Tese Final Revisao Final Sonia 21 Abril 20 13h - Comentario Renato

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SUMRIO

Lista de Ilustraes................................................................................................................10 Introduo..............................................................................................................................14 1 A Herana e a Construo do Moderno em Anita Malfatti.............................................21 1.1 Aspectos da Arte Moderna..................................................................................................34 1.2 Verdade da sensao o desejo de objetividade do Impressionismo.............................53 1.3 Tendncias ps-impressionistas..........................................................................................63 1.4 Vanguarda: negao e ruptura x tradio liberdade x dilogo ........................................72 2 A controversa pintura de Anita Malfatti ..........................................................................86 2.1 Caractersticas gerais da obra..............................................................................................86 2.2 Formao inicial no Brasil: primeiras pinturas, tendncia ao Naturalismo........................91 2.3 A arte como ruptura e negao: o moderno na pintura de Anita Malfatti: .......................95 2.3.1 A experimentao e a influncia dos ismos: a formao na Alemanha...........................95 2.3.2 A formao nos Estados Unidos ...................................................................................100 2.4 O Retorno Ordem: a pintura de Anita Malfatti na dcada de 20 e 30........................119 2.4.1 Incio dos anos 20 no Brasil: volta ao Naturalismo.......................................................119 2.5 Os anos de retorno em Paris: 1923 -1928.........................................................................123 2.5.1 Retorno ordem no Brasil: os retratos naturalistas.......................................................171 2.6 Dilogo com contemporneos no Brasil: o primitivismo de Anita Malfatti.....................187 2.7 Experimentaes Abstratas...............................................................................................208 3 Anita Malfatti revisitada...................................................................................................214 3.1 O caso Malfatti x Lobato: a criao de um mito...............................................................214

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3.2 Malfatti e o Projeto Nacionalista da Arte Brasileira.........................................................225 3.3 Anita Malfatti: para alm dos mitos..................................................................................234 Concluso..............................................................................................................................247

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LISTA DE ILUSTRAES

Figura 1. Anita Malfati, Dlias, c. 1920................................................................................27 Figura 2. Anita Malfatti, A lavadeira, s.d.............................................................................29 Figura 3. Anita Malfatti, Paisagem (Casa Beira do Rio), s.d...........................................29 Figura 4. Anita Malfatti, Paisagem Entrosada, anos 50/60.................................................30 Figura 5. Anita Malfatti, Penhascos, 1915/17.......................................................................30 Figura 6. Emil Nolde, ltima Ceia, 1909..............................................................................39 Figura 7. Emil Nolde, Pentecostes, 1909...............................................................................40 Figura 8. Ernst Kirchner, Duas Mulheres na rua, 1914......................................................44 Figura 9. Manet, Almoo sob a rvore, 1863.......................................................................56 Figura 10. Monet, Almoo Sob a rvore, 1865.....................................................................57 Figura 11. Anita Malfatti, A Ventania, 1915/17..................................................................59 Figura 12. Anita Malfatti, A Onda, 1915/17.........................................................................60 Figura 13. Lovis Corinth, Auto Retrato com Chapu de Palha, 1913...............................62 Figura 14. Lovis Corinth, O Retrato de Julius-Graefe, 1917..............................................62 Figura 15. Monet, Montes de Feno, 1891..............................................................................64 Figura 16. Paul Gauguin, Montes de Feno Amarelos, 1889................................................65 Figura 17. Van Gogh, Ciprestes com dois contornos femininos, 1889...............................67 Figura 18. Anita Malfatti, Paisagem, Monhegan, 1915.......................................................67 Figura 19. Anita Malfatti, O Farol, 1915..............................................................................70 Figura 20. Anita Malfatti, Burrinho Correndo, 1909..........................................................92 Figura 21. Anita Malfatti, Recanto, 1910.............................................................................93 Figura 22. Anita Malfatti, O Jardim, Treseburg, 1912.......................................................97

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Figura 23. Anitta Malfatti, A Floresta, Treseburg, 1912....................................................97 Figura 24. Anitta Malfatti, Retrato de um Professor, 1912/13.........................................102 Figura 25. Anita Malfatti, Academia (Torso de Homem), s.d..........................................103 Figura 26. Anita Malfatti, Retrato de Mulher, 1915/16....................................................106 Figura 27. Anita Malfatti, Retrato de Mulher (Estudo para A Boba), 1915/16..............107 Figura 28. Anita Malfatti, Caricatura (Moa com Gola de Palhao), 1915/17...............108 Figura 29. Anita Malfatti, Caricatura (Moa de franja e gola alta), 1915/17.................108 Figura 30. Anita Malfatti, Ritmo (Torso), 1915/16............................................................111 Figura 31. Anitta Malfatti, A Boba, 1915/16......................................................................115 Figura 32. Anita Malfatti, A Estudante Russa, c. 1915.....................................................116 Figura 33. Anita Malfatti, Uma Estudante, 1915/16..........................................................117 Figura 34. Anita Malfatti, Tropical, 1916 c........................................................................121 Figura 35. Andr Derain, Retrato de Henri Matisse, 1905...............................................130 Figura 36. Andr Derain, Mulher em uma Camisa, 1906.................................................134 Figura 37. Ernst Kirchner, Marcella, 1909........................................................................135 Figura 38. Anita Malfatti, O Homem Amarelo, 1915/16...................................................136 Figura 39. Anita Malfati, O Japons, 1915-16....................................................................137 Figura 40. Andr Derain, O Artista e sua Famlia, 1920/24.............................................139 Figura 41. Andr Derain, Portrait of Alice with a Shawl, c. 1925....................................140 Figura 42. Anitta Malfatti, Dama de Azul, 1925 c. ...........................................................140 Figura 43. Anita Malfatti, La chambre bleue, 1925 c........................................................141 Figura 44. Anita Malfatti, Interior de Mnaco, c. 1925....................................................144 Figura 45. Anita Malfatti, Chanson de Montmartre, 1926...............................................151 Figura 46. Anita Malfatti, Mulher do Par, 1927 c...........................................................152 Figura 47. Anita Malfati, Nu Feminino (Grande Nu), 1915-16........................................154

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Figura 48. Anita Malfatti, Nu de tranas presas, sentado, costas, c. anos 30..................155 Figura 49. Anita Malfatti, Volutas e nu sentado (Tranas presas, costas), c. anos 30....156 Figura 50. Anita Malfatti, Moa Lendo (Lucy Shalders), 1912 c.....................................156 Figura 51. Anita Malfatti, Nu Reclinado, anos 20 c...........................................................159 Figura 52. Anita Malfati, Nu (tronco, de perfil), s.d..........................................................160 Figura 53. Anita Malfatti, A Mulher e o Jogo, anos 20 c. ................................................161 Figura 54. Anita Malfatti, Chinesa, 1921/22 ......................................................................166 Figura 55. Anita Malfatti, A Japonesa, 1924......................................................................167 Figura 56. Anita Malfatti, Cristo, 1921...............................................................................169 Figura 57. Anita Malfatti, Puritas, c. 1927.........................................................................170 Figura 58. Anita Malfatti, Ressurreio de Lzaro, 1928-29............................................170 Figura 59. Anita Malfatti, Danarina Pompeiana, 1934/35..............................................171 Figura 60. Cndido Portinari, Retrato da Embaixatriz Sofia Cantalupo, 1933.............176 Figura 61. Portinari, Caf, 1934..........................................................................................177 Figura 62. Cndido Portinari, Mestio, 1934.....................................................................177 Figura 63. Georg Grosz, Suicdio, 1916..............................................................................179 Figura 64. Georg Grosz, Um Casal, 1930...........................................................................180 Figura 65. Anita Malfatti, Liliana Maria, 1935/37............................................................184 Figura 66. Anita Malfati, Caboclo, 1930-33.......................................................................185 Figura 67. Alberto da Veiga Guignard, Os Noivos, 1937..................................................191 Figura 68. Flvio Pennacchi, Festa com Bales, 1950.......................................................192 Figura 69. Flvio Pennacchi, Festa Caipira, 1946.............................................................192 Figura 70. Anita Malfatti, Bailinho, anos 1940/50 ............................................................199 Figura 71. Anita Malfatti, Festa na Roa, 1955 c. .............................................................199 Figura 72. Anita Malfatti, Batizado na Roa, anos 40.......................................................200

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Figura 73. Anita Malfati, Procisso, 1940-50.....................................................................200 Figura 74. Anita Malfati, Casal Danando, 1910-20..........................................................207 Figura 75. Anita Malfatti, Nu Cubista n. 1, 1915/16..........................................................210 Figura 76. Anita Malfatti, Primavera, 1957 c....................................................................211 Figura 77. Anita Malfatti, Outono, anos 50........................................................................211 Figura 78. Anita Malfatti, A Mulher de Cabelos Verdes, 1915-16...................................218

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INTRODUO

A histria da arte moderna no Brasil no se faz sem o nome de Anita Malfatti, referncia obrigatria para aqueles que buscaram analisar a razo de ser, as motivaes e as caractersticas do movimento modernista no Brasil. O nome da pintora paulistana, nascida no ano de 1889, reconhecidamente um dos impulsionadores do modernismo. Todavia, apesar dessa referncia obrigatria ser reconhecida no estudo da histria da arte moderna brasileira, na maioria das vezes a crtica tem em vista apenas uma fase de sua carreira: a que precedeu a segunda exposio individual, em 1917. Leituras pontualmente recortadas como essas foram importantes para consolidar a influncia de Malfatti sobre o pensamento moderno brasileiro, contudo, acabam sendo parciais, visto que tm em foco apenas seu perodo mais contestador, no qual se destacam seu Homem Amarelo, O Japons, A Boba, A Mulher de Cabelos Verdes, A Estudante Russa, O Farol etc. telas pintadas entre 1915 e 1916, que acabaram por tornar as nicas conhecidas pelo pblico leigo, numera mera aluso artista. O problema de um recorte reduzido assim que ele no s oferece uma idia incompleta da obra da artista e de sua participao na construo do modernismo brasileiro, como tambm da prpria histria das artes no pas. compreensvel que, para avaliar a importncia de Anita Malfatti para o incio da arte moderna no Brasil, tome-se o perodo anterior Semana de 22 e as telas que suscitaram o debate em torno disso. Entretanto, se a proposto avaliar o conjunto de sua obra as primeiras telas so do incio da dcada de 10 e as ltimas de pouco antes de falecer em meados da dcada de 60 e a contribuio desta para as artes brasileiras, ento necessrio evitar restringir-se a um nico perodo (1914-1917)

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como tambm, e talvez principalmente, evitar rtulos que enquadrem a obra ou a artista como simplesmente moderna ou clssica1. Nesse sentido pretendemos mostrar no presente trabalho como vrias obras, produzidas depois do to citado perodo contestador, refletem ainda uma escolha da artista pela arte moderna, embora diferentes das distores caractersticas de sua fase mais expressionista. Tambm mostrar que, se o novo aparece explcito nas telas produzidas na dcada de 10 e em anos posteriores se apresenta de forma mais diluda, h que se considerar tambm que no percurso da artista at a sua maturidade esttica, Anita faz escolhas variadas de temas e uma mistura de tcnicas consagradas pela arte clssica e testadas pela arte moderna, cujo carter inovador ainda permanece como caracterstica marcante tambm em outros trabalhos: os tons fortes e decorativos de Interior de Mnaco (Figura 44) e de La rentre ou o primitivismo j presente em Chanson de Montmartre (1926) e na Mulher do Par (1927) so alguns exemplos. Da mesma forma, o novo se mostra na pincelada marcada e contundente em a Chinesa (Figura 54, 1921/22), a qual, ao contrrio do que se esperaria, aparece ainda mais solta em O poeta (1943/45). E h que se considerar ainda a ingenuidade das paisagens regionalistas apresentadas em Batizado na Roa, Bailinho (dcada de 40/50) ou em Casamentinho (c.1962). O que comumente fez a crtica de arte brasileira, no caso de Malfatti, foi determinar que as obras da pintora produzidas at 1917 eram modernas e que as de anos posteriores seriam simplesmente acadmicas, quando, em estudos mais contemporneos podem indicar que muitas das obras de Anita Malfatti, assim como a de inmeros artistas contemporneos s

1 O sentido de moderno e clssico empregados aqui faz referncia ao uso mais generalizado e comum para classificar a obra de Anita Malfatti. O primeiro normalmente usado para se fazer referncia s obras feitas at 1916 e expostas na Exposio de Arte Moderna Anita Malfatti, em dezembro de 1917, e s tendncias de vanguarda encontradas nestas: distores, nfase nas cores em detrimento do desenho etc. O segundo se refere normalmente ao perodo que vai do fim dos anos 10 at o final dos anos 50, servindo para rotular a produo no vanguardista da artista como representativa de um retrocesso de sua pintura. Essas concluses costumam vir fundadas a partir do ponto de vista dos consagrados autores: Aracy do Amaral, Paulo Mendes de Almeida e Mrio da Silva Brito, tema que ser trabalhado no terceiro captulo.

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dcadas de 20 e 30, esto vinculadas a uma idia bastante aceita no perodo entre o ps guerra: o de um movimento de retorno ordem. Anita Malfatti viveu este retorno ordem atravs de uma pintura mais naturalista, mais fiel realidade, a um fazer mais artesanal e mais apegado ao nacionalismo. Nas telas desta poca, a pintora no distorce as figuras nem a realidade, como o fez em seus retratos de O Japons ou A Boba. Ela nem mesmo cria cores contrastantes como nas paisagens de O Farol ou A Onda, no entanto, essas obras tambm no so retratos fiis ou idealizados do real. Por um lado, mostram uma preocupao matemtica com a composio na tela, a intensidade de cores e a preocupao com uma paleta mais decorativa, por outro, o que poderamos chamar de uma mlange, termo que abrange caracterstica desse perodo de retorno ordem, mas tambm de estticas atuais. Nas suas paisagens pintadas a partir dos anos 40, a caracterstica marcante se nota pela temtica mais nacionalista e pela simplificao das formas, feita por vrios artistas brasileiros e italianos, como Flvio Pennacchi, Alberto da Veiga Guignard, Aldo Bonadei e Alfredo Volpi2, artistas com os quais Anita Malfatti teve contato atravs de grupos como a Famlia Artstica Paulista ou o Grupo Santa Helena. Essas pinturas tambm so influenciadas por este projeto de retorno ordem, o qual propunha a volta pintura figurativa, mesclada com alguns avanos da pintura do sculo XIX, bem como a revalorizao de temas culturais nacionais e o retorno ao gosto pelo apuro da tcnica. Este movimento, iniciado na Europa nos anos 20, dominou tambm o cenrio nacional brasileiro, principalmente a partir dos anos 30. Anita Malfatti, alm de viver o retorno nos anos 20 enquanto estava em Paris, com uma pintura s vezes mais realista/naturalista e outra mais decorativa, quando volta ao Brasil, passa a pintar inmeros retratos realistas/naturalistas, como festinhas populares, o cotidiano das pequenas vilas, a vivncia tranqila do lar e cenas religiosas. A artista se mostra mais conectada neste momento com o retorno pintura renascentista italiana, da qual tambm eram2 A relao da pintura ingnua de Malfatti com a desses artistas ser tratada no segundo captulo.

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herdeiros os artistas italianos chegados ao Brasil. Tais obras denotam que Anita Malfatti foi uma experimentadora e esteve aberta aos questionamentos artsticos de seu tempo no s no perodo de 1917, mas em toda sua carreira. Indicam, ainda, que sua obra no se restringe a produes modernas e clssicas, h mas um misto de ensaios, tentativas e criaes a partir de inmeros estilos recorrentes no sculo XX: impressionismo, expressionismo, cubismo, naturalismo, realismo, primitivismo e arte ingnua. Diante dessa diversidade de procedimntos que encontramos na obra de Malfatti, parece-nos que talvez seja necessrio avaliar sua produo para alm das categorias de estilo ou de rtulos histricos. necessrio enfrentar e procurar compreender seus quadros por eles mesmos, na medida em que constituem um campo de sentido prprio. Com isso, no pretendemos negar que o ato criativo de Malfatti possua comprometimentos exteriores de toda ordem, sujeitando-se s contingncias do dia-a-dia. Esperamos, pelo menos que se faa valer sobre sua obra essa contingncia, ou ainda, ou que se permita que as classificaes operem como fatores crticos, acreditamos que se deva procurar, em meio diversidade de sua obra, um parmetro de julgamento que tome, antes o caso da regra [Fall der Regel3] como guia reflexivo e no como um princpio determinante j dado. A controvrsia em torno da obra de Anita Malfatti moderna e clssica, moderna ou clssica? tambm pode ser melhor resolvida se nos atermos mais nas similitudes: a recorrncia e preocupao com a cor, a distoro mais ou menos acentuada do objeto e na simplificao da figura do que nas discrepncias, vistas pela crtica como retrocesso e regresso. Trata-se de tentar perceber at que ponto o aprendizado e os conceitos essenciais da arte moderna, recebidos por Anita Malfatti na Europa e nos Estados Unidos, reaparecem num

3 O juzo de gosto mesmo nao postula o assentimento de cada um [...] ele apenas insinua [mimet an] essa concordncia, como um caso da regra em vista de que ele nao espera a confirmao por meio de conceitos, mas apenas a concordncia de outras. (KANT, Imannuel. Kritik der Urteilskraft, Werke, Band 8, WBG: Darmstadt, 294 p.

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outro modo de pintar que no o expressionismo, pois, ainda que este estilo a tenha consagrado, representou apenas alguns anos da obra produzida ao longo de sua vida. Nesse sentido, tal reflexo s ser possvel se tivermos em vista os aspectos plsticos de sua pintura e a semelhana destes com aqueles caractersticos da modernidade na arte, evitando que os aspectos biogrficos, normalmente muito enfatizados pela crtica, sobreponham-se anlise esttica. Em suma, o objetivo desta tese repensar por outro prisma, de uma forma diferenciada, a pintura de Anita Malfatti, situando-a no contexto em que foi produzida: biogrfico como no poderia deixar de ser mas, sobretudo e principalmente, histrico e esttico, compreendendo-a a partir de uma filosofia da arte moderna e de uma anlise da construo do projeto modernista no Brasil. No primeiro captulo, A Herana e a Construo do Moderno em Anita Malfatti, abordaremos de que maneira a pintura moderna rompe com a pintura clssica, a partir da anlise de suas ideologias e de como estas influenciaram os principais movimentos do incio do sculo XX. Alm disso, pretendemos expor quais foram os desafios plsticos e ideolgicos enfrentados pelos artistas modernos nesta tentativa de superao. Nesse captulo pretende se questionar tambm alguns postulados que descrevem a arte moderna, por um lado, apenas como negao e ruptura e, por outro, como uma arte totalmente livre, mostrando que estes conceitos necessariamente pressupem, em termos hermenuticos, um dilogo entre passado e presente, o que, por si s, j impossibilita uma arte completamente independente e desprovido de referncias. A anlise e a comparao detalhada da obra de Malfatti com as principais correntes e tcnicas artsticas experimentadas pela pintora ao longo de sua vida, atravs da verificao de como sua obra se vincula a esta tradio moderna, sero tratados no segundo captulo, A controversa pintura de Anita Malfatti, em que analisaremos detalhadamente a pintura da

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artista, buscando subsdios que nos permitam perceber no s as influncias sofridas por esta, mas tambm como as suas escolhas ajudaram-na a fundar uma viso particular do que seja ser moderno. Assim, no ltimo captulo, Anita Malfatti revisitada, ser possvel, ento, confrontar a obra da pintora com a crtica de arte feita no pas, reavaliando alguns pontos sustentados por esta: o exagero atribudo polmica de Lobato e a influncia desta na mudana de estilo da pintora a partir dos anos 20; a supervalorizao das obras expressionistas em detrimento do restante da obra; a preponderncia da anlise biogrfica sobre a anlise esttica. Este trabalho busca lanar um outro olhar sobre a obra de Anita Malfatti. Um olhar que se pretende, ao mesmo tempo, mais global, ao tomar a totalidade da produo da artista, e menos parcial, ao sobrepor a anlise esttica anlise biogrfica. A pesquisa fundamentou-se a partir da anlise de livros e documentos, sobretudo de catlogos de exposies pertencentes ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP e da reproduo de mais de 250 obras diretamente desses documentos. Alm desses, a pesquisa se realizou com visitas freqentes ao Acervo Mrio de Andrade, do IEB, ao acervo e reserva tcnica do Museu de Arte Contempornea, ambos da Universidade de So Paulo, ao Museu de Arte Moderna de So Paulo e a inmeras exposies que contemplaram a obra da artista ou temas correlatos em dezenas de museus brasileiros Pinacoteca do Estado, Estao Pinacoteca, Museu Lasar Segall, Museu da Fundao Armando Alvares Penteado, Museu de Arte Moderna, Museu de So Paulo, Museu de Arte Contempornea, Centros Culturais e Galerias de Arte de So Paulo e europeus: Museu Nacional del Prado (Madrid) e Museu dOrsay, Museu de Arte Moderna da Vila de Paris, Museu Picasso, LOuvre e Petit Palais (Paris); The National Gallery, Tate Gallery e Tate Modern (Londres); RijksMuseum Amsterdam e Van Gogh Museum (Amsterdam) e Skissernas Museum (Lund, Sucia), Zentrum Paul Klee (Berna) e Kunsthaus Zrich (Zurique).

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1 A HERANA E A CONSTRUO DO MODERNO EM ANITA MALFATTI

Reajam ou no os artistas individuais s condies e mudanas histricas, sua obra produzida como arte, e, em sua concepo de como essa obra deve se desenvolver, eles costumam se reportar a outras obras de arte, sejam elas as realizaes de uma gerao mais velha, sua prpria produo imediatamente anterior ou s experincias de seus contemporneos. Charles Harrison 4 A formao pictrica de Anita Malfatti foi ampla, o que lhe possibilitou um domnio sobre a tcnica do desenho e da pintura, seja no estilo acadmico no qual se destacam algumas regras consagradas pela arte clssica, como o desenho, o estudo de planos, sombra etc ou no estilo moderno que busque quebrar com essas regras. Mesmo no sendo comum s jovens moas da poca, Anita buscou a pintura como profisso e teve a maior parte deste aprendizado no exterior: na Europa em meados de 10 e incio de 20 e nos Estados Unidos entre os anos 15 e 16. Se este dado biogrfico, por si, j nos obriga a uma anlise desta formao, as caractersticas de sua pintura impressionista, expressionista, realista, naturalista, ingnua incitam ainda mais busca de uma compreenso das principais correntes e estilos artsticos que a influenciaram. As visveis discrepncias estilsticas na obra da pintora, somadas ao fato de Anita Malfatti no ter datado a maioria de suas obras5, ou t-lo feito de forma insuficiente,4 HARRISON, Charles. Modernismo, So Paulo: Cosac & Naif Ltda, 2000, 11 p. 5 No se pode precisar suas reais motivaes para isso: talvez uma tentativa de evitar o preconceito de idade que rondava as moas solteiras de sua poca ou at mesmo uma despreocupao com tal formalidade, a exemplo de como pensavam outros pintores, como Volpi: A pintura para Volpi, parece ter sido desde o incio uma prtica que no podia ter outra funo a no ser a de resolver problemas de pintura. Por isso ela nitidamente separada de qualquer tipo de utilidade exterior seja a veiculao de um significado, seja a decorao de um espao. Pintar resolver questes de forma, linha e cor dentro da superfcie retangular da tela todo o resto irrelevante. Os quadros de Volpi nem datas trazem, como se at elas no passassem de anedotas

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dificultam a anlise crtica do todo de sua obra. Por essa razo, tomaremos como base as pesquisas biogrficas e a catalogao da obra da artista feita por Marta Rossetti Batista, historiadora da arte e especialista na obra de Anita Malfatti6. O resultado desse inestimvel e dedicado trabalho de Rossetti parece-nos uma referncia indispensvel para quem pretenda se dedicar a uma sria anlise do percurso da artista. No entanto, acreditamos que alguns preceitos ou mtodos de crtica adotados nesse estudo so passveis de reviso, o que obviamente no desmerece o empenho da autora. Marta Rossetti deteve-se atentamente aos acontecimentos da vida de Anita Malfatti para explicar suas diferentes formas de pintar. No entanto, sua detalhada e cuidadosa pesquisa histrica d, a nosso ver, um crdito muito grande s presses financeiras, s crticas e personalidade de Anita. O retorno a uma pintura mais clssica dar-se-ia logo aps as crticas recebidas na exposio de 1917; a perda de qualidade plstica de parte das obras posteriores estaria ligada influncia dos movimentos e estilos com os quais Malfatti tivera contato, mas sobretudo, ao fracasso amoroso, timidez, aos descontentamentos com a crtica e aos dramas familiares. Embora Rossetti no deixe de analisar as influncias artsticas recebidas por Anita tanto no pas como no exterior, algumas concluses - implcitas ou no podem ser

questionadas em seu exame, a saber: Anita Malfatti nunca mais seria moderna como o fora em 16 e 17; Anita Malfatti recuaria diante da falta de aceitao de sua obra e manter-se-ia perdida entre opes acadmicas e ingnuas e, no fim da vida, produziria uma obra, no interior da qual uma parte seria bastante tosca. 7

extra-artsticas, in: MAMM, Lemos. Volpi, So Paulo: Cosac & Naif, 1999, 8 p. 6 Marta Rossetti Batista compilou, organizou e publicou inmeros dados biogrficos sobre Anita Malfatti, incluindo trechos de dirios e cartas enviadas por Mrio de Andrade artista. Tivemos acesso a estes dados atravs de vrios trabalhos de Rossetti, entre os quais se destacam: Brasil: 1. tempo modernista, 1917-29, So Paulo: IEB, 1972; Anita Malfatti e o incio da arte moderna no Brasil, So Paulo, Escola de Comunicaes e Artes-USP, 1980 (dissertao de mestrado); Anita Malfatti no tempo e no espao, So Paulo: IBM, 1982 (publicado em 2006 pela Edusp, edio referida nas citaes) e Os Artistas Brasileiros na Escola de Paris, anos 2., Escola de Comunicao e Artes-USP, 1987 (tese de doutorado- 2 vols). Alm destes, tambm foram utilizados documentos e catlogos de exposio do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. 7 BATISTA, Marta R. Anita Malfatti no tempo e no espao. So Paulo: Edusp, 2006, v.I, 460 p.

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Nos anos 20 e 30, Anita Malfatti pinta e trabalha sob a presso desse debate consigo mesma: ora sucumbe s obras fceis e acessveis, ora procura seu caminho, volta a pesquisar os rumos da arte moderna e seu papel dentro dela. No mais na posio histrica de 17/18, de nica vanguarda, tem ainda perodos de produo importante, com obras de grande valor plstico8.

As inferncias de Rossetti podem parecer cabveis se tivermos em mente neste debate consigo mesma os problemas que Anita Malfatti enfrentou no Brasil aps o fracasso de venda e de aulas provocado pelo artigo Parania ou Mistificao9 de Monteiro Lobato, escrito logo aps a exposio organizada pela artista, em dezembro de 1917. Elas reforam uma idia j sustentada por historiadores do modernismo, como Paulo Mendes de Almeida10 ou Mrio da Silva Brito11, de que a artista, apesar de seus esforos por compreender a pintura de seu mundo, sempre sucumbiu aos apelos da crtica e da famlia para voltar a uma pintura mais prxima da pintura acadmica, ou seja, em que a representao estivesse em maior consonncia com a realidade e com as regras consagradas pela pintura clssica. Nesse caso, o desejo que Anita se pautasse por uma pintura cuja forma fosse mais naturalista12 e o tema mais nacionalista, de acordo com o tipo de pintura mais apreciada na poca no pas. O misto de naturezas-mortas com retratos mais realistas do perodo posterior exposio de 1917 talvez deixe dvidas sobre a capacidade criadora da artista em termos de um pensamento mais vanguardista, como aqueles que a haviam seduzido na Europa e nos Estados Unidos. Contudo, o debate de Anita tambm se fazia com novos valores buscados por inmeros artistas brasileiros, europeus e americanos: deveria a artista permanecer em suas8 Idem, Anita Malfatti, abertura ao catlogo de exposio organizada pelo Museu de Arte Contempornea e pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo, 1977, p. 16. 9 Este artigo de Monteiro Lobato foi publicado originalmente com o ttulo de A propsito da Exposio Malfatti, em O Estado de S. Paulo de 20/12/1917, e s depois em Idias de Jeca Tatu, com o ttulo Parania e Mistificao, pela editora paulista Brasiliense, em 1946. Esse artigo bem como as conseqncias que se atribuem a ele na pintura de Malfatti sero analisados com vagar no terceiro captulo deste trabalho. 10 Paulo Mendes de Almeida (1931-1986), advogado, escritor, poeta, jornalista e crtico de arte, colaborou nos principais jornais e revistas da poca, e teve sua vida profissional ligada histria do MAM como diretor artstico entre 1958 e 1960. Voltou diretoria do MAM em sua segunda fase. Em 1961 lanou o livro De Anita ao Museu. 11 Mrio da Silva Brito, poeta, crtico e historiador da literatura, pelo estudo de ponta dedicado ao Modernismo local. 12 Tomamos o termo em sua acepo mais comum, de modo que a pintura Naturalista aquela que tem uma abordagem artstica na qual o artista procura representar os objetos da forma como estes aparecem empiricamente, sem, no entanto, fazer uma idealizao da natureza nem tampouco ser cpia fiel dela.

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experimentaes expressionistas, com suas figuras disformes, ou manter uma pintura cuja maior preocupao fosse com as pesquisas da cor? Ocorre que esses valores, to propagados no incio do sculo XX, j perdiam foras no final da primeira guerra, quando uma revalorizao de alguns conceitos da tradio foram novamente colocados como importantes. A inteno era buscar antigos valores que pudessem dar conta do vazio que a guerra causara em vrias esferas, inclusive na esfera das artes. Isso significou a volta a uma preocupao com o desenho, com os planos e com uma representao mais fiel da natureza, ou seja, a um estilo mais naturalista. Este, contrapunha tanto o Classicismo no qual a idealizao do real que comandava a representao, quanto com o Cubismo, tido como muito matemtico e exagerado para tais fins. No Brasil, esse retorno ainda no se fazia presente, j que os principais intelectuais e artistas do pas se pautavam ou sobre uma arte naturalista/nacionalista ou sobre uma tentativa de adequao ao que entendiam por moderno na poca. Entretanto, Anita Malfatti, que estivera na Europa at 1914 e nos Estados Unidos at 1916, parecia j perceber o questionamento que as vanguardas estavam por fazer bem como esse retorno a uma pintura mais convencional. Somado vivncia com a idia de uma pintura voltada ao nacional no Brasil, ela procura pelas aulas do pintor acadmico Pedro Alexandrino13 e, depois, com Jorge Elpons14, conhecido por um estilo mais prximo do impressionismo. Esse retorno, no entanto, no se explica apenas por seu medo da crtica e do desejo de vender mais quadros, mas provavelmente tambm porque com estes artistas ela poderia se

13Pedro Alexandrino Borge (1856-1942), pintor brasileiro, foi discpulo de Almeida Jnior, em So Paulo, depois de cursar a Academia Imperial de Belas-Artes, no Rio de Janeiro. Em 1897 viajou a Paris, onde permaneceu nove anos. De volta ao Brasil, realizou individual com 110 quadros, 84 deles naturezas-mortas, gnero que o consagrou. Foi professor particular de alguns modernistas como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Aldo Bonadei. 14 Jorge Elpons (1865-1939). Pintor e professor, formou-se artisticamente em Munique. Por volta de 1912, veio ao Brasil, fixando residncia em So Paulo, onde paticipou, em 1913, da 2 Exposio Brasileira de Belas-Artes, realizada no Liceu de Artes e Ofcios da capital paulista,. Anita Malfatti e Di Cavalcanti foram alunos de Elpons no inicio dos anos 20.

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vincular a uma pintura mais preocupada com o metier. O retorno ao realismo nas figuras e ao correto acabamento nas naturezas era uma exigncia do projeto de retorno ordem. O interesse pelo aprendizado e apuro da tcnica pode explicar porque no s Malfatti, mas tambm outros artistas que, mais tarde, se ligariam corrente modernista do pas , buscavam aulas com pintores mais conservadores: Tarsila do Amaral, que estuda com Alexandrino e Elpons, com quem Di Cavalcanti tambm se torna aluno e admirador. Anita Malfatti certamente dialogava consigo mesma, mas dialogava tambm com seus contemporneos. Cremos que a sensao de perturbada e perdida, idias que transparecem da leitura de muitos textos crticos ou histricos seja dada, sobretudo, por seu constante vai-e-vem de temas e estilos. difcil saber exatamente at que ponto Anita tenta se inserir nos movimentos artsticos com os quais tem contato e at que ponto ela mesma no estava influenciando e dando forma a estes, como, por exemplo, quando pinta suas cenas tpicas dos anos 40 e 50. Alm disso, a concluso parece se sustentar excessivamente na comparao da obra mais tardia de Malfatti com suas telas expressionistas.

A desestruturao de sua linguagem expressionista fato que ainda hoje causa perplexidade na crtica teria sido progressiva: os germes de desnimo que o meio comeara a lhe incutir no ano de 1916/17 desenvolveram-se depois dos acontecimentos da exposio, atingindo, provavelmente em 1919 e 1920, seu ponto de maiores concesses... [...]15

Outra impresso passada por Marta Rossetti de que a autora tenta explicar a concesso de Malfatti ao gosto acadmico de Pedro Alexandrino por influncia, novamente, de Monteiro Lobato, pois o crtico teria escrito seu artigo no incio de 1918 elogiando o artista e sua pintura, sugerindo que os jovens pintores o seguissem.[...] Tem-se a impresso que a voz de Lobato se j no o fora comeava a ser ouvida na casa dos Krug Malfatti. Pois, logo que Anita fechou a exposio, em

15 BATISTA, Marta R. Anita Malfatti no tempo e no espao. So Paulo: Edusp, 2006, v. I, 236 p.

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plena poca de guerra e de exaltao nacionalista, Monteiro Lobato interessava-se por Alexandrino16.

No entanto, o esprito moderno e experimentador de Anita Malfatti no devia causar tanta estranheza, uma vez que, na Alemanha, no incio de sua formao, ela tambm ficara um tempo apurando a tcnica da pintura com Bischoff-Culm17. As idas e vindas de Malfatti pela arte acadmica no lhe impediram de retornar ao novo, ao moderno ou a algo que reunisse os dois, nem em 1917, nem nos anos seguintes. Alm disso, o pouqussimo tempo que a artista permanece trabalhando no ateli de Alexandrino (1919 e 1920) e Elpons (1920 e 1921) e a forma no muito comprometida com que o faz Anita faltava s aulas quando tinha alguma encomenda, por exemplo tambm deixam mostras de que se tratava mesmo de uma busca por diferentes possibilidades figurativas e por um melhor aprendizado da linguagem. Dessa maneira, a experincia com Pedro Alexandrino, longe de ditar o gosto e as centenas de produes posteriores de Malfatti, somou-se sua formao. Ainda que, nesses anos, ela componha naturezas mortas ou paisagens mais bem acabadas que as da fase norte americana, elas no so to ao estilo de Alexandrino como se esperaria: as pinceladas aparentes e coloridas de Dlias (Figura 1, 1920 c.) e As Margaridas de Mrio (1922) provam isso. Estas ltimas so, inclusive, mais ousadas em tcnica que a feita por Tarsila do Amaral no mesmo dia18.

16 Idem, ibidem., 239 p. 17 BISCHOFF-CULM, Ernest. (13 mar. 1870 29 jul. 1917), pintor e gravador, estudou na Academia de Knigsberg e na de Berlim, indo depois para Paris. No final do sculo, estabeleceu-se em Berlim; membro da Secesso, a exps anualmente (pelo menos entre 1903 e 1909). lembrado, de incio, por suas marinhas das praias abruptas da Prssia Oriental e depois provavelmente na poca em que Anita foi sua aluna tambm por alguns retratos e por sua atividade como gravador. Morreu na I Guerra Mundial; no incio dos anos 20, a Secesso prestou-lhe uma exposio-homenagem. 18 As duas pintoras, amigas na poca, resolveram pintar ao mesmo tempo as margaridas que enfeitavam a casa do escritor e amigo Mrio de Andrade.

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Figura 1. Anita Malfati, Dlias, c. 1920

Se em Marinha (Litoral Paulista) e Marinha (Figuras na praia) ambas feitas entre 1919 e 1921 Anita Malfatti suaviza a paisagem, exemplificando, segundo Rossetti, como Mrio de Andrade estava correto ao apontar at onde a pintora fraquejou19 , possvel notar outras caractersticas em pinturas feitas no mesmo perodo. Mantendo a comparao com as paisagens, a composio mais realista de A lavadeira (Figura 2) e A carroa (c. 1918 a 1920) no impede que a preocupao com detalhes dos personagens da cena ou com o sfumato, por exemplo, sejam irrelevantes. A tcnica no clssica ou acadmica, ela est mais para um realismo/naturalismo caracterstico do retorno. Mas as dvidas sobre assero de Mrio de Andrade e o fraquejar de sua amiga pintora fazem-se ainda maiores quando se tem duas paisagens pintadas por ela no interior de So Paulo (provavelmente na Fazenda Santa Cruz de Palmares, onde trabalhava o irmo da pintora, Alexandre Malfatti). Paisagem,Grande cu e Paisagem, Casa beira do rio 20 (Figura 3) so quase o inverso das19 BATISTA, Marta R. Anita Malfatti no tempo e no espao. So Paulo: Edusp, 2006, v. II, 37 p. 20A preciso da data destas duas obras no foi possvel, devido falta de ttulo, assinatura e datao, comuns nas obras de Anita Malfatti. Mas, assim como a maioria, elas so estimadas a partir de informaes dos familiares e participao em exposies, documentos etc. A catalogao de Marta Rossetti Batista entende que essas duas obras foram compostas provavelmente na Fazenda Santa Cruz das Palmeiras, no perodo de 1918 a

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duas primeiras pinturas citadas: o abandono total da perspectiva, o preenchimento da tela com pinceladas paralelas ou justapostas so conquistas da arte moderna e especificamente da pintura da brasileira em meados de 10. Em Paisagem (Casa beira do rio), (Figura 3) composta, ao que tudo indica, nos anos que Rossetti chama de isolamento e inconformismo, a feitura das montanhas a mesma, por exemplo, de Penhascos (Figura 5) e tambm de Rochedos, feitas em Monhegan em 1915, sobretudo no tipo de pincelada. Aqui Anita antecipa ou repete o que vir em Paisagem entrosada21

(Figura 4), a ser pintada somente a partir

dos anos 50. Nesta paisagem, em que se v um campo bem ao longe e, mais prximo, casinhas, vacas e outros animais, no h uso algum da perspectiva. Uma cena est literalmente sobre a outra, ou melhor, encaixada ou engrazada em outra, segundo as acepes do verbo entrosar. Uma das rvores que compem o fundo muito maior do que as outras que a acompanham e do mesmo tamanho que uma outra que est sua frente, o que d a impresso de imagens justapostas ou coladas uma sobre a outra, semelhante a um mosaico. As trs paisagens Grande cu, Casa beira do rio e Paisagem Entrosada no se conformam a uma pintura acadmica ao estilo de Alexandrino, nem repetem literalmente as pesquisas da pintora na Costa do Maine, mas so um indcio extremamente forte da mlange que sempre tomou conta das experimentaes de Anita Malfatti.

1921 e fariam parte de uma srie de paisagens do interior. Anita Malfatti e o incio da arte moderna no Brasil, So Paulo: Edusp, 2006, v. II, 36 p. 21 Esta mesma obra figura em alguns catlogos de exposio do Instituto de Estudos Brasileiros, IEB, como Paisagem com cascata. O ttulo Paisagem entrosada, aparece na catalogao de Rossetti publicada pela Edusp em 2006. BATISTA, Marta R. Anita Malfatti no tempo e no espao. So Paulo: Edusp, 2006, v. II, 90 p.

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Figura 2. Anita Malfatti, A lavadeira, s.d.

Figura 3. Anita Malfatti, Paisagem (Casa Beira do Rio), s.d.

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Figura 4. Anita Malfatti, Paisagem Entrosada, anos 50/60

Figura 5. Anita Malfatti, Penhascos, 1915/17

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Se, nas duas primeiras, a falta de preciso das datas no nos deixa afirmar, com certeza, que Malfatti antecipa em 20 o que seria o principal formato de suas pinturas nos anos 50, uma vez que retoma progressos feitos nas obras de 10, ento s restaria uma outra opo: a artista no teria composto tais telas em 20, mas o fizera juntamente com Paisagem entrosada (Figura 4), entre as dcadas de 50 e 6022. Mantendo a primeira inferncia, j que temos por base a catalogao da obra feita por Rossetti Batista, a tese de uma Anita que vai e volta nas escolhas e experimentos se mantm. Retomando-se a comparao de Anita com ela mesma, sem ter em vista apenas as obras expressionistas e as muito acadmicas, podemos chegar a outras concluses sobre sua produo, controversa o bastante para no se limitar a dois conceitos ou estilos estanques: moderno e clssico. O exerccio de olhar Malfatti atravs do todo de sua obra revela, assim, um misto de experimentos, tcnicas e escolhas. Desde o incio da carreira at o final de sua vida, a menina mais orgulhosa e mais no-me-toques que Mrio de Andrade havia conhecido foi uma experimentadora. Nesse sentido, como se sustenta ou se efetiva essa noo de experimentao no percurso artstico de Malfatti? Observemos alguns aspectos de sua formao. Uma de suas primeiras telas, O Burrinho Correndo (Figura 20, 1909), identificava-se com a pintura conhecida por ela at ento: a da me e a do meio artstico de So Paulo; as lies com Lovis Corinth 23 e sua pintura de forte carga impressionista, que a levaram a conhecer todos os tons; a influncia do expressionismo que conheceu nos museus e nas exposies da Europa; o contato com a vanguarda europia refugiada nos Estados Unidos, e a soltura na forma e no tema conquistada nas aulas de Homer Boss24. Todas essas relaes levaram-na a provar uma liberdade antes22 Este trabalho, como dito, toma como base central as pesquisas biogrficas e catalogrficas da historiadora da arte Marta Rossetti Batista. Como se trata de uma catalogao sria e abalizada no nos deteremos na reviso ou questionamento das dataes da obra da artista. 23 Lovis Corinth (1858-1925), pintor e artista grfico alemo, recebeu forte influncia de Courbet e Manet, alm de Hals, Rembrandt e Rubens. Conhecido com o estilo mais impressionista, foi professor de Anita Malfatti no ano de 1913, na Almanha. 24 Homer Boss, (1882 1956) estudou na New York School of Art com William Merrit Chase, Robert Henri e Thomas Anschutz, e na Henry School. Nesta comeou a lecionar e a transformou depois em sua prpria

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nunca sentida, que culminou nas telas que a consagraram. Em Paris, a pintura de interiores destacou-se e a conduziu a uma despreocupao com o plano real e explorao do aspecto decorativo, tal como o fez Matisse. Como aluna de Pedro Alexandrino, Anita volta-se ento pintura mais realista e naturalista, dessa vez com as naturezas mortas, e se permite pintar retratos, bastante apurados tecnicamente. Somada a isso, a vivncia com a pintura mais popular e nacionalista permite que a pintora busque uma simplificao das figuras e, quando declara ao amigo Mrio de Andrade: Procurei todas as tcnicas e voltei simplicidade, diretamente; no sou mais moderna nem antiga, mas escrevo e pinto o que me encanta25, Anita exerce a no apenas a liberdade permitida a qualquer artista de se deixar seduzir mais por um tema que pelo outro e de empregar em sua composio uma viso pessoal do mundo, mas, sobretudo, a sua liberdade de procurar uma nova maneira de fazer arte. No por acaso, Mrio de Andrade reclamaria em carta amiga:[...] Nunca vi uma menina mais orgulhosa e mais no-me-toques que voc, puxa! De tudo desconfia. Uma independncia orgulhosa como de ningum. A gente nem bem faz uma restrio pra voc pronto, j fica toda zangadinha. A gente lembra tal orientao de pintura, tal pintor, pronto, voc j imagina que a gente quer que voc siga ele. No aceita conselhos, logo fica cheia de ciuminhos. mesmo! Voc se lembra?, logo quando voc chegou a em Paris uma carta que eu mandei pra voc em que em passant falava sobre Derain? Pois guardo pra mostrar pra voc a bruta descompostura que voc me mandou, toda abespinhada porque eu queria que voc seguisse Derain.26

Apesar disso, no h como negar que Anita Malfatti estivesse guisa de sua declarao, sob influncia da pintura e do debate com seus colegas Pennacchi27, Guignard28, ouescola. 25 MALFATTI, Anita. Carta para Mrio de Andrade, Caminho do Cu. In: ANDRADE, Mrio de. Cartas a Anita Malfatti. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1989, 40 p. 26 ANDRADE, Mrio de. Cartas a Anita Malfatti, organizao de Marta Rossetti, Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: Forense Universitria,1989, 111 p. 27 Fulvio Pennacchi (1905-1992) foi um desenhista, pintor, muralista e ceramista talo-brasileiro. Foi integrante do Grupo Santa Helena, juntamente com Alfredo Volpi, Francisco Rebolo, Aldo Bonadei, Alfredo Rizzotti, Mario Zanini, Humberto Rosa e outros. Sua pintura sensvel e pessoal, de modo especial na interpretao dos grandes temas bblicos e da vida dos santos, em razo de uma infncia marcada por slida educao religiosa catlica, e na evocao do mundo caipira. 28 Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), famoso pintor brasileiro, conhecido por retratar paisagens mineiras. Sua formao foi alicerada em bases europias, pois l viveu dos onze aos 33 anos. Freqentou as Academias de Belas Artes de Munique, onde estudou com Herman Groeber e Adolf Engeler, e de Florena. De volta ao Brasil, nos anos 20, tornou-se um nome representativo dessa dcada e da seguinte, juntamente com Cndido Portinari, Ismael Nery e Ccero Dias.

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Bonadei da pintura que comeava a ser valorizada at mesmo nos museus e nas exposies de arte do pas29. Por essa razo, temos a impresso de que a compreenso da trajetria da obra de Anita Malfatti, de seu carter moderno ou no, depende de uma leitura que se faa do prprio sentido da arte moderna. Em suma, uma leitura de trs caros conceitos norteadores do modernismo nas artes, embora nem sempre reconhecidos: 1) a negao e a ruptura; 2) o dilogo com os contemporneos e 3) o retorno ao passado. No caso de Anita Malfatti, a negaco com a arte clssica ocorre no somente quando ela tenta super-la com suas obras impressionistas/expressionistas, mas todas as vezes que se reporta a conquistas feitas com elas em outras composies. Ela dialoga com seus contemporneos quando se volta ao que seus pares, na sua poca, estavam fazendo, seja com a vanguarda em 10, mas tambm com Matisse em 20, com os italianos do Grupo Santa Helena30 a partir de 30 etc. E volta ao passado todas as vezes que se permitiu reportar s realizaes de uma gerao anterior, seja ao buscar se inserir no retorno ordem, seja quando, em meio a este, ela tenha se inclinado a voltar s conquistas modernas. Por outro lado, talvez a explorao dos diferentes aspectos de sua obra permita iluminar, sob um ngulo inovador, esse mesmo sentido da arte moderna, principalmente a brasileira. Ou seja, neste caso, deve-se notar que a prpria noo de arte moderna no um conceito fixo ou inquestionvel, mas que se submete ao que artistas como Anita Malfatti criaram, de modo que a pergunta possa bem ser esta: como a obra de Anita contribui para a compreenso da arte moderna? Este captulo apresenta uma breve reflexo sobre o desenvolvimento da arte moderna e dos conceitos que a nortearam, e no pretende abranger todos os aspectos ou a riqueza dos29 As caractersticas dessa pintura ingnua sero tratadas com maior vagar no segundo captulo. 30 Grupo Santa Helena foi o nome atribudo pelo crtico Srgio Milliet aos pintores que, a partir de meados da dcada de 1930, se reuniam nos atelis de Francisco Rebolo e Mario Zanini. O Grupo Santa Helena formou-se de maneira espontnea, sem maiores pretenses e nenhum compromisso conceitual, a pintura era praticada nos fins de semana ou nos momentos de folga.

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sestilos por ela desenvolvidos, tarefa por si s extremamente complexa e que ultrapasse os limites propostos por esta tese, mas indicar pontos de referncia ou de demarcao, traando, ao mesmo tempo, os paralelos entre esse modernismo e a obra de Anita Malfatti.

1.1

Aspectos da Arte Moderna As mudanas radicais ocorridas no campo das artes plsticas, entre o final do sculo

XIX e incio do sculo XX, tornam o estudo da arte moderna um tema fascinante e que muitas vezes suscita intervenes apaixonadas. O fato de o gosto atual ser formado luz dessas conquistas e mudanas talvez acabe condicionando a anlise e as concluses sobre o que seja a arte moderna a um aspecto um tanto quanto tendencioso e at romantizado. Se o choque inicial de um leigo, ao comparar uma obra bela, perfeita, como a de um Rafael ou de um Ticiano, as toneladas de tinta de um Van Gogh ou de um Emil Nolde, pode vir a tornar-se surpresa, admirao e deleite, num crtico conhecedor da histria do quadro e das motivaes do movimento moderno na arte, essa admirao pode ser ainda mais forte. O papel da esttica e do crtico tentar analisar a obra de arte sem sistemas prestabelecidos. Para Baudelaire, o crtico deveria contentar-se em sentir, fazendo-se ingnuo diante do objeto, porque a ingenuidade, ao seu ver, impecvel e no leva a erros31. Ele parece at mesmo sugerir que como um flaneur que se pe na multido e a observa com curiosidade e ateno, o crtico assuma uma atitude semelhante na anlise da obra de arte. Mas como se coloca na prtica esse tipo de anlise, sugerida pelo poeta e crtico, tendo em vista as obras de arte modernas? E como esse tipo de anlise poderia colaborar para um maior e melhor conhecimento da obra? Quando se analisa a histria da arte moderna, nota-se que o momento em que ela emerge se confunde com o da busca pela superao das tcnicas artsticas consagradas na arte31 BAUDELAIRE,Charles. A exposio universal de 1855, in: A Modernidade de Baudelaire, So Paulo: Paz e Terra,1988, 32 p.

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clssica. Isso ocorre no final do sculo XIX, quando muitos dos artistas europeus desejavam uma arte no comprometida com tais cnones, insuficientes para resolver as questes plsticas modernas. Acima de tudo, desejava-se uma arte livre e que correspondesse sua poca. Surge, ento, a necessidade de se rever conceitos, teorias e posicionamentos, o que leva negao da maneira usual de se fazer arte. possvel afirmar que o objetivo de ser moderno nasceu de maneira caracterstica de uma certa percepo segundo a qual o presente estava sendo indevidamente formado imagem do passado, assim como de uma conseqente perda de identificao com a tendncia dominante da cultura 32. No seria tarefa do crtico preocupar-se com os pormenores que explicariam as intenes do artista, pois isso no passaria de pedantismo. Seria possvel, no entanto, um crtico analisar imparcialmente uma obra, como desejava Baudelaire, apenas se deixando tomar pela emoo e pelo julgamento dos sentidos, ainda que estivesse em jogo uma obra de arte moderna? Ocorre que Baudelaire desejava evitar, com essa sugesto, que julgamentos a priori fossem feitos sobre a obra, baseados em regras e sistemas que parecem sempre perfeitos, mas que, diante de uma nova obra, podem se revelar obsoletos33. Como crtico da modernidade, queria estar aberto ao que de novo se apresentava no campo das artes. Por outro lado, o sentir apenas no pode dar crtica contedo suficiente para concluses mais apuradas sobre a obra de arte. Por esta razo, para Theodor Adorno, um crtico mais contemporneo e que busca pensar as idiossincrasias da arte moderna, a crtica de arte no pode se limitar ao aspecto indutivo, nem somente ao dedutivo. A esttica tem a funo de perceber que obra, objeto, factum, no se contrapem ao conceito. Isto porque a obra de arte est repleta de objetividade

32 HARRISON, Charles. Modernismo, So Paulo: Cosac & Naif Ltda: 2000,17 p. 33 BAUDELAIRE,Charles. A exposio universal de 1855, in: A Modernidade de Baudelaire, So Paulo: Paz e Terra,1988, 33 p.

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e subjetividade, tanto de fato bruto quanto de esprito [der Geist]34. Enquanto esprito, a arte se contrape realidade, mas tambm est vinculada a ela. Anterior teoria adorniana, a teoria hegeliana, por sua vez, entendia a arte como manifestao do infinito no finito, ou seja, ela seria a efetivao do esprito Absoluto que est em ao e se deixa conhecer racionalmente atravs da obra. Por isso, a arte seria uma necessidade do esprito. Adorno contestar Hegel, pois, ao seu ver, tal necessidade arranca do artista e da obra sua conscincia.Elas [as obras de arte] trazem em si mesmas o que lhes oposto, os seus materiais so pr-formados histrica e socialmente como os seus procedimentos tcnicos, e o seu elemento heterogneo o que nelas resiste sua unidade e de que a unidade necessita para ser mais do que a vitria de Pirro sobre o que no oferece resistncia.35

Essa tese adorniana ser importante para a anlise que pretendemos fazer do conceito de arte moderna neste trabalho. Hegel e Kant fizeram uma anlise da arte tradicional em consonncia com a razo. A arte orientava-se, por seu turno, atravs de normas globais que no eram postas em questo na obra particular36. Era possvel falar da arte sem penetrar na arte, apenas do ponto de vista do esprito. Na arte moderna, ao contrrio, a no conformidade entre esprito e mundo que leva dissonncia entre esprito e arte. E a grande tarefa da crtica de arte moderna no desconsiderar o elemento espiritual que ainda h na arte, mas provocar uma reflexo sobre ela, penetrar no seu universo, ser imanente. De que forma? A partir do que nela seja verdade e do que nela no seja verdade.

Uma relao genuna entre a arte e a experincia da conscincia dela consistiria numa formao que tanto treina a resistncia arte enquanto bem de consumo, como permite ao receptor descobrir a substncia da obra de arte.37

34 ADORNO. Theodor W. Teoria Esttica, Edies 70: Lisboa, 1970. Trad: Artur Moro, p. 378. 35 Idem, ibidem, 379 p. 36 Idem, ibidem, 367 p. 37Idem, ibidem, 370 p.

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Tendo em vista essas consideraes pode-se perguntar: qual a proposta de Adorno crtica de arte moderna? Adorno prope crtica de arte moderna que ela no se deixe tomar apenas pelo envolvimento subjetivo que a obra provoca ao contrrio da proposta de Baudelaire e, depois, dos positivistas. Alm disso, que no se tente imputar obra algum conceito a priori, como ainda podiam fazer Kant e Hegel. A dificuldade de uma esttica que seria mais do que uma disciplina penosamente reanimada consistiria, depois de desaparecidos os sistemas idealistas, em ligar a intimidade do produtor com os fenmenos fora conceptual no submetida a conceitos genricos fixos e a sentenas; remetida para o medium conceptual, uma tal esttica ultrapassaria a simples fenomenologia das obras de arte.38 Tais colocaes nos ajudam a pensar, ento, que o estudo da histria da arte moderna e das obras de arte em particular, assim como da histria do Modernismo Brasileiro e das obras de Anita Malfatti, devem ter em conta os aspectos histricos que envolveram os artistas, sem, no entanto, imputar a essa histria os conceitos que a respeito dela j se tornaram clebres ou generalizados. Tal anlise pode ser feita no apenas atravs da negao desta histria e desses conceitos, mas, tambm, construindo a partir deles uma nova viso sobre os mesmos. Dito de outra maneira: pode ser feita com abertura e envolvimento, mas com paixo moderada. Analisando ainda o que colaborou para dar consistncia ao modernismo, v-se quatro tendncias: a crena de que o progresso tcnico seria protagonista de uma mudana social; o desejo ferrenho de quebrar com a tradio poltica, religiosa, artstica; a certeza na experincia como nica forma confivel de conhecimento, e a capacidade de dar imaginao o papel de criadora de um novo mundo possvel. Isso significa que aplicar o conceito de modernismo histria da arte , pois, se referir a uma tendncia que atribui prioridade imaginao [...]; que ratifica o valor da experincia e v com olhos crticos as idias que resistem mudana. 3938Idem, ibidem, 369 p. 39 HARRISON, Charles. Modernismo, So Paulo: Cosac & Naif Ltda, 2000, 18 p.

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Mas significa tambm que usar a imaginao na construo de algo novo requer, necessariamente, o uso da memria, do passado, pois a imaginao no se constri sem a memria. Igualmente, no h possibilidade de uma nova experincia se fundamentar sem o dilogo, seja com o passado, seja com o presente:

Se o modernismo foi poca antiacadmico em suas origens e desenvolvimento como em geral o foi, isso no ocorreu simplesmente porque alguns artistas se recusavam a conformar-se aos estilos clssicos. Ocorreu, isto sim, porque todo o modo de existncia em que se realizavam as intuies crticas modernistas era incompatvel com o mundo de valores que as academias representavam. [...] O candidato a artista moderno deveria, pois, desviar seus olhos da tradio clssica legitimada na direo de outras esferas da cultura ou at mesmo de outras culturas em busca de modelos para emular e de parmetros de realizao esttica.40

De que forma, porm, isso poderia ficar evidente numa pintura? Como traduzir para a tela tantas inquietaes pessoais e sociais? A resposta dar-se-ia por meio de uma nova linguagem plstica, baseada certamente naquilo que no se desejava repetir, isto , nas regras que serviram de base para a construo pictrica idealizada da realidade at ento, tentando mostrar, de alguma forma, que aquelas regras no valiam mais. Os temas histricos e religiosos deveriam ser substitudos pelas cenas simples do cotidiano. Gustav Courbet, por exemplo, substituir os grandes heris imaginrios por semeadores reais. Emil Nolde retratar a angstia e a batalha diria do proletrio na fbrica em detrimento das grandes batalhas pintadas por seus colegas acadmicos. O mais interessante que esta arte vanguardista, de fato nova, de fato revolucionria, no se construiu sem referncias aos clssicos que desejava rechaar. E nem seria possvel. Nolde, por exemplo, um dos grandes representantes do Expressionismo Alemo, radicaliza na forma de pintar. Suas telas oferecem camadas com uma quantidade enorme de tinta para seu expectador. As cores, muitas vezes mais centradas nos tons primrios, vibram na tela. A representao no segue regras rgidas da perspectiva, embora a tela no seja40 Idem, ibidem, 17-18 pp.

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composta de forma plana. Ela passa ainda mais distante do apuramento da tcnica de luz e sombra, uma ode expresso, subjetividade. Mas, ao mesmo tempo, possuem uma dvida com as grandes obras clssicas do passado. Em 1909, enfermo e numa crise artstica, o artista tranca-se em sua casa. Buscando uma alternativa s telas que at ento fazia, mas que no lhe agradavam mais, produz algumas de suas mais belas obras, como o caso de A ltima ceia (Figura 6) e Pentecostes (Figura 7). Esta experincia de tentar construir algo novo foi registrada posteriormente numa

Figura 6. Emil Nolde, ltima Ceia, 1909

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Figura 7. Emil Nolde, Pentecostes, 1909

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autobiografia: Com finos traos de lpis, fortes e precisos, desenhei numa tela treze pessoas, o Salvador e seus doze Apstolos, sentados volta de uma mesa naquela aprazvel noite de primavera que antecedeu a Grande Paixo de Cristo.41 medida que vai desenhando, sem ter nenhum modelo ao vivo, construindo sua cena a partir da memria, mas tambm da imaginao, Nolde tomado pela surpresa e por um contentamento extremo:Sem nenhuma inteno, conhecimento ou reflexo, eu cedera a um desejo irresistvel de representar a espiritualidade, a religio e a interioridade profundas. Antes disso eu esboara apenas algumas cabeas de Apstolos e uma cabea de Cristo. Quase em estado de choque, ali estava eu diante da obra desenhada, sem nenhum modelo natural minha volta, e agora deveria pintar o evento mais misterioso, mais profundo e interior da religio crist! Cristo com uma expresso santificada, transfigurada, totalmente absorto, cercado por seus discpulos, todos profundamente emocionados. [...] Eu pintava e pintava, quase sem saber se era dia ou noite, sem saber se eu era homem ou pintor. [...] Via o quadro antes de deitar-me, via-o durante a noite e eu o encarava ao acordar.42

O aspecto de Pentecostes (Figura 7), o desenho quase infantil do mestre do cristianismo e dos apstolos ao seu redor, seus rostos de olhos arregalados, a tinta distribuda de forma heterognea na tela, impediram que esta fosse aceita na Secesso de 1910, em Berlim. H tanta inovao na forma de tratar o tema que Nolde chocou at mesmo aqueles que j se entendiam como admiradores da arte moderna. A ltima ceia (Figura 6) e Pentecostes (Figura 7) foram resultado de um desejo fortssimo do pintor de criar uma obra desvinculada dos vcios e modelos do passado neste caso a representao objetiva do impressionismo como forma de superar a Histria da41 NOLDE, Emil. Emil Nolde, Anos de Luta (Jahre der Kmpfe), segundo volume de uma autobiografia, 1902-1914, Berlim: Reembrandt, 1934, in: TELES, Gilberto Mendona, Vanguarda europia e modernismo brasileiro, Petrpolis: Ed. Vozes, 2005, 144 p. 42 Idem, ibidem, 143 p.

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Arte e de superar tambm a si mesmo. Foram resultados de uma relao intrnseca do artista com seus contemporneos e tambm com artistas do passado. O desejo de negao e de ruptura no se pde fazer sem o dilogo, sem pressupostos j construdos, ainda que Nolde acabasse por crer que o fizera totalmente sem nenhuma inteno, conhecimento ou reflexo.43 O pintor no apenas precisou ter em mente a histria sagrada da Bblia, narrado em sua autobiografia, como teve, sobretudo, que buscar imagens das cenas religiosas que desejava representar. Buscou de memria, verdade, mas buscou provavelmente nas imagens consagradas pela arte Bizantina ou pelo Renascimento. Imagens que queria superar. E ao busc-las na memria ainda que de forma inconsciente o artista usou de imaginao e pde criar uma obra expressionista, baseada naquilo que ele sentia e queria ver dessas cenas bblicas, daquilo que, no momento da sua criao, no momento em que pde se fazer senhor de sua arte, fora-lhe necessrio. Seus questionamentos filosficos e religiosos, somados a uma necessidade de conforto espiritual que no mais viesse das frmulas pregadas pela Igreja ou da obra idealizada dos artistas clssicos, levaram-no a criar algo novo. De certo modo, extremamente novo como desejavam os expressionistas e ele mesmo, mas no sem dbito para com aqueles que ele mesmo tentava superar. Se tomarmos, a ttulo de ilustrao, uma das mais consagradas representaes da ltima ceia, pintada por Leonardo da Vinci entre os anos de 1495 e 1498, e compararmos com a ltima ceia (Figura 6) de Emil Nolde, veremos que diferenas drsticas e evidentes separam uma da outra e as situam no seu momento histrico. Leonardo tenta criar uma teatralidade na cena, superando, assim, aos seus contemporneos. Nolde age da mesma forma. Comparando as duas obras, possvel perceber que no s a escolha do tema herdada pela tradio crist e pela arte clssica, mas a forma de pensar o agrupamento das43 Idem, ibidem, 144 p.

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figuras e a de disp-las em torno da mesa e do mestre: seis discpulos direita de Cristo e seis esquerda; a veste vermelha (sinal da paixo que Cristo iria enfrentar e de sua entrega humanidade), tambm o so. Essas mudanas radicais drsticas no campo da arte eram impulsionadas pela vivncia pessoal do artista, por sua relao com a histria da arte, mas tambm por outros eventos histricos do fim do sculo XIX e incio do XX. A industrializao, o grande crescimento das cidades, o desemprego e a cristalizao das desigualdades sociais, assim como as mudanas no pensamento inspiradas pelo Iluminismo, pela Revoluo Francesa e o Romantismo se somaram a estes e levaram ao desejo de ruptura com o passado. As questes eram amplas e se faziam em todos as esferas da vida, afetando tambm a arte: como retratar uma Madonna e seu menino, se a crena em Deus e no poder da religio no mais existia? Como pintar paisagens apaziguadoras se a industrializao havia criado um crescimento desordenado nas cidades e a destruio dos campos?

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Figura 8. Ernst Kirchner, Duas Mulheres na rua, 1914

Como exaltar a beleza perante um espao no qual se viam guerras, misria e sofrimento refletidos num mundo interior ainda mais em crise? A arte precisava expressar aquilo que o artista sentia com relao a este mundo, inclusive porque esta sempre fora uma de suas tarefas essenciais. Alm disso, ela deveria, de acordo com Walter Benjamin, suscitar determinada indagao num tempo ainda no maduro para que se recebesse plena resposta, pois a histria de cada forma de arte comporta pocas crticas, onde ela tende a produzir efeitos que s podem ser livremente obtidos em decorrncia de modificao do nvel tcnico, quer dizer, mediante uma nova forma de arte.44 Essas eram idias teorizadas por muitos filsofos e crticos de arte e buscadas, na prtica, pelos artistas da poca. Alm desses questionamentos filosficos e ideolgicos, a impresso em papel, que permitia a reproduo de consagradas obras de arte, e a criao da fotografia reforaram ainda mais a perda de rumo dos pintores da poca, que passaram a questionar qual o seu papel neste novo contexto. Se a fotografia podia reproduzir tudo o que se via com fidelidade, ento uma arte que tivesse como objetivo a reproduo de retratos ou da natureza, como at ento havia sido feito, no fazia mais sentido. Por esse motivo, Benjamin, como pensador da arte moderna, ir afirmar que a importncia da crtica de arte reside no fato de ela apontar uma oposio entre a obra de arte e a sociedade, e deixar claro que esta oposio sempre deve estar presente na obra para que ela seja sempre uma crtica do existente e uma promesse de bonheur. Para ele, o fato de a industrializao ter mudado a forma com que o homem percebia o mundo acabou automatizando sua sensibilidade, mudando totalmente sua maneira de saborear as coisas, da no fazer mais sentido continuar falando de arte nos termos tradicionais: era preciso reconhecer que a reprodutibilidade tcnica moldara uma nova

44 BENJAMIN, Walter. Sobre Alguns Temas em Baudelaire, Coleo Os Pensadores, So Paulo: Abril Cultural, 1975, 30 p.

percepo na humanidade, o que significava admitir que isso exigia tambm uma nova forma de se fazer arte45. Se uma nova experincia exigia uma nova percepo e uma nova tcnica, essa revoluo nas artes e na filosofia no era acompanhada ainda por boa parcela da intelectualidade e, muito menos, pelos padres de gosto vigentes. Para uma aceitao de todas essas mudanas seria preciso tambm uma mudana no gosto j moldado, na Europa, pelas ltimas conquistas dos romnticos e dos realistas, e, no Brasil, pelos naturalistas. Se diante desse rpido apanhado por alguns aspectos da arte moderna retornarmos ao nosso tema central perceberemos que o estranhamento de Lobato e da sociedade paulistana diante das telas de Anita Malfatti, em 1917, no era, ento, novidade. Para o academicismo e seus admiradores, um pintor de valor era aquele que conseguia provar habilidade artstica: familiaridade com o material, com os temas e domnio da tcnica. No Brasil, estes eram valores ainda muito cultivados pelos intelectuais e conhecedores de arte, alm do nacionalismo exigido por outros, como Lobato. Quanto melhor fosse esta destreza, tanto melhor era o artista. Uma das sensaes que se tem ao apreciar uma obra clssica a de profunda admirao pela capacidade do produtor da obra: a perfeio dos detalhes, o acabamento e a beleza da pintura do-nos a convico de que aquele, com certeza, ou foi um grande pintor. Sendo assim, de acordo com o ideal vanguardista, uma das importantes diferenas entre a arte clssica e a arte moderna que, ao contrrio do que considera a primeira, a habilidade no tratamento leve do pincel e da tinta, na perfeio das cores e das sombras e na sensao criada pela correta perspectiva ela mesma, no deveria mais significar uma exigncia na segunda. Sua valorizao, alis, passa a ser motivo de crtica. O bom artista no aquele que imita a natureza perfeitamente, mas sim aquele que cria algo a

45 [...] Trata-se da expectativa que se impe ao olhar humano e que em Baudelaire termina frustrada. Ele descreve olhos que haviam por assim dizer perdido a capacidade de olhar [...], BENJAMIN, Walter. Sobre Alguns Temas em Baudelaire, in: Charles Baudelaire: um lrico no auge do capitalismo, Ed. Brasiliense: So Paulo, 2000, p. 141.

partir da natureza ou de sua interpretao da natureza. As obras modernas no poderiam mais se contentar em serem meras cpias do real, porque isso a fotografia j estava fazendo. Para chegar a serem dignas de respeito e admirao, elas deveriam revelar um artista criador e no mais um bom imitador. por essa razo tambm que em sua busca de pureza, a pintura moderna acabar por reduzir ainda mais sua essncia, concentrando-se na superfcie plana [...]46. A ruptura com o passado acontecia visivelmente e atormentava aqueles que ainda desejavam uma arte feita aos moldes clssicos. Contudo, apesar da pintura moderna revelar esta quebra com a tradio, da vanguarda artstica adequar o processo criativo e o fazer artstico s questes tambm modernas, no h como negar, porm, que a superao dessas formas arcaicas de pensar e pintar acabaram por levar aceitao de outras novas formas de expresso. Isso significa admitir tambm que, se Anita Malfatti celebrada como a grande precursora do modernismo no Brasil devido s suas telas extremamente ousadas quando comparadas ao que se produzia no pas naquele momento, ela, como qualquer outro artista, necessitou usar tambm de algumas regras para chegar ao efeito desejado. Em outras palavras, o artista moderno acabaria por agir motivado pelas novas regras se desejasse deixar explcito sua insatisfao com a imposio de regras da perspectiva clssica. Deveria compor sua tela em planos justapostos, abandonar a perspectiva, desfazer-se da necessidade de representao do real se sua inteno fosse a de provar que era livre diante das regras impostas pelo Classicismo ou por uma sociedade autoritria e falsa. Deveria criar grandes distores nas figuras representadas, rabiscar sua tela de forma a demonstrar isso. Jogar tinta at enfatizar que sua maneira de ver e sentir o mundo e a arte no precisavam nem conseguiriam mais ser impostas pelas leis da arte clssica. Tal idia conseqentemente sugeriria que, para ser

46 FABRIS, AnnaTeresa. Modernidade e Vanguarda: o caso brasileiro, in: Modernidade e Modernismo no Brasil, Campinas: Mercado das Letras, 1994, 10 p.

moderno e ser visto como moderno, o artista deveria pintar como artista moderno, adequandose a um novo formato de expresso. Admitir isso no significa, porm, afirmar que a obra de arte moderna fosse produzida artificialmente. Ao contrrio, o artista moderno estava imbudo de um desejo de autenticidade, de individualidade e liberdade muito forte. Estes sentimentos, na maioria das vezes, eram os responsveis por produes extremamente ousadas e criativas e pela experincia de novas possibilidades de uso do material. O fauvismo de Matisse e Derain ou o cubismo de Picasso e Braque so alguns dos inmeros exemplos disso. Perceber tal paradigma significa, antes, admitir que o fazer artstico moderno, ainda que em meio a estes impulsos e mais voltado ao subjetivo do que a arte havia sido, estava submetido tambm a regras formais constitudas a partir da experimentao e do desenvolvimento da pintura de artistas como Van Gogh, Munch, Kirchner, Nolde, Matisse e Picasso na Europa , e Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Lasar Segal e Portinari no Brasil , cujas vidas e obras ajudaram a germinar tais idias. Apesar disso, a maioria dos modernos incluindo Nolde , e grande parte dos crticos, continuou a enfatizar os aspectos da arte moderna: negao, ruptura e liberdade:A arte mais perfeita encontramo-la entre os gregos. Na pintura, Rafael o mestre dos mestres. Era isso o que ensinavam todos os professores de arte havia vinte ou trinta anos. [...] Desde ento, muita coisa mudou. No gostamos de Rafael e permanecemos indiferentes diante das esttuas do chamado perodo ureo da Grcia. Os ideais de nossos precursores no so mais os nossos. J no apreciamos tanto as obras que durante sculos foram identificadas com os nomes dos grandes mestres.47

Essas idias, que mais tarde tambm influenciaro o movimento Modernista no Brasil, nos mostram que a no aceitao da arte de Anita Malfatti pelo crtico e escritor Monteiro Lobato poderia no passar, na verdade, do estranhamento de ver, na arte, o mundo em desordem. Ao criticar a produo futurista e caricatural de Anita Malfatti, resultado de47 NOLDE, Emil. Emil Nolde, Anos de Luta (Jahre der Kmpfe), segundo volume de uma autobiografia, 1902-1914, Berlim: Reembrandt, 1934, in: TELES, Gilberto Mendona, Vanguarda europia e modernismo brasileiro, Petrpolis: Ed. Vozes: Petrpolis, 2005, 143 p.

uma parania que havia tomado conta de artistas que se deixavam guiar por uma forma anormal de ver a natureza, Lobato, alm de no ver na obra da jovem caractersticas do naturalismo que apreciava, provavelmente deixara revelar o quanto, a seu ver, a arte devia no s representar de maneira objetiva o mundo, mas represent-lo em perfeita ordem, ou seja, ele desejava ver na arte de vanguarda exatamente o que a arte de vanguarda recusava48. Se este era o propsito e Lobato no parecia estar (ou no queria estar) a par disso os artistas modernos, assim como Anita Malfatti, foram extremamente bem sucedidos. claro que esta viso positiva que temos do embate Malfatti x Lobato fruto de uma reflexo distante do ocorrido, com olhos que apenas a Histria permite, mas, ainda assim, pode nos levar concluso do quanto a crtica do poeta representativa de como caminhavam as artes no Brasil naquele momento e do quanto Anita Malfatti estava para alm delas. importante verificar que um dos aspectos positivos do desejo de ruptura da arte moderna com a arte anterior reside na crena de que, assim, a arte estaria cumprindo seu papel, isto , funcionando como um medium para a reflexo e o que torna isso plausvel o fato de que toda a histria da arte marcada por formas variadas de se ver o mundo, e cada obra particular sempre uma construo da viso de mundo daquele que a concebeu49. preciso, portanto, construir uma obra que seja sempre uma reflexo sobre seu tempo, pois as obras de arte tm sua grandeza unicamente em deixarem falar aquilo que a ideologia esconde. Seu prprio xito, quer elas queiram ou no, passa alm da falsa conscincia.50 Ademais, [...] a arte, mesmo na recusa radical da sociedade, de natureza social e no se

48 Arriscamo-nos a fazer a seguinte comparao: a arte clssica, tomada como nica forma de arte possvel e passvel de ser desejada, acabou por criar com o tempo, uma submisso to forte de seus seguidores e admiradores que pensar a arte sem as regras da perspectiva, do chiaroscuro, passou a ser quase uma blasfmia. Por este motivo, a arte de vanguarda tem um papel decisivo no desenvolvimento do esprito moderno: desejar um mundo e uma arte a partir de outra perspectiva e no deixar que uma tal representao do mundo pudesse ser a nica forma possvel de representao: a satisfao compensatria que a indstria cultural oferece s pessoas ao despertar nelas a sensao confortvel de que o mundo est em ordem, frustra-as na prpria felicidade que ela ilusoriamente lhes propicia. (ADORNO, Theodor W., A indstria cultural, tica: So Paulo, 1999, p. 99. 49 ADORNO. Theodor W. Teoria Esttica, Edies 70: Lisboa, 1970, 13 p. 50 ADORNO. Theodor W. Lrica e Sociedade, p. 68ss. (tomar referencia completa)

compreende quando essa natureza no compreendida51. Segundo Adorno, pelo mesmo motivo, Schenberg na msica, ou Beckett no teatro, haviam criado perfeitas obras, capazes de expressar o esprito de seu tempo. Inseridos totalmente no contexto em que foram produzidas, elas falam da falta de sentido da modernidade, falam da contradio entre o progresso tcnico em contraposio manuteno de antigos padres sociais. No trecho, reproduzido abaixo, da pea Esperando Godot Beckett cria personagens que riem da tragdia que suas prprias vidas:Nagg: Ouves-me? Nell: Sim. E tu? Nagg: Sim. (pausa). O nosso ouvido no perdeu qualidades. Nell: O nosso qu? Nagg: (Forte) O nosso ouvido. Nell: No. (Pausa). Tens mais alguma coisa para me dizer? Nagg: Tu lembras-te...? Nell: No. Nagg: Do acidente de bicicleta em que ficamos sem as pernas. (Riem). Nell: Foi nas Ardennes... (Riem com menos fora). Nagg: Sim. sada de Sedan. (Riem com menos fora ainda. Pausa.) Tens frio? [...]

Para Adorno, o que torna esta pea uma obra de arte que ela se recusa a repetir o que j foi criado, aprende com a histria, busca a superao e a explorao do que j foi feito. Neste ponto, Marcuse pode emprestar suas palavras a Adorno. Diz ele:[...] deve-se refutar a Nona Sinfonia no apenas porque errada e falsa (no podemos e no devemos cantar uma ode alegria, nem mesmo como promessa), mas tambm porque ela existe e verdadeira dentro de seus prprios limites, inserindo-se em nosso universo como justificao daquela iluso que no mais justificvel.52 51 ADORNO. Theodor W. Teoria Esttica, Edies 70: Lisboa, 1970, 384 p.

necessrio, por outro lado, aceitar a relao existente entre presente e passado na produo de uma obra, o que pressupe que, embora no tenha a inteno, o artista ter sua prpria arte ou a arte de outro como referncia. H sempre uma dvida e uma certa herana do passado no produto feito no presente. Em suma: ainda que se admita a influncia de eventos histricos na produo artstica, a histria da arte sempre a histria das obras de arte e da relao que estas tm entre si. Os pintores modernos vo questionar o postulado pregado durante sculos que a boa arte era aquela que representava, o mais perfeitamente possvel, aquilo que o artista via, o que parecia ser muito bem feito pela pintura acadmica e, de certa forma, pelos realistas. Se esses pintores se armavam de teorias sobre o chiaroscuro53, a perspectiva e o desenho para tentar compreenderem e fazer compreender o que viam, no se deveria admitir que eles tivessem representado o que estava diante de seus olhos, mas que haviam, primeiro, elaborado sua viso para, depois, transport-la tela. Esse questionamento, e o desejo de alcanar aquele que seria o grande intento do artista, acaba levando a novas experimentaes. Pela primeira vez o artista busca diferentes tcnicas de representao que no estavam solidificadas pela arte acadmica e nem eram dadas como garantia de sucesso. Por este motivo, a arte nova busca o experimentar como tentativa de criar algo novo e esfora-se por representar as transformaes ocorridas e a nova concepo de mundo que surgia com elas. A arte de vanguarda passou a ser sinnimo, ento, de arte experimental e a experimentao acabou sendo tomada como nico padro de avaliao da obra.54 Com isso, os conceitos e a preocupao com teorias e idias que, com freqncia, precediam, condicionavam e predefiniam a natureza do prprio objeto de arte (se no no sentido temporal, pelo menos no52 MARCUSE, Herbert. A arte na sociedade unidimensional, in: Teoria da cultura de massa. So Paulo: Paz e Terra, 2000, 270 p. 53 Chiaroscuro um termo que diz respeito aos efeitos de luz e sombra trabalhados numa obra de arte, criando forte contraste entre uma supefcie e outra. Leonard da Vinci foi o pioneiro no uso e artistas como Caravaggio, depois dele, os caravaggisti e, no sculo XX, Reebrandt, se destacaram pelo prefeito emprego da tcnica. 54 STANGOS, Nikos. Conceitos da Arte Moderna, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 08.

conceitual) comearam a emergir gradualmente como os principais componentes da atividade artstica.55 O estilo, isto , a avaliao posterior feitura de uma obra que permitia classificla de acordo com este ou aquele pintor, foi substitudo pelo envolvimento ideolgico com os movimentos. Ao contrrio do que antes ocorria, a obra seria definida anteriormente sua constituio, pois era o fato de pertencer a este ou quele movimento, com estas ou aquelas caractersticas, que definiria seu tipo. Isso mostra como a arte moderna no vai acontecendo naturalmente, como um desenrolar histrico progressivo, mera conseqncia do desenvolvimento das artes, mas que ela se pe e tenta perseguir um objetivo claro: construir uma obra que seja no s crtica do passado, mas que o rejeite e construa algo prprio do seu tempo.

A produo moderna internacional, escusado dizer, caracterizou-se por uma aparncia forte, devida sobretudo a uma significativa reduo da natureza representativa de seus elementos. Linha, cor, superfcie adquiriram um novo estatuto, na medida em que no apenas evocavam seres e coisas ausentes como tambm se mostravam com uma intensidade at ento desconhecida. O abandono do ilusionismo perspectivista reforou os limites fsicos das obras e aumentou consideravelmente a presena dos elementos que as constituam.56

No Brasil, isso ocorre de maneira bastante diferente, embora os intelectuais brasileiros tambm tivessem um projeto modernista claro e o perseguissem apaixonadamente, como foi o caso de Mrio de Andrade. A semente da oposio lanada pela Exposio de Pintura Moderna Anita Malfatti floresce na Semana de Arte Moderna e em manifestaes dos modernistas brasileiros, mas essa assimilao se faz, como afirma Naves, com um vis todo particular57, inclusive na obra de Anita Malfatti. Anita deveria (de acordo com o que se esperava dela no Brasil) obter uma formao clssica em Berlim, mas no o quis. Poderia negar o expressionismo e a arte de vanguarda,55 Idem, ibidem. 56 NAVES, Rodrigo. A Forma Difcil, ensaio sobre arte brasileira, So Paulo: Editora tica, 1996, 12 p. 57 Idem, ibidem, 12 p.

mas no o fez, porque as novas formas de arte parecem ter lhe permitido pintar como desejava. Mesmo reconhecendo o fato de Malfatti ter se vinculado a uma certa tradio modernista quando de sua passagem pela Europa e Estados Unidos, ainda assim ela opta por expressar-se numa nova linguagem. uma escolha consciente, por vezes at calculada, mas uma escolha. Por outro lado, uma escolha, at certo ponto, deslocada historicamente: suas motivaes no eram as mesmas dos impressionistas, cubistas ou expressionistas. No havia envolvimento ideolgico de sua pintura e do ponto de vista plstico, pois quando a artista fez suas experimentaes temticas e formais com esses estilos, eles j estavam cristalizados pela histria da arte naqueles ambientes. Talvez por essas razes seja difcil classificar suas paisagens da dcada de 10 de impressionistas ou seus retratos de expressionistas, pois eles se configuram mais como um misto de experimentos atravs dos estilos que seduzem a pintora naquele momento, assimilados de uma maneira inteiramente particular.[...] Anita Malfatti, por sua vez, [...] mantm o expressionismo do incio de sua carreira dentro de certos limites. A gestualidade marcada sabe at onde pode ir, e evita submeter os quadros a seu movimento. As cores se debatem dentro de contornos padronizadamente deformados. A alienao (A Boba), o isolamento (Uma Estudante, A Mulher de cabelos verdes) antecedem sua expresso pictrica. So temas expressionistas representados de maneira mais ou menos expressionista.58

Essas particularidades da obra de Malfatti so tema central desta tese e, para passar anlise das mesmas, necessitamos entender, nos prximos tpicos, como os artistas europeus do incio do sculo XX iro buscar novas maneiras de construir a arte e como estes estilos e movimentos sero assimilados e reformulados por Anita Malfatti.

1.2

Verdade da sensao o desejo de objetividade do Impressionismo Durante os anos de 1915 e 1916, Anita Malfatti produziu uma srie de paisagens na

Costa do Maine, nos Estados Unidos. Algumas delas tornaram-se clebres, pois so obras significativas em sua carreira. Alm de representarem sua produo mais conectada com as58 Idem, Ibidem, 16 p. Grifos do autor.

vanguardas europias, algumas delas, como A Ventania (Figura 11), A Onda (Figura 12), O Farol (Figura 19), estiveram expostas em sua individual de 1917, provocando debates a respeito do impressionismo e tambm do expressionismo. Essas paisagens possuem, entretanto, caractersticas peculiares. Embora a artista as tenha produzido de forma muito impressionista no que diz respeito temtica, opo por pintar ao ar livre e ao desejo de capturar o movimento, elas possuem uma forte carga expressionista. Mas como fundamentar esta ambigidade na obra de Malfatti se a pintura expressionista havia sido uma resposta clara pintura impressionista? Os impressionistas tinham como objetivos imprimir a impresso do pintor como esta fora experimentada, sem a preocupao com regras da pintura clssica; exprimir a sensao que o artista tinha dos objetos exteriores; revelar uma viso particular do mundo e apreender uma impresso fugidia, momentnea. Baseados nesta definio geral, poderamos dizer que as obras de Malfatti, citadas anteriormente, seriam impressionistas. Entretanto, o impressionismo destacou-se ainda por importantes aspectos. O tema deixou de ser religioso, mitolgico ou histrico, como era comum na poca, e passou a ser uma cena qualquer, a viso que um expectador de frias capta de momentos comuns na vida das pessoas. Apesar de haver nessa concepo a influncia do Realismo, cuja preocupao era pintar as coisas tais como elas se apresentavam, o impressionismo ansiava mais. Era preciso revelar a realidade tal qual esta se mostrava viso, mais especificamente retina. Essa empreitada, que se baseava nas descobertas cientficas sobre esta membrana do olho e a forma como a viso captava o mundo ao seu redor, seria responsvel por uma variao, no impressionismo, sobre a importncia que a arte clssica atribua ao tema, a de que a inquietao com a forma deveria se sobrepor preocupao com o assunto.

A jovem Anita, ento com 25 anos, pintara suas paisagens motivada pelas pesquisas de seu professor Homer Boss, que juntara seus estudantes por alguns dias na Costa do Maine, pintando o que e como desejassem. H, nas paisagens de Anita, uma clara busca pelos efeitos da transposio de cores, e ela mesmo perseguia tal objetivo:Transpunha a cor do cu, para poder descobrir a cor diferente da terra. Transpunha tudo! Que alegria! Encontrava e descobria os planos com formas e cores novas, nas pessoas e nas paisagens. [...] Descobri que quando se transpe uma forma preciso faz-lo igualmente com a cor [...]59

Em algumas das paisagens citadas, Anita Malfatti lana uma camada espessa e justaposta de tinta, possivelmente na tentativa de capturar o objeto de forma rpida, como este era sentido, aplicando a tinta direto na tela, semelhante maneira impressionista de pintar. Na pintura impressionista, os motivos passaram a ser constitudos de cenas e objetos observados diretamente pelo pintor, criando-se o costume de pintar ao ar livre, fora do ateli, onde a influncia da luz natural motivava a escolha de um tema e impunha a necessidade de captar o aspecto momentneo do objeto em sua luz, atmosfera e movimentao. Entende-se assim porque uma porteira coberta de neve, com uma pequenssima ave sobre ela, se transforma num motivo perfeito para Monet revelar o efeito da claridade (A Ave, 1869). Entende-se tambm sua fascinao e a de seus colegas Manet e Renoir pelos piqueniques ou festas ao ar livre, nos quais a luz do sol criava uma atmosfera brilhante e nica, o que se v em leos, com mesmo tema e ttulo, como em O almoo sob a rvore (Figura 9), pintado por Manet em 1863, e por Monet (Figura 10) em 1865. Alm destes, Mulheres no Jardim (186667), de Monet, e Baile do Moulin de Galette, feito por Renoir em 1876, destacam-se pe