a facilidade do clima
no so, provavelmente, a causa nica desse fato. Como a
presso atmosfrica diminui sensivelmente nessas elevadas
altitudes, a combinao do oxignio do ar com os glbulos
do sangue opera-se mais lentamente nos pulmes: a apatia,
a repugnncia por todo o prolongamento de esforo
muscular ou outro qualquer seriam, segundo observaes
dignas de f, a consequncia deste afrouxamento do
mecanismo essencial que, pelo sangue, age sobre a vida
nervosa (LA BLACHE, 1921, p. 163).
Ao ser avaliado o modo de vida dos povos americanos, concluiu o autor
que os mesmos ainda viviam num grau baixo da evoluo humana e estariam
longe de conquistar o progresso e tornarem-se uma gente civilizada, isto porque
os fatores naturais ainda seriam determinantes sobre o modo de vida de cada um.
Homem e meio so conceitos importantes apresentados em Princpios de
Geografia Humana (1921). Para ele, o homem encontrava-se numa escala de
evoluo em diferentes graus conforme o modo de vida e o quadro que
diferenciava a distribuio da populao sobre a Terra por raa, que ia de superior
a inferior tinha na sua organizao, muito dos aspectos naturais (o meio) e isto
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determinava tipos e comportamentos diferentes. Na explicao dos fatores
naturais sobre o homem americano, para ele, a raa importante e o que explica
o seu comportamento e a sua moral:
Provenientes de raas, por certo, muito diversas, eles parecem,
entretanto, haver contrado, sob a influncia do ambiente, um
carter comum que se enraizou: a antipatia pelo esforo. [...] eu
recordo-me de ter ficado surpreendido, no Mxico, com a falta
de movimento e da alegria, at dos prprios garotos, naqueles
grupos que se formavam para as refeies volta dos cais das
estaes. No seria isto apenas um simples efeito de
hereditariedade fisiolgica? (Idem, 1921, p. 163).
O que se observa que, ao se tratar do homem e do meio, ainda que La
Blache (1921) tenha avanado sobre as relaes do desenvolvimento e da
apropriao das tcnicas no modo de vida, para ele, ainda no ficava claro se o
que diferenciava o comportamento dos povos mais atrasados era o meio
geogrfico ou se isso se devia a fatores internos (subjetivos) de cada povo, ele
deixa em aberto a possibilidade de acompanhar com maior frequncia o
comportamento de tais fenmenos. Na verdade, ainda que o homem se mostrasse
ativo natureza, e evoludo e civilizado, mesmo assim, por outro lado, estaria
sujeito tambm aos fatores do meio geogrfico, de acordo com o seu grau de
evoluo. Para ele, o homem que no estava no mesmo nvel de evoluo do
homem francs, mas, o contrrio, o oposto disso, como era o caso do homem
americano, o determinismo biolgico e geogrfico explicava o seu tipo de
comportamento.
Em Princpios de Geografia Humana (1921), o autor considerou tudo
aquilo que fazia parte do processo civilizatrio para descrever a distribuio
humana no globo, as desigualdades e as anomalias, os instrumentos, os modos de
alimentao, a habitao, meios de transportes, estradas, caminhos de ferro, tipos
de navegao martima ou lacustre, ou seja, tudo que ele alcanou e viu no seu
tempo. Sem dvida, seu trabalho representou um legado para a Geografia Humana
mundial. Contudo, no se pode perder de vista que os seus estudos sobre o homem
e o meio foram produzidos numa poca em que o paradigma dominante era o da
Geografia Fsica com base naturalista e no determinismo biolgico. Portanto,
todas as referncias do homem possibilista e civilizado, notado em seu discurso,
se voltavam para o homem branco e europeu, porque, para La Blache (1921), os
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outros povos no eram civilizados, estavam em diferentes fases de sua evoluo e,
nessa escala, a evoluo prosseguia em seus extremos: de selvagem a civilizado.
Quem tambm corroborou para com o pensamento da Geografia Humana
foi Brunhes (1869-1930), contemporneo de La Blache (1845-1918): foi ele
quem imps a denominao Geografia Humana em lugar da de
Antropogeografia, diz Deffontaines (1956, p. 9). Segundo esse autor, assumir
uma cincia inteiramente humana, era uma postura ousada, visto que, naquele
tempo, o hegemnico era o paradigma naturalista.
A Geografia Humana tratava de tipos de atividade humana, que no
tinham fora de explicao na Geografia Fsica. A partir dela, o homem saa do
imperativo da natureza e ganhava fora de explicao sobre si mesmo e sobre a
sua capacidade de transformao, sobre o espao, como aborda o autor:
Os homens reflorestam; desse modo, moderam a obra destrutiva
das enxurradas e modificam os climas. Plantam o pinheiro
martimo, para fixar as areias, e a zostera, para fixar a lama
submarina. Em meio aos seres viventes, podem regular e
orientar numerosas selees artificiais; cultivam plantas e
domesticam animais. O conjunto de todos esses fatos de que
participa a atividade humana um grupo verdadeiramente
especial de fenmenos superficiais: ao estudo dessa categoria de
fenmenos geogrficos, damos o nome de Geografia Humana
(BRUNHES, 1956, p. 27).
Todo o tipo de atividade produzida pelo homem passava a ser explicada
como um fenmeno humano, artificial, ou seja, criado por ele e no mais
atribudo ao natural. Transformaes espaciais a partir da fora econmica,
tecnologia desenvolvida pelas grandes civilizaes, o homem tornava-se agora
capaz de alterar a paisagem numa velocidade nunca vista antes, e isto o autor
conceituou e passou a chamar de fora destrutiva. A Geografia Humana, obra
deixado por Brunhes (1869-1930), um legado para os estudiosos e, neste
trabalho, a sua contribuio sobre as atividades humanas relevante. O seu
esforo levou a uma geografia cujo poder de explicao saiu da esfera da natureza
para a esfera econmica, poltica, e social.
A partir dessa perspectiva, as mudanas ocorridas no espao no eram
mais obra apenas da natureza, um agente modelador e transformador. Agora, o
poder de transformar, e de destruir e reconstruir vinha das tcnicas e da
inteligncia humana capazes de produzir espao exclusivamente artificial, como
era o caso das cidades que acompanhavam o fenmeno urbanizao. Artificial,
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para Brunhes (1956), era tudo aquilo que o homem fazia e que a natureza era
incapaz de fazer.
O foco sai da natureza e volta-se para o homem. O poder de explicao
que ele busca no est no Fsico, no natural, mas, no humano, no artificial, ou
seja, naquilo que o homem faz no e com o espao, de homem para homem e com
os homens.
Neste trabalho, notamos que o autor se preocupava em fundamentar a
Geografia Humana metodologicamente. Procurava dialogar com os gegrafos, os
seus contemporneos, para sistematizar e classificar o campo que ele entendia ser
da Geografia Humana, tomou o cuidado de organizar os fatos da Geografia
Humana, o que ele chamou de Geografia das necessidades vitais bsicas, comer,
dormir, vestir-se, e classificou mais duas categorias, a Geografia Poltica e a
Geografia da Histria. Ento, nesse sentido inaugurou uma geografia do homem e
no da natureza. Seguindo essa perspectiva, organizou a Geografia Humana por
fatos essenciais, ou seja, explicava a ocupao improdutiva do solo com base nos
fatores humanos; tratava de descrever formas e tipos de ocupao humana
distribudas na paisagem, como casas, aldeias, ruas, estradas, cidades,
fortificaes e etc.
Um segundo grupo de fatos por ele classificado, diz respeito descrio da
conquista do homem sobre o mundo vegetal, animal e cultural. Neste grupo,
numa escala global sobre os elementos naturais, o autor estabeleceu um paralelo
da fora destrutiva entre os povos civilizados e os povos selvagens. Ele dizia que
a devastao do quadro natural feito pelos povos civilizados era quase
irrecupervel, enquanto a destruio feita pelos povos selvagens era passvel de
recuperao. Mas essa comparao no era a mais importante, no sentido da fora
destrutiva. O poder maior da ocupao destrutiva ficava com as exportaes de
recursos naturais conquistados dos selvagens pelos civilizados. Sobre isto, o autor
vai alm da funo de descrever os fluxos e o seu impacto destrutivo. Nota-se que,
ao referir-se s modalidades de ocupao, ao falar dos povos primitivos
africanos explorados pelos civilizados, passvel de observao um senso de
justia em seus argumentos sobre a forma com que eram tratados os selvagens:
Uma das formas mais repugnantes da devastao entre os
homens o trfico de negros. Em seus incios, a colonizao
europeia desenvolveu a escravatura, transplantando infelizes
negros de um continente para outro. A colonizao muito
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frequentemente prejudicou os selvagens, seja pela destruio de
seus recursos alimentares, seja