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UFRRJ INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE TESE DE DOUTORADO ESTADO E DESENVOLVIMENTO NA AMAZÔNIA: A INCLUSÃO AMAZÔNICA NA REPRODUÇÃO CAPITALISTA BRASILEIRA Gilberto de Souza Marques 2007

Tese Gilberto de Souza Marques

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  • UFRRJ

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    CURSO PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA

    E SOCIEDADE

    TESE DE DOUTORADO

    ESTADO E DESENVOLVIMENTO NA AMAZNIA: A INCLUSO

    AMAZNICA NA REPRODUO CAPITALISTA BRASILEIRA

    Gilberto de Souza Marques

    2007

  • UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIROINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    CURSO PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURAE SOCIEDADE

    ESTADO E DESENVOLVIMENTO NA AMAZNIA: A INCLUSO

    AMAZNICA NA REPRODUO CAPITALISTA BRASILEIRA

    Gilberto de Souza Marques

    Sob a Orientao do Professor

    Dr. Nelson Giordano Delgado

    Tese de doutorado submetida ao curso de Ps-Graduao em Desenvolvimento, Agricultura eSociedade, como requisito parcial para obtenodo grau de Doutor em DesenvolvimentoAgricultura e Sociedade rea de ConcentraoDesenvolvimento e Agricultura.

    Rio de Janeiro - RJDezembro de 2007

  • 338.98113M357eT

    Marques, Gilberto de SouzaEstado e desenvolvimento na

    Amaznia: incluso amaznica nareproduo capitalista brasileira./ Gilberto de Souza Marques.

    315 f.

    Orientador: Nelson GiordanoDelgado.

    Tese (doutorado) UniversidadeFederal Rural do Rio de Janeiro,Instituto de Cincias Humanas eSociais.

    Bibliografia: f. 295-315.

    1. Amaznia desenvolvimento -Teses. 2. Amaznia acumulaocapitalista Teses 3. Amaznia SUDAM - Teses. I. Delgado, NelsonGiordano. II. Universidade FederalRural do Rio de Janeiro. Institutode Cincias Humanas e Sociais. III.Ttulo.

  • UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIROINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAISCURSO PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA ESOCIEDADE

    GILBERTO DE SOUZA MARQUES

    Tese submetida ao curso de Ps-Graduao em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade,como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Desenvolvimento, Agricultura eSociedade - rea de concentrao Desenvolvimento e Agricultura.

    TESE APROVADA EM 19 /12 / 2007

    ________________________________________Dr. Nelson Giordano Delgado CPDA/UFRRJ

    (Orientador)

    ________________________________________Dr. Srgio Pereira Leite CPDA/UFRRJ

    _________________________________________Dra. Mara Vernica Secreto - CPDA/UFRRJ

    _________________________________________Dr. Carlos Alberto Ferreira Lima UNB

    __________________________________________Dr. Aluzio Lins Leal UFPA

  • A vida bela. Que as geraes futuras a limpem de todo omal e gozem-na plenamente.

    (Trotsky)

    Eu tenho a paixo das causas difceis, quase perdidas, quasedesesperadas. toda a diferena entre a falsia,confortavelmente sentada, contente de seu lugar, arrogante,condescendente consigo mesma, e a onda, que reflui, seretira, sem esquecer jamais de voltar carga. Tu sabesquem, entre a falsia e a onda do mar, tem a ltima palavra?

    (Daniel Bensad)

  • Mariana (filha), a melhor sntese entre duas mulheres queamo exageradamente: Brgida (Me) e Indira (companheira).Me, minha eterna admirao.

  • AGRADECIMENTOS

    comum ouvirmos falar que a elaborao da tese um trabalho solitrio. Esta afirmaoguarda um fundo de verdade, mas, por outro lado, este trabalho no seria possvel sem acolaborao de inmeras pessoas.

    Sabemos que ao agradecermos a alguns seremos injustos com os demais. Mesmo assim noteremos como deixar de incorrer nesta injustia. Gostaria ento de agradecer a algumaspessoas em especial.

    Mariana Marques, que, em seus to somente trs anos de idade, demonstrou uma pacinciae tolerncia sem igual, compreendendo, sua maneira, as limitaes da nossa falta de tempo eateno decorrentes da dedicao a este trabalho.

    Indira Marques, sua maneira presente em todos os momentos e naqueles mais necessriosdemonstrando toda a sua capacidade de contribuio, inclusive para esta tese.

    minha me Brgida, irmos, sobrinhos e tia Incia, apesar da distncia so indispensveisem nossa caminhada e em nossas conquistas.

    A Nelson Delgado que, a partir de seu conhecimento e experincia acadmica, estabelece umarelao orientando-orientador para alm da formalidade da academia.

    A Carlos Lima que, com sua grande solidariedade acadmica, aceitou uma coorientao,mesmo que no formalizada institucionalmente.

    Aos demais membros da banca examinadora (Srgio Leite, Vernica Secreto), Maria Clia(presente no exame de qualificao), Leonilde Medeiros (seminrio de tese) e Aluzio Lealpelas contribuies.Aos demais professores e funcionrios do CPDA, assim como aos colegas de curso,responsveis por um espao que transcende os limites do acadmico em si.

    Aos amigos em especial: Dbora Saraiva, Sandro, Andra, famlia Meireles da Costa e solidariedade sem tamanho de Neto e Roberta, fundamentais na fase final do trabalho (meuprofundo agradecimento).

    Aos que acreditam que possvel transformar radicalmente esta sociedade, em especial aosmilitantes do PSTU (e seus familiares) que diariamente mantm vivo este sonho.

    s equipes de bibliotecrias que recorremos em diversos momentos e que tornaram nossotrabalho menos rduo. Destaco as bibliotecrias da Sudam/ADA.

  • RESUMO

    MARQUES, Gilberto de Souza. Estado e desenvolvimento na Amaznia: a inclusoamaznica na reproduo capitalista brasileira. Tese. Universidade Federal Rural do Riode Janeiro UFRRJ/CPDA, Rio de Janeiro, 2007.

    A Amaznia viveu uma crise em sua economia desde que a produo de borracha entrou emdecadncia a partir de 1911. As aes estatais federais em relao regio se mantiveram empropores modestas at os anos 1950. Desta dcada em diante a ao estatal comea a mudare intensificada na dcada de 1960 e, principalmente, nos anos 1970 com os governosmilitares. Constituiu-se, ento, um projeto nacional para a Amaznia que a colocou comoprodutora de produtos naturais, destacadamente minerais e voltados para o mercadointernacional. Com os grandes projetos as decises importantes sobre o desenvolvimentoregional foram tomadas fora da regio, na associao Estado brasileiro, grande capital privadonacional e capital multinacional. Respondia-se assim s necessidades da acumulaocapitalista brasileira. Neste processo a Sudam e a burguesia regional foram deslocadas docentro de decises sobre a Amaznia, ficando margem do mesmo. Assim, diferentemente daidia comum, no acreditamos que devamos buscar a crise do modelo de desenvolvimento eplanejamento amaznico e da prpria Sudam somente nos anos 1980-1990. Suas razesexplicativas esto assentadas principalmente no projeto nacional definido para a Amaznianas dcadas anteriores, particularmente nos anos 1970. A insero amaznica nodesenvolvimento capitalista brasileiro representou um projeto, antes de tudo, voltado para ocapital e, em muitos aspectos, apresentou uma face mais conservadora que a chamadamodernizao conservadora nacional.

    Palavras-chave: Estado, Sudam, desenvolvimento, acumulao capitalista.

  • ABSTRACT

    MARQUES, Gilberto de Souza. State and developmente in the Amaznia: the Amazonianinclusion in the Brazilian capitalist reproduction. Thesis. Universidade Federal Rural doRio de Janeiro UFRRJ/CPDA, Rio de Janeiro, 2007.

    Amaznia experienced a crisis in its economy caused by the decadence in the production ofrubber occured from 1911. The federal government actions concerning the Amaznia regionremained modestly until the 50s. From this decade the government actions began to changeand to be intensified in the 60s and, mainly, in the 70s with the military governments. Thus,a national project was constituted reaching Amaznia as a producer of natural products,mainly minerals, aiming the international consumption. Once the big projects were done, theimportant decisions concerning the regional development were arranged outside the region, inthe brazilian State association, great private national capital and mutinational capital. In thisway, the questions for the necessities of the brazilian capitalist accumulation were answered.During this process, Sudam and the regional bourgeoisie were displaced from the the center ofthe decisions concerning Amaznia, being at the edge of the process. Thus, differently fromthe common idea, we do not believe that we should look for a crisis of the model ofdevelopment and planning of the Amaznia, and so for Sudam, only in the 80s and 90s. Thereasons that are capable to explain the situation can be found mainly in the national projectdefined for Amaznia during the earlier decades, particularly in the 70s. The insertion ofAmaznia in the brazilian capitalist development represented a project, above others reasons,aiming the capital and, regarding several aspects, in a more conservative way than the wayknown as conservative national modernization.

    Key words: State, Sudam, development, capitalist accumulation.

  • LISTA DE SIGLAS

    ABI Associao Brasileira de ImprensaADA Agncia de Desenvolvimento da AmazniaAEA Associao dos Empresrios Agropecurios da AmazniaALBRAS - Alumnio Brasileiro S/A.ALUNORTE Alumina do Norte do Brasil S/ABASA Banco da Amaznia S/ABCA Banco de Crdito da AmazniaBCB Banco de Crdito da BorrachaCAETA Comisso Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a AmazniaCDE Conselho de Desenvolvimento EconmicoCEDB Comisso Executiva de Defesa da BorrachaBNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e SocialCBA - Companhia Brasileira de AlumnioCDE - Conselho de Desenvolvimento EconmicoCDI Conselho de Desenvolvimento IndustrialCEE Comunidade Econmica EuropiaCEPAL Comisso Econmica para Amrica LatinaCIEX - Centro de Informaes do ExrcitoCNBB Confederao Nacional dos Bispos do BrasilCODAM Conselho de Desenvolvimento da AmazniaCOMIF Comisso de Avaliao dos Incentivos FiscaisCONDEL Conselho Deliberativo da SudamCMN Conselho Monetrio NacionalCNPq Conselho Nacional de PesquisaCPT Comisso Pastoral da TerraCSN Conselho de Segurana NacionalCVRD - Companhia Vale do Rio DoceDNPM Departamento Nacional de Produo MineralDRME Depsito Registrado em Moeda EstrangeiraEMBRATUR Empresa Brasileira de TurismoESG Escola Superior de GuerraFAEPA Federao da Agricultura do ParFIEPA Federao das Indstrias do Estado do ParFBC Fundao Brasil CentralFGTS - Fundo de Garantia do Tempo de ServioFIDAM Fundo para Investimentos Privados no Desenvolvimento da AmazniaFINAM - Fundo de Investimento na AmazniaFINOR - Fundo de Investimento no NordesteFISET Fundo de Investimento SetorialFMI Fundo Monetrio InternacionalFUNAI Fundao Nacional do ndioGATT Acordo Geral de Comrcio e TarifasGERAN Grupo Executivo de Racionalizao da Agroindstria do NordesteGEBAM - Grupo Executivo das Terras do Baixo AmazonasGETAT - Grupo Executivo das Terras do Araguaia-TocantinsGTDN Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste

  • IBAD - Instituto Brasileiro de Ao DemocrticaIBASE - Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e EconmicasIBDF - Instituto Brasileiro de Desenvolvimento FlorestalIBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e EstatsticaIBRA - Instituto Brasileiro de Reforma AgrriaICMS Imposto sobre Circulao de Mercadoria e ServioIDESP Instituto de Desenvolvimento do ParINCRA - Instituto Nacional de Colonizao e Reforma AgrriaINPA - Instituto Nacional de Pesquisas AmaznicasINPE Instituto Nacional de Pesquisas EspaciaisIPES - Instituto de Pesquisas e Estudos SociaisIPI Imposto sobre Produtos IndustrializadosIR Imposto de RendaITERPA Instituto de Terras do ParITO/OIC Organizao Internacional do ComrcioJICA Japan International Consulting AssociationLMSA Light Metal Smelters AssociationMDB - Movimento Democrtico BrasileiroMECOR Ministrio Extraordinrio para Coordenao dos Organismos RegionaisMME Ministrio das Minas e EnergiaMRN Minerao Rio do NorteNAAC Nippon Amazon Aluminium CompanyNEI Nova Economia InstitucionalOAB Ordem dos Advogados do BrasilOECEF Overseas Economic FundONU Organizao das Naes UnidasPAEG - Plano de Ao Econmica do GovernoPDA - Plano de Desenvolvimento da AmazniaPDS Partido Democrtico SocialPED Plano Estratgico de DesenvolvimentoPGC Programa Grande CarajsPIB Produto Interno BrutoPIN Programa de Integrao NacionalPMDB Partido do Movimento Democrtico BrasileiroPND Plano Nacional de DesenvolvimentoPROTERRA Programa de Redistribuio de TerraPSD Partido Social DemocrataPSDB - Partido da Social-Democracia BrasileiraPTB Partido Trabalhista BrasileiroRADAM Projeto Radar da AmazniaRDC Rubber Development ComporationRIDA Reunio de Investidores no Desenvolvimento da AmazniaSAGRI Secretaria de Agricultura do Estado do ParSBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da CinciaSEMTA Servio Especial de Mobilizao de Trabalhadores para a AmazniaSESP Servio Especial de Sade PblicaSNI - Servio Nacional de InformaesSNCR Sistema Nacional de Crdito RuralSPVEA - Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da AmazniaSUDAM Superintendncia de Desenvolvimento da Amaznia

  • SUDENE - Superintendncia de Desenvolvimento do NordesteSUDEPE - Superintendncia de Desenvolvimento da PescaSUFRAMA - Superintendncia da Zona Franca de ManausUDN Unio Democrtica NacionalUSAF - Fora Area dos Estados UnidosZFM - Zona Franca de Manaus

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1: Populao da Amaznia, 1840-1920 35

    Tabela 2: Distribuio da fora de trabalho da Amaznia, 1910. 35

    Tabela 3: Borracha exportada pela Amaznia, em toneladas anos selecionados 36

    Tabela 4: Renda interna da Amaznia por setores, em contos de ris. 39

    Tabela 5: Evoluo da renda interna da Amaznia (1890 = 100) 41

    Tabela 6: Despesas pblicas no Par e na Amaznia, em contos de ris. 72

    Tabela 7: Participao percentual do caf e da borracha no total das exportaesbrasileiras, 1850-1920 (anos selecionados).

    74

    Tabela 8: Saldos lquidos da Amaznia e do Brasil, 1850-1920 comrcio exteriormedido em contos de ris, anos selecionados

    74

    Tabela 9: Exportaes da Regio Norte para o Exterior 93

    Tabela 10: Terras devolutas vendidas pelo governo paraense a grandes proprietrios(1924-1976)

    97

    Tabela 11: Composio dos recursos da Spvea, 1964-65 (valores de 1966) 100

    Tabela 12: Distribuio setorial dos recursos mobilizados pela Spvea 100

    Tabela 13: Primeiros Projetos Agropecurios beneficiados pelos incentivos fiscais Vigncia da Spvea.

    104

    Tabela 14: Spvea/Sudam Recursos financeiros orados e recebidos, 1953-1967 167

    Tabela 15: Distribuio setorial projetada das despesas de investimento em planos dedesenvolvimento regional Sudam, 1967-1971

    177

    Tabela 16: Evoluo da Produo dos principais produtos eletrointensivos, 1973/87 206

    Tabela 17: Renda interna segundo ramo de atividades, regio Norte e Brasil, 1965-1978

    216

    Tabela 18: Exportaes de Alumnio Primrio Par 1986 1994 229

    Tabela 19: Origem dos insumos para os projetos incentivados na Amaznia Legal 1985

    235

    Tabela 20: Destinos das vendas das empresas incentivadas na Amaznia Legal - 1985 236

    Tabela 21: Amaznia Legal projetos aprovados por investimento total e incentivosfiscais out/1991 out/1998

    236

    Tabela 22: IRPJ estrutura das opes para os incentivos regionais e setoriais, 1975-1985 (Cr$ milhes)

    238

    Tabela 23: Arrecadao e repasse de recursos do Finam, na vigncia da Lei 8.167/91 1991/1998

    242

    Tabela 24: Amaznia Legal, n de projetos aprovados na vigncia da Lei 8.167/91 -1991/1998

    242

  • Tabela 25: Opo pelos fundos de investimento e/ou dos programas Brasil, 1962-1985 (%)

    246

    Tabela 26: Taxas Anuais de Crescimento do PIB do Brasil e da regio Norte 1960-1996 (%)

    247

    Tabela 27: Regio Norte: exportaes e importaes interregionais de bens, US$1.000 1961-1991 (anos selecionados)

    247

    Tabela 28: Exportao da regio Norte para o exterior, sem o mangans (US$ FOB apreos de 1974)

    248

    Tabela 29: Exportaes globais do Estado do Par em 1995 249

    Tabela 30: Produtos Exportados pelo Estado do Par - Perodo: janeiro a dezembro de2004 e 2005

    250

    Tabela 31: Destino das exportaes do estado do Par, 2005 251

    Tabela 32: Exportaes Paraenses para Blocos Econmicos, 2005, US$ mil FOB 252

    Tabela 33: Produtos importados pelo estado do Par, 2005 253

    Tabela 34: Jurisdio sobre terras paraenses de acordo com o Decreto-Lei n 1.164/71 264

    Tabela 35: Proporo do n e da rea dos estabelecimentos, Par - 1960-1980 264

    Tabela 36: Proporo do n e da rea dos estabelecimentos, por grupos e rea total Par - 1970-1995

    271

    Tabela 37: Valor bruto da produo animal e vegetal do Sudeste Paraense, 1995 274

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1: Investimentos previstos (programas) do I PDA (1972-1974) 208

    Quadro 2: Resumo da programao do II PDA, 1975-1979 213

    Quadro 3: III PDA, 1980-1985, programao geral de dispndios 216

    Quadro 4: Isenes tributrias concedidas pelo PGC 224

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1: Amaznia Legal 87

    Figura 2: Regio do Programa Grande Carajs 223

    Figura 3: Distribuio Populacional da Amaznia nos anos de 1960 267

    Figura 4: Ocupao Econmica da Amaznia nos anos de 1950 267

    Figura 5: Distribuio dos Projetos Agropecurios, final dos anos de 1970 268

    Figura 6: Federalizao das Terras Marginais s Rodovias Federais na Amaznia 269

  • SUMRIO

    APRESENTAO 1

    CAPTULO I. INTRODUO: BRASIL E AMAZNIA, ESTADO EDESENVOLVIMENTO - UMA PRIMEIRA APROXIMAO 3

    1. Sobre as Limitaes do Desenvolvimento Amaznico 3

    2. Estado: Algumas Interpretaes 62.1. A Determinao pelas Classes Sociais: o Marxismo Clssico 82.2. Complexificando a Determinao pelas Classes 11

    3. Especificando a Definio Classista Estatal: O Caso Brasileiro 18

    4. Problema e Hipteses de Trabalho 26

    CAPTULO II. AMAZNIA: AUGE ECONMICO E CRISE DE UMAREGIO PERIFRICA NA INDUSTRIALIZAO BRASILEIRA 31

    1. A Formao Econmica da Amaznia e o Auge da Produo da Borracha 32

    2. A Amaznia no Cenrio do Estado e Industrializao Nacionais 432.1. O Primeiro Momento da Industrializao Paulista e as Contradies na Periferia 43

    2.2. Industrializao Restringida 50

    2.3. Plano de Metas, Estado e Industrializao Pesada 59

    3. Amaznia, Nordeste, Regio e Integrao Nacional 65

    CAPTULO III. DAS PRIMEIRAS TENTATIVAS DE PLANEJAR ODESENVOLVIMENTO REGIONAL SPVEA A INEXISTNCIA DE UMPROJETO PARA A AMAZNIA

    72

    1. A Crise Regional e as Primeiras Aes Estatais no Planejamento Regional 72

    2. A Institucionalizao do Desenvolvimento Regional: A Fundao da Spvea 822.1. Antecedentes 82

    2.2. A Fundao 86

    2.3. O Programa de Emergncia 89

    2.4. I Plano Qinqenal de Valorizao Econmica da Amaznia 91

    2.5. A Nova Poltica de Valorizao 94

    2.6. Plano de Metas, Spvea e Rodovia Belm-Braslia 95

    2.7. Golpe Militar e Extino da Spvea 97

    CAPTULO IV. DITADURA, SUDAM E AMAZNIA A NEGAO DE UMPROJETO REGIONAL DE DESENVOLVIMENTO 110

    1. Economia e Ditadura Militar: A Ante-Sala das Polticas para a Amaznia 1101.1. A Crise do Final do Plano de Metas 110

    1.2. Instabilidade Poltica e Golpe Militar de 1964 115

  • 1.3. O Estabelecimento da Ditadura Militar 121

    1.4. Poltica Econmica e Intenes Polticas dos Primeiros Governos Militares 130

    2. Sudam, Projetos em Jogo e Contradies nas Polticas de DesenvolvimentoAmaznico 1392.1. Teoria Econmica e Desenvolvimento Regional 139

    2.2. Estado, Golpe Militar e Segurana Nacional na Amaznia nos Anos 1960 144

    2.3. Fundao e Instalao da Sudam 149

    2.4. A Legislao 154

    2.5. Mudanas na Legislao e na Estrutura Institucional 159

    2.6. A Substituio Regional de Importaes 165

    2.7. I Plano Qinqenal de Desenvolvimento 171

    2.8. Plano Diretor 174

    2.9. As Contradies no Caminho da Sudam 178

    CAPTULO V. A CONSOLIDAO DE UM PROJETO NACIONAL PARA AAMAZNIA 182

    1. Planos de Desenvolvimento, Crise na Economia e na Ditadura 1821.1. O Milagre Econmico e o I PND 182

    1.2. O II PND e a Crise do Regime Militar 187

    1.3. Endividamento e Crise do Estado Desenvolvimentista 195

    1.4. Estado Desenvolvimentista e Estado-Nao 200

    2. Amaznia no Novo Projeto Definido pelo Estado Nacional 2032.1. Autores que Localizam a Crise da Sudam e do Desenvolvimento Amaznico nosanos 1980-1990 203

    2.2. O Caminho Para os Grandes Projetos 205

    2.3. I Plano de Desenvolvimento da Amaznia 207

    2.4. II Plano de Desenvolvimento da Amaznia e a Opo Pelos Grandes Projetos 210

    2.5. III Plano de Desenvolvimento da Amaznia 214

    2.6. Grandes Projetos 217

    2.7. Grandes Projetos e Sudam 230

    2.8. Os Incentivos Fiscais: Auge e Crise da Sudam 234

    2.9. A Reconverso da Economia Regional em Nmeros 246

    CAPTULO VI. MODERNIZAO E DESENVOLVIMENTO: ENTRE ODISCURSO E A REALIDADE 255

    1. Autoritarismo e Modernizao: a Questo Agrria 2551.1. A Modernizao Autoritria 255

  • 1.2. A Anti-Reforma Agrria 260

    2. Amaznia e Questo Agrria 2622.1. Concentrao Fundiria: a Face Mais Visvel da Modernizao Autoritria naAmaznia 262

    2.2. As Implicaes das Mudanas na Economia Amaznica Sobre a OligarquiaRegional 275

    2.2.1. A Conformao da oligarquia regional e as disputas pelo governo estadual 275

    2.2.2. A oligarquia regional e os governos militares 279

    3. Modernidade e Atraso no Discurso Oficial Sobre a Amaznia 285

    CONCLUSO 291

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 295

  • APRESENTAO

    A Amaznia Legal composta por nove estados (Acre, Amap, Amazonas, Par,Rondnia, Roraima, Tocantins, Mato Grosso e Maranho) e concentra aproximadamente 60%do territrio brasileiro. Tem 50 mil km de rios navegveis, entre os quais o rio Amazonas queconta com 1,1 mil rios afluentes. H ainda enorme biodiversidade e se constitui na maiorreserva de gua doce do planeta.

    No documento de apresentao da 59 Reunio Anual da Sociedade Brasileira para oProgresso da Cincia (SBPC) tem-se uma referncia a duas perguntas que haviam sido feitas25 anos antes, quando o evento fora realizado em Belm, tal qual o de 2007: existe umProjeto de Nao que a inclua [no caso a Amaznia]? Seramos uma Nao sem aAmaznia? (SBPC, 2007, p. 1). As perguntas de duas dcadas e meio ainda permanecem emaberto para esta instituio.

    No pretendemos responder a estas perguntas nos termos em que elas so colocadas,mas, em relao ao primeiro questionamento, abordaremos, na presente tese, uma reflexosobre a construo de um projeto do Estado nacional brasileiro para a Amaznia, localizando-a nos marcos da reproduo capitalista do pas.

    Inicialmente nos propusemos a fazer um estudo sobre a ao do Estado na Amazniapartindo da Superintendncia de Desenvolvimento da Amaznia (Sudam), mas desde oprimeiro momento j afirmvamos que no pretendamos fazer uma tese sobre estaSuperintendncia em si. Posteriormente, percebemos que para compreender o papeldesempenhado pelas instituies de desenvolvimento regional amaznico seria necessrioinvestigar o processo mais amplo, por meio do qual a regio passou a assumir um papelespecfico na acumulao de capital no Brasil, a qual, por sua vez, guarda relaes com odesenvolvimento capitalista no nvel internacional.

    Ao fazermos isso percebemos que, diferentemente da explicao mais difundida, nopodemos localizar a crise do desenvolvimento regional, e mesmo da Sudam, nos anos 1980 e1990 apenas. As razes da compreenso da mesma devem ser buscadas nas dcadas anteriores,quando se definiu um projeto para a regio, sem consulta seus atores sociais, destinando-a afuno de ser produtora de produtos naturais, destacadamente minerais.

    Neste processo, a Sudam e outras instituies amaznicas foram deslocadas do centrode deciso sobre a Regio e as principais diretrizes do desenvolvimento regional foramtomadas no plano extrarregional e na associao Estado nacional-grande capital privadonacional-capital externo.

    Merecem aqui, inicialmente, trs observaes para o decorrer do trabalho. A primeira a respeito do termo desenvolvimento. Temos clareza de que uma expresso carregada deideologia, como se fosse (quando tomado como sinnimo de progresso) benfico igualmentepara todos, de modo que deveria ser buscado pelo conjunto da populao. Por no pensarmosdesta forma, utilizamos o termo, mas trazemos implicitamente uma pergunta:desenvolvimento para quem?

    A segunda observao diz respeito ao fato de no querermos reproduzir aqui umacontradio formal entre o Norte (Amaznia) e o Sul (Sudeste brasileiro), mas no possvelcompreender o processo de reproduo capitalista nacional sem que se constate o papeldestacado desta ltima regio e as relaes que foram impostas a outras regies.

    A terceira observao tem a ver com delimitao da rea de estudo, pois nos referimosa Amaznia, mas o trabalho se centra principalmente sobre a sua poro oriental, com

  • 2destaque ao estado do Par. Assim como h muito em comum entre Amaznia Ocidental eAmaznia Oriental, tambm encontramos diferenas, entre as quais o fato de que a produomineral concentrou-se privilegiadamente na parte oriental. Por isso as generalizaes nemsempre so possveis e quando as forem devemos faz-las com o cuidado necessrio.

    Trabalharemos, ento, no sentido de compreender como e a partir de quando se defineum projeto nacional para Amaznia e quais os principais traos e implicaes deste projeto naregio. Mais que isso: qual o papel desempenhado pelo Estado nesta construo e como secomportaram as instituies regionais, destacadamente a Sudam. Por conta disso e dashipteses que apresentaremos no primeiro captulo nosso espao temporal se concentrar nasdcadas de 1960, 1970 e 1980, mas particularmente na segunda que quando so tomadas asgrandes decises que marcam economicamente da regio nas dcadas seguintes.

    A tese composta de seis captulos mais a concluso. No primeiro apresentamos asprincipais questes que abordaremos, nossa especificidade em relao a outras abordagens eos referenciais tericos por ns adotados, em especial no tocante ao Estado. O segundocaptulo trabalha o processo de industrializao brasileiro em paralelo formao histrico-econmica da Amaznia. Ele se concentra na primeira metade do sculo XX. No captuloseguinte tomamos as primeiras medidas do governo diante da crise da economia amaznica eas mudanas que ocorrem a partir dos anos 1950, em particular a criao e extino daSuperintendncia do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia (Spvea). O quartocaptulo analisa o cenrio poltico-econmico nacional e o estabelecimento da ditadura militarem 1964. A partir disso estudaremos a criao da Sudam em substituio Spvea e asprimeiras polticas de desenvolvimento elaboradas pela nova Superintendncia, inclusivealgumas mudanas no corpo da prpria Sudam que trazem contradies a ela e preparamterreno para mudanas maiores que se processam na dcada de 1970. So essas mudanas, ouseja, a definio do papel da regio na acumulao capitalista nacional em meio crise daeconomia brasileira, que sero discutidas no quinto captulo. Tomaremos o que aparentemente o auge da Sudam como o momento em que ela esvaziada politicamente e deslocada doespao das grandes decises sobre a Amaznia. A evoluo dos incentivos fiscais e oestabelecimento dos grandes projetos sero analisados detalhadamente, incorporando asdcadas de 1980 e 1990 at a extino da Sudam e sua substituio pela Agncia deDesenvolvimento da Amaznia (ADA). O ltimo captulo aborda a relao entre as polticasestatais e modernizao regional, destacando que, muito mais do que ocorreu com a chamadamodernizao conservadora nacional, na regio amaznica a face conservadora foi muitomais forte. A concluso sintetiza, em linhas gerais, os principais resultados que alcanamos.

  • 3CAPTULO I. INTRODUO: BRASIL E AMAZNIA, ESTADO EDESENVOLVIMENTO - UMA PRIMEIRA APROXIMAO

    Neste captulo, que se apresenta como uma introduo expandida, queremos introduziro debate sobre a Amaznia apresentando nossas principais questes a serem trabalhadas natese e os instrumentais tericos que nortearo nossa proposta de compreenso da inserodesta regio no desenvolvimento capitalista brasileiro. Partimos de uma sntese de explicaesem torno do desenvolvimento amaznico e de suas limitaes. Em seguida abordaremos otema do Estado, demonstrando nossa opo terica pelo marxismo. Assim, no estamospropondo reconstruir todo o desenvolvimento do debate sobre o Estado, nem tampouco fazerisso no que toca ao marxismo no achamos que isso seja fundamental neste trabalho e a teseno se prope a isso. Feito isso incluiremos o Estado brasileiro e, por fim, nossas questescentrais e hipteses sobre o caso amaznico.

    1. SOBRE AS LIMITAES DO DESENVOLVIMENTO AMAZNICO

    A Amaznia sofreu de um relativo esquecimento por parte da metrpole portuguesanos primeiros sculos da colonizao no Brasil.1 As investidas iniciais e mesmo algumasaes colonizadoras e de explorao econmica eram fruto da necessidade de garantir a posse(ou conquist-la) desta regio.

    Quando um produto nativo, a borracha, passou a se destacar no mercado internacionala regio, j sob um pas independente, ganhou importncia para o governo brasileiro. Oauge da produo e da venda ocorreu ao final da primeira dcada do sculo XX. O grandefluxo de renda gerado por esta produo trouxe uma riqueza to rpida quanto voltil. Belme Manaus elevaram seus consumos de bens de luxo (comprados da Europa) e de outrosprodutos (importados do exterior e de estados do Sudeste do Brasil), mas este consumo selimitava a um pequeno estrato populacional, a grande maioria estava deslocada dos grandesbenefcios do eldorado descoberto na floresta, mais precisamente na seiva da seringueiraamaznica (LEAL, 1999; LOUREIRO, 2004; RIBEIRO, 2005).

    A produo extrativa, por seu esquema de produo e pelo capital que o controlavano levou internalizao da produo, limitou-se, grosso modo, extrao primria e comercializao, inibindo outros processos produtivos. Quando esta comercializao entrouem crise, em funo da ao de cartis de pases centrais e da entrada de concorrentesinternacionais que apresentaram preos que desbancaram a produo amaznica, a regio foiinserida em profunda crise que se arrastou por dcadas.

    Na contramo da crise regional a industrializao brasileira, concentrada no Sudeste,foi se acelerando via substituio de importaes e uma poltica ativa do Estado nacionalbrasileiro para alcanar este fim, ainda que ela encontrasse grandes barreiras ao seuaprofundamento, o que fazia com que se localizasse em setores de produo de bens deconsumo, caracterizando-a como uma industrializao restringida. As limitaes aoaprofundamento da industrializao brasileira foram em grande medida superadas na segundametade dos anos 1950 com o montante de investimentos estatais em indstrias de base e eminfraestrutura, constituindo as bases ao desenvolvimento da produo capitalista em

    1 Apesar da ao do Marqus de Pombal em meados do sculo XVIII que enviou seu irmo para administrar aregio e criou a Companhia Geral do Gro-Par e Maranho.

  • 4patamares superiores aos at ento existentes, configurando a industrializao pesada(MELLO, 1998).

    Muitos foram os pedidos para que o governo federal interviesse para retomar aproduo da borracha ou, posteriormente, para viabilizar outro esquema que dinamizasse aeconomia regional (SANTOS, 1980).2 Mas, como demonstram Loureiro (2004)3 e outrosautores, somente nos anos 1950 o governo federal elaborou polticas mais efetivas para aAmaznia. Fazendo cumprir um dispositivo constitucional, criou a Superintendncia do Planode Valorizao Econmica da Amaznia (Spvea) destinada a gerenciar um fundo e plano como objetivo expresso em seu nome (valorizar economicamente a regio). Tambm foi desteperodo a construo da rodovia Belm-Braslia, ligando a Amaznia ao restante do pas porvia terrestre. A rodovia se efetivou e at hoje o principal meio de ligao da regio ao Sul eSudeste do Brasil, j a Spvea no se sustentou por muitos anos e foi substituda nos anos 1960pela Superintendncia de Desenvolvimento da Amaznia (Sudam), criada no primeirogoverno da ditadura militar.

    A Sudam elaborou alguns planos de desenvolvimento regional, entre os quais o IIPlano de Desenvolvimento da Amaznia II PDA, uma adequao regional s orientaesdefinidas no II Plano Nacional de Desenvolvimento II PND. O II PND definiu comoprioridade esta regio a produo de matrias-primas, particularmente minerais,impulsionando, com isso, a fase dos grandes projetos amaznicos. Alm disso, coube a estaSuperintendncia gerenciar os incentivos fiscais destinados regio, dos quais grande partemigrou para a agropecuria (CARVALHO, 1987; LOUREIRO, 2004).

    Mas a dcada de 1970 foi marcada tambm pela crise da economia mundial e pelacrise da economia brasileira que se prolongou pelos anos 1980 e se caracterizou, entre outros,pela ampliao do endividamento estatal, o que, diante das polticas adotadas e opes feitas,limitou a ao do Estado na definio de polticas de desenvolvimento (BAER, 1993). Estacrise, que veremos com mais detalhe no decorrer da tese, refletiu-se na regio e na prpriaSudam, pois os incentivos foram paulatinamente minguando e a Superintendncia passou asofrer diversos questionamentos, desde a eficincia na gesto dos recursos at a constataode desvio do dinheiro pblico via processos ilcitos (LIRA, 2005).

    Quando se analisa o presente da regio olhando para este processo ocorrido e acimasintetizado, polticos, tecnocratas, empresrios e pesquisadores constatam as deficincias nodesenvolvimento regional e apresentam suas justificativas para tal que, grosso modo, podemser sintetizadas nas seguintes argumentaes.

    1) At a Spvea o problema se concentrava na falta de recursos federais regio.Enquanto outras regies recebiam apoio da Unio a Amaznia ficava relegada aoesquecimento. A Spvea sofreu e fracassou por conta deste problema (FERREIRA, 1989;DIESEL, 1999).

    2) Com a Sudam o problema esteve no mau uso dos recursos destinados ouadministrados por ela. Por um lado, no se teve competncia tcnico-administrativa naaprovao e acompanhamento dos projetos incentivados. Por outro, a corrupo desviouparcela considervel de recursos destinados ao desenvolvimento regional, enfraquecendo-o elevando a Superintendncia ao descrdito que marcou sua decadncia. Esta posio foidominante no segundo mandato do governo de Fernando Henrique Cardoso e compartilhadapor Passarinho (2002), entre outros.

    3) Como a poltica de desenvolvimento regional esteve sustentada nos incentivosfiscais, a crise do Estado brasileiro e a reduo dos mesmos implicaram no abandono prtico

    2 Trabalho do professor Roberto Santos concludo em 1977, produto de seu mestrado pela Universidade de SoPaulo. Foi publicado em 1980 e desde ento uma obra de referncia sobre a Amaznia.3 Obra relativamente recente, pois sua primeira publicao data de 1992, mas de grande riqueza acadmica econtedo crtico.

  • 5do projeto de desenvolvimento regional e na decadncia da Sudam (LIRA, 2005;SARMENTO, 2002). Assim, a crise do desenvolvimento regional conseqncia da reduoe extino dos incentivos fiscais da Sudam.

    4) Os grandes projetos tomados, a partir dos anos 1970, como a grande poltica dedesenvolvimento da regio e no conseguiram internalizar seus efeitos positivos,constituram-se em enclaves, no trouxeram outras empresas que transformassem as matrias-primas produzidas em produtos acabados. Neste sentido, estes projetos ficaram longe doobjetivo de desenvolvimento regional (RIBEIRO, 2002; SARMENTO, 2002).

    5) Houve uma superposio das instituies destinadas a elaborar e/ou aplicarpolticas de desenvolvimento para a Amaznia, fenmeno que ganha mais destaque nos anos1980. Assim, a Sudam passou a concorrer com outras instituies empresas pblicas porrecursos e polticas de desenvolvimento, havendo superposio inclusive quanto s esferasfederal e estadual, o que significou srios problemas e limitaes s estratgias dedesenvolver a regio (BRITO, 1999 e 2001).

    Todas estas argumentaes guardam um fundo de verdade, mas no so suficientes,mesmo que tomadas no conjunto, para explicar o desenvolvimento regional e os problemas elimitaes ligados a ele. Acreditamos que o que se tem feito buscar entender e explicar asuperficialidade, pois a grande questo de fundo deve ser a tentativa de compreender queprojeto esteve colocado Amaznia ou, mais exatamente, a partir de quando que se defineum projeto para a regio e quais os objetivos e contornos do mesmo.4 No adianta buscar asrazes do fracasso se no tomarmos a questo na sua profundidade necessria. Colocando aquesto nos seus devidos termos se torna muito mais fcil entender o desenvolvimentoregional e a questo sobre um possvel fracasso deixa de ser o objetivo central da pesquisa emfuno da compreenso do fenmeno em sua amplitude efetiva.

    Dito isso, acreditamos que o estudo deve apoiar-se em dois grandes movimentosterico-histricos auxiliares que se entrelaam. O primeiro o estudo acerca das polticas doEstado, definindo seus interesses, objetivos e conflitos. Aqui o grau de abstrao maior, masno deslocado da realidade, devendo-se recorrer aos pressupostos tericos que norteiam adefinio no somente do Estado como de suas polticas. Evidentemente, pela temticaadotada na tese concentrar-se no desenvolvimento iremos analisar as prprias instituiesligadas a este tema, mas no estamos nos propondo a fazer um estudo em si destasinstituies, da burocracia ou coisa parecida. Recorreremos a elas para compreender o sentidodas polticas e dos projetos em jogo, dos quais estas organizaes so parte fundamental, masno nica o que justificaria algum tipo de isolamento das mesmas para o estudo.

    O segundo movimento implica descer o plano do mais abstrato para compreender odesenvolvimento brasileiro no sculo XX, particularmente o processo de industrializao,seus desdobramentos, o movimento das classes sociais, o papel cumprido pelo Estadobrasileiro e como se configura uma determinada estrutura burocrtico-institucional estatal,assim como suas crises e desdobramentos vide a ditadura militar.

    A partir e em conjunto com estes dois movimentos buscaremos estabelecer as relaes(no mecnicas) no desenvolvimento amaznico, tentando compreender no apenas asdeterminaes gerais sobre a regio, mas, tambm, as especificidades que aqui ocorrem.

    4 O que chamamos de projeto o estabelecimento de um papel claramente definido da regio no processo deacumulao capitalista brasileira, entre outros com funes econmicas que respondem a esta e com definiesespecficas para instituies, setores sociais e fraes do capital.

  • 62. ESTADO: ALGUMAS INTERPRETAES

    No estudo sobre o Estado, diversas abordagens foram elaboradas, desde asmacroteorias, como o marxismo, at outros movimentos analticos que buscaram uma novaangulao para o estudo do Estado, menos ampla e abstrata e mais localizada. O marxismobuscou analisar o Estado a partir do conflito entre as classes e apresentar um projeto polticoque superasse o mesmo a partir da ascenso poltica do proletariado ao poder. Duas outrasabordagens se postularam como alternativas s interpretaes inauguradas por Marx e Engels:o pluralismo5 e o elitismo.6

    Em abordagens derivadas do pluralismo, elitismo e de outras vertentes em certos casosminimizou-se a existncia do conflito, concentrando-se em outros elementos.7 Em outrosmomentos constatou-se a presena do mesmo (no necessariamente entre as classes) paraconcluir que entre a elaborao de uma determinada poltica pelo ncleo dirigente estatal e asua aplicao pelas diversas agncias do Estado, nos diversos nveis hierrquicos, h conflitose negociaes entre os diversos atores envolvidos, o que pode incorporar certos contornosespecficos e at contraditrios quela poltica inicialmente definida. Mais que isso: procurou-se demonstrar que as agncias estatais podem ser cruzadas e capturadas por interesses

    5 O pluralismo foi e a corrente majoritria na cincia poltica, tomando como central a esfera privada, a vontadeativa dos grupos e indivduos como postulados tericos. Ele minimiza a autonomia estatal. A democracia e ogoverno liberais contemporneos so vistos como os melhores modelos a seguir. De acordo com Dhal ospluralistas enfatizam a existncia de centros mltiplos de poder, sendo que nenhum seria plenamente soberano.O Estado, no pluralismo clssico, o local de conflitos entre ministrios, secretarias e rgos governamentaisrepresentantes de uma grande variedade de interesses. Por conta dos interesses particulares o papel do Estadoseria mais a regulao dos conflitos e menos de dominncia do mercado ou da sociedade. Esta abordagem sofreudiversas crticas, entre as quais as de Skocpol, o que fez surgir algumas derivaes pluralistas como o pluralismode elite (alguns grupos acessam o Estado de forma privilegiada), neopluralistas (Estado tende a favor das grandesempresas) e pluralismo reformado (Estado sensvel a grupos diversos) (ROMANO, 2007).6 No elitismo o Estado concebido como uma grande organizao composta por organizaes especficas(ministrios, agncias e outras) controladas pelas elites. Sua autonomia, em ltima instncia, est no monopliodos instrumentos de coao, de modo que consegue deslocar interesses de classes e grupos, privilegiando os seusprprios. A presena de conflitos, de classes e grupos de interesse tende a fragmentar o Estado, mas naestruturao das relaes entre Estado e sociedade o poder dirigencial do primeiro mais importante que opoder dos capitalistas ou de grupos de interesse (ROMANO, 2007). O elitismo clssico rejeita tanto a dominaode classe quanto o objetivo presente no marxismo de construo de uma sociedade sem classes e com poderdistribudo equitativamente. Uma das vertentes elitista, o elitismo democrtico, nega no apenas a democracialiberal quanto o socialismo j que, segundo Weber (2004) a hierarquia da dominao (poder de mandoautoritrio) seria uma caracterstica inevitvel. Para Schumpeter os grandes grupos econmicos dominavam aproduo e a distribuio dos bens e a democracia partia de um sistema competitivo (mas oligopolizado) departidos que agiria como instrumento de legitimao da elite governante (ROMANO, 2007).7 Tal qual a interpretao das elites do poder (com destaque para Wrigth Mills) o corporativismo uma dascompreenses contemporneas decorrentes do elitismo. Para Schimitter o corporativismo um sistema derepresentao de interesses onde os elementos que o constituem esto organizados numa quantidade limitada decategorias singulares obrigatrias, no concorrentes, ordenadas hierarquicamente e diferenciadas de acordo comsuas funes. Para Lehmbruch as grandes organizaes de interesse cooperam entre si e com autoridadespblicas. Derivado do corporativismo surgiu o neocorporativismo. Para Cawson no se pode pensarexclusivamente as classes sociais enquanto foras determinantes dos conflitos polticos e do funcionamentoestatal. Tambm no se pode ter uma nica viso geral sobre o Estado, devendo-se buscar modelos e teorias demdio alcance, capazes de captar processos sociais e polticos especficos. Para os neocorporativistas as razesestruturais da autonomia relativa do Estado no decorrem nem de imperativos econmicos capitalistasmacrofuncionais nem, tampouco, de micromotivaes de agentes privados ou funcionrios estatais. A base quedas estruturas deve ser encontrada nos acordos de convenincia mtua entre o Estado e os interesses deorganizaes privadas representativas (ROMANO, 2007).

  • 7especficos. Assim, a ao estatal no necessariamente implica no melhor ndice deracionalidade e eficincia, ainda que pensadas sob os padres capitalistas.8

    Muito presente em diversas abordagens est a necessidade de negar uma determinaohistrico-estrutural (particularmente no que toca s classes sociais) quanto ao estatal.Assim, cada situao especfica tende a ser tomada como um caso em si, tensionando acontingncia a tornar-se regra, eclipsando-se as linhas de ligao entre os grandes fenmenosda sociedade, que, apesar de sua relativa imprevisibilidade, no ocorrem em um isolamentoabsoluto.

    A necessidade de negao da determinao e a tentativa de captar as nuanas presentesna ao do Estado fazem com que se tenha como tendncia a localizao do estudo emagncias e atores especficos, o que possibilita desvendar alguns fenmenos at ento noexplorados, mas, tambm, comumente pressiona estes movimentos a atriburem um elevadograu de autonomia s agncias estatais e/ou burocracia. As prprias agncias estataisagiriam, em algumas anlises, umas independentemente das demais como que se no fossempartes componentes de um todo contraditrio, mas um todo. Evidentemente no podemosnegar uma autonomia relativa do Estado, tampouco os conflitos presentes em seu interior, masse conduzirmos exageradamente este movimento de autonomia das agncias podemos chegar

    8 A corrente da policy analysis busca, segundo Windhoff-Hritier, demonstrar as leis e os princpios das polticasespecficas, se propondo a analisar a interrelao entre instituies polticas, processo poltico e contedo daspolticas - recorrendo aos questionamentos tradicionalmente utilizados pela cincia poltica (FREY, 2000). Acorrente da anlise dos estilos polticos (a partir de Namacher e outros) destaca, alm dos fatores culturais, ospadres de comportamento poltico e inclusive atitudes de atores polticos singulares como essenciais paracompreender melhor o processo poltico, que, por sua vez, repercute na qualidade dos programas e projetospolticos elaborados e implementados (FREY, 2000, p. 235). O institucionalismo (tradicional) centra seusestudos na descrio e comparao de estruturas tanto institucionais como jurdicas de diferentes nveis degoverno e pases (ROMANO, 2007). O neoinstitucionalismo da escolha racional pressupe que as instituiesno apenas constrangem a escolha feita pelos atores, modificando seus comportamentos, como reduzem aocorrncia de solues sub-timas. Douglass North critica esta vertente por ela aplicar sem questionamento osmodelos da economia neoclssica. Contudo, Medeiros (2001) afirma que North acaba recriando as condiesfavorveis livre concorrncia - as foras bsicas do desenvolvimento econmico estariam nas relaesdescentralizadas do mercado. O neoinstitucionalismo alm de tomar as instituies como elemento central nasanlises dos processos polticos e sociais, grosso modo, procura demonstrar o papel estabilizador das instituiesaos sistemas poltico-administrativos (FREY, 2000). O neoinstitucionalismo histrico toma como objetivocentral a construo de uma teoria de mdio alcance (baseada em afirmaes provisrias) que estabelea aligao entre as anlises centradas no Estado e na sociedade, enfocando variveis de nvel intermedirio de modoa compreender a variao histrica e conjuntural dos fenmenos. Os autores desta corrente procuram sedistanciar dos neoclssicos, mas tambm de teorias gerais globalizantes como o marxismo. A autonomia estatal(entendida como isolamento, insulamento) no pode ser definida a priori, mas em cada situao histrica. Assim,ela varia de caso a caso, e dentro de cada um destes, de agncia para agncia. Questiona-se ainda a racionalidadedo Estado como ator, de modo que se concebe que as aes de agncias estatais podem ser parciais efragmentadas, irracionais e desarticuladas. Este questionamento tambm feito pela corrente da anlise setorialque estuda o Estado em ao (suas polticas e aes), negando a existncia de um Estado racional e unificado(que imprime sua racionalidade sociedade) e que possa ser capturado por classes ou grupos sociais. Como oresultado das polticas contingente o papel dos atores torna-se fundamental. (MARQUES, 1997). A correnteState-in-society destaca a autonomia e permeabilidade do Estado e defende a desagregao do mesmo para seestudar alm das agncias e polticas estatais principais aquelas que envolvem polticas menos centrais e nveisde governo e localizaes perifricas (onde as agncias podem ser localmente capturadas), pois, como h vriosnveis de Estado, impossvel ocorrer uma autonomia geral (apesar de existir grande autonomia nos nveiscentrais) na realidade o que existe uma mirade de autonomias contingentes de conjunturas concretas(MARQUES, 1997). Finalmente, o estudo das redes sociais, segundo Le Gals, principalmente uma propostametodolgica para analisar a ao pblica e sua interao com outros atores, no se limitando somente aogoverno. Segundo Whrigt o Estado estudado a partir dos ministrios, agncias, etc., de modo que os atoresestatais diferem entre si por suas funes, objetivos e estratgias, produzindo conflitos e fragmentando o prprioEstado (ROMANO, 2007; MARQUES, 1997).

  • 8a uma interpretao do Estado como um corpo estranho, onde suas partes atuariam como queplenamente independentes, autnomas e em conflito com as demais.

    2.1. A Determinao pelas Classes Sociais: o Marxismo Clssico

    Apesar da temtica adotada no estamos nos propondo a fazer um estudo especficosobre uma instituio em si, tampouco temos a inteno, tal qual procedem alguns estudosinstitucionais e de polticas especfico-setoriais, de buscar fundamentalmente caminhos quetornem mais eficientes as instituies. No estamos discutindo a eficincia ou no do Estado,queremos entender o sentido da ao de suas instituies e suas relaes com outros atoressociais. Ademais, e isso queremos destacar, no acreditamos que a regra da ao estatal seja acontingncia, por isso, apesar de certa autonomia e imprevisibilidade h tambm umadeterminao nas polticas do Estado e que tem a ver, entre outros, com a prpriaconformao da sociedade na qual ele se insere e produto isso procuraremos demonstrar,mesmo que secundariamente, no decorrer da tese.

    Sem querer negar as relaes estabelecidas no plano micro e recorrendo a elas quandonecessrio, acreditamos que para entender o papel da Amaznia na reproduo capitalistabrasileira necessariamente temos que ampliar nosso foco de anlise, de modo a perceber osmovimentos mais gerais que ligam a regio ao processo nacional e suas relaes com o planointernacional e, ainda, com uma sociedade marcada por interesses divergentes de classessociais, grupos e fraes do capital. A compreenso terica que melhor responde s nossasnecessidades o marxismo. Vejamos.

    Para os clssicos da poltica (Hobbes, Locke e inclusive Rousseau), assim como Smithe Hegel, o Estado visto como representante de uma coletividade social, como um produto detodos e da razo, acima das classes e dos interesses particulares. , portanto, provedor dobem-comum (CARNOY, 1990). Diferentemente, para Marx, se a sociedade divida emclasses, burgueses versus proletrios, o Estado no pode ser a encarnao de um interesseuniversal (o bem-comum), justamente porque ao defender a propriedade privada elepossibilita a explorao da minoria proprietria dos meios de produo sobre a maioria noproprietria, garantindo, deste modo, a manuteno e o antagonismo entre as classes sociais(MARX e ENGELS, 1987). Assim concebido, o Estado um Estado de classe, uma entidadeque no capitalismo defende os interesses da burguesia, um instrumento e instituio deexplorao dominado pela burguesia.9 Esta constatao sobre o Estado, parte da realidadeconcreta, da existncia material dos homens. Hegel transferiria a histria real para aconscincia. Marx, inversamente, parte da realidade material da sociedade para a conscincia,por isso materialista (MARX e ENGELS, 1999).

    nesta realidade concreta que se desenvolve a sociedade humana. No seudesenvolvimento surgiram interesses particulares ligados a determinados grupos e classes que,em conflito, tornam necessrio o controle e a interveno prtica atravs do ilusriointeresse-geral como Estado (MARX e ENGELS, 1999, p. 39).

    Engels (1984) em A Origem da Famlia, da Propriedade Privada e do Estado afirmaque o Estado no pode ser concebido como um poder imposto sociedade de fora para dentro,tambm no a realidade da idia moral ou a a imagem e a realidade da razo tal qual

    9 Deste modo na interpretao marxiana para apreender o Estado capitalista torna-se necessrio que oanalisemos como produto e produtor das relaes sociais capitalistas. Ora, se o capital uma relao socialprecisa e o Estado aquele que garante a forma privada de acumulao, ao faz-lo, o Estado assegura, ao mesmotempo, a reproduo das classes sociais no modo de produo capitalista. Da mesma forma que o crescimentodo capital [...] o crescimento do proletariado, a reproduo do capital implica a reproduo das classes sociaisantagnicas nesse modo de produo, alm, naturalmente, de reproduzir, em escala ampliada, as condiesmateriais do processo produtivo (LIMA, 2006, p.102).

  • 9Hegel defendia. ele, por um lado, um produto da sociedade em certo estgio dedesenvolvimento; por outro, a constatao de que esta sociedade chegou a um ponto em queno consegue resolver seus antagonismos e conflitos presentes. Este poder, nascido dasociedade, mas posto acima dela, se distanciando cada vez mais, o Estado10 (ENGELS,1984, p. 191).

    Percebe-se no que j foi exposto aqui dois elementos de presena constante na obra deMarx e Engels. Um a existncia material determinando a conscincia e as formas deorganizao polticas e sociais.11 O segundo a compreenso de que a histria da sociedadedeve ser entendida a partir do conflito entre as classes sociais. A determinao pelomaterial e pelas classes sociais marca a anlise do Estado feita por Marx e Engels,12 mas usada por diversos crticos para apontar um determinismo simplrio do marxismofundacional. No h como negar elementos de determinismo na obra dos dois autores, mas necessrio, antes de tudo, contextualizar e compar-los a outros trabalhos dos mesmos.Acrescentemos a isso um questionamento: o Estado age mecanicamente em relao aosinteresses da burguesia? A resposta a esta questo envolve o nvel de autonomia estatal diantedas classes. A autonomia do Estado diante da burguesia aparece quase nula em algunsmomentos de Marx, em outros a autonomia mais efetiva.

    No Manifesto Comunista as classes sociais so apresentadas de forma homognea, a burguesia contra o proletariado.13 Uma anlise das classes assim colocada se reflete nacompreenso sobre o Estado, que tambm se apresenta como monoltico ou simplesrepresentao da burguesia. Ela conquistou finalmente a soberania poltica exclusiva noEstado representativo moderno. O governo do Estado moderno apenas um comit para geriros negcios comuns de toda a burguesia (MARX e ENGELS, 1987, p. 104) - afirmaotambm compartilhada em A Ideologia Alem. O poder poltico , ento, poder organizado(em Estado), instrumento para explorao de uma classe por outra.

    O Estado , nestes termos, a representao literal dos interesses da burguesia, masdeve s-lo em nome da coletividade, dos interesses supostamente comuns a todos. Ao mesmotempo em que centraliza as decises o Estado deve ser visto como despolitizado, como nomonoplio da burguesia e como representante de toda a sociedade.

    10 Deste modo, diferentemente de Hegel e de outros pensadores, no o Estado que molda a sociedade, mas oinverso.11 No prefcio de Para a Crtica da Economia Poltica Marx (1982), ao expor seu mtodo de anlise da sociedade,concordando com o que coloca A Ideologia Alem, afirma que na luta pela sobrevivncia e no desenvolvimentoda sociedade os homens contraem determinadas relaes de produo (estrutura econmica) que condizem comcerto nvel de desenvolvimento das foras produtivas. Sobre estas (que so a base) surgem determinadas formasde organizao poltica (superestrutura), as quais correspondem certas formas de conscincia. Assim entendido,uma forma especfica do Estado deve corresponder a certo nvel de desenvolvimento tcnico da sociedade. Destemodo, o Estado histrico, diferente da no historicidade de Hegel que o toma como eterno, racional etranscendendo a sociedade enquanto coletividade idealizada, ou seja, um Estado ideal que envolve uma relaojusta e tica de harmonia entre os elementos da sociedade (CARNOY, 2004, p. 66)12 O trao mais marcante e sntese da interpretao do Estado por Marx que o Estado um Estado de classe.Disso se conclui que no possvel democratizar plenamente o Estado burgus, pois sua razo de existncia oprprio conflito entre as classes e a manuteno da explorao. Por conta disso, para Marx, na Crtica aoPrograma de Gotha, a melhor forma de governo aquela cuja forma de extino do Estado agilizada, esta aditadura do proletariado: entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista transcorre o perodo detransformao revolucionria de uma em outra. A ele corresponde tambm um perodo poltico de transio, queno pode ser seno a ditadura revolucionria do proletariado (MARX apud BOBBIO, 1997, p. 172). Com odesaparecimento das classes, desaparecer inevitavelmente o Estado (ENGELS, 1984, p. 196).13 Isso no era toa, acreditava-se que revolues eclodiriam brevemente na Europa e que os trabalhadorespoderiam sair vitoriosos. Alm disso, buscava-se apresentar claramente as fronteiras de classe, chamar ostrabalhadores a lutar contra a classe inimiga. Assim, no Manifesto Marx e Engels no se propunham a discorrersobre as contradies internas a uma e outra classe.

  • 10

    Enquanto representao direta, imediata e literal da burguesia o Estado perde qualquerautonomia, ao mesmo tempo em que representa uma classe monoltica. A esta compreensopodemos comparar a anlise feita no 18 Brumrio de Lus Bonaparte (MARX, 2006), escritoem 1852. Aqui as classes so analisadas em movimento e a partir do desenrolar dos fatos queocorrem na Frana em fins da dcada de 1840 e incio dos anos 1850. O proletariado derrotado de incio e fica margem dos acontecimentos, o campesinato apresenta muitasdificuldades organizativas e acaba servindo de sustentao a Lus Bonaparte. J a burguesiaaparece envolvida em diversas disputas internas, disputas que a fragilizam e possibilitam aonovo Bonaparte subir ao poder.

    Nesta anlise as classes no so to homogneas quanto no Manifesto. Na medida emque no so monolticas, o Estado no um simplrio, direto e imediato representante dosinteresses da burguesia j que esta classe apresenta fraes em luta interna por seus interessesparticulares. O prprio Bonaparte no era o representante imediato e membro nato daburguesia industrial ou financeira e nem das fraes monrquicas em disputa. Ento o Estadoaparece com certa e relativa autonomia diante das classes, 14 o mesmo acontecendo com opoder poltico frente ao econmico. A disputa entre as classes sociais e entre as fraes daclasse dominante cruzam o Estado.15

    Podemos ento concluir que Marx no se apresenta to determinista quanto podeparecer no Manifesto Comunista, tampouco to ingnuo a ponto de no ver a complexidadedas classes sociais e do Estado. Mas compreender esta complexidade no significa acreditarque a mesma supere as fronteiras de classe, ou seja, que se sobreponha a este recurso terico-conceitual, secundarizando-o no estudo estatal e dos demais fenmenos sociais. Ao contrrio.Apesar de todas as contradies internas da burguesia e do surgimento de outros fenmenos, oEstado em Marx continua como um Estado de classe, atuando no apenas como mantenedorda propriedade privada, mas tambm como parte necessria do processo de acumulao decapital.

    Na anlise do Estado foi Lnin (1987) quem destacou e aprofundou um elemento jpresente em Marx e Engels: o carter coercitivo e repressivo, o Estado como brao armado daburguesia.16 O Estado em Lnin, a partir de sua leitura de Marx e Engels, s existe enquantopermanecer o conflito entre as classes que irreconcilivel. Mesmo com a ampliao deinstituies e conquistas de cunho democrtico o Estado no capitalismo diretamentecontrolado pela burguesia, tendo como papel central a coero sobre os trabalhadores.Independente das variadas formas que assumem os Estados burgueses a essncia que elesso uma ditadura da burguesia.17

    14 Mas a autonomia estatal com grande significncia pode ocorrer no como regra, e sim em perodos ocasionais,quando uma classe ou uma frao da classe dominante no consegue impor seu domnio sobre as demais. Engelsreconhece esta autonomia e mesmo assim afirma que o Estado, em todos os perodos tpicos, exclusivamenteo Estado da classe dominante e, de qualquer modo, essencialmente uma mquina destinada a reprimir a classeoprimida e explorada (ENGELS, 1984, p. 199). Por outro lado, a autonomia relativa depende, entre outros, dacorrelao de fora entre as classes, particularmente do proletariado no momento em questo. Trotsky (1979),especificamente, ao mesmo tempo em que reconhece o Estado como representante dos interesses da burguesiatambm destaca o papel da luta de classes na configurao do mesmo. A classe explorada luta para trazer paraperto de si, em certa medida, o curso do Estado (de suas polticas). Assim, o carter de um regime poltico ,segundo o dirigente revolucionrio russo, determinado pela luta de classes entre oprimidos e opressores.15 Neste caso Francs a autonomia explcita: Foi somente sob o segundo Bonaparte que o Estado pareceutornar-se completamente autnomo. A mquina do Estado consolidou a tal ponto sua posio sobre a sociedadeburguesa (Brerliche Gesellscharft), que lhe basta ter frente o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro(MARX, 2006, p. 131), criada por Lus Bonaparte e que, de acordo com Marx, reunia 10 mil indigentes.16 Veja Origem da Famlia, de Engels, op. cit., p. 192 a 198.17 A interpretao de Lnin acompanhada da compreenso de que o capitalismo entrara numa nova fase, a fasemonopolista, sob o predomnio do capital financeiro e com o mundo partilhado entre as grandes potnciasimperialistas (LNIN, 1989). Nesta fase se agudizara a contradio entre as foras produtivas e as relaes

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    Do que expusemos queremos destacar o Estado enquanto permeado pelos interesses daclasse dominante, mas tambm com autonomia relativa em relao a esta. Trabalhar com adefinio de autonomia relativa do Estado nos permite ver, por um lado, que h interesses eatores que em determinado momento influenciam significativamente a ao e o sentido daspolticas estatais. Estes interesses, grosso modo, esto relacionados aos setores que detmpoder poltico e econmico. Por outro lado, a definio de autonomia relativa nos possibilitatambm ver que o Estado no um simples fantoche nas mos destes interesses, que outrosatores atuam e pressionam o Estado desde outras fraes das classes dominantes que noesto diretamente representadas no governo, passando pela prpria burocracia e incluindo asclasses trabalhadoras e movimentos sociais. A existncia destes outros interesses emassociao ou em conflito com os interesses presentes no governo de ento complexificam aao estatal, produzindo maiores desafios para aqueles que procuram descortin-la.

    2.2. Complexificando a Determinao pelas Classes

    A determinao estrutural de Marx e Engels mantida por alguns autores, assim comorevisada por outros ainda que no dilogo com ou no campo do marxismo. Przeworsky (1995)conclui que o Estado est envolto em um alto grau de imprevisibilidade quanto s suas aes,inclusive porque essas tambm transformam a estrutura de preferncias dos consumidores efirmas. Mesmo destacando que a dependncia estrutural de natureza econmica, deve-seobserv-la como produto dos conflitos polticos que colocam o Estado em uma situao dedependncia dos atores privados. Deste modo, Przeworsky reafirma a centralidade doscapitalistas, mas nega o carter classista do Estado. Assim, os interesses dos trabalhadores edos capitalistas podem no ser irreconciliveis e os primeiros, sob certas condies, podemescolher o capitalismo pelo que ele pode oferecer material e politicamente.18 Przeworskycritica na prtica uma falta de problematizao por parte do marxismo. Em parte pode terrazo, mas no podemos deixar de ver as diversas contribuies que complexificaram acompreenso original do marxismo sobre a questo estatal.

    Gramsci problematizou o papel do Estado na sociedade moderna e para taldesenvolveu sua interpretao sustentada na sua concepo de hegemonia que acaba porcomplexificar este debate acerca da autonomia ou no do Estado. A hegemonia nos Cadernosdo Crcere, segundo Bobbio, para alm de direo poltica adquire tambm epreponderante o significado de direo cultural (BOBBIO, 1999, p. 67). Ele faz aafirmao com o tambm por acreditar que o segundo significado no exclui o primeiro. Adireo cultural seria a introduo de uma reforma em sentido forte, uma transformao doscostumes e da cultura.

    Em determinado momento, Gramsci toma a hegemonia como sntese de coero econsentimento, noutro a hegemonia situada no interior do Estado e este incorporaria asociedade civil e a sociedade poltica. Mas, segundo Anderson (2002) o que predomina nosCadernos do Crcere a viso que ope hegemonia (situada na sociedade civil) ao Estado

    sociais de produo, provocando crises e, diferentemente do momento vivido por Marx e Engels, colocando noapenas a necessidade, mas tambm a possibilidade objetiva da superao do capitalismo por meio da revoluosocialista.18 Bob Jessop tambm questiona, ainda que implicitamente, o carter classista do Estado, assim como dasociedade. Para ele, que trabalha com conceitos de estratgia e hegemonia, o modelo de crescimento econmicovigente expressa a estratgia de acumulao da frao de capital que conseguiu conquistar a hegemoniaeconmica no sentido gramsciano, bastante diverso da dominao econmica. Esta seria uma dentre as muitasestratgias possveis dependendo das vrias correlaes de fora na sociedade. H, ento, a possibilidade deconquista da hegemonia por fraes do capital que venham a agir contra o capital em geral ou aos capitalistasenquanto classe (MARQUES, 1997, p. 74-75).

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    (sociedade poltica) e, por conseguinte, coero. Enquanto em Maquiavel o consentimentofoi mergulhado na coero, em Gramsci a coero foi secundarizada em relao aoconsentimento, permitindo que se conclusse que o poder burgus seria essencialmenteconsensual.

    A hegemonia assume um papel central na anlise gramsciana a ponto de ser usadacomo parte da definio de Estado. Estado todo o complexo de atividades prticas etericas com as quais a classe dirigente justifica e mantm no s o seu domnio, masconsegue obter consentimento ativo dos governados (GRAMSCI, 1976, p. 87). Deste modo,O campo de ao das classes e dos seus Estados passa necessariamente pela questo dahegemonia (DIAS, 1996, p. 34).

    Concentrada na sociedade civil, a hegemonia assume centralidade e se sobrepe coero. Diferentemente do exposto por Marx e Engels, e tomado como central em Lnin, oEstado, nesta verso gramsciana, no est assentado na coero, mas no consentimento e opoder burgus sustenta-se na hegemonia que a burguesia exerce sobre a classe trabalhadora.Deste modo, Gramsci subordina o Estado sociedade civil.19

    Em Gramsci o Estado problematizado e no se apresenta como um simples alvo aconquistar. Ele se tornou algo complexo que se enraizou na sociedade. No pode mais, se que alguma vez isso foi correto, ser visto como exterioridade. Com sua imensa burocracia, ele capaz de vigiar e punir, mas tambm organizar e representar (DIAS, 1996, p. 30).

    Compreendendo que o Estado no exterior economia e s suas relaes deproduo, ao contrrio, e que apresenta uma ossatura material prpria que no pode serreduzida a simples dominao poltica, Poulantzas (2000) critica tanto a tese de que a baseeconmica em si somente determina o Estado (a superestrutura seria reflexo mecnico destabase), quanto a tese de que o Estado totalmente autnomo (Estado-sujeito) em relao base econmica.

    Partindo da compreenso da luta de classes, Poulantzas afirma que o Estado nocapitalismo constitui a burguesia como classe politicamente dominante, porm faz um alerta:

    certamente a luta de classes detm o primado sobre os aparelhos, no caso sobre osaparelhos de Estado: mas no se trata de uma burguesia j instituda como classepoliticamente dominante fora ou antes de um Estado que ela criara para suaconvenincia prpria, e que funcionaria apenas como simples apndice dessadominao. Essa funo do Estado est igualmente inscrita na sua materialidadeinstitucional: trata-se da natureza de classe do Estado (POULANTZAS, 2000, p.128).20

    19 A preponderncia da sociedade civil sobre a sociedade poltica e a colocao da primeira como uma dasinstncias da superestrutura levou Bobbio (1999) a afirmar que Gramsci inverte o esquema marxiano, colocandoa determinao no mais na estrutura, mas na superestrutura. Outro intrprete da hegemonia gramsciana Coutinho (1996) que afirma que Gramsci assentou os fundamentos de uma transio democrtica ao socialismo.Por outro lado, Anderson (2002) afirma que h outras duas verses em Gramsci para a relao entre Estado,sociedade e hegemonia. A segunda apresenta Estado e sociedade civil como estando em equilbrio e a hegemoniacomo uma combinao de coero e consentimento que est tanto na segunda (sociedade civil) como no Estado(sociedade poltica). A hegemonia, nesta elaborao, deixa de ser exclusividade da sociedade civil, ao mesmotempo em que deixa de ser apenas supremacia cultural, incorporando um novo elemento: a coero. Na terceiracompreenso a oposio presente em ambas desaparece, pois o Estado passa a abarcar a prpria sociedade civil,de modo que ele se torna o somatrio de sociedade poltica e sociedade civil. Na noo geral de Estado entramelementos que tambm so comuns noo de sociedade civil (neste sentido, poder-se-ia dizer que o Estado =sociedade poltica + sociedade civil, isto , hegemonia revestida de coero) (GRAMSCI, 1976, p. 149). Assimposto, o Estado, para alm de aparato governamental, deve ser compreendido tambm como aparelho privado dehegemonia, de onde se conclui que a sociedade civil e o Estado se identificam (GRAMSCI, 1976, p. 32).20 Compartilhando esta interpretao Codato e Perissinotto (2001) concluem que a funo de mediaodesempenhada pelo Estado, por meio de atividades administrativas e burocrticas rotineiras, se torna decisiva determinao do carter classista deste Estado.

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    Neste caminho, o papel principal do Estado organizativo, pois representa e organizao interesse poltico do bloco no poder composto de vrias fraes da burguesia e, em algunscasos, de classes dominantes provenientes de outros modos de produo (grandesproprietrios de terra, por exemplo).21

    As classes dominantes so organizadas objetivando interesses de curto prazo dasfraes que se hegemonizem no bloco no poder e da burguesia ao longo prazo. Isso ocorre soba hegemonia de uma das classes ou fraes do bloco no poder. Deste modo o Estado constituia unidade poltica das classes dominantes. Mas ele consegue desempenhar esta funo namedida em que dispe de uma autonomia relativa em relao ao bloco no poder (inclusive aocapital monopolista).22 Como o Estado um campo de lutas (uma arena), suas diversasagncias podem defender posies divergentes mesmo aos componentes do bloco no poder, oque no tira o seu carter de classe.

    Mas as interpretaes tais quais a de Poulantzas no esto isentas de crticas.Neoinstitucionalistas e outras correntes afirmam que o conceito de autonomia relativa doEstado no supera as limitaes da teoria original, ao contrrio, reproduz sofisticadamente oreducionismo marxista que identifica o poder de classe com o poder de Estado, nopermitindo, por isso, que se analise o Estado e a sociedade em suas esferas prprias e numaperspectiva relacional. Esta , por exemplo, a crtica de Fred Block (MARQUES, 1997).

    Codato e Perissinotto (2001) respondem crtica neoinstitucionalista recorrendo sobras histricas de Marx (o 18 Brumrio, por exemplo, j analisado por ns) para demonstrarque o fundador do marxismo evidencia a ocorrncia de uma disputa feroz entre as classes efraes de classe pelo controle do aparelho estatal, particularmente os ramos que controlampoder de deciso o que garantiria o predomnio poltico de quem tivesse este controle. Comisso procuram demonstrar que Marx, apesar da existncia de um vis funcionalista ereprodutivo,23 no menospreza o Estado enquanto instituio.

    preciso notar que o Estado no entendido por Marx exclusivamente a partir de suafuno (isto , a partir dos resultados produzidos por suas decises), mas tambmcomo uma organizao complexa, atravessada de cima a baixo por conflitosinternos entre seus aparelhos e ramos, conflitos esses capazes de alterar a dinmica daluta poltica. Mais do que isso: o Estado aparece em Marx, como uma organizaodotada de recursos prprios, cujos agentes, tanto no mbito do poder executivocomo no mbito do poder legislativo, desenvolvem interesses prprios a partirdos quais orientam suas aes. Aqui o Estado entendido como uma instituiosubdividida em um sem-nmero de aparelhos, capaz de tomar decises, de alocarrecursos e que, inserido num contexto poltico instvel, estabelece com as foras

    21 O bloco no poder, segundo Poulantzas (1986) seria uma particularidade do Estado capitalista. O conceito partedas elaboraes marxianas, alm da definio de hegemonia j trabalhada por Gramsci, mas o autor lembra queMarx no desenvolveu este conceito (hegemonia) o que o leva, segundo Poulantzas, a algumas imprecisescomo a fala de monoplio do poder. Por outro lado, a hegemonia de uma classe ou frao exercida sobre outrasclasses ou fraes componentes do bloco no poder e tambm das classes dominadas, por isso este conceito nosignifica equilbrio de foras, mas hegemonia de uma classe ou frao sobre as demais. O bloco no poderconstitui uma unidade contraditria das classes ou fraes dominantes, unidade dominada pela classe ou fraohegemnica (POULANTZAS, 1986, p. 293). Assim, deve-se organizar a unidade conflitual da aliana de podere do equilbrio instvel dos compromissos entre seus componentes.22 Carnoy (2004) afirma que nos primeiros trabalhos de Poulantzas o grau de autonomia atribudo ao Estado muito maior que em O Estado, o poder e o socialismo (POULANTZAS, 2000). O prprio Poulantzas,anteriormente, j definira o que seria esta autonomia: por autonomia relativa deste tipo de Estado, entendo,aqui, no diretamente a relao das suas estruturas com as relaes de produo, mas a relao do Estado com ocampo da luta de classes, em particular a sua autonomia relativa em relao s classes ou fraes de bloco nopoder e, por extenso, aos seus aliados ou suportes (POULANTZAS, 1986, p. 252). Alm disso, o autorcompreende uma autonomia relativa do poltico em relao ao econmico.23 Onde poder de classe se identifica com poder de Estado.

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    sociais que se encontram fora dele uma relao conflituosa (CODATO ePERISSINOTTO, 2001, p. 25).

    Assim, possvel aceitar a possibilidade terica de que o poder de Estado, com todasas suas especificidades, se contraponha ao poder de classe. Em outras palavras, j que oaparelho de Estado no se esgota na dominao de classe (poder de Estado) possvel enecessrio aceitar como uma possibilidade terica a idia de que essa varivel possa operar acontragosto dos interesses (imediatos ou de longo prazo; especficos ou gerais) da classeeconomicamente dominante (CODATO e PERISSINOTTO, 2001, p. 28).

    Mas perceber a autonomia relativa do Estado para nada significa negar umadeterminao estrutural.

    O Estado um produto das contradies existentes ente trabalho produtivo eimprodutivo, produo material e imaterial, emprego e desemprego, foras produtivase relaes de produo, proprietrios e no proprietrios dos meios de produo esubsistncia, em sntese, o produto da luta de classes sociais cindidas, conflitivas,contraditrias e antagnicas. O caminho cientfico que procura desvendar o real nopode fugir destas categorias ao determin-lo (LIMA: s/d, p. 4).

    A afirmao de Codato e Perissinotto sobre o fato de o aparelho estatal no se encerrarna dominao de classe tomada de Poulantzas (2000). Neste sentido, o Estado no deve serconsiderado como uma entidade intrnseca, mas, assim tal qual o capital, como umacondensao material de uma relao de foras entre as classes e fraes de classe. Ascontradies de classes atravessam e constituem o Estado, encontram-se presentes no prprioseio do Estado (POULANTZAS, 1981, p. 84-85; 2000, p. 130).

    A definio das polticas do Estado produto das contradies de classe inseridas naprpria estrutura do mesmo (Estado-relao). Trabalhar nesta perspectiva compreender queo Estado constitudo-dividido de lado a lado por estas contradies. Sendo assim,diferente das concepes de Estado-coisa e Estado-sujeito, o Estado no pode nunca serconsiderado um bloco monoltico. Mas no suficiente afirmar que as contradies e lutas declasse atravessam o Estado, preciso entender que estas contradies constituem o Estado,presentes na sua ossatura material, e armam assim sua organizao (POULANTZAS, 2000,p. 135). 24

    Para Mandel (1982) a autonomia que o Estado assume na sociedade capitalista decorreda predominncia da propriedade privada e da concorrncia entre capitalistas e esta disputainterburguesa que mantm esta autonomia como relativa, pois as decises estatais, ou seja, docapitalista total ideal, transcendem os interesses de um capitalista especfico, masinterferem nestes e nos interesses dos demais burgueses. Assim, toda deciso estatal relativaa tarifas, impostos, ferrovias ou distribuio do oramento afeta a concorrncia e influencia aredistribuio social global da mais-valia, com vantagens para um ou outro grupo decapitalistas (MANDEL, 1982, p. 337).

    Para Poulantzas (2000) a autonomia relativa do Estado no exterior s fraes dobloco no poder (o prprio Estado no exterior a estas). A autonomia ocorre devido smedidas contraditrias que cada classe/frao introduz na poltica estatal, mesmo que naforma negativa (uma medida contra outra frao do bloco no poder, por exemplo). Isso sereflete na prpria burocracia e pessoal do Estado, constituindo-se feudos, cls e uma multidode micropolticas. Por outro lado, poltica estatal e autonomia no dependem apenas das

    24 Uma afirmao de Poulantzas bastante questionvel a que as classes e fraes do bloco no poder sparticipam da dominao poltica quando esto presentes no Estado. Se associarmos dominao a poder ecompreendermos que o mesmo extrapola os limites das instituies estatais, concluiremos que no necessrioestar fisicamente no Estado para participar da dominao poltica.

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    classes componentes do bloco no poder, dependem igualmente, e principalmente, do papel doEstado diante das classes dominadas.25

    Diante desta complexificao da ao estatal preciso ver que o Estado deve continuara tomar medidas essenciais para a reproduo do capital, mesmo que isso produza sriosproblemas sua hegemonia, aprofundando contradies dentro do bloco no poder e entre estee as classes dominadas, o que intensifica as crises para alm das crises simplesmenteeconmicas.

    Mas se o processo de acumulao do capital pauta doravante diretamente a ao doEstado, ele s se traduz em seu seio quando articulado e inserido na sua poltica deconjunto. Toda a medida econmica do Estado tem, portanto, um contedo poltico,no apenas no sentido geral de uma contribuio para a acumulao do capital e para aexplorao, mas tambm no sentido de uma necessria adaptao estratgia polticada frao hegemnica (POULANTZAS, 2000, p. 171).

    Quanto s funes do Estado, elas se incorporam na materialidade institucional deseus aparelhos: a especificidade das funes implica a especializao dos aparelhos que asdesempenham e d lugar a formas particulares da diviso social do trabalho no prprio seio doEstado. Mais que isso: no existem funes econmicas que todo e qualquer Estado teria quecumprir frente produo em geral. Essas funes s existem quando investidas na luta declasses, e tm, portanto, um carter e um contedo polticos. O aparelho econmico do Estadopossui no conjunto de sua textura um carter poltico (POULANTZAS, 2000, p.172 e 175).

    No tocante ao papel estatal na reproduo do capital vejamos Mandel (1982). Elesistematiza as principais funes do Estado como: 1) criao das condies gerais daproduo que a classe dominante no consegue assegurar por sua atividade privada; 2)represso s aes das classes dominadas ou mesmo de fraes da classe dominante contra omodo de produo existente; e 3) integrao das classes dominadas de modo a aceitarem,atravs da ideologia da classe dominante, sua prpria explorao. A segunda funo foitrabalhada por Lnin e a ltima foi bem desenvolvida por Gramsci e Lucks, mas a primeira,segundo Mandel, foi pouco desenvolvida pelo marxismo.26

    No estgio tardio do capitalismo monopolista h uma tendncia de que o Estadoaumente o planejamento econmico assim como a socializao estatal dos custos (riscos) e

    25 Mais uma vez: o Estado no apresenta uma racionalidade exterior s classes dominadas, ele concentra nosomente a relao de foras entre classes e fraes do bloco no poder, mas inclusive a relao de foras entreeste e as classes dominadas. As lutas populares tambm atravessam o Estado de lado a lado. Isso ocorre noporque sejam absorvidas por um Estado-Moloch totalizante, mas sim antes porque o Estado que est imersonas lutas que o submergem constantemente (POULANTZAS, 2000, p. 144-145). A configurao do conjuntode aparelhos e ramos do Estado depende, assim, para alm da relao de foras interna ao bloco no poder,tambm da relao entre este bloco e as massas populares. Mas o autor adverte que seria equivocado seria falsoquerer crer que a presena das classes populares no Estado significasse a deteno de poder por elas ou mesmoque o pudessem deter ao longo prazo sem que se transformasse radicalmente este Estado.26 A primeira funo do Estado, citada por Mandel, est diretamente relacionada produo, criando umamediao direta entre infraestrutura e superestrutura, isso inclui: assegurar os pr-requisitos gerais e tcnicos doprocesso de produo efetivo (meios de transporte ou de comunicao, servio postal etc.); providenciar os pr-requisitos gerais e sociais do mesmo processo de produo (como, por exemplo, sob o capitalismo, a lei e aordem estveis, um mercado nacional e um Estado territorial, um sistema monetrio); e a reproduo contnuadaquelas formas de trabalho intelectual que so indispensveis produo econmica, embora elas mesmas nofaam parte do processo de trabalho imediato (desenvolvimento da astronomia, da geometria, da hidrulica e deoutras cincias naturais aplicadas no modo de produo asitico e, em certa medida, na Antiguidade; amanuteno de um sistema educacional adequado s necessidades de expanso econmica do modo de produocapitalista etc.). (MANDEL, 1982, p. 334). Apesar de Mandel destacar esta relao do Estado com a produocapitalista ele chama ateno para o fato de que o Estado anterior ao capital e que no se devem derivar asfunes estatais diretamente das necessidades de produo e circulao de mercadorias.

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    perdas numa quantidade cada vez maior de processos produtivos. Isso ocorre por conta dasdificuldades de valorizao do capital.27 Portanto, h uma tendncia inerente ao capitalismotardio incorporao pelo Estado de um nmero sempre maior de setores produtivos ereprodutivos s condies gerais de produo que financia. Sem essa socializao doscustos, esses setores no seriam nem mesmo remotamente capazes de satisfazer asnecessidades do processo capitalista de trabalho. (MANDEL, 1982, p. 339)

    A hipertrofia do Estado neste estgio, ou subestgio, do capitalismo , assim,decorrncia das necessidades do capital total, mas esta nacionalizao e entrada do Estado naesfera da produo s ter sentido para a burguesia se no implicar em queda das taxas demais-valia e de lucro. Busca-se a elevao destas ou pelo menos sua estabilizao. Destemodo, o Estado no pode se tornar um concorrente direto das empresas privadas, reduzindo osmercados destas.

    A atividade do Estado nas obras pblicas e infraestruturais contribuem para avalorizao do capital total. Na transferncia ao Estado dos custos indiretos da produo erealizao da mais-valia a burguesia ganha na medida em que o financiamento deste processono se limita aos lucros dos empreendimentos capitalistas. Alm disso, a tributao dosrendimentos de pequenos produtores independentes e da pequena burguesia amplia o capitalestatal e aumenta da produo de mais-valia. Assim, a crescente ao infraestrutural doEstado capitalista se apresenta como uma subveno cada vez maior do capital privado.

    A subveno estatal indireta ao capital pode combinar-se com a produo direta demais-valia, a saber, quando a nacionalizao de certos ramos da indstria, produtoresde matrias-primas, energia ou artigos semi-acabados leva venda das mercadoriasproduzidas por esse setor pblico a uma taxa de lucro abaixo da mdia, se no comprejuzo, em relao empresa privada. Nesse caso, parte da mais-valia produzidapelos trabalhadores do setor nacionalizado transferida para o capital privado, o quetem o mesmo efeito de uma subveno geral empresa capitalista privada, ou de umaumento geral do volume de lucro apropriado pelo capital privado (MANDEL,1982, p. 388).

    Para Domnhoff os capitalistas so a classe dominante e a elite no poder seria o seubrao operacional. Diferente da pulverizao da representao de interesses, a construo depolticas sobre grandes temas processa-se sob a convergncia dos capitalistas. A articulaode interesses, dispersos (e privados) para consensos sobre temas fundamentais desenvolve-sesob a ao de suas organizaes, que ainda serviria de correia de transmisso no processo deimposio de polticas ao Estado (MARQUES, 1997).

    Miliband afirma, divergindo de Domnhoff, que apesar de estar bem representada noexecutivo poltico, a classe capitalista no estaria no governo. A existncia de uma eliteestatal explicaria o carter de classe do Estado, mas a explicao quanto existncia destaelite deveria ser buscada para alm da esfera econmica: na cultura e na poltica. Mais: ocompartilhamento de valores e representaes o que explica o carter de classe do Estado nocapitalismo. Neste sentido, o que importa que a elite estatal, que tem a mesma composioda elite econmica (pois so recrutadas nas classes mdias altas), tenha o controle e gesto do

    27 O capitalismo tardio caracteriza-se por dificuldades crescentes de valorizao do capital (supercapitalizao,superacumulao). O Estado resolve essas dificuldades, ao menos em parte, proporcionando oportunidadesadicionais, numa escala sem precedentes, para investimentos lucrativos desse capital na indstria dearmamentos, na indstria de proteo ao meio ambiente, na ajuda a pases estrangeiros, e obras de infra-estrutura (onde o lucrativo significa tornado lucrativo por meio da garantia ou subsdio do Estado)(MANDEL, 1982, p. 340).

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    Estado. O controle do Estado est, portanto, entregue a pessoas imersas no mesmo conjuntode valores, vises de mundo e representaes capitalistas (MARQUES, 1997, p. 71-73).28

    Ao analisar as aes coletivas de trabalhadores e capitalistas Offe (1984) percebe,assim como Miliband, que os capitalistas conseguem transformar seus interesses particularesem interesses nacionais, reduzindo drasticamente a ocorrncia de aes do Estado contra ocapital. Ele afirma que a distribuio assimtrica da capacidade de fazer representar seusinteresses configura poderes diferentes a estas classes, de modo que o Estado muito maisinfluenciado por capitalistas (que tm mais facilidade de agregao e representao) que portrabalhadores (que sofrem com a atomizao do trabalho). Nisto Offe se diferencia da anlisesetorial e de outras correntes de cunho institucional. Os capitalistas dispem de poder desano individualmente, enquanto os trabalhadores necessitam de suas organizaes para isso.

    Trabalho e capital apresentam diferenas significativas quanto ao funcionamento edinmicas de suas associaes representativas. Estas diferenas so produto das relaesantagnicas de classe.29 Offe questiona a noo de neutralidade do Estado na medida em queeste deve garantir a valorizao do capital, o que demonstra seu carter de classe. Assim, hvnculos estruturais entre poder econmico e poltico, entre capital e Estado.30

    Na perspectiva deste autor as estruturas estatais teriam uma seletividade responsvelpor filtrar questes apresentadas ao Estado, implementando aes diretamente ligadas criao e recriao de condies da acumulao e ao processo de legitimar a dominao declasse. Esta seletividade atuaria atravs da estrutura do Estado capitalista, da ideologia, doprocesso poltico, alm da represso. O Estado, ento, orientar-se-ia na busca da unificao deum interesse capitalista global, mesmo que isso o levasse a choques com grupos de interessesisolados. De outro lado, este Estado no processo de seletividade protege o capital globalutilizando-se de mecanismos de represso contra interesses anti-capitalistas. a juno destesdois elementos (unificao de um interesse capitalista global e represso) que demonstra ocarter de classe do Estado.

    Pode-se observar que o Estado no representa um espao em que os vrios atoresatuam em iguais condies de disputa (h uma desigualdade de poder). O Estadomaterializado nas polticas pblicas na Amaznia demonstra um perfil de classe, os setoresque o controlam determinam projetos de apoio ao capital e grande propriedade. Quanto distribuio de seus recursos, diversos setores das fraes dominantes da regio disputamentre si, mas em nenhum momento se propem a ferir os interesses fundamentais dareproduo do capital e da propriedade, demonstrando uma espcie de filtro s questes queso tomadas como fundamentais ao desenvolvimento. Estes setores ajudam a construir esustentar esta forma de Estado justamente porque ele responde a seus interesses gerais.Quando no mais conseguir responder a estes interesses, ele passar a ser questionado.

    No estudo sobre o Estado e as polticas pblicas, Offe (1995, p. 235) destaca os gruposde interesses31 afirmando que numa economia industrial avanada as organizaes de

    28 Miliband tambm critica Poulantzas por proceder em um superdeterminismo estrutural, no conseguindo, porisso, ver as reais relaes entre Estado e sistema, sendo que as relaes entre classe dominante e sistema,segundo Miliband, so mais complexas do que uma determinao por relaes objetivas (CARNOY, 2004).29 As diferenas que um grupo apresenta na estrutura de classes leva a diferenas no poder que