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\UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO UMA CARTOGRAFIA DA PRODUÇÃO DO RACISMO NO CURRÍCULO VIVIDO NO COTIDIANO ESCOLAR DO ENSINO FUNDAMENTAL SANDRA MARIA MACHADO VITÓRIA/ES 2011

Tese Educacao Es Racismo

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Tese

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  • \UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO

    CENTRO DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    MESTRADO EM EDUCAO

    UMA CARTOGRAFIA DA PRODUO DO RACISMO NO

    CURRCULO VIVIDO NO COTIDIANO ESCOLAR DO ENSINO

    FUNDAMENTAL

    SANDRA MARIA MACHADO

    VITRIA/ES 2011

  • SANDRA MARIA MACHADO

    UMA CARTOGRAFIA DA PRODUO DO RACISMO NO CURRCULO VIVIDO

    NO COTIDIANO ESCOLAR DO ENSINO FUNDAMENTAL

    Trabalho dissertativo apresentado como requisito final obteno do Ttulo de Mestre em Educao pelo Programa de Ps-Graduao em Educao PPGE-UFES, na Linha de Pesquisa Currculo Cultura e Formao de Educadores.

    Orientadora: Professora Doutora Janete Magalhes Carvalho.

    VITRIA

    2011

  • Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

    Machado, Sandra Maria, 1965- M149c Uma cartografia da produo do racismo no currculo vivido

    no cotidiano escolar do ensino fundamental / Sandra Maria Machado. 2011.

    185 f. : il. Orientador: Janete Magalhes Carvalho. Dissertao (Mestrado em Educao) Universidade

    Federal do Esprito Santo, Centro de Educao. 1. Histria. 2. Escravido. 3. Racismo. 4. Currculos. I.

    Carvalho, Janete Magalhes, 1945- II. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Educao. III. Ttulo.

    CDU: 37

  • s Minhas MES JOANAS:

    Joana da Conceio Machado (in memorian), minha av paterna a quem serei eternamente grata por ter me ensinado, na prtica, a importncia do carinho e cuidado no meu processo de subjetivao.

    Joana Carlesso Braz, amiga a quem agradeo, entre muitas outras tantas coisas, a oportunidade de ter ingressado no magistrio, quando apostou em mim e abriu todas as portas, sem que eu tivesse nenhuma experincia no sentido profissional, e tambm no pessoal quando me acolheu, desde o final da minha adolescncia.

  • AGRADECIMENTOS

    No consigo passar por momentos importantes na minha trajetria de vida sem

    lembrar-me de pessoas a partir das quais me constitu, sem mencionar aquelas as

    quais julgo de muitssima importncia, as que se deixaram marcar e que tambm me

    fizeram marcar, de uma forma ou de outra. Este trabalho amplia mais um captulo da

    minha histria e, consequentemente, as pessoas que acompanharam neste

    processo, de uma forma especial a escreveram comigo. Citarei apenas algumas das

    muitas que, de forma explcita e implcita, me empurraram em direo vida, nesta e

    em outras caminhadas que espero no terminar aqui.

    Amiga e companheira de muitos anos, torcedora fiel e maior, Sandra Maria

    Zambaldi, pela presena, cuidado, carinho, amor, pelo exemplo de f, persistncia e

    compreenso irrestrita com relao aos vrios acontecimentos do nosso cotidiano e

    apoio, principalmente nos dois ltimos anos da nossa vida em comum.

    Marluce Leila Simes Lopes, que conheci em agosto de 2007, que me faz

    acreditar na possibilidade de retorno vida, ameaada, na poca, por um problema

    de sade, hoje superado. Ao incentivo para que eu certificasse os conhecimentos

    adquiridos atravs da autoformao sobre as questes relacionadas cultura

    afrobrasileira. Por se permitir fugir de sua vida pessoal e de sua pesquisa j

    iniciada, para que pudssemos discutir sobre a importncia da temtica para a

    formao de professores, que resultou no projeto inicial dessa pesquisa.

    minha me, Santa Glria Reali, pelas ausncias e presenas, marcantes nos

    momentos mais diversos e que me fizeram entender que presena, nem sempre

    estar perto fisicamente, da mesma forma que ausncia no simplesmente estar

    longe.

    Minha querida Tia Dalva Reali por ter sido presente em momentos decisivos da

    minha vida.

    Professora Doutora Janete Magalhes Carvalho, com quem propiciei o prazer do

    primeiro, de muitos bons encontros no momento da entrevista para seleo do

  • curso de Mestrado, em 2008, a quem aprendi a admirar pela inteligncia, pacincia,

    dinamismo, coerncia, serenidade, carinho e outros tantos adjetivos sinnimos a

    esses. Por ter me feito ver/sentir a Filosofia com olhos de que enxerga o invisvel.

    Ao Professor Dr. Carlos Eduardo Ferrao, pelo companheirismo irrestrito e

    cumplicidade em momentos decisivos durante curso e pela garra com que se coloca

    diante da vida.

    Professora Doutora Regina Helena S. Simes, pelo prazer que me proporcionou

    em todos os momentos em que pude ouvi-la, durante suas aulas, e nos momentos

    informais nos corredores do PPGE.

    Professora Doutora Maria Aparecida Santos Corra Barreto, mulher guerreira a

    quem admiro, desde quando ainda no a conhecia mais de perto, por representar

    to bem o povo negro capixaba. Obrigada por gentilmente aceitar fazer parte desta

    avaliao.

    Professora Dr. Nanci Helena Rebouas Franco, pelo carinho e entusiasmo com o

    qual inicialmente aceitou fazer parte da banca de defesa deste trabalho e,

    posteriormente, pela responsabilidade, leitura atenta e elaborao de um parecer

    cuidadoso e entusiasmado sobre o mesmo.

    Famlia Zambaldi, em especial aos membros que me tm mais de perto: Djanira,

    Graa, Jamile, Rayane, Maria Aparecida, Luis Neto e Rodrigo, pelo carinho, afeto e

    torcida incondicional.

    Maria da Penha Stefanelli Carlesso, a quem poderia eu chamar de av, me e

    amiga, pelo carinho, cuidado dispensado a mim, durante todo o tempo em que

    estivemos prximas. Estendo meus agradecimentos, nesse mesmo sentido, a

    Aguimar Brz, Geovana e Guilherme Carlesso Brz pelo apoio incondicional.

    s amigas Jenilza Spinass Morellato e Ironilda Rangel pelo apoio, torcida, carinho,

    afeto, parceria e ouvido atento aos desabafos, quando as presses emocionais

    pareciam insuportveis. Obrigada pela presena constante. Nesse item, incluo,

    tambm, os amigos Srgio Pereira dos Santos e Geisa Hupp Lacerda.

  • Aos colegas e amigos da Escola Esperana do Rio Francs, com os quais estudei

    as primeiras sries do Ensino Fundamental, principalmente Margarida Vergna

    Bosi, minha eterna amiga, cuja existncia me ajudou superar a frustrao de no ter

    podido estudar no perodo compreendido entre os meus 10 e 15 anos de idade.

    Escola Resistncia, na representao de todo seu corpo tcnico e administrativo,

    pelo espao cedido para a realizao da pesquisa e aos estudantes com os quais

    pude compartilhar momentos de frustraes e alegrias, durante nossos encontros.

    Patrcia Gomes Rufino Andrade, pelo companheirismo demonstrado em

    sondagens, em que somos submetidos ao caminhar em direo a novos e

    potentes encontros.

    s Secretarias Municipais de Educao de Joo Neiva e de Aracruz pela liberao

    sem prejuzos de vencimentos durante o perodo necessrio para a concluso do

    curso que agora termina.

    Aos colegas da turma 23, pela convivncia respeitosa e amigvel durante o tempo

    em que permanecemos juntos, em especial, os especiais que, sem cit-los, sabem

    de quem falo.

    CEAFRO de Aracruz, em todas as suas constituies, por ter me feito ampliar os

    horizontes em direo s questes raciais, onde conheci pessoas que me fizeram

    estimulavam caminhar em busca de novas possibilidades, nem por isso, livre de

    frustraes e angstias, que as questes raciais despertam naqueles que trabalham

    com tal temtica.

    Vera Lcia Vicente, que fez parte da minha vida em momentos cruciais e decisivos

    para minha formao acadmica, mesmo que no nos encontremos fisicamente com

    frequncia, sua presena na minha vida.

    Aos companheiros, Gustavo Henrique Forde, Luis Carlos Oliveira, Yasmim

    Poltronieri Neves, obrigada pela torcida e incentivo durante pesquisa.

    secretaria do PPGE, em especial Maria Inez Rozalem Capaz, pela simpatia,

    ateno, dinamismo e humanizao com que executa suas funes.

  • A todos aqueles que no aparecem, os invisveis, que de alguma forma

    colaboraram nas aes simples, mas que, sem elas, a elaborao desse trabalho

    no seria possvel.

  • V buscar seu povo. Ame-o

    Aprenda com ele Comece com aquilo que ele sabe

    Construa sobre aquilo que ele tem. (KWAMW NKRUMAH)

  • RESUMO

    Esta pesquisa caracteriza-se em um estudo sobre os processos de perpetuao do

    racismo no Brasil e suas formas de atualizao, entre e para com os estudantes das

    sries iniciais do Ensino Fundamental de uma escola pblica localizada na regio da

    Grande So Pedro, municpio de Vitria, ES. A pesquisa objetivou buscar, na

    cartografia da histria oficial, as marcas deixadas pela escravido e como elas se

    atualizam nos fluxos do cotidiano escolar. Buscou tambm problematizar as prticas

    de educadores em relao a posturas caracterizadas como racistas que, de acordo

    com inmeras pesquisas, acontecem constantemente no cotidiano escolar; como a

    escola prope, caso proponha, a ressignificao dos saberes construdos e/ou

    adquiridos durante a formao dos professores; de que forma o Continente frica

    representado no currculo praticado na escola e o que prope o Projeto Poltico

    Pedaggico da instituio sobre a temtica em questo. A proposta metodolgica

    desta pesquisa partiu dos conceitos de cartografia defendidos por Rolnik (1989),

    Kastrup (2007) e outros. Os intercessores tericos pra discutir os poderes e saberes

    no cotidiano escolar e para alm dele foram Certeau (1994, 1995), Carvalho (2007,

    2008 e 2009), Ferrao (2004 e 2007), Sousa Santos (2002, 2006 e 2008), Santos

    (2002) e outros. Para os Estudos Culturais, recorremos aos aportes tericos,

    Canclini (2008), Hall (2006 e 2008), Gomes (2002, 2003, 2005 e 2008) e outros. A

    anlise histrica, no que se refere questo de raa e racismo no Brasil, nos

    baseamos em Guimares (1999 e 2002), Munanga (1989, 2000, 2006, 2008 e

    2009), Hasenbalg (2005), Moore (2005, 2007 e 2008) Schwarcz (1997, 2006 e 2007)

    e outros. Conclui que as discusses sobre a questo racial no espao escolar

    comeam a aparecer, porm, ainda de forma truncada e incipiente.

    Palavras-Chave: Histria. Escravido. Racismo. Currculo.

  • ABSTRACT

    This research is characterized in a study about the processes of perpetuation of

    racism in Brazil and its ways to be up to date, from and to students of early grades of

    elementary school in a public school located in the region of Grande So Pedro, in

    the city of Vitria, ES. The survey aimed to gather in the official history of

    cartography, the marks left by slavery and how they are updated in the flow of

    quotidian of school. Also searched to problemize educators performances related to

    stances characterized as racist that, according to numerous studies, are constantly

    taking place in school life; how the school proposes, if it does, the resignification of

    the knowledge which were built and/or acquired during the teachers formation; how

    the African continent is represented into the curriculum practiced in schools and what

    the Political Pedagogical Project from the institution proposes about the topic in

    question. The methodology proposal of this research came from mapping concepts

    of cartography advocated by Rolnik (1989), Kastrup (2007) and others. Intercessors

    theorists to discuss the power and knowledge in school life and beyond were Certeau

    (1994, 1995), Carvalho (2007, 2008 and 2009), Ferrao (2004 and 2007), Sousa

    Santos (2002, 2006 and 2008), Santos (2002) and others. For the cultural studies we

    used the theoretical framework, Canclini (2008), Hall (2006 and 2008), Gomes (2002,

    (2003, 2005 and 2008) and others. The historical analysis, referring to race and

    racism, we based on Guimares (1999 and 2002), Munanga (1989, 2000, 2008 and

    2009), Hasenbalg (2005), Moore (2005, 2007 and 2008), Schwarcz (1997, 2006 and

    2007) and others. Concludes that discussions about race in the school begin to

    appear, but in a truncated and nascent way, requiring investments, mainly in teacher

    formation.

    Key Words: History. Slavery. Racism. Curriculum.

  • LISTA DE SIGLAS

    ACPV Associao de Catadores de Papel de Vitria.

    CE - Centro de Educao.

    CEAFRO - Comisso de Estudos sobre a Cultura Afro-brasileira.

    CECUN - Centro de Estudos da Cultura Negra.

    CF - Constituio Federal.

    CNE - Conselho Nacional da Educao.

    CNPq - Conselho Nacional de Pesquisa.

    CST - Companhia Siderrgica de Tubaro.

    EMEF Escola Municipal de Ensino Fundamental.

    EMEI - Escola Municipal de Educao Infantil.

    ERER - Educao para as Relaes Etnicorraciais.

    IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica.

    IDEB - ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica.

    IFES - Instituto Federal do Esprito Santo.

    IML - Instituto Mdico Legal.

    INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Ansio Teixeira.

    MN - Movimento Negro.

    NEAB - Ncleos de Estudos Afro-Brasileiros.

    ONU - Organizao das Naes Unidas.

    PNIDCNs-ERER Plano Nacional para Implementao das diretrizes Curriculares

    para a Educao das relaes Etnicorraciais.

    PPGE - Programa de Ps-Graduao em Educao.

    PPP - Projeto Poltico Pedaggico.

    PT- Partido dos Trabalhadores.

    SECAD - Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade.

    SENENAE - Seminrio Nacional de Entidades Negras na Educao.

    SEPPIR - Secretaria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial.

    SIS - Segundo a Sntese de Indicadores Sociais.

    TDI - Transtorno Desintegrativo da Infncia.

    TEM - Teatro Experimental do Negro.

    TGD - Transtornos Globais do Desenvolvimento.

  • UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

    UFES - Universidade Federal do Esprito Santo.

    UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura.

    UNICEF - Fundo das Naes Unidas para a Infncia.

    UNIS - Unidade de Reintegrao Socioeducativa.

  • SUMRIO

    INTRODUO ...................................................................................................... 17

    1 PRIMEIROS PASSOS: CAMINHOS ANTERIORES PESQUISA..................20

    1.1 Primeiros caminhos em direo a muitos encontros ........................... 20

    1.2 Iniciando a conversa! Lembranas de infncia .................................... 21 1.3 Mas o que isso tem a ver com o que escrevo? ..................................... 23 1.4 Sobre a questo racial, o que ficou? ..................................................... 25 1.5 Em famlia ................................................................................................. 28 1.6 Retorno ao ambiente escolar ................................................................. 28

    2 FRICA/BRASIL .............................................................................. 32 2.1 frica/Brasil: que relao essa? ......................................................... 32 2.2 As relaes frica/Brasil sob o olhar da escola ................................... 33 2.3 Escravizao de pessoas oriundas do Continente Africano no

    Brasil ......................................................................................................... 34

    2.3.1 Escravizando .................................................................................. 36 2.4 A negao da resistncia negra: Resistncia no Pr-abolio ........... 39

    2.4.1 Armas silenciosas.. ......................................................................... 44

    2.4.2 Armas coletivas ............................................................................... 45

    2.4.3 Armas de papel ............................................................................... 47 2.5 Resistncias no Estado do Esprito Santo ............................................ 48

    2.6 Resistncia no Ps-abolio .................................................................. 55

    2.7 frica sob novos olhares ........................................................................ 58

    3 RACISMOS: FATOS E CONTEXTOS .............................................................. 61

    3.1 Raa-Racismo: entre ditos e escritos sobre as relaes raciais no

    Brasil ............................................................................................................... 61

    3.2 Racismo musicado e sob a forma de entretenimento .......................... 70

    3.3 Racismo em forma de homenagem: boa inteno? ............................. 77

    4 HORIZONTE RACIAL ..................................................................................... 80

    4.1 Nunca antes na Histria deste pas ................................................... 80

  • 5 ENTENDENDO O SENTIDO DA PESQUISA ................................................. 88

    5.1 Contexto da pesquisa: entre a riqueza do mar e a pobreza do

    rtulo .............................................................................................................. 90

    5.2 Escola Pesquisada.................................................................................. 95

    5.3 Caracterizao da pesquisa ................................................................... 97

    5.3.1 Ensaiando a entrada em campo ..................................................... 99

    5.3.2 Nossos primeiros encontros ........................................................... 100

    5.3.3 Primeiras impresses ..................................................................... 104

    5.3.4 Ainda com as mesmas impresses ................................................ 105

    6 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................ 135

    REFERNCIAS .................................................................................................... 140

    ANEXOS ............................................................................................. 149

  • 17

    INTRODUO

    A elaborao de um trabalho dissertativo, por si s, j se constitui uma tarefa um

    tanto complexa. Se o tema for relacionado questo racial, a complexidade

    aumenta consideravelmente. Em funo de vivermos em uma sociedade construda

    sob o mito da democracia racial, o racismo negado de forma acintosa.

    Conseguimos facilmente identificar um racista, mas temos dificuldades em nos ver

    como tal.

    As formas com que a sociedade brasileira lida com as questes raciais impedem

    que se estabelea um dilogo tranquilo sobre a questo. Quando aparece,

    acidentalmente, na pauta de discusso, geralmente tem sido tratadas na forma de

    negao, o que indica uma falta de seriedade. No raramente aparece na forma de

    humor, que acabam colaborando para sua banalizao.

    A banalizao do racismo visa criar a impresso de que tudo anda bem na sociedade, imprimindo um carter banal s distores socioeconmicas entre as populaes de diferentes raas. Os que acreditam no contrrio podem ser julgados revoltosos, inconformados e, at mesmo, racistas s avessas. Contra estes, a boa sociedade estaria legitimada a organizar vigorosas aes de represso. Essa expanso e aceitao do racismo conduzem, inexoravelmente, sua banalizao. (MOORE, 2007, p. 29).

    Os estudos elaborados sobre a questo racial na escola, entendida como uma

    instituio onde se aprende e se compartilha, no apenas os saberes formais, mas

    tambm valores crenas e hbitos, assim como preconceitos raciais, de gnero,

    idade, entre outros, de acordo com Gomes (2008), tm aumentado e se tornado

    recorrentes.

    At meados da dcada de 1990 no havia discusses significativas, de grandes

    repercusses sobre a questo racial no Brasil. Negros e indgenas eram

    representados apenas pelo vis das imagens caricaturadas e folclorizadas, trazidas

    nos livros de Histria e Literaturas, geralmente reduzidas poucas linhas, notas

    nada explicativas de rodap, nem sempre enxergadas e lidas pelos professores

    das referidas disciplinas.

  • 18

    difcil reconhecer que os problemas relacionados rejeio do outro em funo da

    cor da pele, entendido aqui como racismo, no se constitui em problema apenas

    para aqueles a quem o racismo direcionado, mas, tambm, para toda sociedade

    como um todo. Embora j existam muitos trabalhos sobre essa questo, ainda

    existem lacunas severas que do escola a possibilidade de alegar que no

    trabalham a questo, ora porque no percebem essa prtica na escola, ora porque

    no possuem conhecimentos bastantes para discutir a questo de forma eficiente.

    Tais argumentos, no raramente geram uma espcie de campo de foras

    antagnicas que causam constrangimentos, embates e tenses, assim, julgamos

    necessrio que se ampliem as discusses sobre tal tema.

    Neste trabalho desenvolvido com os atores da Escola Resistncia1, localizada na

    regio da Grande So Pedro, municpio de Vitria, ES, h relatos produzidos por

    alunos e professores sobre a problematizao das redes dos saberes-fazeres-

    poderes praticados na escola. Tais relatos revelam s questes de natureza racista

    que acontecem no cotidiano escolar.

    A proposta metodolgica desta pesquisa foi baseada nos conceitos de cartografia

    defendidos por Rolnik (1989), Kastrup (2002 e 2007) e outros. Para anlise histrica,

    no que se refere questo de raa e racismo no Brasil, nos baseamos em

    Guimares (1999 e 2002), Munanga (1989, 2000, 2006, 2008 e 2009), Hasenbalg

    (2005), Moore (2005, 2007, 2008), Schwarcz (1997, 2006, 2007) e outros.

    No primeiro captulo, trouxemos uma narrativa de experincias pessoais baseadas

    nos encontros com situaes de contatos diretos e indiretos, envolvendo questes

    raciais na escola Esperana, na fase inicial do Ensino Fundamental, bem como nos

    demais nveis e modalidades de ensino em que atuamos desde a dcada de 70.

    Inicialmente como aluna e, posteriormente, a partir de 1991, como professora, at

    2008, quando iniciamos a elaborao do projeto de trabalho que agora se encerra

    com esse trabalho dissertativo.

    No captulo dois, estabelecemos uma discusso sobre as relaes entre o Brasil a o

    Continente Africano, desde a chegada dos povos trazidos para o Brasil, enfatizando

    1 Nome fictcio alusivo histria do bairro onde a mesma est localizada.

  • 19

    os modos da escravizao a que tais povos foram submetidos, a hostilidade, o

    compadrio, as relaes entre senhores e escravizados, as resistncias nas suas

    mais variadas formas e contextos.

    No captulo trs, enfatizamos as formas do racismo a que os descendentes de

    escravizados com caractersticas fenotpicas que os identificam como tal, foram e

    ainda so os mais discriminados entre os discriminados nos mais diversos espaos

    da sociedade, com nfase na mdia televisiva e escrita.

    No captulo quatro, colocamos em destaque as polticas pblicas na forma de leis e

    demais componentes jurdicos aprovados na ltima dcada, com o objetivo de

    diminuir tenses acerca das questes raciais, bem como o surgimento de formas de

    resistncias s aes racistas.

    No captulo cinco, trouxemos de forma mais detalhada o contexto da pesquisa, bem

    como os relatos sobre os afetados pelo racismo de forma direta ou indireta, os

    espaos pesquisados, as impresses sobre o ambiente pesquisado. Os modos

    como o racismo se apresenta, a deficincia na formao de educadores para o trato

    com as questes raciais, que tem colaborado para no efetivao de prticas

    antirracistas.

    Para Romo (2001), os educadores no foram preparados para trabalhar com a

    diversidade. Por isso, tendem a padronizar o comportamento aprendente de seus

    alunos de modo singular, baseado no eurocentrismo, concluindo que as crianas

    negras no acompanham os contedos, pois so defasadas econmica e

    culturalmente e, portanto, relaxadas e desinteressadas. Esses pensamentos,

    apoiados em esteretipos raciais e culturais disseminados na/pela sociedade,

    infelizmente resultam na evaso escolar.

  • 20

    1 PRIMEIROS PASSOS: CAMINHOS ANTERIORES PESQUISA

    1.1 Primeiros caminhos em direo a muitos encontros

    Sem memria, no somos nada; com memria, podemos nos tornar sujeitos localizados em um espao/tempo, sendo capazes de assumir uma atitude crtica diante da realidade.

    (IGUATEMI RANGEL, 2009).

    Ao construir esta dissertao me deparei2 com uma questo um tanto complexa.

    No era possvel iniciar uma fala sobre a questo racial3, sem antes retornar ao que

    me move, ao que me afeta com relao a este assunto. Mas como iniciar um

    assunto to complexo, sem tornar a escrita complexa tanto em significado quanto o

    discurso da camisa de fora que tem se tornado a questo racial no nosso tempo?

    Depois da qualificao, tive a certeza da necessidade do contar de mim, de falar um

    pouco da minha histria, para dizer o que me fez/faz caminhar em direo ao tema

    proposto para este trabalho. Isso ficou evidente no momento em os membros da

    banca4 me perguntam: Do onde falo? Como me constituo? Quais a vivncias que me

    autorizam a dissertar sobre o tema em questo?

    Obviamente este trabalho no pretende ser um texto autobiogrfico, entretanto,

    alguns dos fatos narrados aqui trazem memrias de minha trajetria pessoal que,

    embora colocados em um tempo verbal chamado passado, ainda se fazem

    presentes em outras histrias, outras crianas, outras adolescncias, outros espaos

    geogrficos, que, mesmo distantes, ainda se entrecruzam como se fossem um

    constante dj vu5. Tais fatos talvez possam dar uma ideia do quanto somos

    2Nessa parte do texto usarei o verbo na 1 pessoa do singular, uma vez que falo de como me

    constitu. 3 Em funo de esse trabalho dissertativo ter enfoque racial, no decorrer do mesmo, farei meno aos

    quesitos raa/cor de alguns sujeitos envolvidos. 4 Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferrao, a Prof Dr Maria Aparecida Santos Barreto, a Prof Dr Regina

    Helena Silva Simes. 5 Expresso francesa que significa j visto, sensao intensa de j ter vivido no passado a situao

    atual, com a mesma intensidade afetiva.

  • 21

    afetados pelas histrias de vida e o quanto somos influenciados, na fase adulta,

    pelas nossas histrias e memrias de infncia.

    1.2 Iniciando a conversa! Lembranas de infncia

    Minhas lembranas/memrias ou contos revisitados comeam com os momentos de

    cuidados do meu av paterno para comigo. Eu tinha aproximadamente cinco anos

    quando sofri um acidente domstico. Ao falar ou, neste caso, escrever sobre isso,

    viajo no tempo. Parece que ainda me vejo sobre seu colo, cheio de carinho,

    cuidados e afetos, lembro-me dos detalhes. como se aqueles momentos tivessem

    ficado pausados e/ou congelados na minha mente, esperando apenas o play. Talvez

    tenha iniciado aqui meus primeiros encontros, os maus encontros6, pela dor

    resultante do acidente que me impediam de andar, correr, tomar banho no rio sob os

    cuidados de minha, tambm extremamente carinhosa, av, e os bons encontros, os

    carinhos e o cuidado com que fui acolhida por meu av.

    A fisionomia de meu av era sempre serena. Um indgena de cabelos brancos,

    deficiente visual, que conhecia como poucos, os lugares por onde andava. Sua

    orientao espacial era completada com o auxlio de uma bengala, cujo apoio para a

    mo ele mesmo havia moldado com um canivete, com qual tambm cortava o fumo

    de rolo para os seus cigarros de palha e tambm fazia trabalhos manuais.

    Mesmo com as limitaes impostas pela perda visual, conseguia fazer vrias tarefas

    domsticas, inclusive aquelas consideradas complexas, entre elas, cuidar de mim.

    Faleceu, antes de eu ter completado seis anos. Certamente essa foi a primeira

    separao da qual tenho lembrana.

    O que me fez ser criada por meus avs paternos, foi o fato de ser filha de uma

    adolescente branca, solteira, que engravidara de um jovem negro, com o qual no

    tinha um namoro assumido. Se hoje, ser me solteira, embora nos deparemos com

    muitos casos, ainda um fato um tanto complexo, imaginem na metade da dcada

    6 Utilizo aqui a ideia de bom e mau encontro de Espinosa, usado frequentemente por minha

    Orientadora, Prof Dr Janete Magalhes Carvalho, em suas aulas.

  • 22

    de mil novecentos e sessenta! Meu av materno, descendente direto de italianos,

    embora casado oficialmente com minha av materna, uma mulher negra, era

    altamente preconceituoso, nesse caso, racista. Essa palavra no era conhecida

    naquele tempo, mas seus efeitos j eram sentidos por mim. Em funo da no

    aceitao do relacionamento de minha me com meu pai, pelo meu av paterno, ele

    no facilitava em nada a vida de minha me. Essas, entre outras razes, fizeram

    com que minha me biolgica deixasse-me sob os cuidados de meus avs paternos.

    Durante muito tempo, o fato de no ter sido criada pela me, me incomodava

    bastante. Na poca, no era comum uma criana de pais vivos no ser criada pelos

    mesmos. Isso fazia de mim uma exceo entre as crianas da minha idade. Era uma

    espcie de incmodo, principalmente, quando meus primos e primas, muitos da

    minha idade, me chamavam de filha de ningum. Alguns deles chegavam a

    reproduzir os comentrios que eram feitos pelos seus pais em desaprovao

    gravidez de minha me, como se ela fosse um espcie de mau exemplo para as

    meninas da famlia.

    O fato de ela me ter abandonado suscitou em mim uma espcie de rejeio em

    relao a ela. Lembro-me que, em alguns momentos, chegava a me esconder

    quando ela ia me visitar. Mais tarde compreendi que, se ela quisesse realmente se

    livrar de mim, teria me doado a qualquer pessoa, e no exatamente minha av

    paterna, que cuidou de mim com altas doses de zelo, carinho, cuidado e proteo.

    Junto a minha av, morava tambm meu pai. Fui criada como uma espcie de irm

    caula dele. Nesse contexto, fui educada por minha av, em parceria, mas sem

    muita interferncia de meu pai, pois ele se comportava como irmo mais velho e

    nunca com autoridade paterna. Penso que cuidar de mim talvez tenha sido uma

    tarefa das mais importantes para minha av. Devido ao carinho com que recebia os

    netos, era chamada de Me Joana7. Pelo carinho e proteo com os quais me

    cobria, em muitos momentos, sentia-me a pessoa mais importante do mundo. Penso

    que, para ela, eu realmente me tornei essa pessoa porque, depois da morte de meu

    av, ela praticamente abandonou todas as tarefas da roa para cuidar de mim.

    7Embora a expresso casa de Me Joana, significa lugar de desordem, casa sem respeito,

    prostbulo, lugar onde impera toda a confuso e falta de respeito. Minha casa de Me Joana, naquelas circunstncias era o lugar perfeito, o maior significado de amor, carinho, afeto e cuidado.

  • 23

    1.3 Mas o que isso tem a ver com o que escrevo?

    Estes relatos dizem que minha origem como a da maioria dos brasileiros,

    descendentes de europeus, indgenas e africanos. No meu caso, as caractersticas

    fenotpicas so predominantemente negras, com famlia desestruturada, como a

    maioria das crianas de escolas pblicas, com as quais trabalho e realizo esta.

    No meu contexto de criao, a infncia se d num vilarejo chamado Rio Francs8

    constitudo por poucas famlias. Dois fatos interessantes tornavam aquele vilarejo

    um lugar um tanto diferente. O primeiro era a existncia de um rio que separava os

    terrenos, onde as famlias que moravam de um lado tinham uma viso ampla dos

    terreiros9 das casas de quem residia no lado oposto ao rio. De uma forma geral,

    todos os moradores se conheciam, tinham uma relao amistosa e muitos podiam

    visualizar o que se passava no terreiro do outro, j que no existiam matas s

    margens do rio, que ficava numa espcie de vale, mesmo sem a existncia de

    montanhas.

    No vilarejo, era comum a existncia de moradores temporrios, que trabalhavam na

    produo do carvo vegetal, geralmente negros, chamados de carvoeiros. O outro

    fator que fazia o lugar ser nico era tambm a existncia de duas igrejas catlicas.

    Uma tinha como padroeiro So Benedito, conhecida na redondeza como Igreja dos

    Pretos, a outra tinha como padroeira Nossa Senhora da Penha, conhecida como

    Igreja dos Branco.

    As construes datavam praticamente da mesma poca. Embora as igrejas fossem

    conhecidas como Igreja dos brancos e Igreja dos pretos, no havia uma proibio

    explcita quanto frequncia de negros igreja dos brancos, e vice versa, a no ser

    pelos olhares atravessados que, nessa poca, no eram muito bem entendidos por

    mim, uma vez que no conhecia o conceito de racismo, embora nem por isso tenha

    me livrado de seus efeitos.

    A igreja dos pretos era frequentada quase que exclusivamente pelos membros da

    8Vilarejo tambm conhecido como Crrego Francs, situado no municpio de Aracruz, interior do

    Esprito Santo a aproximadamente 120 km da capital, Vitria. 9O que conhecemos hoje como quintal.

  • 24

    famlia de seu construtor e por algumas famlias de carvoeiros10, que se dividiam

    entre a igreja dos pretos e uma igreja evanglica11. Minha av paterna era um tipo

    religioso um tanto curioso. Era catlica, se tornou evanglica e nunca deixou de

    fazer as oraes da igreja catlica. Eu ficava meio perdida no meio disso tudo.

    Como a maioria das crianas de famlias evanglicas, no sabia ao certo se rezava

    ou orava. Mas qual a diferena entre rezar e orar? Na poca, o que sabamos era

    que os catlicos rezavam e os evanglicos oravam. E a, o que fazer? No se podia

    orar na escola!

    A escola do lugarejo era o espao de todas as crianas: brancas, negras,

    indgenas12, fossem elas filhas de proprietrios de terras, meeiros, carvoeiros,

    catlicos e evanglicos, convictos ou no. Era regra rezar antes do incio das aulas,

    mas nem todas as crianas rezavam, umas porque ainda no haviam decorado as

    rezas, outras porque no queriam mesmo. Quando uma criana no rezava junto

    com a professora, era ironizada por ela com olhares e/ou frases que davam a

    entender s outras crianas que aquela que no rezava havia mudado de religio.

    Algumas frases ficaram marcadas. Pelo fato de nunca ter decoradas as rezas da

    igreja catlica, como a maioria das crianas, por vrias vezes ouvi: Vai ver que virou

    crentinha tambm! ou Esse povinho que muda de religio j sabe pra onde vai!

    Para aquele lugar que bom nem falar. O j sabe para onde vai soava como uma

    espcie de condenao. O inferno era um lugar to mal falado que ningum se

    sentia muito vontade quando a palavra era pronunciada. Hoje percebo que foi

    naquela poca que me deparei pela primeira vez com algumas prticas que

    atestavam preconceito e ou intolerncia religiosa. Na poca ainda no conhecia

    este conceito, portanto essa conscincia inexistia em mim. Eu ainda acreditava em

    inferno, graas aos causos contados por nossos parentes mais velhos, aqueles que

    10

    Famlias, quase sempre negras, contratadas para trabalhar no desmatamento e na produo de carvo. 11

    Igreja Evanglica Assembleia de Deus, construda sob a influncia da minha av materna, senhora negra, uma das poucas mulheres, na regio que possuam um vasto conhecimento sobre a Bblia e uma excelente oratria. 12

    Na poca, o termo indgena no era utilizado. Os descendentes de indgenas eram chamados ou conhecidos como caboclos.

  • 25

    poderamos comparar aos Griots13. Esses causos eram contados em noites em que

    a lua cheia iluminava os terreiros e nos reunamos para ouvir as histrias que os

    mais velhos contavam. Grande parte das histrias contadas era relacionada

    existncia de assombraes.

    Acredito que as primeiras sries do Ensino Fundamental talvez tenha sido a poca

    mais frtil no que refere s memrias que marcaram meu processo de subjetivao,

    tanto na escola entre os colegas, quanto em casa com a famlia. As lembranas da

    infncia sempre estiveram guardadas numa espcie de arquivo, apenas esperando

    o apertar do play para, ento serem atualizadas, tomarem forma, preencherem

    todo o espao possvel e revelarem imagens ntidas como se estivessem

    acontecendo no presente.

    1.4 Sobre a questo racial, o que ficou?

    No ambiente diverso da escola, como citado anteriormente, proporcionalmente havia

    brancos em nmero maior, negros em quantidade menor e indgenas numa

    quantidade bem menor. Ao todo, ao longo dos anos das sries iniciais, conheci

    apenas cinco crianas indgenas.

    No havia crianas em idade escolar fora da escola, entretanto, estar na escola,

    assim como hoje, no significava necessariamente ser alfabetizado. Muitos

    estudantes ficavam anos na mesma srie e, no raramente, eram ridicularizados em

    funo disso. Esses estudantes quando evadiam, j estavam em idade incompatvel

    com a srie que deveriam estar cursando. Para eles, j no precisavam mais ir

    escola, uma vez que tinham aprendido a desenhar o nome. Em alguns casos, era o

    nico conjunto de letras que reconheciam.

    Entre os estudantes que ficavam reprovados, destacavam-se os negros. Muitos

    deles eram conhecidos fora da escola apenas pelos apelidos, geralmente

    associados cor da pele. Os apelidos quase sempre se referiam aos seres que nos

    13

    Os GRIOTS, na cultura africana so contadores de histrias, lendas. So tambm responsveis pela transmisso dos valores civilizatrios de seus povos. So reverenciados e considerados as pessoas mais importantes das famlias e das comunidades onde habitam.

  • 26

    rodeavam, fossem eles animados ou inanimados. A fauna e o folclore eram

    invocados com veemncia. Da fauna, os bichos mais lembrados eram formiga

    cabeuda, jacu, macaco, galinha de macumba, tiziu, jacupemba14, urubu e todos os

    demais elementos conhecidos que tivessem penas, plos, couraas e ou carapaas

    enegrecidos. Do folclore, os personagens mais homenageados eram me dgua,

    mula sem cabea, saci perer e chico boneco15, entre outros. Os objetos inanimados

    utilizados com a mesma finalidade eram toco de grana, cerne de jacarand, carvo,

    cmara de ar, pneu. A lista continuava e a criatividade nesse sentido no tinha

    limites.

    As meninas evanglicas que usavam cabelo enrolado em forma de coque eram

    frequentemente chamadas de rolo de fumo. As no evanglicas que tinham os

    cabelos cortados no formato arredondado eram chamadas de cabea de cesto, ou

    casa de cupim. Tudo inicialmente estava associado a elementos do dia a dia, pois

    morvamos no interior do interior, sem energia eltrica e acesso a outros tipos de

    mdias que pudessem aumentar o repertrio de adjetivos desqualificantes. Os

    apelidos estavam geralmente associados a elementos da natureza, com exceo da

    palha de ao (na poca ainda no existia uma marca registrada conhecida) era um

    dos poucos produtos industrializados como forma de estigmatizar os cabelos no

    lisos.

    Para alm da questo racial, nossa vida corria literalmente livre, como a de todas as

    crianas em todas as pocas. Divertamo-nos no campo de futebol ao lado da

    escola, jogando pelada na hora do recreio, meninos contra meninas. No

    conhecamos todas as regras, mas a diverso era garantida. Muitas outras

    brincadeiras da poca garantiam a potncia dos encontros extraclasse, elas nos

    davam energia bastante para driblar a seriedade daquilo que vivamos nos

    momentos no to amistosos.

    14

    Ave de penas cinza escura da mesma famlia, (classificao biolgica) das galinhas com aproximadamente 55 cm de altura e pesam aproximadamente 850 g. Na poca era comum encontra-las na regio. 15

    Chico boneco era um senhor negro, alto, magro, que no final da dcada 60 e incio da dcada de 70 ainda era vivo. Era morador do municpio de Linhares. Tive a oportunidade de conhec-lo, de longe, caminhando pelas ruas. Sua figura era usada pelos pais como uma forma de ameaa s crianas, o morador era visto como uma forma de assombrao, como uma forma de punio quando estas aprontavam algumas de suas peraltices. Chico Boneco foi imortalizado, transformado como folclore no final da dcada de 80 pela obra de escritora Josimeri Arajo.

  • 27

    Nos momentos amistosos esquecamos os apelidos e xingamentos, ramos amigos

    de verdade, dividamos tudo, sorrisos, tarefas, merendas, segredos, sonhos e

    desejos. Entre esses sonhos, um se transformou em desejo, ou ser que

    poderamos chamar de sonho desejante? Vamos imaginar que sim!

    O sonho desejante mais conhecido era o de Angeli16, uma colega da famlia dos

    construtores da Igreja dos Pretos. Ela nunca escondeu sua vontade de participar,

    como anjo, da coroao de Nossa Senhora, que acontecia na Igreja dos Brancos.

    Essa coroao era um evento, uma festa que reunia uma grande quantidade de

    pessoas, tanto do vilarejo quanto de comunidades vizinhas. Na poca, era

    inimaginvel uma criana negra ser anjo, principalmente na coroao da santa

    padroeira da igreja dos brancos. Quando Angeli falava empolgada sobre seu sonho,

    alguns colegas falavam de forma irnica: Voc? Anjo? Nunca vi anjo preto! S se

    fosse pra fazer o demnio! Mas na coroao de Nossa Senhora no tem

    demnio...! Era improvvel que o sonho desejante de Angeli se concretizasse. Era

    predominante o pensamento descrito no poema de Souza17:

    As pragas devastadoras invadiram a Dispora, E embranqueceram nossa cultura. Transformaram em vovs e vovs,

    Nossas iais e iois. Instituram um bem branco

    E um mal negro... Uma paz branca, E um luto negro...

    Almas brancas que vo pro cu, Almas negras, pro inferno.

    Deuses brancos que so benficos, Deuses negros que so malficos...

    Anjos brancos que so cristos, Anjos negros que so demnios.

    [...]

    O interessante que, mesmo na improvvel possibilidade de conseguir realizar tal

    desejo, Angeli o evidenciava. Os anos iam passando e ela no desistia. Angeli

    cresceu e ento no podia mais ser anjo, pois existia um pr-requisito e ela no

    mais o preenchia. Tinha passado da idade e tamanho necessrio para ser anjo. Os

    anjos no crescem! Com isso, terminamos a fase inicial do Ensino Fundamental. Era

    16

    Nome fictcio, na lngua Yorub significa anjo. 17

    Shirley Pimentel Souza, poetisa baiana, no poema Anjos negros. Disponvel em: http://www.pucrs.br/mj/poema-negro-3.php. Acesso em 22/09/2011.

  • 28

    o mximo que poderamos chegar escola pluridocente do Rio Francs.

    1.5 Em famlia

    Como dito, a miscigenao da qual me origino fez com que em minha famlia fosse

    possvel verificar os mais variados tons de pele, brancos, pretos, menos pretos.

    (aqui entram todas as possveis combinaes de palavras usadas para classificar

    brasileiros quanto cor). Mesmo entre pares, a questo racial tambm se faz

    presente. Com o fim da primeira fase do Ensino Fundamental, sobrava mais tempo

    para que nossos contatos em famlia ficassem mais frequentes, principalmente

    quando tnhamos ocupaes coletivas nos trabalhos da roa.

    Nos momentos de brigas ou do descumprimento de algumas das ordens dadas

    pelos tios, ramos chamados por apelidos como uma forma de punio e ameaa,

    mas, como na escola, tambm tnhamos muitos momentos marcantes de alegria,

    brincadeiras, jogos de felicidades. Eram os mais diversos e mais divertidos

    possveis. Alm desses bons encontros, eu tinha a leitura como uma das minhas

    diverses quando fora do grupo. Alm da Bblia18 e das letras do hinrio chamado de

    Harpa Crist19, que tnhamos como livros de uso obrigatrios nas reunies da igreja

    evanglica. No tnhamos livros, nem mesmos didticos. Meu pai era leitor assduo

    da revista Selees Readers Digest20 e literatura de cordel e, com essas leituras,

    meu lado cultural era exercitado.

    1.6 Retorno ao ambiente escolar

    Nessa fase da adolescncia, passados cinco anos aps terminar a quarta srie do

    Ensino Fundamental, volto a estudar e, a ento, percebo que a questo racial

    continua presente. Eu e mais trs colegas negras j havamos passado da idade,

    ramos defasadas. Graas ao meu exerccio cultural, no tive a mnima dificuldade

    18

    Livro referncia do Cristianismo. 19

    Hinrio com 524 msicas cantadas na Igreja Assembleia de Deus. 20

    Revista Americana lanada no Brasil em 1942.

  • 29

    na volta escola, minhas notas ficavam entre as melhores em todas as matrias,

    era comum ouvir dos professores que eu era negra, mas era inteligente, uma negra

    de alma branca. Para ter reconhecimento nas aes julgadas como importantes,

    era necessrio fazer transplante de alma. Hoje, Tal fato me remete msica de

    Jorge Arago:

    [...] Se o preto de alma branca pra voc

    o exemplo da dignidade No nos ajuda, s nos faz sofrer

    Nem resgata nossa identidade. [...]

    Fatos como esses caracterizam as constantes diferenas de tratamentos entre

    estudantes brancos e negros. Um destes fatos transformou-se espcie de marca

    positiva quando cursava a stima srie. Graas minha participao e de Barbosa21

    a professora de histria passava praticamente toda aula discutindo o contedo

    conosco. Ns adorvamos as aulas de Histria Antiga, principalmente sobre o Egito,

    mas no associvamos o Egito ao Continente Africano. Nessa poca ainda no

    tnhamos criticidade o bastante para perceber esses detalhes.

    Em funo da nossa participao ativa nas discusses, a professora nos envolvia

    durante as aulas. Formvamos praticamente um trio, eu, a professora e Barbosa,

    enquanto os demais estudantes da turma tinham uma participao mnima. Isso

    chegou a incomod-los. Lembro-me nitidamente de uma das aulas em que uma

    aluna, em nome dos demais alunos, chegou a fazer para a professora a seguinte

    pergunta: - Professora, a senhora s gosta de preto? Nesse momento a professora

    ficou numa saia justa, mas explicou turma a razo pela qual dispensava sua

    maior ateno a ns. Confesso que isso me dava uma pontinha de orgulho, pois,

    sua maneira, nos colocava em evidncia. Didaticamente, ela poderia no estar

    agindo de forma correta, mas devia entender que o importante era o que ensinava.

    A cor da pele dos estudantes era um detalhe insignificante.

    Depois disso, muita coisa aconteceu. Muitos foram os momentos em que me deparei

    com situaes altamente constrangedoras, do ponto de vista racial, tanto no

    ambiente familiar quanto nas rodas de conversas que tnhamos com os colegas.

    21

    Nome fictcio de meu colega de sala, tambm negro,

  • 30

    Esses momentos sociais no eram raros, uma vez que, no local onde morava, e na

    poca em que me encontrava na adolescncia e no incio da vida adulta, ainda no

    se praticava o isolamento social que se constata hoje, ou isso ainda no era

    percebido, uma vez que a naturalizao da lugar do negro fazia com que as pessoas

    nem percebessem que existia esse isolamento .

    O tempo passou e quando tento me lembrar de todos os contedos vistos, ao longo

    do Ensino Fundamental, Mdio e Superior22, constato o que as pesquisas apontam

    sobre a questo. No currculo escolar, a questo racial era discutida de forma

    pontual. Tudo o que se falava tinha ligao apenas com mistura de raas e as

    formas de escravizao. As diferenas sociais relacionadas questo racial no

    eram compatveis com o discurso da democracia racial. As questes que se referiam

    s lutas do povo negro no apareciam. Minhas informaes acadmicas sobre a

    questo eram mnimas.

    Meus primeiros contatos com movimentos sociais comearam no final da dcada de

    80, na medida em que conheci pessoas ligadas ao Partido dos Trabalhadores (PT).

    Entretanto, o encontro de fato com estas questes foi durante o 4 Seminrio

    Nacional de Entidades Negras na Educao (SENENAE), organizado pelo Centro de

    Estudos da Cultura Negra (CECUN) no ano de 2004. A partir deste encontro, foi

    possvel conhecer pessoas que se identificavam com a causa, com as quais pude, a

    partir das leituras sugeridas, enriquecer meus argumentos com relao temtica.

    Embora j tivesse participado de outras manifestaes coletivas em defesa das

    minorias, como simpatizante do Partido dos Trabalhadores (PT), pela primeira vez

    tive contato com um grande grupo de pessoas com as quais compartilhei as minhas

    poucas ideias a respeito do racismo. Assim, sentia-me confortavelmente

    representada naquele grupo. A partir deste seminrio, direcionei minhas leituras

    para as questes relacionadas Lei 10.639/200323, que havia sido aprovada no ano

    anterior. Aos poucos fui entendendo teoricamente questes que, na prtica, j havia

    experimentado ao longo de minha existncia.

    22

    Refiro s duas Graduaes: Pedagogia e Cincias Biolgicas. 23

    A Lei 10.639 de 09 de janeiro 2003, que altera a Lei 9394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional e institui a obrigatoriedade do ensino da histria e cultura afro-brasileira no currculo oficial dos estabelecimentos de ensino fundamental e mdio, pblicos e particulares no Brasil.

  • 31

    Em funo dessas leituras, fui intensificando, mesmo que de forma discreta, minha

    militncia em direo s questes defendidas pelo Movimento Negro (MN), que at

    ento no conhecia muito bem. Isso passou a ser uma marca nas minhas

    discusses no contexto escolar em que atuava. Em 2006, fui convidada pela

    Secretaria de Educao do Municpio de Joo Neiva24, onde j trabalhava desde

    1991, a discutir com professores as questes relacionadas lei citada.

    Em 2007 fui convidada a fazer parte do primeiro grupo de estudos, formado

    exclusivamente para discutir a questo racial, a Comisso de Estudos sobre a

    Cultura Afro-brasileira (CEAFRO), no municpio de Aracruz. Nesse espao, tive a

    oportunidade de encontrar pessoas que estavam h mais tempo estudando sobre o

    tema. Com elas, pude ampliar ainda meus horizontes na discusso sobre a questo

    com mais segurana. Com a inteno de ampliar as possibilidades de dilogos entre

    os pares e no pares que se encontram nos espaos escolares e fora deles, alcei

    voo em direo pesquisa que resulta neste trabalho dissertativo.

    24

    Municpio situado a aproximadamente 82 km ao norte de Vitria, capital do Esprito Santo.

  • 32

    2 FRICA/BRASIL

    2.1 frica25 e Brasil: que relao essa?

    Neste captulo diremos26 apenas algumas palavras que podem ser consideradas

    simplesmente como a inteno de uma vrgula, diante da suntuosidade, que por ns,

    conferida ao Continente Africano que Moore (2005, p.135) define como:

    [...] palco exclusivo dos processos interligados de hominizao e de sapienizao o nico lugar do mundo onde se encontram, em perfeita sequncia geolgica, e acompanhados pelas indstrias lticas ou metalrgicas correspondentes, todos os indcios da evoluo da nossa espcie a partir dos primeiros ancestrais homindeos. A humanidade, antiga e moderna, desenvolveu-se primeiro na frica e logo, progressivamente e por levas sucessivas, foi povoando o planeta inteiro.

    No intencionamos contar a histria do continente, j que foi nele que surgiu a vida

    e, nesse sentido, somos contados por ele. Dele originaram-se nossos ancestrais. A

    histria humana comea na frica. Traremos em forma de interrogao apenas

    alguns fragmentos do que a histria oficial elegeu como digna de ser contada.

    Interrogaremos algumas verdades estabelecidas, sob um prisma diferenciado no

    sentido de problematizar os resultados das relaes entre o Brasil e os pases

    africanos com os quais foram estabelecidas relaes comerciais (compra e venda)

    de pessoas.

    Com sua extenso territorial de cerca de 30.343.551 Km, o que corresponde a 22%

    da superfcie slida da terra (MOORE 2005, p. 135), o Continente Africano possui

    uma topogrfica diversificada, com savanas interminveis, grandes extenses de

    solos desrticos e semidesrticos, chapadas, campos, grandes cadeias de

    montanhas, suntuosos lagos e regies de florestas.

    25

    A palavra frica possui at o presente momento uma origem difcil de elucidar. Aps ter sido designado o litoral norte africano [...]. Comeando pelas mais plausveis pode-se dar as seguintes verses: Uma etimologia da palavra frica retirada dos termos fencios, um significa espiga, smbolo da fertilidade dessa regio, e o outro, Pharikia, regio das frutas. A palavra derivada do latim aprica (ensolarada) ou do grego aprik (isento de frio). Outra palavra de raiz fencia, faraga que exprime a ideia de separao, de dispora. (UNESCO, 2010, v 1, p.31). 26

    A partir desta parte usarei os verbos na 1 pessoa do plural, entendo que todas as pessoas que cito neste trabalho dissertativo fazem parte de mim, uma vez que todos que passaram e passam por ns, deixam conosco parte de suas vidas em levam parte da nossa. Assim nos constitumos pessoas.

  • 33

    O continente tem hoje com aproximadamente 800 milhes de habitantes espalhados

    ao longo de seus 54 pases, divididos em regies, muitas delas com uma riqueza

    mineral incalculvel, uma diversidade de naes, com a existncia e a interao de

    mais de 2.000 povos com diferentes modos de organizao socioeconmica e de

    expresso tecnolgica (ibidem). Esse espao geogrfico chamado frica possui em

    seu bojo culturas, lnguas, histrias e valores civilizatrios. a mais longa ocupao

    humana de que se tem conhecimento (2 a 3 milhes de anos at o presente) e,

    consequentemente, uma maior complexidade dos fluxos e refluxos migratrios

    populacionais (ibidem).

    a parte do mundo onde o ser humano, pela primeira vez, erigiu sociedades

    baseadas na cooperao solidria (MOORE 2008, p. 13). Infelizmente tais

    caractersticas so desconhecidas por grande parte da populao mundial dentro e

    fora dele. O Continente foi vilipendiado durante vrios sculos de explorao. A

    frica presenciou geraes de viajantes, de traficantes de escravos, de

    exploradores, de missionrios, que, em nome de Deus e cegos pela falta de

    sensibilidade, elaboraram as mais diversas estratgias de explorao, pro cnsules,

    e sbios de todo tipos acabaram por fixar sua imagem deste continente em cenrio

    onde o mundo s enxerga a misria e caos (UNESCO, 2010. V. 1. p. 32). Ao longo

    da histria as sociedades africanas foram sendo fragmentadas por potncias

    colonizadoras, que, em busca do lucro, fomentaram o subdesenvolvimento africano.

    2.2 As relaes frica/Brasil sob o olhar da escola

    As relaes entre Brasil e frica vo muito alm da importao/exportao de mo

    de obra escravizada. No imaginrio construdo ao longo de nossa permanncia nos

    bancos escolares, a partir das mdias didticas e dos mais variados tipos de

    instrumentos de veiculao de informaes, no cabiam e, em algumas situaes,

    no cabem imagens afirmativas sobre a populao oriunda do continente em

    questo. Os povos oriundos de frica no eram vistos como produtores de culturas,

    de histria, de modelos civilizatrios. As suas mais diversas formas de ser/estar no

    mundo foram ignoradas e subtradas de sua importncia.

  • 34

    A recusa ocidental em reconhecer o Continente Africano como produtor de culturas

    que serviram de base para muitas das ideias disseminadas pelo mundo afora como

    sendo de outros povos, principalmente europeus, ainda perpetua at os dias atuais.

    Ao longo dos tempos, fomos forados a aprender que os povos africanos eram

    subdesenvolvidos, simplesmente por serem negros. A escola como um lugar onde

    se assenta as vises culturais defendidas pela sociedade, cumpriu seu papel de

    forma majesttica. Imageticamente ns, negros e brancos brasileiros, fomos

    com/vencidos pela ideia de que os povos africanos nada mais eram do que criaturas

    que vieram ao mundo para servir.

    A arte eleita para retratar o cotidiano de brancos e negros na terra Brasil, durante o

    perodo do imprio, em vez de representar o povo negro que realizava os mais

    variados tipos de atividades, em todas as reas do conhecimento, desde as mais

    simples at aquelas que exigiam um grau elevado de conhecimento trazidos do

    continente de origem foi a caricatura.

    Se fssemos nos embasar apenas na iconografia dos arquivos publicizados nos

    materiais que circulavam na escola, no incio e ao longo de nossa vida acadmica,

    certamente no poderamos, em nenhum momento, achar que os povos retratados

    de tais formas teriam realmente condies de terem sido, outra coisa alm de

    servos.

    2.3 Escravizao de pessoas oriundas do Continente Africano no Brasil

    Antes de iniciarmos qualquer aprofundamento sobre tal regime, devemos considerar

    que o processo de escravizao no comea com a chegada dos portugueses ao

    Brasil. Sua existncia descrita em tempos anteriores ao nosso, nem por isso

    devemos considerar como um fenmeno universal, pois apresent-lo como tal, de

    acordo como Grenouilleau (2009) equivaleria a consider-lo como mais ou menos

    natural e tradicional (p.14), e, apresentado dessa forma, seria uma maneira de

    justificar um sistema injustificvel; a explorao do homem pelo homem.

    Mesmo sem uma forma coerente de justificar a prtica da escravizao, ela esteve

  • 35

    presente em diversos pases em vrios momentos da histria da humanidade.

    Chegou a ser, durante muito tempo, o que se poderia chamar de eixo em torno do

    qual girou o comrcio no mundo (HOCHSHSCHILD, 2007, p. 26).

    Para falarmos sobre a escravizao no Brasil, precisamos revirar a histria,

    entrarmos no tnel do tempo, manipularmos o zoom, nos aproximarmos e nos

    afastarmos das ideias e imagens que sero explicitadas no decorrer deste

    trabalho. Faz-se necessrio discorrermos sobre como tal processo se fez presente

    na histria do mundo, como chegou, e qual a durao no nosso pas. Faremos isso

    sem a pretenso de contarmos a histria do mundo ou do pas, at mesmo pela

    impossibilidade de fazermos isso.

    Enfatizamos que no pretendemos nos referir aos descendentes dos escravizados

    como vtimas. No entanto, os fragmentos de relatos ditos/escritos, capturados

    na/pela histria, que sero aqui colocados, podero dar margem a tal interpretao.

    Abordamos, de forma resumida, os efeitos da manipulao das informaes sobre o

    processo da escravizao na histria escrita do Brasil, veiculadas nas mdias

    didticas. A relao entre escravizao e o segregacionismo a que os negros foram,

    e ainda so submetidos, para ento chegarmos ao cotidiano escolar e entendermos,

    ou no, como a prtica do racismo se fez/faz presente e como tal prtica se atualiza

    entre/para/com os diversos atores envolvidos no processo de escolarizao.

    O processo de escravizao de africanos, no Brasil, tem incio em meados do sculo

    XVI. Aos olhos dos colonizadores, tanto os negros quanto os indgenas eram vistos

    como selvagens, primitivos, no dignos, desalmados e objetos a serem manipulados

    ou quaisquer outros adjetivos de significados semelhantes. Segundo SCHWARCZ

    (2006), os escravizados eram considerados objetos ou bens semoventes, possui-

    los significava riqueza e prestgio social.

    Para os colonizadores, no importava saber de onde vinham e nem em quais

    condies esses trabalhadores produziam ou extraiam todo e qualquer produto

    necessrio manuteno de suas riquezas. Em funo desta desqualificao, foram

    severamente explorados e utilizados para todo e qualquer tipo de servio onde fosse

    necessrio o uso da fora fsica. Mas o que propiciou o regime de escravizao

  • 36

    africana no Brasil?

    Sobre essa questo, Munanga (1986, p. 8) tem a seguinte proposio:

    Quando os primeiros europeus desembarcaram na costa africana em meados do sculo XV, a organizao poltica dos estados africanos j tinha atingido um nvel de aperfeioamento muito alto. As monarquias eram constitudas por um conselho popular no qual as diferentes camadas sociais eram representadas. A ordem social e moral equivaliam poltica. Em contrapartida, o desenvolvimento tcnico, includo a tecnologia de guerra, era menos acentuada. Isto pode ser explicado pelas condies ecolgicas, socioeconmicas e histricas da frica daquela poca, e no biologicamente, como queriam alguns falsos cientistas. Neste mesmo sculo XV, a Amrica foi descoberta. A valorizao de suas terras demandava mo-de-obra barata. A frica sem defesa apareceu ento como reservatrio humano apropriado, com um mnimo de gastos e de riscos.

    Para o autor, vrios fatores favoreceram a prtica de explorao africana pelos

    colonizadores. Mesmo com uma organizao poltica de pases africanos

    classificados como eficiente, as falhas no sistema de segurana com relao

    preparao de tecnologias aplicadas s guerras facilitaram a insero de potncias

    europeias no continente em questo.

    Com a expanso da aquisio de terras por pases europeus, tanto no Continente

    Africano quanto nas Amricas e, com grande experincia na explorao de pessoas,

    os colonizadores viram a possibilidade de explorar a mo de obra africana em solo

    brasileiro. Para isso, agiam de forma inescrupulosa tanto nos mtodos de captura,

    atravs da compra de humanos das mos dos mercadores27 de pessoas, quanto nos

    modos de tratamento com relao s pessoas compradas at que os mesmos

    chegassem a solo brasileiro. O tratamento inescrupuloso acontecia, via de regra,

    durante todo o perodo em que a escravizao permaneceu latente no pas.

    2.3.1 Escravizando

    Sobre os mtodos utilizados para forar os africanos trazidos para o Brasil a

    executarem as tarefas atribudas a eles, pensamos no ser necessrio relatar nesse

    trabalho. Grande parte da literatura circulante sobre a histria do negro no Brasil, j

    fez a divulgao dos castigos de forma muito eficiente, com riqueza de detalhes.

    27

    Esses mercadores eram organizaes de continentes fora de frica e tambm de africanos que capturavam inimigos de guerras entre os diferentes povos africanos que se tronavam rivais.

  • 37

    Dessa forma, nesse tpico, enfatizaremos algumas entre as muitas incoerncias que

    passam despercebidas quando fazemos uma leitura menos crtica sobre os fatos

    referentes aos perodos e processos que se entrelaam no processo de

    escravizao e aos rtulos atribudos aos escravizados.

    No raramente nos deparamos com informaes oficiais nos dando conta de que os

    africanos trazidos para o Brasil eram analfabetos, como se essas informaes

    fossem verdades absolutas. Grande parte dos que aqui chegaram eram

    alfabetizados em seus idiomas, que gentilmente foram rebaixados para dialetos.

    Os receptores destes povos no viam nenhum interesse em que os mesmo fossem

    alfabetizados na lngua oficial da coroa.

    Em 17 de fevereiro de 1854, foi assinado o Decreto n 1.331 A que regulamentava a

    reforma do ensino primrio e secundrio do Municpio da Corte. Em seu artigo 69

    do pargrafo 1 ao 3, instava a seguinte redao:

    Art. 69. No sero admittidos 28

    a matricula, nem podero frequentar as escolas: 1 Os meninos que padecerem de molestias contagiosas. 2 Os que no tiverem sido vaccinados. 3 Os escravos.

    Os escravizados, os portadores de doenas contagiosas e aqueles que estavam

    susceptveis a ela, eram colocados em um mesmo nvel, no poderiam frequentar a

    escola. Tal informao nos remete ao seguinte pensamento: se os escravizados no

    manifestassem desejo de frequentar a escola, haveria motivos para que o estado se

    ocupasse em sancionar leis e decretos proibindo a entrada deles nas escolas?

    Algum precisa ser proibido de fazer algo que no deseja?

    Em 6 de setembro do ano de 1878, o Decreto n 7.031-A29, estabelecia que os

    negros s pudessem estudar no horrio noturno, mediante disponibilidade de

    professores. O estado usa de sua autoridade para definir at onde permitiria a

    mobilizao dos negros, mesmo libertos.

    28

    Mantivemos a escrita original da poca para no cometer anacronismos de significados na tentativa de traduzir os textos. Faremos o mesmo nos textos posteriores. 29

    Anexo ao relatrio apresentado em 1878, pelo ministro e secretrio dos Negcios do Imprio, Dr. Carlos Lencio de Carvalho na Assembleia Legislativa em dezembro de 1878. Disponvel em: . Acesso em 28 ago. 2011.

  • 38

    As muitas leis de cunho abolicionista traziam em suas entrelinhas brechas que as

    tornavam ambguas, pois por um lado premiavam os escravizados, por outro

    indenizavam os escravizadores. Ser que estas eram as frmulas encontradas

    para que tais leis fossem aprovadas? Se fossem, por que as fontes oficiais no

    informavam os benefcios duplos?

    Vista como uma lei abolicionista, a Lei Rio Branco, N 2040, promulgada em 28

    de setembro de 1871, tambm conhecida como a Lei do Ventre Livre, considerava

    livres todos os filhos de mulheres escravas nascidos a partir daquela data. Sobre

    tal lei, os livros didticos trazem apenas o Artigo 1 que dizia: Os filhos de mulher

    escrava que nascerem no Imprio desde a data de assinatura desta lei, sero

    considerados de condio livre.

    Entretanto, no mencionavam que a referida lei foi considerada ineficiente pelo

    movimento abolicionista. A mesma no explicitava que nenhuma criana pode ser

    livre, tendo sua me na condio de escravizada. No diziam tambm que o 1 do

    mesmo artigo j tratava de indenizar os senhores pelas perdas que teriam com a

    promulgao da referida lei.

    1. da lei 2040:- Os ditos filhos menores ficaro em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mes, os quais tero a obrigao de cri-los e trat-los at a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da me ter opo de receber do Estado a indenizao de 600$000, ou de utilizar-se dos servios do menor at a idade de 21 anos completos. No primeiro caso, o Govrno receber o

    menor e lhe dar destino, em conformidade da presente lei.

    As fontes oficiais no informavam que a mortalidade infantil triplicou entre a

    populao escravizada, devido s ms condies de trabalho desempenhadas pelas

    mes e falta de tempo para o cuidado dos filhos. Tudo isso contribua para que as

    crianas no ultrapassassem os primeiros anos de vida. Uma vez que no seriam

    mais usados no trabalho como escravos, j no era mais interessante para os

    senhores cuidar de crianas que no mais lhes pertenciam.

    Sobre a Lei do Brasil n 3.270 de 28 de setembro de 1885, tambm conhecida

    como a Lei dos Sexagenrios, os livros didticos trazem apenas parte do 10, que

    diz: So libertos os escravos de 60 anos de idade, completos antes e depois da

    data em que entrar em execuo esta lei. So omitidas as informaes contidas

  • 39

    no pargrafo seguinte que complementa o sentido do benefcio: ficando, porm,

    obrigados, a ttulo de indenizao pela sua alforria, prestar servios a seus ex-

    senhores pelo espao de trs anos.

    Ainda no contexto da mesma lei, os livros no trazem informaes como: devido s

    condies de trabalho a que eram submetidos, a mdia de vida da populao

    escravizada era de aproximadamente 35 anos. Assim, quando chegavam aos 60

    anos, geralmente suas condies de sade j no permitiam grandes feitos em

    termos de trabalho.

    Com a falta de informaes verdadeiras ou com informaes truncadas que iam

    sendo transformadas em verdades nicas, a colnia, que um dia se transformaria

    em pas, seguia seu curso de construo. Na mesma proporo em que os braos

    negros construam a riqueza material dos famigerados interesses da coroa, sua

    imagem ia sendo reduzida a de simples executores de tarefas.

    Mas afinal, esse povo nunca reagia aos maus tratos a que eram submetidos

    durante o processo de escravizao? Ao que parece, as reaes da populao

    escravizada foram esvaziadas, a divulgao das rebelies, revoltas e insurreies

    no ocupavam muito espao nas conversas pblicas dos senhores de engenho,

    no apareciam nos veculos noticiosos da poca na mesma proporo que os

    castigos. As notcias de atos de resistncias coletivas e/ou individuais, no eram

    contedos que circulavam na histria. Felizmente hoje j existem vrios

    autores/pesquisadores negros e negros que esto recontando histria a partir de

    pesquisas de documentos histricos no divulgados, que relatam as mais variadas

    formas de resistncias do povo negro escravizado, como citaremos mais adiante.

    2.4 A negao da resistncia negra: Resistncia no Pr-abolio

    Durante sculos, na histria do Brasil, a populao afrodescendente foi considerada

    bem semovente, ou seja, a existncia na mente conservadora da cpula

    escravocrata, s se dava devido a natural capacidade de servido, que Buarque

    (2009, p. 19) chama ndole prestativa. O discurso da incapacidade da populao

  • 40

    negra para fazer qualquer tipo de atividade em que fosse necessrio o uso da

    habilidade intelectual tornou-se uma certeza absoluta to bem implantada, que suas

    razes permanecem gerando brotos que ainda hoje aparecem em lugares onde

    menos se espera.

    Os elementos miditicos que fizeram circular as notcias sobre a populao negra

    durante os perodos pr e ps-abolio no evidenciavam as diversas formas de

    resistncias da populao negra em relao ao processo de escravizao. As

    poucas notcias de lutas da populao negra eram atribudas aos abolicionistas.

    Embora entre eles existissem vrios negros, o protagonismo da abolio sempre foi

    atribuda aos brancos, como se os escravizados fossem incapazes de se

    mobilizarem em prol de suas da liberdades.

    As tenses suscitadas em prol da abolio aconteceram numa forma de

    entrelaamento entre interesses polticos reconhecidos como legtimos, juntamente

    com a estrutura coletiva de escravizados e libertos, num esforo que custou a vida

    de muitos, incluindo os senhores de engenhos e/ou outros membros de suas

    famlias assassinados pelos escravizados. Esses movimentos de liberdade sofreram,

    durante muito tempo, uma tentativa de apagamento num processo de invisibilizao

    muito bem orquestrado pela histria oficial.

    Vrios autores, entre eles Gilberto Freire, na conhecida obra Casa Grande e

    Senzala, que teve sua primeira publicao em 1933, afirmam que a escravizao

    era negociada pela forma de compadrio, alguns deles sugeriam que os negros

    aceitavam a escravizao e se aproveitavam da situao. Contrrios a tais

    pensamentos, vemos essa situao, no como forma de sujeio.

    O compadrio pode ser considerado uma forma de resistncia light, onde, mesmo em

    situao de subservincia, os escravizados faziam acordos para evitarem traumas

    maiores na relao, uma vez que no existiam muitas outras formas de se viver sem

    que as perseguies e restries fossem uma constante. Por outro lado, ao exercer

    o compadrio, os senhores tinham de volta a certeza de que entre eles e os

    escravizados com os quais a relao era estreitada, no haveria um perigo to

    eminente de reaes que oferecesse perigo para si ou seus parentes prximos.

  • 41

    Nesse perodo, as polticas pblicas e legislaes afirmavam e legalizavam todas as

    formas de represlias contra escravizados que entrassem na luta anti escravagistas.

    Nesse tempo histrico, as leis eram elaboradas com vistas a reforar e justificar as

    humilhaes e maus tratos cometidos contra os escravizados. Em funo desse

    rigor legal, aumentava ainda mais o desejo de liberdade de uns, enquanto outros

    sucumbiam ao medo.

    O que se sabe que era possvel conquistar essa liberdade de vrias formas. Entre

    elas, podemos citar a obteno da carta de alforria atravs do pagamento em

    dinheiro, considerada legal, que se tornava definitiva; a que era concedida em

    funo de algum trabalho especfico que o escravizado prestaria ao seu senhor, cujo

    pagamento seria a obteno da carta; e aquela na qual o dono dava a carta ao seu

    escravizado por vontade prpria.

    Essa ltima forma poderia ser desfeita se o antigo dono assim desejasse, o que

    poderamos chamar de alforria condicional. O escravizado pensa ter a liberdade e,

    quando menos imagina, pode perder a condio de liberto ou forro. Em casos como

    esses, muitos ex-escravizados eram persuadidos a ver a alforria como um ato de

    bondade dos senhores, a quem se tornavam eternamente gratos.

    Os senhores eram legitimados, ao submeterem seus trabalhadores aos mais

    diversos tipos de castigos. Os castigos no neutralizavam as resistncias, alis, os

    aparatos legais para legitimarem as mais diversas formas de violncia contra a

    populao escravizada s existiam e eram atualizados exatamente em funo da

    resistncia. Um desses aparatos legais pode ser comprovado no exemplo a seguir:

    Sero punidos com pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem qualquer outra grave ofensa fsica, a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes que em sua companhia morar, a administrador, feitor, e as suas mulheres que com eles viverem. Se o ferimento ou ofensa fsica forem leves, a pena ser de aoites, a proporo das circunstncias, mais ou menos agravantes. (Lei n 4 art. 1,1835, GOVERNO REGENCIAL)

    30

    S se probe ou s se castiga aquele que desobedece ou quebra as normas, e as

    normas e regras da poca eram a submisso sem reao. Alm do aparato legal,

    30

    Disponvel em http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/Legimp-20/Legimp-20_3.pdf>. Acesso em 23 ago. 2010.

  • 42

    os castigos pblicos serviam como uma espcie de presso psicolgica utilizada

    para inibir as tentativas de resistncia.

    Figura 1: Aplicao do castigo- negros no tronco. Fonte: DEBRET 1975,

    Na ilustrao, o foco o tronco. O autor d nfase a no resistncia. A posio

    corprea dos que esto ao redor do tranco, passa a ideia de apatia, como se no

    tivessem condies de reagir. Naquele momento, ao ato central, um negro, de

    calas abaixadas, smbolo mximo da humilhao, sendo aoitado por outro negro.

    Como explicar tal fato? Ou o que perguntar a tais gravuras?

    Nesse contexto, a praa o palco da servido, da violncia sem morte fsica, do

    castigo, da humilhao pblica. Ao escravizado que matasse, morte! No existia

    legtima defesa da liberdade, do direito de ser livre. Ao escravizador que matasse,

    defesa da honra! Nenhum senhor poderia ter seus bens materiais e imateriais

    ameaados. Talvez essa fosse considerada uma das formas mais violentas de

    ataque subjetividade negra e tambm da branca, j que o sentimento de

    superioridade exacerbada tambm pode se caracterizar como uma forma de

    violncia.

    As ilustraes utilizadas, de forma massiva, nos livros didticos, para representar o

    cotidiano da colnia, ainda tm seus objetivos. A forma como so trazidas as

    imagens do cotidiano negro, coloca histria do mesmo sempre associada ao regime

  • 43

    de servido, como se sua histria comeasse nos pores dos navios negreiros, no

    tronco, nos leiles em forma de lotes a serem comercializados. Produz-se um

    apagamento das histrias de resistncias. Fale-se da servido, mas no se explicam

    os usos das correntes, das chibatas, capites do mato e outros aparatos

    antirresistncia.

    Cria-se um fosso na histria. Se no passado distante os castigos em praa pblica

    serviam como forma de exemplo para quem ousasse reagir escravizao, em um

    passado no to distante assim, serve para no deixar apagar da memria de

    brancos e negros a supremacia branca. Servem como instrumentos de distores da

    subjetividade de estudantes negros e brancos ao qual foram submetidos ao longo de

    suas vidas acadmicas.

    Nos relatos oficiais sobre as relaes entre escravizados e escravizadores, cenas

    como as da figura 2 no aparecem. Os efeitos da faca so muito violentos,

    imediatos, e merecem censura prvia, j os efeitos do tronco e do chicote so

    apenas castigos e, por isso, uma vez legitimados, so eternizados na subjetividade

    dos que representam os chicoteados.

    Figura 2: Assassinato de senhores, feitores. (Arago

    31). Fonte: Pinsky (2001).

    31

    Desenhista, escritor e explorador com ideias abolicionistas. Acompanhou a expedio de circunavegao comandada por Louis de Freycinet a bordo do navio Uranie, entre os anos 1817 e 1820. Durante essa viagem, visitou o Rio de Janeiro em 1817, onde produziu seis pranchas retratando a cidade.

  • 44

    Imaginemos quantos livros didticos foram impressos com figuras subliminarmente

    comprometidas com a desqualificao do povo negro? Quantos de ns, durante

    nossa vida estudantil, j no nos deparamos com ilustraes com os mesmos

    efeitos simblicos? Imaginemos quantos olhares foram trocados por estudantes

    brancos e negros de forma acusadora e ameaadora nos bancos escolares sem que

    os professores pudessem atuar de forma crtica durante a explanao dos

    contedos como forma de amenizar o tom da violncia implcita e explcita.

    2.4.1 Armas silenciosas

    Ao contrrio do que muitas de nossas leituras obrigatrias dos livros didticos que

    nos formaram, nos fizeram acreditar que o povo que aqui chegara de forma

    indesejada, no se sabe ao certo de quais regies do continente africano e nem em

    quais condies foram negociados para que fossem enviados para o Brasil, tinha

    que se reinventar para no sucumbir s presses fsico/psicolgicas. Para isso

    utilizavam as mais variadas formas de re/existncia. De vtimas, suas rebelies, que

    embora os livros didticos no tragam muitos detalhes sobre as formas como se

    rebelavam, quando essas informaes aparecem, os escravizados erem

    transformados em algozes de seus opressores.

    Como forma de resistncia, tambm utilizavam armas silenciosas. Com os

    conhecimentos que possuam sobre a manipulao de ervas e resduos animais,

    produziam e administravam, de forma gradual, vrios tipos de venenos nas comidas

    de senhores. Alm disso, colocavam vboras nos travesseiros deles como afirma

    Schwarcz (1996, p. 25).

    Senhores e feitores eram as vtimas prediletas de assassinatos e envenenamentos. O quebranto, por exemplo, to descrito, nos romances da poca, como uma grande lassido

    32 que se apoderava dos senhores, no

    era mais que o resultado da administrao gradual de venenos que amansavam suas vtimas. Exmios preparadores de venenos de origem animal e vegetal, os escravizados esmeravam-se tambm em colocar cobras nas botinas de seus proprietrios e outros bichos venenosos em seus travesseiros. (Grifo nosso).

    32

    Cansao, fadiga, moleza, canseira, afobao (Dicionrio Aurlio. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993).

  • 45

    Das mais diversas formas de resistncia do povo negro escravizado, algumas eram

    levadas ao que podemos chamar de extremismo. Algumas escravizadas faziam uso

    de plantas para fins abortivos. Preferiam matar seus filhos, a v-los viver nas

    mesmas condies vividas por elas. Na obra intitulada Escravido escrita em 1870,

    Joaquim Nabuco e reorganizada em 1988, resume o pensamento recorrente na

    poca acerca dos abortos e suicdios. a morte o que menos humilhante para a

    vtima do que sujeit-lo ao cativeiro (p. 29). Essa era uma das formas de causar

    prejuzo a seus senhores, como afirma Moura (1981, p.14):

    Do ponto de vista do prprio escravo essas reaes iam desde os suicdios, fugas individuais ou coletivas, at formao de quilombos, s guerrilhas, s insurreies citadinas e a sua participao em movimentos organizados por outras classes e camadas sociais. O escravo, desta forma, solapava nas suas bases as relaes escravistas, criando uma galxia de desajustes desconhecida pelos dirigentes polticos da poca.

    2.4.2 Armas coletivas

    Os quilombos so hoje reconhecidos como espaos de organizaes coletivas de

    resistncia no perodo pr-abolio. No apenas como um espao de fuga, mas

    tambm como organizaes que resistiam ao processo de escravizao. Entre os

    quilombos, Palmares, liderado por Zumbi, era mais citado, embora com poucos

    detalhes. Moura (1989, p. 22) define os quilombos como:

    O movimento de rebeldia permanente organizado e dirigido pelos prprios escravos que se verificou durante o escravismo brasileiro em todo o territrio nacional. Movimento de mudana social provocado, ele foi uma fora de desgaste significativa ao sistema escravista, solapou as suas bases em diversos nveis econmico social e militar e influiu poderosamente para que esse tipo de trabalho entrasse em crise e fosse substitudo pelo trabalho livre.

    A nfase nos documentos histricos foi dada forma como o lder de Palmares,

    Zumbi, foi capturado. Enfatiza-se tambm a astcia de Domingos Jorge Velho33 em

    persuadir integrantes do Quilombo de Palmares a trarem seus companheiros.

    Palmares era citado como se fosse o nico quilombo existente no Brasil. No

    problematizavam o genocdio praticado contra a populao que ali residia. Ainda

    hoje existem poucos documentos ou trabalhos cientficos sobre quilombos.

    33

    Bandeirante segundo a histria oficial comandou a invaso ao Quilombo de Palmares..

  • 46

    O pensamento coletivo34 podia ser observado mesmo em aes sem grande

    alcance. Para alm dos quilombos, os negros livres que exerciam atividades

    remuneradas j trabalhavam como comerciantes e outros, entre eles os escravos de

    ganho35 que juntavam suas economias adquiridas com os trabalhos feitos por fora

    ou com o que recebiam a mais pelos servios extras, formavam grupos para

    comprar suas alforrias e de seus parentes. As organizaes das aes coletivas

    eram realizadas, tanto nas senzalas quanto em outros espaos como locais de

    cultos religiosos. Os Terreiros36 tambm eram severamente perseguidos durante a

    pr-abolio.

    Dentre esses movimentos coletivos, a Revolta dos Mals37 era um dos poucos

    reconhecidos oficialmente, porm sem muitos detalhes. Esse movimento, datado de

    1835, teve como palco as ruas de Salvador, Bahia. Embora no haja registros mais

    conclusivos, segundo algumas fontes, dentre as quais podemos citar Reis (2003), a

    revolta dos Mals reuniu cerca de 600 homens. Esse nmero de pessoas parece

    pequeno, mas, se considerarmos a populao atual de Salvador, seria o equivalente

    a 24 mil pessoas. Para alm de ser uma luta a favor da libertao dos escravizados,

    tinha tambm um cunho religioso, j que o catolicismo era imposto pelo governo em

    consonncia com a igreja, pois na poca dividiam o poder.

    Tal Revolta, assim como as muitas outras acontecidas em outras provncias, foram

    possveis, no porque todos os negros se conhecessem, mas por aquilo que tinham

    em comum, que os tornava grupo.

    De fato identidade tnica e religiosa foi muito importante para deslanchar o movimento. A maioria dos muulmanos que viviam na Bahia em 1835 era nag. Apesar de na frica, e mesmo no Brasil, outros grupos, como os hausss, serem mais islamizados do que os nags, coube a estes o predomnio no movimento de 1835. Os nags islamizados no s constituram a maioria dos combatentes, como a maioria dos lderes. Mais de 80 por cento dos rus escravos em 1835 eram nags, sendo eles apenas 30 por cento dos africanos de Salvador; dos sete lderes identificados, pelo menos cinco eram nags. Eram nags os seguintes lderes: os escravos Ahuna, Pacifico Licutan, Sule ou Nicob, Dassalu ou

    34

    No utilizo o termo para falar de unanimidade, entre os africanos, existiam negros que j tinham conseguido se tornar grandes homens de negcio e chegavam a possuir trabalhadores na condio de escravizados, j que possu-los era sinnimo de poder. 35

    Escravizados de rua que eram alugados pelos senhores para fazer trabalhos externos. 36

    Local de cultos de religies de matrizes africanas como a Umbanda e o Candombl. 37

    A expresso male vem de imal, que na lngua iorub significa muulmano. Portanto os Mals eram especificamente os muulmanos de lngua iorub, conhecidos na Bahia como nags.

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    Damalu e Gustard. Tambm nag era o liberto Manoel Calafate. Os outros eram o escravo tapa

    38. Lus Sanim e o liberto hauss Elesbo do Carmo ou

    Dandar, que negociava com fumo (REIS, 2003 p. 6).

    Movimentos como estes, assim como a formao dos quilombos, aconteceram em

    vrias regies do Brasil, entretanto, a visibilidade e veracidade destes eventos,

    assim como a de tantos outros, foi diminuda ou distorcida. As informaes sobre as

    formas de castigos aos lideres, essas sim, eram amplamente divulgadas. Se na

    poca existisse imprensa televisiva, certamente, seriam transmitidas em cadeia

    nacional.

    2.4.3 Armas de papel

    Em todos os exemplos de lutas citados at aqui, a resistncia escrita esteve

    presente durante o perodo escravocrata. Ao contrrio do pensamento de que a

    populao negra era analfabeta, o analfabetismo no era unanimidade. Existiam

    muitos negros, tanto libertos quanto escravizados, alfabetizados. Tanto nas lnguas

    de seus pases de origem quanto na lngua oficial da colnia.

    A produo de escritos pblicos, como forma de resistncia escravizao, j

    existia desde 1833. De acordo com Pinto (2010, p. 17), os mais conhecidos, que

    chegaram a alcanar repercusso regional foram:

    O Homem de Cor ou O Mulato, Brasileiro Pardo, O Cabrito e O Lafuente (todos do Rio de Janeiro do ano de 1833); O Homem: Realidade Constitucional ou Dissoluo Social (de Recife, 1876); A Ptria rgo dos Homens de Cor (d